Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1262/12.6TBGRD-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PROCESSO TUTELAR CÍVEL
RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PROVA PERICIAL
RECURSO
Data do Acordão: 01/29/2019
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DEFERIDA
Legislação Nacional: ARTS.32 Nº1, 33 RGPTC ( LEI Nº 141/2015 DE 8/9), 644 Nº2 D) CPC
Sumário: O segmento «salvo disposição expressa» constante do n.º 1 do artigo 32.º (recursos) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro), deve ser interpretado no sentido que que há sempre recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis, salvo disposição expressa em contrário.
Decisão Texto Integral:







I. Relatório

a) A presente reclamação insere-se num processo especial de alteração do exercício das responsabilidades parentais e é da autoria de J (…),  pai da menor N (…).

Respeita ao recurso que interpôs relativo à decisão que indeferiu a realização de uma perícia requerida pelo reclamante, que a justificou como necessária para averiguar de está em curso um processo de alienação parental promovido pelos avós maternos da menor e dirigido ao reclamante.

b) As conclusões da reclamação são as seguintes:

«Assim, face ao exposto e pelo mais que V. Ex.a, doutamente, suprirá, não pode deixar de concluir-se que:

A) O Reclamante é parte legítima.

B) O despacho de 21/03/2018, que indeferiu meios probatórios requeridos pelo Requerente, ora Reclamante, mais precisamente o pedido de realização de perícias, é recorrível nos termos do artigo 644.º, n.º2, alínea d), do CPC, ex vi 33.º/1 do RGPTC.

C) O artigo 32.º, n.º1, do RGPTC apenas quis salvaguardar e garantir a possibilidade de recurso das decisões dele constantes, mas não quis de forma alguma afastar o recurso noutro tipo de decisões, aos quais se aplica o artigo 33.º, n.º1, do RGPTC e, por remissão deste artigo, as disposições constantes do CPC em matéria de recursos, designadamente o disposto no artigo 644.º, n.º2, alínea d), que prevê a possibilidade de impugnação das decisões que rejeitem meios de prova.

D) A interpretação restritiva do tribunal a quo do n.º1 do artigo 32.º do RGPTC, de que apenas são recorríveis no âmbito deste regime as decisões referidas na referida disposição (decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis) é manifestamente inconstitucional, por violação do artigo 20.º da CRP e do direito fundamental do Requerente à garantia do duplo grau de jurisdição, inconstitucionalidade que aqui desde já se invoca.

E) Devia, por isso, o recurso interposto pelo ora Reclamante ter sido admitido.

F) Por outro lado, o ora Reclamante não devia ter sido condenado nas custas do incidente, nos termos do artigo 531.º do CPC, por falta de fundamento legal.

G) Sem esquecer que, no processo, há claros e evidentes indícios de que a menor está a ser vítima de alienação parental perpetrada pelos guardiões da menor os avós maternos contra a figura paterna.

H) Ora, a prova da alienação parental só é possível com a realização de perícias específicas e com esse objectivo específico, e a verdade é que os relatórios psicológicos que estão nos autos nenhum contributo significativo poderão ter nesta questão, uma vez que não tiveram como objectivo específico apurar da existência de alienação parental basta constatar que o Requerente nunca foi ouvido por nenhum dos psicólogos que elaboraram os relatórios dos autos.

I) Pelo que se impõe a realização das perícias requeridas pelo ora Reclamante e, consequentemente, que seja admitido o recurso, por forma a revogar-se o despacho de 21/03/2018, na parte em que foi indeferido a realização de tais perícias.

J) Violou, assim, o despacho reclamado, designadamente, os artigos 644.º, nº2 - alínea d), e 531.º, ambos do CPC, o artigo 33.º o RGPTC e o artigo 20.º da CRP.

Termos em que requer a V. Ex.ª que, deferindo a presente reclamação, se digne ordenar que o recurso seja admitido, revogando-se o despacho reclamado, pois só assim se fará justiça.

Mais se requer que a presente reclamação seja instruída com: (…)».

II. Objeto da reclamação

A questão colocada na presente reclamação consiste em saber se no âmbito do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro) há recurso do despacho que indefere a realização de uma diligência de prova, no caso uma perícia, por aplicação do disposto no artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, ex vi 33.º/1 do RGPTC; ou se não há tal recurso porquanto o artigo 32.º, n.º 1, do RGPTC só permitirá recurso de decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.

III. Fundamentação

(a) Matéria de facto processual

1 - O reclamante, em 2 de fevereiro de 2018, requereu, entre outros meios de prova, o seguinte:

«…A) EXAME PSICOLÓGICO E PSIQUIÁTRICO

Para prova dos factos alegados requer uma avaliação psicológica e psiquiátrica à menor, aos avós maternos, à Requerida e ao Requerente, por psicólogo nomeado pela ordem dos psicólogos e por psiquiatra designado pela ordem dos médicos, fora da área de influência dos avós maternos e com especiais qualificações no âmbito da alienação parental, por forma a poder determinar-se se a menor é ou não vítima de alienação parental promovida pela família materna».

2 - Os reclamados responderam:

«Notificados da prova apresentada pelo Requerente, atento o dever de não sacrificar a menor ao excesso de interrogatórios, exames, deslocações, que só a perturbam e lhe causam mais pressão, ansiedade e desequilíbrio emocional, os requeridos opõem-se:

a) ao exame psicológico e psiquiátrico dos requeridos, ou, sem prescindir, caso assim não se venha a entender, que o mesmo se faça no Instituto de Medicina Legal de (....) .

b) à requisição do Relatório da Casa (....) , em (....) , por inutilidade».

3- Em 21 de março de 2018 foi proferido o seguinte despacho:

«A fls. 326, veio J (…), fundamentando-o, vem requerer a realização de uma perícia com vista a apurar se, neste caso, existe alienação parental, a solicitar à Ordem dos Psicólogos a nomeação de profissional com especiais qualificações na área da alienação parental e fora da área de influência dos avós maternos, tendo por objeto a menor, os avós maternos e ambos os pais e, eventualmente, efetuar terapia familiar, mais pugnando pela manutenção do programa junto da Aldeia (....) ».

(…)

«No que tange ao requerimento do Requerente de fls.326, reproduz-se quanto ao mesmo o que supra se referiu quanto às diligências probatórias requeridas pelos Requeridos.

O momento próprio é após as alegações, cfr. o art.º 39.º, n.º 5 do RGPTC».

4- O decidido quanto «… às diligências probatórias requeridas pelos Requeridos», foi o seguinte:

«A. Do requerimento dos Requeridos onde invocam nulidades do despacho de fls.317:

- No que tange à análise do requerimento dos Requeridos de fls.318 e seguintes, dir-se-á que o que ali é pretendido equivale a quatro pretensões:

a) A invocação de nulidade do despacho de fls.317 por violação do princípio do contraditório mercê de não ter sido dada às partes a possibilidade de exercício de contraditório sobre o relatório da aldeia S.O.S.;

b) A invocação de nulidade por falta de audição da criança e do avô;

c) A suspensão da mediação em curso;

d) A realização de diligências probatórias;

Começando pela última, sempre se dirá que aquele não era o momento para requerer diligências de prova dado que o momento ideal para a sua produção será o da audiência final de julgamento e, no caso de diligências junto de outras entidades ou documentais, antes de tal momento mas necessariamente após a junção aos autos das alegações.

Assim se extrai do n.º5 do art.º 39.º do RGPTC quando expressamente plasma que “findo o prazo das alegações (…) e sempre que o entenda necessário, o Juiz ordena as diligências de instrução (…),” normativo com plena aplicação ao caso em apreço em virtude da declaração expressa de ambos os Mandatários em sede da última conferência de que nada tinham a opor à adaptação da tramitação à nova Lei, i.e., ao Regime Geral do Processo Tutelar Cível, pelo que não se apreciará tal propósito. (,,,)».

5- O recorrente interpôs recurso deste despacho, em 17 de abril de 2018 e terminou as conclusões do recurso seguinte modo:

«NESTES TERMOS, e porque só assim se fará justiça, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada (parcialmente) o douto despacho recorrido na parte em que indefere a realização das perícias requeridas nas alegações do Requerente, determinando-se a sua realização com nota de urgência e, caso se conclua pela existência de alienação parental, devem ser tomadas as medidas repressivas e aptas a combatê-la, designadamente com a alteração da guarda parental.

Em cumprimento do disposto no artigo 646º/1 do CPC, indicam-se as seguintes peças de que pretende certidão para instruir o recurso:..».

6- Em 12 de outubro de 2018, foi proferido o seguinte despacho (a julgar o recurso inadmissível):

«Da (in)admissibilidade do recurso interposto pelo pai da N (…):

Quando já só faltavam poucas diligências instrutórias para se proceder à designação de data para a realização de audiência de discussão e julgamento, veio J (…) interpor recurso do segmento do n/ despacho de 21.03.2018 na parte que indeferiu a realização das perícias por si requeridas.

Aludindo ao disposto no n.º1 do art.º32.º do RGPTC, foi proferido despacho no sentido da notificação do recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a (in)admissibilidade do recurso por si interposto, acrescentando-se que, caso o mantivesse, lhe era dada a possibilidade de se pronunciar quanto à eventual aplicação de taxa sancionatória excecional.

Veio fazê-lo a fls.511/512 no sentido da manutenção do recurso por si apresentado.

Afiramos, então, da sua admissibilidade.

Preceitua o n.º1 do art.º32.º do RGPTC que “salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.”

Assim, tendo o teor de tal preceito em atenção e não versando a decisão ora sob recurso sobre a aplicação, alteração ou cessação de medida tutelar cível, mas, tão-somente, sobre o (in)deferimento de um meio probatório e em face do caráter específico e de jurisdição voluntária em que nos encontramos [vide art.º986.º, n.º2, in fine, do Código de Processo Civil (versão 2013)], entendemos que o recurso ora interposto é legalmente inadmissível.

Entendemos que assim é pois a previsão expressa dos tribunais de recurso na CRP apenas implica que o legislador está impedido de eliminar a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, mas já não se encontra impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões, o que nos parece que sobreveio na jurisdição de Família e Menores, em que quis reservar tal possibilidade para aqueles casos concretos.

Tanto mais assim é que nos movemos em sede de processo de jurisdição voluntária em que o Juiz tem ampla margem de manobra decisória, mas que não se confunde com a livre e arbitrária discricionariedade que o recorrente refere a fls.511v.

Pelo exposto, não se admite o recurso interposto.

Por que assim é, entendemos verificarem-se os pressupostos do art.º 531.º do Código de Processo Civil (versão 2013), pelo que se fixam as custas deste incidente em 4UC, da responsabilidade do recorrente. Notifique».

7- As conclusões da reclamação ficaram transcritas no relatório que antecede.

b) Apreciação

A norma em questão é a do artigo 32.º (recursos) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro), a qual é do seguinte teor:

«1 - Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 63.º, podem recorrer o Ministério Público e as partes, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança.

3 - Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias.

4 - Os recursos têm efeito meramente devolutivo, exceto se o tribunal lhes fixar outro efeito».

Coloca-se a questão de saber se o segmento «Salvo disposição expressa…» constante do n.º 1 deste artigo, significa restrição dos recursos admissíveis, no sentido de só haver recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.

Ficando excluídas do recurso quaisquer outras decisões tomadas ao longo do processo, sem prejuízo, neste caso, de tais decisões ou suas consequências poderem fundamentar o recurso da decisão final.

Isto é, no caso dos autos, poder-se-ia não admitir o recurso sobre o indeferimento da perícia, sem prejuízo de se poder recorrer da decisão final, mostrando então que a realização da perícia era necessária para a boa decisão da causa.

Afigura-se que não é esta a boa interpretação da norma em causa.

O segmento «salvo disposição expressa», deve ser interpretado no sentido que que há sempre recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis, salvo disposição expressa em contrário.

Com efeito, era este o regime que vigorava no anterior regime da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, conhecido por OTM).

O artigo 185.º (Recursos) deste regime, incluído na «SECÇÃO II» relativa à «Regulação do exercício do poder paternal e resolução de questões a este respeitantes», tinha o seguinte teor:

«1 - Os recursos interpostos de quaisquer decisões proferidas nos processos previstos nesta secção têm efeito meramente devolutivo.

2 - Os recursos de agravo interpostos no decorrer do processo sobem com o recurso que se interpuser da decisão final».

O recurso de agravo era um recurso interlocutório, anterior, portanto, à decisão final.

Admitiam-se então recursos relativos a decisões tomadas ao longo do processo e não apenas quanto à decisão final.

Não se vislumbra que tenham existido ou existiram razões para alterar esta tradição relativa aos recursos nesta matéria.

Se tivesse sido intenção do legislador restringir os recursos, teria formulado uma norma semelhante ao artigo 121.º (Admissibilidade do recurso) da Lei Tutelar Educativa (Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro), cujo teor é o seguinte:

«1 - Só é permitido recorrer de decisão que:

a) Ponha termo ao processo;

b) Aplique ou mantenha medida cautelar;

c) Aplique ou reveja medida tutelar;

d) Recuse impedimento deduzido contra o juiz ou o Ministério Público;

e) Condene no pagamento de quaisquer importâncias;

f) Afete direitos pessoais ou patrimoniais do menor ou de terceiros.

2 - O recurso é interposto para o tribunal da Relação que julga definitivamente, de facto e de direito.

3 - O juiz do tribunal recorrido fixa provisoriamente o efeito do recurso».

Esta norma é clara no sentido de restringir os casos em que é admissível o recurso.

Conclui-se, por conseguinte, que o segmento «salvo disposição expressa» constante do n.º 1 do artigo 32.º (recursos) do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro), deve ser interpretado no sentido que que há sempre recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis, salvo disposição expressa em contrário.

Aplicando-se quanto às restantes decisões o regime do Código de processo Civil, por força do artigo 33.º (direito subsidiário) da mesma lei, cuja redação é a seguinte:

«1 - Nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores.

2 - Salvo disposição expressa, são correspondentemente aplicáveis, com as devidas adaptações aos processos tutelares cíveis, as disposições dos artigos 88.º a 90.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro, alterada pelas Leis n.º 31/2003, de 22 de agosto, e 142/2015, de 8 de setembro».

Concluindo-se assim, conclui-se que o recurso é admissível.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se a reclamação procedente e admite-se o recurso a subir imediatamente, em separado, al. d), do n.º 2, do artigo 644.º e n.º 2 do artigo 645.º, ambos do CPC, com efeito devolutivo – n.º 1 do artigo 647.º do CPC.

Custas pela parte responsável a final.


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Remetam-se os autos ao tribunal reclamado para efeitos de fazer subir o recurso agora admitido, nos termos do n.º 6 do artigo 643.º do CPC, sugerindo-se que se aproveite o conteúdo da presente reclamação, pois parece conter já os elementos necessários e suficientes.

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Coimbra, 29 de janeiro de 2019

Alberto Ruço ( Relator )