Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1032/09.9TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
NULIDADE PROCESSUAL
RECURSO
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.201º, 202º, 205º, 264º, 265º, 268º, 272º E 273 CPC
Sumário: 1. Em acção de preferência, a rectificação das confrontações de dois prédios, a nascente e a poente que não contenda com a fonte do direito de preferência exercido, não importa alteração da causa de pedir.

2. Na ampliação da causa de pedir e do pedido pressupõe-se uma identidade qualitativa da causa de pedir e do pedido e uma mera mutação quantitativa destas.

3. Na falta de acordo das partes, a ampliação do pedido que não seja mero desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo apenas é viável em sede de réplica (artigo 273º, nº 2, do Código de Processo Civil), pelo que não é admissível em processo sumário, como sucede no caso dos autos.

4. À cumulação sucessiva de pedidos na acção declarativa, face à inexistência de uma previsão expressa, como sucede na acção executiva (artigo 54º do Código de Processo Civil), tem a doutrina processual considerado serem aplicáveis as regras que regem a alteração da causa de pedir e do pedido nos artigos 272º e 273º, ambos do Código de Processo Civil.

5. O recurso de apelação é um meio processualmente inadequado para suscitar o conhecimento de nulidade processual atípica alegadamente cometida perante o tribunal a quo e que, ao menos, não se ache implicitamente coberta por decisão judicial, pelo que, não sendo viável a convolação do recurso em reclamação da nulidade em virtude daquele ter sido interposto para além do prazo em que deve ser suscitada a reclamação da nulidade, existe um obstáculo de ordem processual ao conhecimento do objecto do recurso.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 15 de Julho de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, foi distribuída acção declarativa, ao segundo juízo desse tribunal, sob forma sumária, instaurada por MA (…) contra MC (…) e marido AL (…) e MH (…) e marido AS (…), tendo a autora formulado os seguintes pedidos:

            a) que se declare “que a metade indivisa que, por morte de seu pai, a autora herdou no prédio rústico descrito e identificado no artº 1º deste articulado[1], constitui hoje um prédio distinto e autónomo que se não confunde com o prédio rústico de que, em tempos recuados, fez parte, nem com qualquer outro prédio confinante, sendo o prédio da Autora actualmente constituído por terra de semeadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV..., omisso à matriz e não descrito na Conservatória do Registo Predial;

            b) – Serem os Réus condenados a reconhecerem que a Autora é dona e legítima possuidora do prédio distinto e autónomo composto de terra de semadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar do norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV..., omisso à matriz e não descrito na Conservatória do Registo Predial, constituído e adquirido por usucapião;

            c) – Declarar-se, por via a confinância do prédio da Autora com o prédio que foi objecto de venda, o direito de preferência da Autora na compra do prédio rústico que, por escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no Livro 81, de fls. 91 a fls. 92, os Réus MC (…) e marido AL (…) venderam aos Réus MH (…) e marido AS (…), substituindo-se a Autora no lugar dos Réus compradores MC (…) e marido AS (…)

            d) – Declarar-se, por da referida substituição, que o mencionado prédio rústico pertence à Autora;

            e) – Com referência à descrição predial nº .../20080805 da freguesia de U..., ordenar-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a substituição no registo dos Réus compradores MC (…) e marido AS (…) pela Autora;

            f) Condenar-se os Réus nas custas do processo, procuradoria condigna e mais legal.

Subsidiariamente,

na hipótese de improceder o direito de preferência  baseado na confinância, por se entender que o prédio objecto de venda não constitui um prédio distinto e autónomo, representando metade indivisa do prédio rústico acima identificado e descrito no artº 1º deste articulado, então sempre deverá:

            a) – Condenar-se os Réus a reconhecerem que o prédio rústico objecto de venda, através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, representa metade indivisa do prédio rústico acima identificado e descrito no artº 1º deste articulado;

            b) – Declarar-se que, por via da compropriedade, a Autora goza do direito de preferência na compra dessa metade indivisa do prédio identificado e descrito no artigo 1º deste articulado, venda que então os Réus MC (…) e marido AL (…) fizeram aos Réus MH (…) e marido AS (…), através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, substituindo-se a Autora no lugar dos Réus compradores MH (…) e marido AS (…);

            c) – Declarar-se, por via da referida substituição, que a metade indivisa do prédio rústico identificado e descrito no artº 1º deste articulado, vendida pelos Réus MC (…) e marido AL (…) fizeram aos Réus MH (…) e marido AS (…)através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, pertence à Autora;

            d) – Com referência à descrição predial nº n.../20080805 da freguesia de U..., comunicar-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a substituição no registo dos Réus compradores MH (…) e marido AS (…) pela Autora;

            e) – Ser declarada a anulação da inscrição matricial do prédio rústico que foi inscrito sob o artigo ... da freguesia de U..., ordenando-se ao Serviço de Finanças a anulação e cancelamento dessa inscrição matricial;

            f) – Ser declarada a anulação da descrição predial nº .../20080805 da freguesia de U..., ordenando-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a anulação dessa descrição, bem como a anulação e cancelamento de todos os registos de aquisição que os Réus hajam feito a seu favor sobre esse prédio;

            g) – Condenar-se os Réus nas custas do processo, procuradoria condigna e mais legal.

            AS (…) e cônjuge MH (…) contestaram alegando que o prédio que compraram não é o que a autora refere, como resulta do confronto de áreas e de confrontações, que a autora litiga de má fé e impugnaram a generalidade da factualidade articulada pela autora, alegando que esta teve conhecimento do negócio relativamente ao qual pretende exercer o direito de preferência no dia 20 de Janeiro de 2009 e que destinam o imóvel adquirido a armazenamento de pasto, lenha e parqueamento de viaturas, pugnando pela total improcedência da acção e, para a hipótese de procedência da acção, deduziram reconvenção pedindo a condenação da autora ao pagamento da quantia de € 4.745,00, a título de benfeitorias, acrescida de juros contados à taxa de 12 %, desde a notificação para contestar a reconvenção e o reconhecimento do direito de retenção a seu favor e até se encontrar pago o crédito dos reconvintes sobre a autora, pedindo ainda a condenação da autora como litigante de má fé ao pagamento de todas as despesas a que deu causa, incluindo os honorários dos mandatários e técnicos.

            A autora respondeu à contestação e contestou a reconvenção, admitindo lapsos na indicação das confrontações nascente e poente dos prédios identificados nos artigos 14º, 15º, 24º e 35º, todos da petição inicial, requerendo, em consequência:

a) a rectificação dos artigos 14º, 24º e 35º da petição inicial, bem como das alíneas a) e b) do pedido principal, “passando a constar que o prédio rústico aí descrito tem a seguinte descrição: terra de semeadura com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar do norte com serventia, nascente com (…), sul com regueira e poente com (…) (mãe da Ré MC (…))”;

b) a rectificação do artigo 15º da petição inicial, “no sentido de passar a constar que o prédio aí descrito tem a seguinte descrição: terra de semeadura com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar do norte com serventia, nascente com (…) sul com regueira e poente com (…);

c) “em consonância com o alegado na petição inicial e neste articulado, e no desenvolvimento dos pedidos primitivos, a ampliação do pedido formulado na acção, devendo o Tribunal julgar e decidir que o prédio inscrito na matriz da freguesia de U... sob o nº n.../20080805, tem a área de 2.000 m2, confrontando do norte com estrada (Rua das C ...), nascente com (…), sul com regueira ou ribeiro e poente com (…), ordenando-se ao Serviço de Finanças de Ourém e à Conservatória do Registo Predial de Ourém no sentido de procederem às devidas alterações, por forma que o prédio fique inscrito e registado com aquelas confrontações e área.

Os réus contestantes vieram oferecer articulado em que afirmam que inexistiu da parte da autora qualquer erro de escrita passível de rectificação e que pretende proceder à alteração da causa de pedir e do pedido de forma encapotada, opondo-se às alterações da petição inicial, por constituírem alteração da causa de pedir, bem como à ampliação do pedido, arguindo a nulidade do articulado de resposta da autora.

A 03 de Maio de 2011 realizou-se uma inspecção judicial, tendo sido exarado em auto que “Pese embora o dissenso em torno da localização do prédio face aos elementos documentais carreados pela Autora para os autos, impugnando os Réus a confinância com aquele que seu é, certo é que da inspecção ao local resulta que os prédios efectivamente em apreço confinam um com o outro, donde, se remete para o despacho a prolatar relativamente ao alegado pelos Réus a fls. 153 e seguintes a apreciação da relevância e admissibilidade da alteração da descrição do dito prédio.

A 20 de Maio de 2011 foi proferido o seguinte despacho:

Vistos os autos há a reter o seguinte:

Na resposta à contestação veio o ilustre mandatário da Autora requerer a rectificação [em moldes substanciais] da factualidade por si alegada na petição inicial atinente à localização dos prédios em apreço nos autos assentando tal pedido de rectificação em erro de compreensão do que pela sua constituinte lhe havia sido transmitido.

Pugnam os Réus não poder atendido o requerido porquanto tal configuraria uma alteração simultânea da causa de pedir e do pedido sendo que tal, atenta a forma processual que os autos observam apenas pode ser efectuada na replica, articulado esse que em tal forma processual não tem lugar, chamando a esse propósito jurisprudência que suporta a sua tese.

Foi efectuada inspecção ao local prévia à prolação deste despacho com os resultados vertidos a fls. 203/204, através da qual foi possível aquilatar e concluir que efectivamente, independentemente das imprecisões que o próprio mandatário da Autora reconhece, ocorre a confinância entre ambos os prédios.

No que concerne à alteração [entendida como a substituição da causa de pedir por outra] e a ampliação [acrescentamento de outra à causa de pedir originária] da causa de pedir a doutrina autorizada do Prof. Lebre de Freitas distingue destes caos típicos situações de completamento, concretização e a rectificação da causa de pedir inicialmente introduzida em juízo, situações que podem [e devem] ter lugar sempre que tal conduza à justa composição do litígio (cfr. do autor citado “Codigo de Processo Civil – anotado”, vol 1.º, Coimbra Editora, pág. 485).

O pedido de rectificação formulado em sede de resposta à contestação, nos moldes que o é efectuado subsume-se precisamente à modalidade de rectificação (com base em erro – art.º 249.º do CC] não estando em causa uma situação típica de alteração da causa de pedir. Entende-se o ensejo demonstrado pelos Réus na deslocação para os quadros da alteração da causa de pedir pois que tal lhes é conveniente, todavia, são os próprios Réus que ao longo da contestação apresentada demonstram com a tomada de posição que ali deixam expressa que entenderam de forma correcta o que é peticionado pela Autora e isto independentemente das imprecisões que à petição inicial assacam. Não está assim em causa também um caso de ineptidão da petição inicial que fosse susceptível de conhecer, atento o comando vertido no art. 193.º, n.º 3 do CPC.

Defere-se assim à requerida ampliação do pedido formulada pela Autor indeferindo-se a arguição de nulidade sustentada pelos Réus.

Inconformados com a decisão que se acaba de transcrever, os réus interpuseram recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Ao alterar todas as confrontações, ao alterar a área e rodar os pontos cardeais ao prédio preferente, a A. alterou a relação material de onde a A. faz derivar o correspondente direito e, dentro dessa relação material, altera também alegação dos factos constitutivos desse direito.

2. De acordo com a própria definição da lei processual, a causa de pedir é entendida como o facto jurídico de que precede a pretensão deduzida, art.º 498.º nº 4, do CPC.

3. Ao alterar-se os factos jurídicos que alicerçam o pedido, está-se a alterar a causa de pedir.

4. A A. embora não o diga explicitamente procede na Resposta à alteração das alíneas a) e b) do pedido principal, tentando fazer passar uma alteração ao pedido e à causa de pedir, bem como uma ampliação do pedido, que a lei não admite em processo sumário, artigo 273 do CPC.

5. E estas alterações só são admissíveis nos casos previstos na lei, sob pena de se pôr em causa a estabilidade da instância, artº 268º do CPC.

6. No que à ampliação do pedido diz respeito, apesar de não ser admitida em processo sumário, como é o caso em apreço, esta ampliação, encerra uma verdadeira acção que vai ter efeitos na esfera jurídica dos RR vendedores, que não foram sequer notificados dessa alteração.

7. De facto, ao que se chamou ampliação, não é mais do que uma nova acção com novo pedido, contra os RR vendedores que estão numa situação de revelia, porque entenderam que face ao pedido constante da PI, não precisavam de reagir, porque para eles o resultado da lide era indiferente.

8. Mesmo na forma processual em que é possível a ampliação do pedido, ou seja a forma ordinária, uma tal ampliação, com estas implicações, no mínimo tinha que ser notificada aos interessados, ou seja os RR vendedores, o que não foi o caso.

9. A não ser assim estar-se-ia a permitir a utilização do processo em completa fraude à lei, dando azo a que sempre que algum Réu não reagisse, porque o resultado para ele era indiferente, se procedesse à ampliação do pedido nas suas costas, isto dava para tudo como é bom de ver.

10. A deslocação do tribunal ao prédio preferido, não pode ser considerada um acto de produção de prova em sessão de continuação de julgamento, quando o julgamento nem sequer começou, nem sequer há despacho saneador.

11. Da deslocação ao local, o tribunal não pode concluir que os prédios identificados na PI, como sendo o preferido e o preferente são confinantes, só com base nas afirmações que a A. fez no local.

12. Estando estas em completa contradição com a realidade processual, nomeadamente com a factualidade que verteu na PI e com que sustentou o direito de preferência, ou seja o prédio mãe, que não é aquele que diz agora ser o confinante.

13. Muito menos pode o tribunal, assumir que todas estas alterações ao pedido e à causa de pedir são simples erros de cálculo ou de escrita subsumíveis do artigo 249º do CC, quando é o próprio tribunal que reconhece nesse mesmo despacho que se fizeram “rectificações” em moldes substanciais.

14. Quando se usa na PI um prédio e respectiva documentação, que se localiza a cerca de duzentos metros do prédio preferido e que nada tem a ver com este ou com os prédios confinantes.

15. “O artigo 249º do CC, apenas abrange o erro manifesto, o erro ostensivo. Não havendo erro ostensivo, não haverá lugar a rectificação, mas eventualmente à anulação da declaração ou do facto.”, pag 142 CC Anotado, Abílio Neto, 11ª Edição, 1997.

16. “À rectificação de erros de escrita em peças processuais oferecidas pelas partes é aplicável o regime previsto no artº 249º do C. Civ. Para o negócio jurídico, sendo esse erro corrigível em face do contexto ou das circunstâncias da declaração, se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto.” 24-05-2005, TRC

17. Perante as alterações em moldes substanciais da factualidade alegada pela A na PI, atinentes à localização dos prédios em apreço, e as consequentes alterações no pedido, mais não temos do que uma alteração ao pedido e à causa de pedir, que não pode ser ignorada.

18. Pelo exposto, conclui-se que é nula a alteração e ampliação do pedido e a alteração da causa de pedir, nos termos dos artigos 201º e 205º, ambos do CPC.

            Os recorrentes pedem:

Em face de tudo quanto vai dito, sempre com o douto suprimento de VEXAS, requerer-se que o presente recurso seja julgado procedente, por provado e em consequência, requerer-se que seja declarada a nulidade do despacho de que se recorre, e em consequência declarar as nulidades constantes da Resposta e que em devido tempo foram invocadas pelos RR compradores, ou seja:

a) que sejam declaradas nulas as alterações do articulado da PI, solicitado pela A. na sua Resposta, por estas alterações consubstanciarem uma alteração à causa de pedir, e ao pedido, bem como de todos os termos subsequentes que destes dependam.

b) Que seja declarada nula a ampliação do pedido, bem como de todos os termos subsequentes que dele dependam.

c) Que no desenvolvimento do pedido nas alíneas anteriores, seja declarado nulo todo o articulado de resposta, que visa relocalizar e alterar as confrontações e a área quer do prédio rústico transaccionado quer do prédio que sob o número n... da freguesia da U..., concelho de Ourém, se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém e que é composto por terra de semeadura com a área de três mil quatrocentos e sessenta e oito metros quadrados, situada em C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, inscrito na matriz rústica daquela freguesia sob o artigo O..., por estas alterações consubstanciarem uma alteração à causa de pedir e ao pedido.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

2.1 Da nulidade processual decorrente dos réus não contestantes não terem sido notificados da ampliação do pedido requerida pela autora na resposta à contestação;

2.2 Da alteração ilegal da causa de pedir e do pedido encapotada por alegado erro de escrita.

3. Fundamentos de facto resultantes dos autos de folhas 1 a 97


3.1

            A 15 de Julho de 2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, foi distribuída acção declarativa, ao segundo juízo desse tribunal, sob forma sumária, instaurada por MA (…) contra MC (…) e marido AL (…) e MH (…) e marido AS (…), tendo a autora formulado os seguintes pedidos:

            a) que se declare “que a metade indivisa que, por morte de seu pai, a autora herdou no prédio rústico descrito e identificado no artº 1º deste articulado[2], constitui hoje um prédio distinto e autónomo que se não confunde com o p´redio rústico de que, em tempos recuados, fez parte, nem com qualquer outro prédio confinante, sendo o prédio da Autora actualmente constituído por terra de semeadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C ..., freguesia de U ..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV..., omisso à matriz e não descrito na Conservatória do Registo Predial;

            b) – Serem os Réus condenados a reconhecerem que a Autora é dona e legítima possuidora do prédio distinto e autónomo composto de terra de semadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C ..., freguesia de U ..., concelho de Ourém, a confrontar do norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV..., omisso à matriz e não descrito na Conservatória do Registo Predial, constituído e adquirido por usucapião;

            c) – Declarar-se, por via a confinância do prédio da Autora com o prédio que foi objecto de venda, o direito de preferência da Autora na compra do prédio rústico que, por escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no Livro 81, de fls. 91 a fls. 92, os Réus MC (…) e marido AL (…) venderam aos Réus MH (…)e marido AS (…) substituindo-se a Autora no lugar dos Réus compradores MH (…)e marido AS (…)

            d) – Declarar-se, por da referida substituição, que o mencionado prédio rústico pertence à Autora;

            e) – Com referência à descrição predial nº .../20080805 da freguesia de U ..., ordenar-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a substituição no registo dos Réus compradores MH (…) e marido AS (…) pela Autora;

            f) Condenar-se os Réus nas custas do processo, procuradoria condigna e mais legal.

Subsidiariamente,

na hipótese de improceder o direito de preferência  baseado na confinância, por se entender que o prédio objecto de venda não constitui um prédio distinto e autónomo, representando metade indivisa do prédio rústico acima identificado e descrito no artº 1º deste articulado, então sempre deverá:

            a) – Condenar-se os Réus a reconhecerem que o prédio rústico objecto de venda, através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, representa metade indivisa do prédio rústico acima identificado e descrito no artº 1º deste articulado;

            b) – Declarar-se que, por via da compropriedade, a Autora goza do direito de preferência na compra dessa metade indivisa do prédio identificado e descrito no artigo 1º deste articulado, venda que então os Réus MC (…) e marido AL (…) fizeram aos Réus MH (…) e marido AS (…), através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, substituindo-se a Autora no lugar dos Réus compradores MH (…) e marido AS (…);

            c) – Declarar-se, por via da referida substituição, que a metade indivisa do prédio rústico identificado e descrito no artº 1º deste articulado, vendida pelos MC (…) e marido AL (…) fizeram aos Réus MH (…) e marido AH (…) através da escritura outorgada no dia 20 de Janeiro de 2009, no Cartório Notarial de Ourém, a cargo da Notária ..., no livro 81, de fls. 91 a fls. 92, pertence à Autora;

            d) – Com referência à descrição predial nº n.../20080805 da freguesia de U ..., comunicar-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a substituição no registo dos Réus compradores MH (…) e marido AS (…)

            e) – Ser declarada a anulação da inscrição matricial do prédio rústico que foi inscrito sob o artigo ... da freguesia de U ..., ordenando-se ao Serviço de Finanças a anulação e cancelamento dessa inscrição matricial;

            f) – Ser declarada a anulação da descrição predial nº .../20080805 da freguesia de U ..., ordenando-se à Conservatória do Registo Predial de Ourém a anulação dessa descrição, bem como a anulação e cancelamento de todos os registos de aquisição que os Réus hajam feito a seu favor sobre esse prédio;

g) – Condenar-se os Réus nas custas do processo, procuradoria condigna e mais legal.


3.2

            No artigo 14º da petição inicial a autora alegou o seguinte: “Em consequência da operada divisão material do aludido prédio mãe, o prédio que ficou a pertencer ao herdeiro (…) (pai da autora) ficou a ser constituído por uma terra de semeadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C ..., freguesia de U ..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV....

3.3

            No artigo 15º da petição inicial a autora alegou o seguinte: “E o prédio que ficou a pertencer à herdeira (…) (mãe da Ré MC (…)) ficou a ser constituído por uma terra de semeadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C ..., freguesia de U ..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com José António Lopes, sul com regueira e poente com ....

3.4

            No artigo 24º da petição inicial a autora alegou o seguinte: “Assim, por si e antepossuidores, e desde que, na década de 1940, se fez a divisão material do prédio mãe identificado no artº 1º, a Autora está na posse do seguinte prédio rústico, distinto e autónomo, acima identificado no artigo 14º: terra de semadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C ..., freguesia de U ..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV....

3.5

            No artigo 35º da petição inicial a autora alegou o seguinte: “O prédio rústico objecto da venda confina, no seu lado nascente, com o seguinte prédio rústico, igualmente distinto e autónomo, actualmente pertencente à Autora, por o haver herdado por morte de seu pai, prédio esse que também resultou da divisão material e partilha do prédio mãe (acima identificado no artº 1º, ocorrida há mais de 60 anos: terra de semeadura, com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com JL... sul com regueira e poente com ARV..., não descrito na Conservatória do registo Predial e ainda omisso à matriz.

3.6

            AS (…) e cônjuge MH (…) contestaram alegando que o prédio que compraram não é o que a autora refere, como resulta do confronto de áreas e de confrontações, que a autora litiga de má fé e impugnaram a generalidade da factualidade articulada pela autora, alegando que esta teve conhecimento do negócio relativamente ao qual pretende exercer o direito de preferência no dia 20 de Janeiro de 2009 e que destinam o imóvel adquirido a armazenamento de pasto, lenha e parqueamento de viaturas, pugnando pela total improcedência da acção e, para a hipótese de procedência da acção, deduziram reconvenção pedindo a condenação da autora ao pagamento da quantia de € 4.745,00, a título de benfeitorias, acrescida de juros contados à taxa de 12 %, desde a notificação para contestar a reconvenção e o reconhecimento do direito de retenção a favor dos réus e até se encontrar pago o crédito dos reconvintes sobre a autora, pedindo ainda a condenação da autora como litigante de má fé ao pagamento de todas as despesas a que deu causa, incluindo os honorários dos mandatários e técnicos.

3.7

            A autora respondeu à contestação e contestou a reconvenção, admitindo lapsos na indicação das confrontações nascente e poente do prédio identificado nos artigos 14º, 24º e 35º, todos da petição inicial, requerendo, em consequência:

a) a rectificação dos artigos 14º, 24º e 35º da petição inicial, bem como das alíneas a) e b) do pedido principal, “passando a constar que o prédio rústico aí descrito tem a seguinte descrição: terra de semeadura com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com ..., sul com regueira e poente com (…) (mãe da Ré MC (…))”;

b) a rectificação do artigo 15º da petição inicial, “no sentido de passar a constar que o prédio aí descrito tem a seguinte descrição: terra de semeadura com a área de 1.000 m2, situada em C ..., C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, a confrontar de norte com serventia, nascente com José António Lopes, sul com regueira e poente com ARV...”;

c) “em consonância com o alegado na petição inicial e neste articulado, e no desenvolvimento dos pedidos primitivos, a ampliação do pedido formulado na acção, devendo o Tribunal julgar e decidir que o prédio inscrito na matriz da freguesia de U... sob o nº n.../20080805, tem a área de 2.000 m2, confrontando de norte com estrada (Rua das C ...), nascente com ..., sul com regueira ou ribeiro e poente com ARV..., ordenando-se ao Serviço de Finanças de Ourém e à Conservatória do Registo Predial de Ourém no sentido de procederem às devidas alterações, por forma que o prédio fique inscrito e registado com aquelas confrontações e área.


3.8

            A resposta à contestação foi notificada por via electrónica ao Sr. Advogado mandatário dos réus contestantes.

3.9

Os réus contestantes vieram oferecer articulado em que afirmam que inexistiu da parte da autora qualquer erro de escrita passível de rectificação e que pretende proceder à alteração da causa de pedir e do pedido de forma encapotada, opondo-se às alterações da petição inicial, por constituírem alteração da causa de pedir, bem como à ampliação do pedido, arguindo a nulidade do articulado de resposta da autora.

3.10

A 03 de Maio de 2011 realizou-se uma inspecção judicial, tendo sido exarado em auto que “Pese embora o dissenso em torno da localização do prédio face aos elementos documentais carreados pela Autora para os autos, impugnando os Réus a confinância com aquele que seu é, certo é que da inspecção ao local resulta que os prédios efectivamente em apreço confinam um com o outro, donde, se remete para o despacho a prolatar relativamente ao alegado pelos Réus a fls. 153 e seguintes a apreciação da relevância e admissibilidade da alteração da descrição do dito prédio.

3.11

A 20 de Maio de 2011 foi proferido o seguinte despacho:

Vistos os autos há a reter o seguinte:

Na resposta à contestação veio o ilustre mandatário da Autora requerer a rectificação [em moldes substanciais] da factualidade por si alegada na petição inicial atinente à localização dos prédios em apreço nos autos assentando tal pedido de rectificação em erro de compreensão do que pela sua constituinte lhe havia sido transmitido.

Pugnam os Réus não poder atendido o requerido porquanto tal configuraria uma alteração simultânea da causa de pedir e do pedido sendo que tal, atenta a forma processual que os autos observam apenas pode ser efectuada na replica, articulado esse que em tal forma processual não tem lugar, chamando a esse propósito jurisprudência que suporta a sua tese.

Foi efectuada inspecção ao local prévia à prolação deste despacho com os resultados vertidos a fls. 203/204, através da qual foi possível aquilatar e concluir que efectivamente, independentemente das imprecisões que o próprio mandatário da Autora reconhece, ocorre a confinância entre ambos os prédios.

No que concerne à alteração [entendida como a substituição da causa de pedir por outra] e a ampliação [acrescentamento de outra à causa de pedir originária] da causa de pedir a doutrina autorizada do Prof. Lebre de Freitas distingue destes caos típicos situações de completamento, concretização e a rectificação da causa de pedir inicialmente introduzida em juízo, situações que podem [e devem] ter lugar sempre que tal conduza à justa composição do litígio (cfr. do autor citado “Codigo de Processo Civil – anotado”, vol 1.º, Coimbra Editora, pág. 485).

O pedido de rectificação formulado em sede de resposta à contestação, nos moldes que o é efectuado subsume-se precisamente à modalidade de rectificação (com base em erro – art.º 249.º do CC] não estando em causa uma situação típica de alteração da causa de pedir. Entende-se o ensejo demonstrado pelos Réus na deslocação para os quadros da alteração da causa de pedir pois que tal lhes é conveniente, todavia, são os próprios Réus que ao longo da contestação apresentada demonstram com a tomada de posição que ali deixam expressa que entenderam de forma correcta o que é peticionado pela Autora e isto independentemente das imprecisões que à petição inicial assacam. Não está assim em causa também um caso de ineptidão da petição inicial que fosse susceptível de conhecer, atento o comando vertido no art. 193.º, n.º 3 do CPC.

Defere-se assim à requerida ampliação do pedido formulada pela Autor indeferindo-se a arguição de nulidade sustentada pelos Réus.

4. Fundamentos de direito

4.1 Da nulidade processual decorrente dos réus não contestantes não terem sido notificados da ampliação do pedido requerida pela autora na resposta à contestação

Os recorrentes suscitam nas conclusões do seu recurso a nulidade processual decorrente dos co-réus não contestantes não terem sido notificados da ampliação do pedido formulada pela autora na sua resposta à contestação.

Nos termos do disposto no artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil, não sendo caso de nulidade legalmente tipificada (nos artigos anteriores ao artigo 201º ou em disposição avulsa que comine tal vício à infracção em causa), a prática de acto que a lei não admita, bem como a omissão de acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Não estando em causa nenhuma das nulidades previstas nos artigos 193º, 194º, na segunda parte do nº 2 do artigo 198º e nos artigos 199º e 200º, todos do Código de Processo Civil, ou em que a lei permita o seu conhecimento oficioso, o tribunal apenas poderá conhecer de um tal vício após reclamação do interessado (artigo 202º do Código de Processo Civil). As nulidades que não sejam de conhecimento oficioso devem ser apreciadas logo que reclamadas (artigo 206º, nº 3, do Código de Processo Civil).

O prazo para a dedução de reclamação contra eventual nulidade que não seja de conhecimento oficioso é de dez dias, sempre que a parte não esteja presente, por si ou por mandatário, no momento em que é cometida (artigos 205º, nº 1, 2ª parte e 153º, ambos do Código de Processo Civil), sendo o termo inicial de tal prazo o dia em que depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência. Nesta eventualidade, sendo o processo expedido em recurso antes de findar o prazo para a dedução da reclamação, a arguição da nulidade pode ser feita perante o tribunal superior, contando-se o prazo desde a distribuição (artigo 205º, nº 3, do Código de Processo Civil).

As disposições legais que se têm vindo a citar permitem concluir, com toda a segurança, que o meio próprio de reacção contra a prática de nulidades processuais atípicas é a reclamação para o órgão que praticou ou omitiu o acto contrário à lei e não o recurso. Só assim não será quando o vício esteja explícita ou implicitamente coberto por uma decisão judicial. Daí que seja corrente a afirmação de que “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se[3].

Provocada a decisão do autor da acção ou omissão integradora de nulidade processual mediante a pertinente reclamação, então caberá recurso, nos termos gerais (artigo 691º do Código de Processo Civil), da decisão que venha a ser proferida sobre essa reclamação.

Ainda que a conclusão quanto à impropriedade processual de arguição de nulidade processual atípica em via de recurso não resultasse de tudo quanto antes se expôs, sempre à mesma conclusão se chegaria atentando no figurino próprio do recurso que, em regra, consiste na reapreciação de questões que tenham sido objecto de decisão pelo tribunal a quo.

Na verdade, em via de recurso, não se tratando do conhecimento de arguição de nulidade por omissão de pronúncia, de questão de conhecimento oficioso, de mera operação de qualificação jurídica diversa da factualidade alegada, nem tendo havido, nos termos legais, alteração do pedido, em segunda instância, por acordo das partes, não se deve conhecer de questão nova que não haja sido suscitada junto do tribunal a quo.

No caso em apreço, muito embora os recorrentes tenham vindo em articulado avulso arguir as nulidades decorrentes das pretendidas alterações de parte da matéria articulada nos artigos 14º, 15º, 24º e 35º, todos da petição inicial, bem como da ampliação do pedido requerida pela autora, certo é que não arguiram a nulidade que ora suscitam e que resultaria da falta de notificação aos réus não contestantes da resposta à contestação. Tanto bastaria para, face ao que antes se deixou escrito, para não conhecer do objecto do recurso, neste segmento.

Porém, nem só por esta razão a pretensão dos recorrentes está votada ao insucesso no que esta matéria respeita. Na verdade, embora não esteja demonstrada a efectiva não notificação da resposta à contestação aos réus não contestantes[4], certo é que tal violação do contraditório teria que ser suscitada por quem tem legitimidade para tanto, ou seja pelos réus não contestantes, não assistindo aos co-réus contestantes a legitimidade para arguirem esse vício (veja-se o artigo 203º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Assim, por tudo quanto precede, não se conhece do segmento do recurso em que os recorrentes suscitam pela primeira vez alegada nulidade processual cometida em primeira instância e para cuja arguição sempre lhes faleceria legitimidade.

4.2 Da alteração ilegal da causa de pedir e do pedido encapotada por alegado erro de escrita

Os recorrentes arguiram a nulidade da resposta à contestação consubstanciada na pretensão de ampliação do pedido e em alegadas rectificações de matéria alegada na petição inicial, por serem efectivamente alterações da causa de pedir.

De acordo com o princípio do dispositivo incumbe às partes “pedir a resolução do conflito, enunciando-o e elegendo o meio concreto de tutela que pretendem perante a alegada violação do direito, carreando os factos e as provas que reputem adequados e formulando os pedidos correspondentes, incumbindo ainda ao réu fixar os termos e meios da sua defesa, cabendo também às partes a faculdade de pôr termo ao processo antes do julgamento, ou seja, e visto noutra perspectiva, e na pureza do princípio, não é o juiz que, “ex oficio”, tem o poder de iniciar a lide, nem de sugerir ao réu o uso dos meios da sua defesa, nem ainda de impulsionar a prática dos actos que constituem o devir processual”[5].

O princípio do dispositivo decorre, essencialmente, do disposto no artigo 264º do Código de Processo Civil, embora existam noutras normas processuais manifestações claras deste princípio (veja-se, por exemplo a primeira parte do nº 1, do artigo 3º do Código de Processo Civil). Trata-se de um princípio geral na jurisdição contenciosa, embora com limitações (veja-se por exemplo o artigo 265º, do Código de Processo Civil), não regendo no domínio da jurisdição voluntária no que respeita a investigação dos factos, a recolha e a produção das provas (artigo 1409º, nº 2, do Código de Processo Civil).

O princípio do dispositivo é um princípio fundamental para a preservação da independência e imparcialidade do julgador na medida em que defere às partes a responsabilidade pela definição dos termos do litígio mediante a pertinente alegação dos núcleos fácticos essenciais, a organização da estratégia probatória e a determinação dos efeitos jurídicos concretamente pretendidos.

Às partes cabe o ónus de alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (artigo 264º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Por isso, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do conhecimento oficioso pelo tribunal dos factos notórios, dos factos conhecidos no exercício das suas funções, do conhecimento oficioso de factualidade reveladora de um uso anormal do processo e ainda da consideração dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artigos 264º, nº 2, 514º e 665º, todos do Código de Processo Civil). Anote-se que os factos instrumentais são factos probatórios, no sentido de que não interferem na conformação da causa de pedir ou das excepções, mas apenas relevam para a prova dos factos essenciais conformadores do objecto da lide na sua vertente activa e passiva[6].

 Não obstante o papel atribuído às partes de conformação da causa de pedir e das excepções nos seus articulados (artigo 151º, nº 1, do Código de Processo Civil)[7], poderão ainda ser considerados na decisão final os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e que resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada nessa consideração manifeste a vontade de se aproveitar de tais factos e que seja facultado o exercício do contraditório à parte contrária (artigo 264º, nº 3, do Código de Processo Civil).

            Nos termos do disposto no artigo 268º do Código de Processo Civil, “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.”

            “Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1ª ou 2ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito” (artigo 272º do Código de Processo Civil).

Na falta de acordo, a alteração ou ampliação da causa de pedir, exceptuando o caso de resultar de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, só pode ser feita na réplica, se o processo a admitir (artigo 273º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

No que respeita o pedido, o mesmo pode ser alterado ou ampliado na réplica e, além disso, pode ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1ª instância, se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo (artigo 273º, nº 2, do Código de Processo Civil).

            Finda a fase dos articulados, a introdução na lide de factos novos só é possível com recurso à figura dos articulados supervenientes (artigos 506º e 507º, ambos do Código de Processo Civil).

Através dos articulados supervenientes podem ser trazidos à lide factos cuja superveniência seja objectiva ou subjectiva. Tais factos podem ser constitutivos, modificativos e extintivos do direito (artigo 506º, nº 1, do Código de Processo Civil).

            Importa ainda não perder de vista que, “sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão” (artigo 663º, nº 1, do Código de Processo Civil). Esclarece o nº 2 deste normativo que “só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida.”

O pedido é o efeito jurídico pretendido (artigo 498º, nº 3, do Código de Processo Civil), ou seja, no caso em apreciação, o reconhecimento do direito legal de preferência a favor da autora.

A causa de pedir numa acção real, como sucede na presente acção, consiste no facto jurídico de que deriva o direito real (artigo 498º, 2ª parte do nº 4, do Código de Processo Civil), ou seja, no caso em apreço, a título principal, a confinância de imóveis de área inferior à unidade de cultura e, subsidiariamente, a situação de compropriedade com o imóvel alegadamente alienado aos réus contestantes.

A jurisprudência e a doutrina têm vindo a admitir a rectificação das alegações vertidas nos articulados quando se verifique erro de escrita ou de cálculo, por aplicação do disposto no artigo 249º do Código Civil[8].

Apreciemos primeiramente a requerida rectificação do que foi alegado nos artigos 14º, 15º, 24º e 35º da petição inicial, determinando se constituem ou não uma encapotada alteração da causa de pedir.

A requerida rectificação apenas respeita às confrontações sitas a nascente e a poente. Na nossa perspectiva, no que respeita a confrontação a poente do imóvel descrito nos artigos 14º, 24º e 35º da petição inicial e a confrontação nascente do imóvel descrito no artigo 15º da petição inicial, face ao que foi alegado nos artigos 10º[9], 12º[10] e 13º[11] da mesma peça, é patente a existência de um erro na indicação dessa confrontação. De facto, se um prédio foi dividido em duas partes iguais, no sentido norte/sul, as duas parcelas resultantes dessa divisão têm que necessariamente confrontar entre si a poente e a nascente. Só assim não seria se porventura a linha divisória coincidisse com uma estrada, ou um curso de água. Se o que foi alegado nos artigos 10º, 12º e 13º da petição corresponder à verdade, a confrontação a poente do prédio descrito nos artigos 14º, 24º e 35º da petição inicial terá que ser com (…); igualmente, se o que foi alegado nos artigos 10º, 12º e 13º da petição corresponder à verdade, a confrontação a nascente do prédio descrito no artigo 15º da petição inicial terá que ser com (…). Assim, no que respeita esta confrontação parece-nos claramente fundada a pretensão da autora, pois o erro resulta patente daquilo que foi alegado nos artigos 10º, 12º e 13º, todos da petição inicial, pelo que deve confirmar-se a decisão do tribunal a quo, neste segmento.

Vejamos agora a questão da rectificação da confrontação a nascente do prédio descrito nos artigos 14º, 24º e 35º, da petição inicial e da confrontação a poente do prédio descrito no artigo 15º do mesmo articulado.

No que respeita esta pretendida rectificação, não existem nos autos elementos tão flagrantes que permitam concluir que se trata de um lapso ostensivo, como sucede relativamente ao caso anteriormente analisado. Porém, trata-se de uma rectificação sem grande relevo jurídico, pois que os restantes elementos de identificação dos prédios são já bastantes para permitir que se determine a identidade de cada um dos prédios descritos. Em sede de audiência preliminar, era viável o suprimento desta imprecisão na exposição da matéria de facto, desde que tal resultasse patente do debate (artigo 508º-A, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil). Neste circunstancialismo, afigura-se-nos que a própria parte poderia no decurso de tal diligência tornar patente a incorrecção na indicação das confrontações em causa e requerer a sua rectificação. Ora, se o podia fazer numa tal diligência, não se vê obstáculo a que o requeira num articulado e com observância do contraditório. Por isso, com tais fundamentos, afigura-se-nos bem fundada a decisão do tribunal a quo, neste segmento.

Ao contrário do que sustentam as recorrentes, a rectificação das confrontações dos imóveis não implicam qualquer alteração da causa de pedir, pois os fundamentos jurídicos e fácticos da pretensão principal e subsidiária da autora mantêm-se inalterados. A rectificação requerida e deferida apenas implica um maior rigor na identificação de cada um dos prédios, não envolvendo qualquer substituição de prédios, como afirmam os recorrentes. Os direitos de preferência exercitados pela autora têm como fonte o mesmo fenómeno jurídico e a mesma realidade fáctica, não obstante os erros cometidos em sede de petição inicial, pelo que não há qualquer alteração da causa de pedir encapotada sob o manto das aludidas rectificações das confrontações.

Apreciemos agora a questão da requerida ampliação da causa de pedir.

Na nossa perspectiva, na ampliação da causa de pedir e do pedido pressupõe-se uma identidade qualitativa da causa de pedir e do pedido e uma mera mutação quantitativa destas, como sucede, por exemplo, relativamente às consequências do facto danoso no caso da responsabilidade por facto ilícito. Em todo o caso, na falta de acordo das partes, não sendo a ampliação do pedido mero desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, estas modificações objectivas da instância apenas são viáveis em sede de réplica (artigo 273º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), pelo que não são admissíveis em processo sumário, como sucede no caso dos autos.

Ainda que assim não fosse, importa frisar que o caso não é de ampliação do pedido[12], pois não se trata de uma mera alteração quantitativa de um efeito jurídico anteriormente peticionado, mas antes da formulação de um novo pedido, pois o que é pretendido pela autora é um efeito jurídico novo distinto de todos os efeitos jurídicos que anteriormente havia deduzido na petição inicial, não podendo tal efeito considerar-se mero desenvolvimento ou consequência dos pedidos primitivamente formulados. Por isso, do que se trata é de uma cumulação sucessiva de pedidos.

À cumulação sucessiva de pedidos na acção declarativa, face à inexistência de uma previsão expressa, como sucede na acção executiva (artigo 54º do Código de Processo Civil), tem a doutrina processual considerado serem aplicáveis as regras que regem a alteração da causa de pedir e do pedido nos artigos 272º e 273º, ambos do Código de Processo Civil[13].

Porém, estas regras só serão aplicáveis aos casos em que os factos integradores da cumulação sucessiva já eram conhecidos à data da propositura da acção. Relativamente aos factos verificados na pendência da acção ou conhecidos na pendência da mesma, salvo melhor opinião, será aplicável o regime dos articulados supervenientes.

Assim, no caso dos autos, seguindo a acção o formalismo sumário e não havendo acordo das partes para a formulação de um novo pedido pela autora, a denominada ampliação do pedido é legalmente inadmissível, devendo o despacho sob censura, neste segmento, ser revogado.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por MH (…) e marido AS (…) e, em consequência, decide-se o seguinte:

a) não conhecer do objecto do recurso, no segmento em que os recorrentes arguiram a nulidade por falta de notificação da resposta à contestação aos réus não contestantes;

b) confirmar o despacho recorrido proferido a 20 de Maio de 2011, na parte em que deferiu as rectificações aos artigos 14º, 15º, 24º e 35º, todos da petição inicial;

c) revogar o despacho recorrido proferido a 20 de Maio de 2011, na parte em que deferiu a alegada ampliação do pedido requerida por MA (…)

d) custas do recurso de apelação na proporção de dois terços para os recorrentes e de um terço para a recorrida.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] De acordo com o alegado no artigo 1º da petição inicial, esse imóvel está descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº n..., da freguesia de U..., concelho de Ourém, compondo-se de terra de semeadura com a área de três mil quatrocentos e sessenta e oito metros quadrados, situada em C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, inscrito na matriz rústica sob o artigo O....
[2] De acordo com o alegado no artigo 1º da petição inicial, esse imóvel está descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o nº n..., da freguesia de U..., concelho de Ourém, compondo-se de terra de semeadura com a área de três mil quatrocentos e sessenta e oito metros quadrados, situada em C..., freguesia de U..., concelho de Ourém, inscrito na matriz rústica sob o artigo O....
[3] A este propósito veja-se o Comentário ao Código de Processo Civil do Sr. Professor José Alberto dos Reis, volume 2º, Coimbra Editora 1945, página 507.
[4] Na nossa perspectiva, havendo alteração de elementos da petição inicial, bem como uma alteração daquilo que aí havia sido peticionado, impõe-se a notificação de tais alterações a todos os réus, incluindo os não contestantes. Só assim é efectivamente cumprido o princípio do contraditório enquanto elemento estruturante de um processo justo e equitativo.
[5] Citação extraída da obra intitulada Reforma do Processo Civil, Princípios Fundamentais, Lex 1997, J. Pereira Batista, página 16.
[6] Para a definição dos factos instrumentais, por todos, veja-se, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª edição 2004, Volume I, Almedina, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, páginas 252 e 253, anotação II.
[7] Não se desconhece que a alegação de factos se pode fazer por meio de junção de documentos (veja-se a propósito da admissibilidade da contestação por simples junção de documentos, Noções Elementares de Processo Civil, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, nova edição revista e actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, Coimbra Editora 1979, página 145; em geral, sobre a alegação por remissão para documentos vejam-se Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 2º, Coimbra Editora 1945, Prof. Alberto dos Reis, página 364 e Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 201, nota 353). No entanto, sempre que seja oferecido um articulado e documentos que o instruem, estes últimos serão em regra meros meios de prova dos factos alegados naquela peça, só podendo considerar-se como alegação autónoma de factos quando tal ressalte de remissão para eles expressa ou pelo menos implícita no articulado com que foram juntos.
[8] Na proposta de reforma do Código de Processo Civil foi aditado o artigo 150º-A para dar cobertura legal no próprio Código de Processo Civil a estas situações.
[9] No artigo 10º da petição inicial alegou-se que o denominado prédio-mãe foi dividido segundo um linha vertical, no sentido norte-sul.
[10] No artigo 12º da petição inicial alegou-se que na sequência da divisão do prédio-mãe foi adjudicado ao pai da autora, a parcela de terreno sita a nascente da linha divisória.
[11] No artigo 13º da petição inicial alegou-se que na sequência da divisão do prédio-mãe foi adjudicado à mãe da ré não contestante, a parcela de terreno sita a poente da linha divisória.
[12] A “ampliação” do pedido requerida pela autora esbarra com outra dificuldade pois não se esclarece se esta pretensão é formulada a título principal ou subsidiário. Dada a forma como o petitório final se acha estruturado, parece que a alegada ampliação do pedido se enquadra na pretensão subsidiária. Porém, é à parte que compete a definição dos termos em que pretende a produção dos efeitos jurídicos peticionados (artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil)
[13] Assim vejam-se, Temas da Reforma do Processo Civil, 1 Princípios Fundamentais, 2 Fase Inicial do Processo Declaratório, Almedina, 1997, António Santos Abrantes Geraldes, página 136; As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex 1995, Miguel Teixeira de Sousa, páginas 157 a 160; A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina 2004, Mariana França Gouveia, páginas 272 a 275.