Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2265/15.4T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO COMERCIAL
ESCRITURA PÚBLICA
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
FIANÇA
Data do Acordão: 11/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – J.C. CÍVEL – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 7º DO RAU; ARTºS 220º, 286º, 334º, 627º E 655º DO C. CIVIL.
Sumário: I- Estando em equação um contrato de arrendamento comercial a que se aplique o regime legal constante do art. 7º do RAU, a forma prescrita (escritura pública) seria exigível, pelo que a sua não observância o afecta de nulidade, já que a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220º do Código Civil).

II- Esta invalidade, inspirada em razões de interesse e ordem pública, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286º do Código Civil).

III- A declaração de nulidade não releva quando a sua declaração constitua uma ofensa manifesta, clamorosa e intoleravelmente, aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito.

IV- É de admitir o bloqueio directo, ex bona fide, de normas formais, considerando-se operante a invocação do abuso de direito nos negócios formais não submetidos à forma prevista na lei.

V- A excepcionalidade justificativa da invocação do venire contra factum proprium tem propriedade e colhe aplicação quando a locatária confiou em que adquiriu com o negócio e com o decurso do tempo uma posição jurídica; com base nessa crença orientou toda a sua vida negocial e tomou disposições, confiança esta que foi criada pela conduta dos autores ao declarem por escrito a vontade de arrendar e ao receberem as rendas durante mais de 15 anos, sem terem alguma vez exigido a celebração do contrato em observância da forma legal.

VI- Se os contraentes não estabelecerem o limite dos períodos de prorrogação, por força do artigo 655, nº 2 do CC a fiança caduca no final do prazo que decorre da soma do prazo inicial do contrato com o prazo de cinco anos.

VII- Na fiança relativa às obrigações emergentes do contrato de arrendamento, não decorrendo de nenhuma cláusula qualquer limitação temporal do número das prorrogações, a necessidade imperativa da fixação de um número limite de prorrogações para a responsabilidade do fiador (não tendo ocorrido nova convenção entre as partes relativamente à fiança, esta tem-se por extinta decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

Decisão Texto Integral:








                   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

F... e mulher L... intentaram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra M..., “O..., Lda.”, C..., pedindo que na procedência da acção seja declarada a resolução do contrato de arrendamento e os réus condenados a entregar o locado, livre e desocupado, bem como a pagar as rendas vencidas e vincendas até a entrega do mesmo, tudo acrescido de juros de mora, e ainda a pagar os danos patrimoniais verificados no locado, a liquidar em incidente próprio. Subsidiariamente, pedem a condenação dos réus no pagamento das mesmas rendas, mas a título de enriquecimento sem causa.

Fundamentam este pedido alegando que em 01-02-1998 deram de arrendamento à ré sociedade, para o exercício de atividade comercial, uma fração autónoma, pela renda anual de 1.020.000$00, a pagar em prestações mensais de 85.000$00, e que se encontram em dívida as rendas vencidas a partir de janeiro de 2011 (inclusive). Mais alegaram que o 3.º réu se constituiu fiador e principal pagador da ré sociedade pelo cumprimento de todas as obrigações inerentes a esse contrato e que a 1.ª ré “afiançou” verbalmente o pagamento das rendas. E alegaram que o vidro da montra principal está partido, desconhecendo o estado de conservação do locado.

Na contestação os réus invocaram a nulidade do contrato de arrendamento, uma vez que o mesmo devia ter sido reduzido a escritura pública;

- a cessação do contrato por mútuo acordo, com efeitos reportados ao final do ano de 2010 e entrega do locado em agosto de 2010;

- a extinção da fiança subscrita pelo 3.º réu, desde o dia 31-01-2004, pelo que não é responsável pelo pagamento das rendas peticionadas, que se reportam a janeiro de 2011 e meses seguintes;

- a nulidade da invocada “fiança verbal” prestada pela 1.ª ré.

Concluíram pela absolvição do pedido.

Os autores responderam às exceções, pugnando pela sua improcedência e invocando que os réus atuam em abuso de direito ao invocar a nulidade do contrato de arrendamento volvidos quase vinte anos sobre a data em que o mesmo foi celebrado.

Foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Procedeu-se a audiência final e por sentença foi a acção julgada parcialmente procedente, por provada e condenada a ré “O..., Lda.” a pagar aos autores as rendas referentes a janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho e agosto de 2011, a fixar em incidente de liquidação, a que acrescem juros de mora, à taxa prevista para os juros civis, contados desde a data em que o crédito se tornar líquido, ou seja, desde a decisão a proferir em incidente de liquidação, até efetivo e integral pagamento;

Absolvidos os réus do demais peticionado. 

Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os autores concluindo que:

...

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

 Fundamentação

O Tribunal em primeira instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

… …

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso remete para a apreciação da nulidade da sentença nos termos do art. 615 nº1 al.c), d) e e) do CPC,; para impugnação da matéria de facto, e para a alteração da decisão de direito no domínio da validade/invalidade do contrato de arrendamento e existência/inexistência de fianças válidas.

Quanto às nulidades da sentença, consistentes na previsão do art. 615 nº1 als. c) , d) e e) do CPC, cremos que a sua arguição labora num equívoco.

Tentando perceber a argumentação inexistente do recurso nesse domínio, porque os apelantes não concretizam minimamente em que é que querem ver traduzidas nos autos cada uma dessas nulidade, parece que, quando muito, se quer sustentar que a oposição entre os fundamentos e a decisão; a omissão de pronúncia e de condenação em quantidade superior ao pedido (art. 615 nº1 al. c), d) e e) do CPC) decorrem, de o tribunal de primeira instância não ter condenado nos pedidos formulados pelos autores, na exacta medida em que era solicitado.

Ora, se é isto que se pretende dizer, e outra coisa não descortinamos no que (não) é mencionado no recurso, concluímos de imediato que os autores não indicam em que é que consistiu a condenação em quantidade superior ou diferente do era pedido, quando, afinal, a sentença se limitou a conhecer dos exactos pedidos formulados, julgando-os como improcedentes ou parcialmente procedentes.

A menos que, por absurdo, os apelantes se estejam a defender que sempre que um tribunal não condene nos pedidos mas dele absolva ou condene apenas parcialmente os réus, tal se tenha de considerar uma nulidade do art. 615 nº1 al.e) do CPC, fica sem qualquer fundamentação, mesmo implícita, a invocação desta nulidade.

Por outro lado, e na mesma linha de raciocínio, se os apelantes entendem que a omissão de pronúncia resulta (porque o não dizem nem sugerem) de protestarem que a impugnação da matéria de facto devia conduzir a diversa decisão de direito, a circunstância de a sentença haver decidido de acordo com os factos que fixou como provados e não provados (e não com aqueles que os autores pretendiam ver fixados) constitui uma omissão de pronúncia, então apenas poderemos dizer que, tal acrescenta mais perplexidade, absurdo e falta de razão argumentativa ao já assinalado quanto à nulidade de condenação superior ao pedido.

Em último e rematando, a nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão, nada referindo os recorrentes de concreto em direcção à análise do vicio, parece que talvez queiram renovar este mesmo “non sense” que consiste em provavelmente (e dizemos provavelmente por nada, mesmo nada, deixarem exposto a não ser a invocação do preceito) entenderem que essa oposição entre fundamentos e decisão se afere em relação aos factos que pretendiam ver como provados e não provados e a decisão que foi proferida, tendo por base factos diversos do que aqueles desejavam e protestam.

E dito por junto, porque a análise das nulidades aqui deixada expressa excedeu em muito o que era devido perante a inexistência de argumentos recursivos, e que por si só levaria à improcedência da arguição, no improvimento, mais que total, absoluto, da invocação de qualquer nulidade da sentença, passamos a conhecer da questão de direito.

Quanto à impugnação da matéria de facto,

… …

Quanto à decisão de direito, a partir da alteração da matéria de facto fixada como provada, os recorrentes limitando-se a declarar como petição de princípio que o contrato de arrendamento é nulo por vício de forma; que não existiu entrega do locado; que C... e a ré M... são fiadores; protestam a total procedência dos seus pedidos, sem questionarem, e desconsiderando em absoluto, a argumentação jurídica da sentença.

Ora, mantendo-se sem alteração a matéria de facto deve conformar-se a decisão de direito, e nos precisos termos argumentativos expostos na sentença apelada, sendo que acrescentamos ainda, quanto às questões nesta sede suscitadas pelos apelantes, que ao contrato de arrendamento em causa, e no que respeita à forma, aplica-se o regime legal constante do art. 7º do RAU, por ser o vigente na data da sua formação – art. 12º do C.Civil, razão pela qual se exigia que tivesse sido celebrado por escritura pública, e não o foi.

Por outro lado é inteiramente pacifico que desde a celebração do mesmo, através de escrito, em 1 de Fevereiro de 1998, os autores enquanto senhorios foram sempre recebendo as rendas até Agosto de 2010, sendo que vieram arguir a nulidade desse mesmo contrato por falta de forma estabelecida na lei.

Estando em equação um contrato de arrendamento comercial, a forma prescrita (escritura pública) sempre seria exigida pelo que a sua não observância afectá-lo-ia do de nulidade, já que a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220º do Código Civil). Invalidade que, inspirada em razões de interesse e ordem pública, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286º do Código Civil).

Porém, com o conforto de nesta matéria já haver decidido o STJ e outra jurisprudência[1], julgamos que a declaração de nulidade, no caso em decisão, constituiria uma ofensa manifesta, clamorosa e intoleravelmente, aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito.

De facto, os autores sempre receberam as rendas sem alguma vez questionar a validade do contrato de arrendamento. Só decorridos mais de quinze anos declaram pretender exercer esse direito, não se coibindo de evocar a nulidade.

O titular de certo direito subjectivo pode adoptar comportamento que se conforma com a estrutura do direito subjectivo exercido, seja com a sua forma seja com o valor normativo que lhe é imanente; um comportamento que é contrário ou disforme da própria estrutura jurídico-formal do direito subjectivo em causa; ou um comportamento que, na sua materialidade, preenche a forma do direito subjectivo que exercita, mas rebela-se contra o sentido normativo interno de tal direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento jurídico. Com inteiro rigor, só a primeira situação preencherá um correcto exercício do direito, enquanto na segunda há um excesso de direito, carência de direito. Na terceira, o titular, no plano da forma, actua em conformidade com o fundamento jurídico do seu direito, mas viola os limites materiais do fundamento axiológico desse direito subjectivo exercitado, a enformar o abuso do direito, num excesso manifesto dos limites do direito[2].

Assim é que, o sujeito de direito deve actuar como pessoa de bem, honestamente e com lealdade, nomeadamente, no exercício dos direitos e deveres, não pode defraudar a legítima confiança ou expectativa nos outros. É a tutela da confiança, pois, “poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens.”. Poder confiar é condição básica da própria possibilidade de comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso, à cooperação, numa palavra, à paz jurídica[3].

As condutas, denunciando a posição do agente perante certo assunto geram expectativas nos outros, pelo que todo o agir ou interagir é comunicação e além de carrear uma pretensão de verdade ou de autenticidade (de fidelidade à própria identidade pessoal), desperta nos outros expectativas quanto à futura conduta do agente[4].

Esta advertência naturalística e normativa gera que a conduta tenha de ser entendida como responsável, com capacidade de planeamento e de organização da vida, apta a reger a sua pessoa e daí que não seja aceitável que a conduta revelada não seja tomada com esse imperativo e natureza de confiança legítima, ou seja, que não auto vincule quem a toma.

A partir de condutas habituais e repetidas por largo período de tempo podem emergir verdadeiros elementos normativos, ou seja, regras inter subjectivamente vinculantes, uma vinculação normativa pode emergir não de uma norma legal ou de um acto jurídico-negocial, mas da constituição de uma espécie de “norma consuetudinária” que vincula as partes em interacção num quadro de reciprocidade[5].  É a proibição do venire contra factum proprium , que supõe a verificação de uma situação objectiva de confiança, investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento e a boa-fé da contraparte que confiou [6].

A confiança digna de tutela tem de radicar em algo objectivo: uma conduta que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura. Contanto que haja uma anterior conduta de facto de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, faça despertar noutrem a convicção que, de futuro, se comportará identicamente, ocorre uma conduta causal à relação de confiança. Todavia, a necessidade de tutela jurídica só surge quando a contraparte, com base na confiança criada, assume disposições e organiza planos, ou seja, faz um investimento na confiança, investimento que não pode ser removido através de outro meio jurídico capaz de conduzir a uma solução satisfatória. É, pois, uma proibição de último recurso. Por fim, a confiança da contraparte só merece protecção jurídica se estiver de boa-fé[7]. E a boa-fé é o princípio pelo qual o sujeito de direito deve actuar como pessoa de bem, honestamente e com lealdade[8].
Em suma, a actuação jurídica individual encontra limites na boa-fé, nos bons costumes e no fim social ou económico do direito (artigo 334º do Código Civil), atendendo às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade
[9].

Na tipologia do abuso do direito o venire contra factum proprium corresponde ao direito exercitado no sentido de extinguir certa relação subjectiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer crer à contraparte contrária que não exerceria tal direito. Por isso, no quadro factual descrito, é necessário que a conduta da autora de receber as rendas por um período superior a quinze anos, sem alguma vez ter suscitado a invalidade do contrato, seja entendida como vinculante para o futuro e que a ré, com base na confiança criada, tenha organizado os seus planos de vida de que lhe surgiriam danos se a sua confiança legítima lhe viesse a ser frustrada.

E se houver divergência entre a aparente intenção da autora e a sua intenção real, a contraparte só é merecedora de protecção jurídica se estiver de boa-fé, por desconhecer aquela divergência, e se tiver agido com cuidado e precauções usuais ao tráfico jurídico.

São conhecidas as reservas colocadas por alguma doutrina quanto à convocação do abuso de direito em casos de nulidades formais, porque as normas legais relativas à forma destinam-se a um fim de segurança ou de certeza jurídicas inconciliáveis com a eficácia da declaração não formalizada[10]. São as “inalegabilidades formais”, em que o abuso do direito não tem margem directa de concretização, porque postularia a redução teleológica das normas formais e a convalidação do negócio[11].

 Na verdade, diz-se em adverso que a actuação do abuso do direito nas nulidades formais pode atribuir eficácia plena a um negócio que a lei imperativamente fulmina de nulo. Logo, em princípio, não tem relevo a contradição da conduta da parte que vem invocar a nulidade do negócio a que assentiu, mas que é nulo por falta de forma, pelo que, age contra a boa- fé se a arguição tiver em vista colher um proveito ou libertar-se de um vínculo negocial que entretanto se tornou indesejável. O sancionamento para essa má-fé haveria então de buscar-se na responsabilidade indemnizatória e não na convalidação do negócio nulo por vício de forma.

Parece-nos que, independentemente de a situação descrita se situar num momento em que a subsistência do contrato não é defendida por nenhuma das partes[12], ela enquadra a excepcionalidade justificativa da invocação do venire contra factum proprium: a locatária confiou em que adquiriu com o negócio e com o decurso do tempo uma posição jurídica; com base nessa crença orientou toda a sua vida negocial e tomou disposições, confiança esta que foi criada pela conduta dos autores ao declarem por escrito a vontade de arrendar e ao receberem as rendas durante mais de 15 ano, sem terem alguma vez exigido a celebração do contrato em observância da forma legal e, apesar disso. Julgamos, por isso, que estão verificados os pressupostos do venire contra factum proprium, assim tolhendo a declaração de nulidade visada pela locadora como aliás foi decidido na sentença recorrida.

Também a nossa jurisprudência, tem vindo a admitir o bloqueio directo, ex bona fide, de normas formais, considerando operante a invocação do abuso de direito nos negócios formais não submetidos à forma prevista na lei[13].

Nessa linha de entendimento há igualmente doutrina que defende a actuação do abuso do direito nos casos de negócios formais nulos por vício de forma, aceitando a sua validade não obstante a falta de forma exigida[14].

Assim, no concreto do caso em recurso, é o não exercício prolongado que estará na base da situação de confiança mas, para ser relevante, os elementos circundantes têm de permitir a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que o titular do direito não mais o exercerá. É esse investimento de confiança que justifica que o beneficiário não seja desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. A ré ocupou o imóvel desde Fevereiro de nele explorando um estabelecimento sem que os senhorios tenham alguma vez suscitado dúvidas quanto à validade e eficácia do contrato. Por isso, o comportamento da locadora justifica a tutela da confiança da locatária, tanto que para haver abuso do direito não é necessária a consciência de que se excedem os limites do direito, porque a concepção adoptada do abuso do direito é a objectiva e não a subjectiva. Ante o expendido, julgamos inexistir fundamento para dirigir, a este respeito, qualquer censura à sentença recorrida.

Apreciada esta questão da não nulidade do contrato de arrendamento por violação da forma legal, no que concerne à cessação deste, também com a decisão recorrida, e com os argumentos aí dispensados, entendemos que ela ocorreu em Agosto de 2010 com a entrega do arrendado aos locadores.

Tendo como elemento fundamental o ter ficado provado que a ré sociedade ocupou o locado até Agosto de 2010, altura em que a 1.ª ré procedeu à sua limpeza e o entregou ao procurador dos autores, colocando-o à disposição destes, retiramos dele que a locatária declarou dessa forma pôr fim ao arrendamento.

E mesmo que não tenha ficado demonstrado que as senhorias emitiram declaração de aceitação da entrega do espaço, a declaração do inquilino vale como denúncia/revogação unilateral do arrendamento.

É com inteira razão que se escreve na sentença recorrida que o contrato de arrendamento é de livre denúncia/revogação unilateral pelo locatário e uma declaração nesse sentido produz efeito de acordo com o regime legal do arrendamento urbano. E no tratamento jurídico da denúncia quadra conforme que celebrado na vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90 este diploma foi revogados pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que veio por sua vez aprovar o NRAU – Novo Regime de Arrendamento Urbano - que é o aplicável mas com a redacção que existia à data de Agosto de 2010, ou seja a redacção inicial.

Ora tendo, ficado estipulado no contrato o prazo de um ano mas nada tenso sido referido aí quanto ao prazo de denúncia pelo arrendatário, esta falta de estipulação torna aplicável o disposto no artigo 1110.º, n.º 2, do Código Civil, que estatui que, na falta de estipulação, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 10 anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano. Portanto, o prazo de denúncia a que alude o artigo 1098.º, n.º 2, não tem aqui aplicação, por ser afastado pela disposição específica do n.º 2 do artigo 1110.º, sendo correcto interpretar-se aquele art. 1110 nº2 como aplicável, quer as partes hajam fixado expressamente prazo de duração do contrato, mas nada disseram quanto à denúncia, quer nos casos em que as partes não fixaram qualquer prazo de duração do contrato.

Ao contrário do prazo de 120 dias para o arrendamento habitacional (cfr. artigo 1098.º do Código Civil), pretende-se, com o mencionado prazo igual ou superior a um ano, tutelar os interesses do senhorio, que se encontra assim a coberto de uma cessação contratual num prazo breve ou escasso[15].

No caso, a falta de estipulação em matéria de antecedência da denúncia do arrendatário, impunha que este deveria ter denunciado o contrato em causa com a antecedência de um ano, mantendo-se o arrendamento em vigor até ao final do decurso desse ano, bem como a obrigação de pagamento das rendas, por parte da ré locatária (artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil) E se ficou provado que a ré sociedade (através da sócia M...) realizou a limpeza e entregou o locado ao procurador dos autores, em agosto de 2010, deve considerar-se, com tal comportamento, que o contrato foi denunciado nessa data.

Assim, como se conclui na sentença recorrida e agora se confirma, “a inobservância da antecedência legalmente prevista, não obstando à cessação do contrato, obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta (artigo 1098.º, n.º 3, do Código Civil).

Ou seja e não obstante o contrato de arrendamento ter cessado por denúncia da arrendatária em agosto de 2010, sempre esta se encontrava obrigada ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta, ou seja, até agosto de 2011.

Tendo a arrendatária pago as rendas até final do ano de 2010, são devidas as rendas correspondentes ao período em falta – até agosto de 2011 -, ou seja 8 meses de renda. Encontram-se, portanto, em dívida as rendas referentes aos meses de Janeiro a agosto de 2011, que a ré locatária terá que pagar”.

Quanto à responsabilidade do fiador, resultou assente, porque consta do contrato, que C... ficava «por fiador e principal pagador do arrendatário, pelo exacto cumprimento de todas as condições inerentes a este contrato e suas prorrogações».

É com isto que os autores pretendiam responsabilizá-lo pelo pagamento das responsabilidades da ré sociedade.

Sabendo-se que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (artigo 627.º, n.º 1, do Código Civil), no contrato de arrendamento a vinculação fica inteiramente dependente da vontade e do cumprimento do inquilino.

Tendo sido revogada pelo NRAU a norma do nº2 do art. 655 do CCivil que estabelecia que “2 – Obrigando-se o fiador relativamente aos períodos de renovação, sem se limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta de nova convenção, logo que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.”, este dispositivo continua a aplicar-se aos contratos de arrendamento anteriormente outorgados (por força do artigo 12.º do Código Civil).

Se os contraentes não estabelecerem o limite dos períodos de prorrogação, o artigo 655, nº 2, determina que a fiança caducará no final do prazo que decorre da soma do prazo inicial do contrato com o prazo de cinco anos, pelo que, na aplicação ao caso em decisão, abrangendo a fiança as obrigações emergentes do contrato de arrendamento, quer pelo seu período inicial, quer pelas suas prorrogações, porque não decorre desta cláusula qualquer limitação temporal do número das prorrogações e porque se mostra imperativa a necessidade da fixação de um número limite de prorrogações para a responsabilidade do fiador, não tendo ocorrido nova convenção entre as partes relativamente à fiança, haverá que ter esta como extinta decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação. O que significa que a fiança prestada por C... ocorreu em 1 de Fevereiro de 2004, não respondendo este pelo pagamento das rendas devidas pela arrendatária.

Ainda quanto às fianças reclamadas pelos autores, agora recorrentes, pretendiam estes que que fosse julgada a existência de uma fiança prestada verbalmente pela ré M...

Como se refere na sentença recorrida “ A fiança tem uma característica essencial: a acessoriedade (artigo 627.º, n.º 2, do Código Civil). A obrigação do devedor é principal e a do fiador é acessória daquela, fica subordinada e acompanha a obrigação afiançada.

Desta característica faz a lei resultar a necessidade de a declaração de vontade do fiador ter de revestir a forma exigida para a obrigação principal (artigo 628.º, n.º 1, do Código Civil). Na verdade, a lei obriga à expressa declaração da vontade de prestar fiança para evitar atitudes passivas ou inadvertidas, precipitações e falta de apreciação das consequências de tal acto.”

A prova obtida e confirmada em recurso não permite considerar a existência de qualquer declaração de vontade, mesmo que verbalmente expressa pela ré M... no sentido de assumir perante os autores que ficava fiadora e principal pagadora da ré sociedade, pelo cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de arrendamento, o que resolve desde já, e pela improcedência, estas conclusões de recurso dos apelantes. Porém, e como se refere também na sentença recorrida, mesmo que se tivesse eventualmente provado a existência dessa declaração verbal no de fiança, ela seria sempre de considerar nula por força do art. 220 do CCivil, porquanto devia ter sido reduzida a escrito – quer tivesse sido prestada na vigência do RAU, na redacção do Decreto-Lei n.º 64-A/2000 (artigo 7.º, n.º 1), quer na vigência do NRAU (artigo 1069.º do Código Civil).

Analisadas destes modo todas as conclusões de recurso dos apelantes, todas elas merecem improcedência, razão pela qual se deverá manter a decisão recorrida nos seus precisos termos e fundamentos, sem alteração.

Síntese Conclusiva:

- Estando em equação um contrato de arrendamento comercial a que se aplique o regime legal constante do art. 7º do RAU, a forma prescrita (escritura pública) seria exigível pelo que a sua não observância o afecta de nulidade, já que a declaração negocial que careça de forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei (artigo 220º do Código Civil).

- Esta invalidade, inspirada em razões de interesse e ordem pública, é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal (artigo 286º do Código Civil).

- A declaração de nulidade, não releva quando a sua declaração constitua uma ofensa manifesta, clamorosa e intoleravelmente, aos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito.

- É de admitir o bloqueio directo, ex bona fide, de normas formais, considerando-se operante a invocação do abuso de direito nos negócios formais não submetidos à forma prevista na lei.

- a excepcionalidade justificativa da invocação do venire contra factum proprium tem propriedade e colhe aplicação quando a locatária confiou em que adquiriu com o negócio e com o decurso do tempo uma posição jurídica; com base nessa crença orientou toda a sua vida negocial e tomou disposições, confiança esta que foi criada pela conduta dos autores ao declarem por escrito a vontade de arrendar e ao receberem as rendas durante mais de 15 ano, sem terem alguma vez exigido a celebração do contrato em observância da forma legal.

- Se os contraentes não estabelecerem o limite dos períodos de prorrogação, por força do artigo 655, nº 2 do CC , a fiança caduca no final do prazo que decorre da soma do prazo inicial do contrato com o prazo de cinco anos.

- Na fiança relativa às obrigações emergentes do contrato de arrendamento, não decorrendo de nenhuma cláusula qualquer limitação temporal do número das prorrogações, a necessidade imperativa da fixação de um número limite de prorrogações para a responsabilidade do fiador (não tendo ocorrido nova convenção entre as partes relativamente à fiança, esta tem-se por extinta decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação.

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.

Coimbra, 7 de Novembro de 2017

Relator: Des. Manuel Capelo

J.A.: Sr. Des. Falcão de Magalhães

J.A.: Sr. Des. Pires Robalo

 





[1] Vd. Por todos os acs. STJ de 26-10-2004 proc. 2871/04 e ac. RP de 23-10-2012 proc. 437/10.7TVPRT.P2, in dgsi.pt
[2] Vd. Fernando Augusto Cunha de Sá, “Abuso do Direito”, 1973, págs. 465 a 467.
[3] Batista Machado, “Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium”, Obra Dispersa, Vol. I, 1991, pág. 352.
[4] Baptista Machado, ibidem, pág. 353.
[5] Baptista Machado, in R.L.J. 117º, pág. 361
[6] Baptista Machado, ibidem, pág. 361
[7] Baptista Machado, ibidem, págs. 416 a 418.
[8] Fernando Augusto Cunha de Sá, ibidem, pág. 171.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, I, 4ª ed., pág. 299.
[10] Vaz Serra, in B.M.J. 85, pág. 30
[11] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, pág. 204.
[12] A ré sustenta que devolveu o arrendado em 2010 e que desde essa data que cessou o arrendamento e os autores defendem que de qualquer forma o contrato deverá declara-se por findo, seja pela nulidade invocada, seja pela resolução por falta de pagamento das rendas.
[13] In www.dgsi.pt: Acs. STJ J de 26-10-2004 proc. 2871/04; STJ de 27-05-2010, processo 148/06.8TBMCN.P1.S1; de 28-11-2002, ref. 02B3559; R. L. de 8-07-2008, processo 1378/2008-1; de 11-10-2007, processo 5613/2007-2.
[14] Fernando Augusto Cunha de Sá, ibidem, pág. 648.
[15] vd. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 29-01-2013, processo 27/11.7TBPRD.P1, e Tribunal da Relação de Évora, de 20-10-2016, processo 1384/15.1T8FAR.E1, disponíveis no sítio da internet www.dgsi.pt.