Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
985/12.4T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REQUISITOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, AVEIRO – JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 235.º E 238.º, N.º 1, DO CIRE
Sumário: Deve ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo quando, entre a consumação da situação de insolvência e o pedido da respectiva declaração, decorreram sete anos, período temporal em que o requerente, sem que se perspectivasse uma melhoria da sua situação económica, se desfez do seu património visando, apenas, eximir-se às suas responsabilidades para com os seus credores, determinando, desse modo, a ausência de bens apreendidos para a massa insolvente e impedindo, consequentemente, os credores de verem satisfeitos os seus créditos.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           
            A..., já identificado nos autos, apresentou-se à insolvência, com o fundamento em se encontrar numa situação de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante e pelas circunstâncias do incumprimento, revelam a impossibilidade de satisfazer pontualmente as suas obrigações.
            Designadamente, de acordo com o que alegou, o mesmo era sócio de uma empresa do ramo da construção civil, a qual já foi declarada insolvente, tendo o requerente prestado avales para contrair empréstimos junto da banca, para solver a dívidas daquela empresa, o que lhe originou um passivo de, pelo menos 52.080,58 €.

            Conforme sentença, de fl.s 56 a 59, que se dá por integralmente reproduzida, proferida em 21 de Junho de 2012, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente A..., nos termos que ali melhor constam.

            Logo no requerimento inicial de insolvência, o mesmo A..., entretanto, declarado insolvente, deduziu o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 235.º e seg.s do CIRE por, segundo alega, preencher todos os requisitos nos mesmos exigidos, designadamente, que não prestou informações falsas ou incompletas com o intuito de obter crédito; não usufruiu de tal benefício nos 10 anos anteriores à data do início do presente processo de insolvência; apresentou-se ele próprio à insolvência; fez tudo o que estava ao seu alcance para fazer face à situação; nunca teve qualquer intenção de se eximir às suas responsabilidades e prejudicar quem quer que fosse; nem foi condenado por nenhum dos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.

Apenas se opôs a tal pedido o credor “B... ”, cf. requerimento de fl.s 131 a 136), alegando que o requerente se encontrava numa situação de insolvência desde, pelo menos, 2005 e não obstante isso só se veio a apresentar à insolvência em 2012, do que resultou não ter cumprido o prazo referido no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, obstando à estabilização do passivo e avolumar das quantias em dívida, designadamente, pelo vencimento progressivo dos juros e contraindo novas dívidas, bem sabendo que inexistia uma perspectiva séria de melhoria da sua condição económica, o que tudo acarretou prejuízos para os credores.
            Em seguida, o M.mo Juiz proferiu a decisão que antecede de fl.s 188 a 190, aqui dada por reproduzida, na qual inferiu liminarmente o referido pedido de exoneração do passivo, com o fundamento em se verificarem as circunstâncias previstas nas alíneas d), e e), do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, designadamente, que a situação de insolvência do requerente existe, pelo menos, desde 2005 e, apesar disso, em 2009 e 2010 alienou o seu património, sem pagar as suas dívidas, com o que prejudicou os seus credores, sem que se perspectivasse uma melhoria da sua situação económica e resultando daquelas vendas, a diminuição do seu património, que acabou por determinar a ausência de bens apreendidos para a massa insolvente, assim, impedindo os credores de verem satisfeitos os seus créditos.

            Inconformado com tal decisão, interpôs recurso, o requerente A..., recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 233), finalizando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
I – A sentença recorrida viola o disposto no artigo 238.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CIRE.
II - Nos termos da alínea d), n.º 1, do artigo 238.º do CIRE, impõe-se a verificação de três requisitos cumulativos para que haja lugar a despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, constitutivos de matéria de excepção.
III - O prejuízo para os credores a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, alínea d), consiste numa desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que são a consequência normal do incumprimento.
IV – O prejuízo a que se refere o artigo 238.º, n.º 1, alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso na apresentação à insolvência.
V – Cabia aos Credores, a alegação e prova do eventual prejuízo efectivamente sofrido com o atraso da apresentação à insolvência, por este constituir um facto impeditivo do direito do devedor pedir a exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
VI – No caso dos presentes autos, nada foi alegado e/ ou provado pelos Credores, no sentido de que os negócios celebrados em 2009 e 2010 pelo Insolvente e herdeiros lhes tivessem causado prejuízo concreto, pelo que não deve o Tribunal “a quo”, em violação do princípio do dispositivo, substituir-se aos Credores na invocação do referido prejuízo concreto.
VII - Quanto ao terceiro requisito de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, “ que o devedor saiba, ou não possa ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica” , o ónus da sua prova recai ainda sobre os Credores, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, por este constituir um facto impeditivo do direito do devedor pedir a exoneração.
VIII – O único Credor que se pronunciou sobre o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo Insolvente, a Sociedade B... nada logrou provar quanto a um prejuízo concreto que tenha efectivamente sofrido, nem à eventual ocorrência de culpa grave na ignorância de inexistência de uma perspectiva séria de melhoria da situação económica do devedor, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
IX - Nada tendo sido provado pelos Credores neste sentido, não poderá o Tribunal “a quo” concluir pela existência de um prejuízo concreto que tenha sido efectivamente sofrido pelos credores, nem pela ocorrência de culpa grave do devedor na ignorância de inexistência de uma perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
X – Na verdade, o Tribunal “a quo” não faz menção, no douto despacho ora posto em crise, aos factos da actuação do devedor, que seriam passíveis de serem subsumidos no conceito de culpa grave e era mister que o fizesse, sob pena de violação de lei.
XI - No caso dos presentes autos de insolvência não se encontram, cumulativamente, preenchidos os requisitos previstos no artigo 238.º, n.º 1, alínea d), do CIRE, pelo que, tendo em conta os pressupostos previstos no normativo legal, não existe, em nosso entendimento, suporte legal para o despacho de indeferimento liminar.
XII- Por sua vez, e ao contrário do sustentado pelo Tribunal a quo, não se encontra preenchida a previsão da alínea e) do mesmo preceito, já que o devedor não criou ou agravou a sua situação de insolvência, com dolo ou culpa grave.
XIII – Além de que, a prova dos factos que integram a previsão supra referida, cabia igualmente aos Credores e/ ou Administrador de Insolvência, nada tendo sido provado neste sentido.
Nestes termos, requer-se a V. Exas. que seja revogado o despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, por não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito, com as legais consequências.
Assim se fará JUSTIÇA!        

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado no artigo 635, n.º 4, do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se se verificam os requisitos para que o pedido de exoneração do passivo restante seja liminarmente indeferido.

São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. O requerente apresentou-se à insolvência a 11/5/2012 (fls. 34).
2. Para o efeito, invocou a existência de dívidas resultantes do exercício da actividade de sócio e gerente da empresa C..., declarada insolvente na sequência de processo instaurado em 2009 (fls. 4ss).
3. Tais dívidas, de valor superior a € 50.000,00 estão vencidas desde 2002 e 2005 (fls. 41 e 120).
4. Foram reclamadas judicialmente ao requerente em execuções de 2003, 2005 e 2006 (fls. 42).
5. A insolvência referida em 2) foi qualificada de culposa, com afectação do requerente (fls. 90ss).
6. Com base nas referidas dívidas, a insolvência do requerente foi declarada, por decisão de 21/6/2012 (fls. 56ss).
7. Não foram identificados no processo bens susceptíveis de apreensão (fls. 118ss).
8. O insolvente não compareceu à assembleia de credores (fls. 154).
9. Através de escritura de compra e venda outorgada em 14/5/2009, o insolvente e demais herdeiros venderam os prédios urbanos (...) e rústico (...), ambos da (...), Ílhavo (fls. 161ss e 171ss).
10. Em 2010, o insolvente vendeu ainda o prédio urbano 3429, da mesma freguesia (fls. 161ss e 171ss).
11. O requerente reside com a mãe no imóvel indicado em 9), por contrato de arrendamento (fls. 161ss e 171ss).
12. Notificado do requerimento de fls. 161ss e do despacho de fls. 168, o requerente nada disse (fls. 170).
           
Se se verificam os requisitos para que o pedido de exoneração do passivo restante seja liminarmente indeferido.
Resumidamente, entende o recorrente que não, por não estar demonstrado, cabendo aos credores fazê-lo, que do seu comportamento tenha resultado qualquer prejuízo concreto para os credores, designadamente, nada resulta no sentido de que os negócios que celebrou em 2009 e 2010, tenham causado a estes qualquer prejuízo.
            Ao invés, na decisão recorrida considerou-se que resulta dos factos provados que o requerente já se encontra numa situação de insolvência desde, pelo menos, o ano de 2005 e, não obstante só se veio a apresentar à insolvência em 2012 e só o fez depois de, em 2009 e 2010, ter vendido os bens de que era dono, sem que tenha afectado os rendimentos daí provenientes ao pagamento das dívidas que o conduziram à situação de insolvência e assim obstando a que tais bens fossem apreendidos para a massa insolvente, pelo que se entendeu que se acham verificados os requisitos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, para que fosse, como foi, liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo ora recorrente.
 
            A figura da exoneração do pedido restante surgiu prevista nos artigos 235.º e seg.s do CIRE, na redacção do Decreto Lei n.º 53/2004, de 18/3, a qual no item 45.º da sua exposição de motivos, a justifica como visando obter um ponto de equilíbrio entre “o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
            Efectivamente a legislação alemã da insolvência, à qual a nossa foi buscar boa parte da inspiração, consagrou uma figura semelhante à da americana “fresh start” e que na legislação teutónica recebe a designação de “Restschuldbefreiung”, a qual, igualmente, visa conferir aos devedores pessoas singulares, que se viram, por circunstâncias que, em muito ou em larga medida, ultrapassam a sua vontade (culpa, como se traduz no uso do vocábulo “schuld”), numa situação de insolvência, uma oportunidade de começar de novo.
            Volvendo ao nosso ordenamento jurídico, no dizer de Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado (Reimpressão), Quid Juris, Lisboa, 2006, a pág. 184, a referida exoneração “… traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante.”.
            Em sentido semelhante se pronuncia Menezes Leitão, CIRE, Anotado, 3.ª edição, 2006, pág. 220, realçando a intenção de fazer “desaparecer” o peso de uma insolvência anterior.
            Daqui resulta, como é bom de ver, que se trata de uma medida muito gravosa para os credores e que, por isso, de modo algum pode ser erigida em regra mas sim vista como excepção e que só se pode alicerçar no comportamento anterior do devedor.
            Isto é, não se pode permitir que todo e qualquer devedor que, ao endividar-se “não pensou duas vezes em o fazer”, designadamente se tinha meios de liquidar as dividas que contraiu, se não agiu com transparência e boa fé, como e para que fins se endividou, possa, agora, contraídas avultadas dívidas, pretender, sem mais, pagar apenas uma parte delas, ao abrigo do regime excepcional do pedido de exoneração do passivo restante.
            Citando Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea De Estudos Sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, a pág.s 276 e 277:
            “A concessão da exoneração do passivo restante …, depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém.”.
            Ou, no dizer de Assunção Cristas, in Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, a pág. 264, tal benesse apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade.
            De resto, realce-se que no item 45 das exposição de motivos do DL 53/2004, de 18/3, já acima parcialmente transcrito se faz expressamente referência às “… pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência,”.
            Do que tem de retirar-se a conclusão, de que, também, no nosso ordenamento jurídico, a figura da exoneração do passivo restante tem de ser vista como uma excepção e não a regra.
Como um benefício que só se pode basear num comportamento do devedor que se viu incorrer numa situação de insolvência, não obstante ter pautado a sua conduta por regras de rectidão, honestidade, transparência e boa fé (neste sentido, entre outros, pode ver-se o Acórdão do STJ, de 24/01/2012, Processo 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, disponível in http//www.dgsi.pt/jstj).
            Bem como, de igual modo, tal benefício, não pode ser concedido a pessoas que ao invés de pautarem a sua conduta anterior em conformidade com os ditames da boa fé, da honestidade e rectidão, usaram ou se socorreram de expedientes, de qualquer índole, com vista a colocar os seus credores numa situação de não poderem cobrar os seus créditos ou torná-la mais difícil ou improvável.

            Os requisitos de que depende a concessão de tal benefício, são os que constam do artigo 238.º, n.º 1, do CIRE, incumbindo-nos, no caso presente, aferir o previsto nas suas alíneas d), e e), de acordo com as quais:
“O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica” – al. d;
Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiquem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º - al. e);
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. (CIRE; Anotado), a pág. 190, encontram-se ali definidas, pela negativa, os requisitos de cuja verificação depende a exoneração, integrando-se os previstos nas alíneas d) e e) como respeitantes a comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram.
            Conclusão que reiteram na sua obra, Colectânea De Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, Lisboa, 2009, de pág.s 277 a 279.
            Resulta, assim, do preceito ora citado, com referência à sua alínea d), que tal pedido deve ser liminarmente indeferido desde que se verifiquem, cumulativamente, os três requisitos no mesmo enumerados, a saber:
            a) não apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
            b) com prejuízo para os credores e;
            c) conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
            A verificação do primeiro destes requisitos é inegável.
            Efectivamente, não obstante, as dívidas que deram origem à declaração de insolvência do requerente já se verificarem desde 2002 a 2005 e terem sido judicialmente reclamadas desde 2003 a 2006, o requerente só se veio a apresentar à insolvência em Maio de 2012.
            Se é certo que do incumprimento de tal prazo não resulta automaticamente a verificação do segundo dos requisitos enunciados – existência de prejuízo para os credores –, também não se pode olvidar que o facto de o devedor não se ter apresentado à insolvência no prazo que é legalmente fixado, por si só, também contribui para o aumento do prejuízo dos credores, uma vez que só pode entender-se a exigência de tal prazo, para protecção destes.
            Ou seja, logo que constate que se encontra em situação de, generalizadamente, não poder cumprir os seus encargos, o devedor deve apresentar-se à insolvência, por forma a que os seus credores fiquem a conhecer a real situação do devedor e possam accionar as medidas conservatórias e de garantia de que disponham (se for esse o caso) ou de accionar os meios legais coercivos de que possam dispor para a satisfação dos respectivos créditos.
            Tudo sem embargo de o devedor, em caso de apresentação tardia, poder demonstrar que, na prática, tal prejuízo não ocorreu.
            O que in casu não acontece.
            Pelo contrário, verifica-se que a inexistência de rendimentos disponíveis, conjugado com o facto de o requerente ter alienado os bens de que era proprietário, impossibilitou/dificultou as possibilidades de os credores virem a ter sucesso na intenção de se ressarcirem dos seus créditos à custa do património do devedor, ora requerente, como era expectável.
            Assim, tem de se concluir que o requerido se deveria ter apresentado à insolvência logo aquando da declaração de insolvência da empresa de que era sócio, o que não fez, bem como daí derivou prejuízo para os credores, uma vez que o mesmo, para além de assim ter procedido, ainda aproveitou o lapso de tempo que decorreu entre a declaração de insolvência de tal empresa e o requerimento para a declaração da sua própria insolvência, para se desfazer do seu património, como acima descrito na factualidade dada como provada, embora continue a residir no imóvel referido em 9, por força de contrato de arrendamento (cf. itens 9 e 11 dos factos provados).
            Assim, da não apresentação atempada do devedor à insolvência, tem de concluir-se que se verifica o prejuízo para os credores, exigido na alínea e preceito em análise. Tal atraso na apresentação à insolvência é relevante para efeito de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, por tal conduta/comportamento do devedor causar prejuízo aos credores, requisito essencial para a decisão de indeferimento liminar da pretensão do recorrente – neste sentido, veja-se Carvalho Fernandes, João Labareda, in Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, pág. 280.
            Efectivamente, como se refere no Acórdão do STJ, de 14/02/2013, Processo 3327/10.0TBSTS-D.P1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, verifica-se uma situação de prejuízo para os credores, irreversível e grave, como acontece, estando já o devedor em situação de insolvência, com aquele que resulta da ocultação do seu património ou de actos de dissipação dolosa, constituindo patente agravamento da situação dos credores, de modo a onerá-los pela atitude culposa do devedor insolvente, evidenciando que este não merece o benefício da segunda oportunidade, pressuposto da figura da exoneração do passivo restante, tal como acima já referido.
            Ora, sublinhe-se, como resulta da factualidade provada, o requerente, sabedor da sua situação financeira, previamente ao acto de requerer a sua própria insolvência, desapropriou-se dos bens que possuía, assim evitando que respondessem pelas suas dívidas, embora, por contemporâneo contrato de arrendamento trata-se de assegurar a sua habitação num dos imóveis vendidos, o que, sem margem para dúvidas, configura a existência, causal, relativamente à sua conduta, de prejuízo para os credores.
            Também o terceiro requisito previsto em tal alínea (perspectiva séria de melhoria da sua situação económica) não se verifica.
            Recorrendo, mais uma vez, aos ensinamentos de Carvalho Fernandes e João Labareda, in Colectânea …, pág. 280:
            “Está aqui em causa apurar se a não apresentação do devedor à insolvência se pode justificar por ele estar razoavelmente convicto de a sua situação económica poder melhorar em termos de não se tornar necessária a declaração da insolvência.”.
            Ora, analisando o requerimento apresentado pelo ora recorrente, este, nada alega neste sentido.
            Ao invés, atentos os bens e rendimentos que (não) possui e sem que se verifiquem melhorias a nível salarial, cada vez mais se deteriora a sua situação financeira, pelo que inexistem quaisquer indícios fiáveis de que o atraso na apresentação à insolvência se tenha prendido com o facto de expectável melhoria da sua situação económica.
            Por tudo isto, somos de opinião que, em conformidade com o disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, é de manter a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente.

            Assenta, ainda, a decisão recorrida, no pressuposto de que, igualmente, teria de soçobrar a pretensão do requerente, por força do disposto na referida alínea e), ou seja, que existem elementos que indiciam a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.
            De acordo com o n.º 1 deste preceito (o aplicável por se tratar de pessoa singular):
“A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, (…) nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”.
            Mais uma vez seguindo, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE, Anotado, Vol. II, a pág. 14, a insolvência culposa implica sempre uma situação dolosa ou com culpa grave do devedor, cuja actuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra, devendo ater-se às noções de dolo ou culpa grave que nos são dadas nos termos gerais de direito.
            Ora, compulsando o que ora se deixa dito com a factualidade que consta dos itens 1 a 7 e 9 a 12, dos factos dados como provados na decisão recorrida, é óbvio que a situação de insolvência do devedor/requerente foi criada e agravada pela sua própria actuação, pouco conforme à rectidão e á boa fé.
            Como daqui resulta, decorreram 7 anos entre a consumação da situação de insolvência e o pedido da respectiva declaração, espaço de tempo durante o qual, o recorrente se desfez dos bens que detinha, ocasionando a que, por via disso, inexistam bens apreendidos para a massa insolvente e consequente impossibilidade/dificuldade de os credores verem impossibilitada ou deveras dificultada a possibilidade de verem satisfeitos os seus créditos, o que demonstra por parte do devedor uma total ausência de um comportamento recto e de boa fé (pressuposto para a concessão do benefício que, não obstante isso, veio requerer), visando, apenas, eximir-se às suas responsabilidades para com os seus credores, pelo que se acha plenamente justificada a decisão de indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.
            Efectivamente, quem contrai crédito que era suposto e previsível – num plano de normalidade, razoabilidade, honestidade, prudência, num pensar de bonus pater familias, atentos os elementos e as circunstâncias (rendimentos/possibilidades) existentes à época da contracção dos créditos – poder vir a restituir, merece o benefício da exoneração do passivo restante, sempre que, entretanto, ocorra “alguma coisa” – que fuja ao seu controlo, que ele de todo não domine, que lhe seja alheia – que o tenha levado a cair em situação de incumprimento e de insolvência; em tal hipótese, não só se justifica o benefício da exoneração, como é mesmo para situações como estas – e apenas para estas situações, em face do que a nossa lei dispõe no art. 238.º, maxime nas alíneas e) e d) – que a exoneração foi e está gizada.
E essa “alguma coisa” deve, no pedido de exoneração, ser factualmente explicitada; até para que possa ser controlada/apreciada pelo tribunal.
Quer uma posterior diminuição de rendimentos, quer um posterior aumento de encargos, têm que ser factualmente alegadas/demonstrados pelo requerente da exoneração; e fazendo a conexão/encadeamento entre o “antes” e o “depois”, para o tribunal poder constatar/confirmar o que seria suposto e previsível à época da contracção do crédito e o que, em face e por causa da alteração das circunstâncias, deixou de o ser[1].
Nada isto foi evidentemente invocado; ignorando-se até os exactos rendimentos do recorrente, para além do alegado ordenado mensal auferido (633,47€, conforme artigo 4.º do requerimento inicial) no momento da contracção do endividamento – impondo-se raciocinar como se fossem semelhantes ao do momento presente – pelo que não se pode afirmar e concluir que tenha sido algo de alheio e fora do controlo do devedor/recorrente que provocou a sua situação de insustentabilidade financeira.
Como supra se referiu e aqui se repete, a “exoneração” não é para quem e de quem, sem embargo das coisas lhe poderem ter objectivamente corrido mal, se sabia e diria, à partida, num juízo de prognose póstuma, que as coisas iriam, em face do montante de endividamento contraído e dos rendimentos disponíveis, segura, forçosa e inevitavelmente correr mal.
E se a “exoneração” – ou a possibilidade do recurso a ela, com a entrada em vigor em 2004 do CIRE – também tem em vista evitar as situações de imprudência das instituições financeiras, também existe para provocar contracção no crédito e produzir impacto positivo na economia (para impor exigência e responsabilidade a quem concede crédito, uma vez que, se assim se proceder, menor será o risco de sobreendividamento e menos serão as insolvências dos consumidores).
            Assim, tem o presente recurso de improceder.

Nestes termos se decide:
Julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela massa insolvente, cf. artigos 303.º e 304.º do CIRE.
Coimbra, 11 de Fevereiro de 2014.


Arlindo Oliveira (Relator)
Emidio Francisco Santos
Catarina Gonçalves

[1] Pode haver, como é evidente, diminuição de rendimentos e aumento de encargos e, ainda assim, ser ab initio imprudente e irrazoável contrair determinado e concreto nível de endividamento; hipótese em que a alteração de circunstâncias apenas terá precipitado/antecipado uma situação, certa, de insolvência.