Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2534/09.2TBVIS-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
CRÉDITO LABORAL
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TJ DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.333º DO CT
Sumário: I. O privilégio imobiliário especial concedido pelo art.º 333.º do CT aos créditos laborais abrange todos os imóveis do empregador afectos à sua organização empresarial -mas apenas estes-, não sendo de exigir uma específica conexão entre o trabalhador e o imóvel.

II. Tal entendimento não afronta o art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral: 1. Relatório

Por sentença de 02.10.2009, transitada em julgado em 13.11.2009, foi declarada a insolvência de “A..., L. da”, requerida por B... em 31.07.2009.

No presente apenso de verificação do passivo foi pela Sr.ª AI junta a relação a que alude o art.º 129.º do CIRE, aí tendo relacionado e reconhecido como créditos providos de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, os reclamados pelos trabalhadores que identifica (créditos relacionados sob os n.ºs 3, 4, 17, 24, 39, 40, 41, 47, 49, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 61 e 75).

Tais créditos foram impugnados pela também credora reclamante O..., por entender que não gozam de privilégio imobiliário especial sobre as fracções prediais designadas pelas letras “B”, “C” e “D” (verbas n.º 6, 7 e 8, respectivamente, do auto de apreensão de bens), oneradas com hipoteca voluntária constituída a favor da impugnante.

À impugnação responderam os trabalhadores titulares dos créditos impugnados, com excepção dos credores G..., H....e J.....

Realizou-se tentativa de conciliação e nela, para o que ora importa, os credores reclamantes e a impugnante O... mantiveram as posições assumidas nos autos.

Face ao mais ali decidido foi elaborada pela Sr.ª AI a lista constante de fls. 400 a 407.

Foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória.

Procedeu-se a julgamento com observância de todo o formalismo legal, vindo após, na devida oportunidade, a ser proferida douta sentença que, para além do mais que não releva para o presente recurso, graduou os créditos em concurso da seguinte forma:

“I – Pelo produto da alienação dos imóveis, fracção autónoma B, descrita na 1.ª CRPredial de Viseu, freguesia de ..., sob o n.º 858-B, fracção autónoma C, descrita na 1.ª CRPredial de Viseu, freguesia de ..., sob o n.º 858-C, fracção autónoma D, descrita na 1.ª CRPredial de Viseu, freguesia de ..., sob o n.º 858-D:

1.º Os créditos dos trabalhadores 3, 4, 17, 24, 38, 39, 40, 46, 48, 52, 54, 55, 56, 57, 58, 61 e 75;

2.º O crédito hipotecário 15 da O...;

3.º O crédito 42 do Instituto de Segurança Social;

4.º Os créditos comuns 1, 2, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 16, 18, 19, 20, 21 - na parte comum, ou seja, € 6.615,11 - 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 41, 43, 44, 45, 47, 50, 51, 53, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93 e 94;

5.º Os créditos subordinados, ou seja, os juros do crédito 21 (Convex), no valor de € 127,63, o crédito 34 de E..., o crédito 49 de F...e o crédito 69 de “ I..., SA”.
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Inconformada, veio a reclamante O... interpor recurso da sentença e, tendo produzido doutas alegações, rematou-as com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“1.ª- É atribuído pelo CIRE - artº 131º nº 3 - o efeito cominatório pleno à falta de respostas à impugnação dos créditos- como, aliás, o atribui o Art.º 784.º do CPC para a falta de contestação;

2.ª- Não tendo os trabalhadores G..., H... e J... (n.ºs 24, 40 e 52 da lista de fls. 400 a 407 a que se refere a parte final da douta sentença sob recurso) deduzido resposta à impugnação apresentada pela recorrente àqueles créditos e atento o efeito cominatório do art.º 131.º n.º 3 do CIRE, o Tribunal “a quo” deveria ter julgado procedente a impugnação e não reconhecer o privilégio imobiliário especial;

3.ª- Interpretar-se a parte final do nº 3 do art.º 131.º do CIRE no sentido de que não tem efeito cominatório pleno se outros credores apresentarem resposta à impugnação em termos que possa ser aproveitada aos impugnados não respondentes é violar o princípio da igualdade assegurado pelo art.º 13.º da Constituição.

4.ª- O legislador, ao ressaltar no preâmbulo do Dec. Lei 200/2004 de 18/08, que modificou a redacção original deste artigo consignada no Dec. Lei 53/2004 de 18/03 que implementou o CIRE, que para obviar a eventuais dúvidas que a anterior redação pudesse suscitar “esclarece-se que todas as impugnações das reclamações de créditos serão imediatamente consideradas procedentes quando às mesmas não seja aposta qualquer resposta” não permite outra interpretação que não seja o efeito cominatório pleno da ausência de resposta à impugnação do crédito.

5.ª- Para o gozo do privilégio creditório previsto pela alínea b) do nº 1 do art.º 333.º do Código de Trabalho é essencial a alegação e demonstração de que os trabalhadores prestaram a sua actividade no imóvel apreendido, ónus que cabe àqueles (art.º 342.º, n.º 1, do CC), sob pena de não beneficiarem do dito privilégio.

6.ª - Ao dar-se como provado que “Os trabalhadores da sociedade insolvente cujos créditos foram reconhecidos pela Administradora da Insolvência não tinham o seu local de trabalho habitual nas fracções autónomas referidas em 3.1. (ponto 3.15 dos factos provados da douta sentença) reconhece-se que os trabalhadores não cumpriram o ónus, que sobre si impede, de verificar o pressuposto da alínea b) do n.º 1 do art.º 333.º do C.T.

7.ª- Conjugando o facto do objecto social da insolvente - comercialização de equipamentos de escritório, sistemas informáticos e de telecomunicações, desenvolvimento de software e formação” (ver fls. 9 dos autos principais – certidão de matrícula da insolvente – ser desenvolvido na sua sede sita na Rua ..., 46, Viseu, local onde todos os trabalhadores prestavam a sua actividade por conta, ordem e direcção da insolvente, com o que se deu como provado pela negativa (os trabalhadores da sociedade insolvente cujos créditos foram reconhecidos pela Administradora da Insolvência não tinham o seu local de trabalho habitual nas fracções autónomas), apenas se pode concluir pela não verificação do pressuposto previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT e, destarte, a justeza da impugnação da ora recorrente no sentido de não ver ser reconhecido o privilégio imobiliário especial aos créditos reclamados pelos trabalhadores na presente insolvência.

8ª- Entre o confronto da segurança do registo de hipoteca sobre determinado imóvel que não é a sede da hipotecante e no qual os trabalhadores desta não tinham o seu local de trabalho e o confronto de uma interpretação extensiva no sentido de conferir privilégio imobiliário especial aos trabalhadores sobre todos os imóveis afectos à actividade empresarial da insolvente, deve ser dada prevalência à hipoteca registada protegida pelo princípio da confiança e da segurança, ínsito na ideia de estado de direito democrático. Interpretação contrária é inconstitucional e violadora do art.º 2.º da Constituição.

9ª- Se é sobre os imóveis do empregador que incide o privilégio imobiliário, o requisito especial tem de ir buscar-se, segundo o que dispõe a lei, à actividade do trabalhador: imóvel onde ele preste a sua actividade; não diz a lei imóvel da actividade do empregador onde o trabalhador presta actividade.

10.ª- O privilégio creditório conferido aos créditos laborais pelo art.º 333.°, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho não abrange a globalidade dos imóveis afectos à actividade do empregador mas apenas somente aquele, ou aqueles, onde o trabalhador prestou efectivamente a sua actividade.

11ª- Por se colocar material, equipamento e mobiliário obsoleto, por trabalhadores, não identificados, em fracções autónomas utilizadas pela insolvente só para tal fim, não se pode concluir que se trata de desenvolvimento do objecto social da insolvente em tais imóveis, isto porque, a actividade empresarial da insolvente era a comercialização de equipamentos de escritório, sistemas informáticos e de telecomunicações, desenvolvimento de software e formação, o que fazia na sua sede onde todos os trabalhadores prestavam o seu labor.

12.ª - Tratando-se de materiais, equipamento e mobiliário obsoletos, razão pela qual eram colocados nas fracções apreendidas e sendo a actividade empresarial da insolvente a comercialização de equipamentos de escritório, sistemas informáticos e de telecomunicações, desenvolvimento de software e formação, ter-se-á que concluir que aqueles objectos obsoletos já não estavam afectos ao objecto social da insolvente e actividade empresarial da insolvente, de molde a se poder presumir que os trabalhadores “prestavam o seu trabalho” naquelas fracções.

13ª- Assim, violou a douta Sentença o disposto no art.º 686.º e 342.º n.º 1, ambos do Código Civil, art.º 333º n.º 1 alínea b) do Código de Trabalho, art.º 131.º n.º 3 do CIRE e artºs 2.º e 13.º da Constituição”.

Com tais fundamentos, pretende a alteração da sentença proferida, de modo a não ser reconhecido o privilégio imobiliário dos trabalhadores e, consequentemente, sejam os créditos reclamados pela ora recorrente, garantidos em decorrência das hipotecas registadas sobre as fracções identificadas no ponto 3.1 da sentença, graduados com a preferência que resulta do art.º 686.º do Código Civil, isto é, em primeiro lugar.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Sabido que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso (art.º 684.º n.º 3 e n.º 1 do art.º 685.º-A do CPC), as questões colocadas à apreciação deste Tribunal são as seguintes:
i. indagar se o nº 3 do art.º 131.º do CIRE consagra um cominatório pleno, tendo ocorrido erro de julgamento por errónea interpretação do ali preceituado, resultando igualmente violado o princípio constitucionalmente consagrado da igualdade;
ii. decidir se a sentença recorrida errou na aplicação dos artigos art.º 686.º e 342.º n.º 1, ambos do Código Civil, e art.º 333º n.º 1 alínea b) do Código de Trabalho, ao considerar que os créditos laborais beneficiavam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis apreendidos, graduando-os por isso antes do crédito hipotecário da recorrente, e se tal entendimento afronta o art.º 2.º da CRP.
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II. Fundamentação

De facto

Não tendo sido posta em causa a factualidade considerada pela 1.ª instância, são os seguintes os factos a considerar (aqui se incluindo factos documentalmente comprovados nos autos, como impõem os art.ºs 659.º, n.º 3 e n.º 2 do art.º 713.º, ambos do CPC).

1. Encontram-se apreendidas para a massa insolvente os seguintes imóveis:

- a fracção autónoma designada pela letra B, descrita na Conservatória do Registo Predial de Viseu ( ...) sob o n.º 858/19950217-B, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu ( ...) sob o n.º 85019940118 e inscrito na matriz com o n.º 2096;

- a fracção autónoma designada pela letra C, descrita na Conservatória do Registo Comercial de Viseu ( ...) sob o n.º 858/19950217-C, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu ( ...) sob o n.º 85019940118 e inscrito na matriz com o n.º 2096;

- a fracção autónoma designada sob a letra D, descrita na Conservatória do Registo Comercial de Viseu ( ...) sob o n.º 858/19950217-D, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu ( ...) sob o n.º 85019940118 e inscrito na matriz com o n.º 2096.

2. Sobre as fracções identificadas em 1. incide hipoteca a favor da credora O..., registada pela Ap. 54. de 1996/09/24.

3. O crédito reclamado pela O... encontra-se incluído na lista definitiva como crédito garantido no montante global de € 52 015,55.

4. O credor impugnante C... foi sócio da sociedade insolvente “ A..., LDA” desde a data da sua constituição até 10/09/2008, data em que transmitiu a sua quota a F..., conforme decorre da certidão do registo comercial de fls. 8 a 20 dos autos principais, cujo teor, no mais, se tem aqui por integralmente reproduzido.

5. O credor impugnante C... exerceu funções de gerente da sociedade insolvente, tendo renunciado à gerência na data de 20 de Março de 2008, conforme decorre da certidão do registo comercial de fls. 8 a 20 dos autos principais, cujo teor, no mais, se tem aqui por integralmente reproduzido.

6. Na data de 11 de Janeiro de 2008, a sociedade “L..., S.A.”, a pedido da sociedade insolvente, prestou uma garantia autónoma à primeira solicitação com o n.º 2008.00010, até ao limite máximo de 150.000,00€, a favor do “Banco N..., S.A.”.

7. Na data de 08 de Outubro de 2007, a sociedade “ L..., S.A.”, a pedido da sociedade insolvente, prestou uma garantia autónoma à primeira solicitação com o n.º 2007.00613, até ao limite máximo de 135.000,00€, a favor da “ O..., S.A.”.

8. No âmbito do acordo referido em 3.4 a “ L...” entregou ao “Banco N..., S.A.”, na data de 25/09/2008, a importância de 136.552,06€.

9. No âmbito do acordo referido em 3.5, a “ L...” entregou à “ O..., S.A.”, na data de 06/10/2008, a importância de 135.000,00€.

10. Os credores impugnantes C... e D... responsabilizaram-se, enquanto avalistas, por todas as obrigações que emergissem para a “ L...” dos acordos referidos em 3.4 e 3.5.

11. Os credores impugnantes C... e D... e a sociedade “ L...” subscreveram o escrito denominado “Assunção e Acordo de Regularização de Dívida”, datado de 15 de Outubro de 2009, com o teor constante de fls. 237 a 239, e o escrito denominado “Anexo”, com o teor constante de fls. 240 a 241, que se tem aqui por integralmente reproduzido.

12. No âmbito do acordo referido em 11., C... e D... entregaram à “ L...”, até à data de 02 de Julho de 2010, a importância de 17.481,70€.

13. O credor impugnante C... e o “Banco Comercial Português, S.A.” subscreveram o escrito com o teor de fls. 242 a 244, que se tem aqui por integralmente reproduzido.

14. No âmbito do acordo referido em 13., C... entregou ao “Banco Comercial Português, S.A.” a importância de 95.000,00€.

15. Os credores impugnantes C... e D... e o “Banco Comercial Português, S.A.” subscreveram o escrito com o teor de fls. 245 a 249, e de fls. 250 a 251, que se tem aqui por integralmente reproduzido.

16. No âmbito do acordo referido em 15., C... e D... entregaram ao “Banco Comercial Português, S.A.”, em Dezembro de 2012, a importância de 46.522,00€.

17. Os credores impugnantes C... e D... entregaram ao “ P..., S.A.”, entre 23.03.2010 e 24.08.2010, a importância de 7.771,00€ (€ 2.181,00 em 23.10.2010 e cinco prestações no valor unitário de € 1.118,00 em 23.04.2010, 23.05.2010, 23.06.2010, 23.07.2010, 23.08.2010,) proveniente de uma dívida da sociedade insolvente para com esta instituição bancária.

18. Os credores impugnantes C... e D... entregaram à “ M..., S.A.” a importância de 11.000,00€, proveniente de uma dívida da sociedade insolvente para com esta instituição bancária.

19. C... e D..., como avalistas de livrança que titula um crédito de “ M..., SA” sobre a insolvente, pagaram àquela M..., em 23.12.2009, por conta do crédito reconhecido pela AI à M..., a quantia referida no nr. anterior[1] ().

20. C... e D..., como avalistas de livranças que titulam créditos de “ L..., SA” sobre a insolvente, pagaram àquela L..., por conta do crédito reconhecido pela AI à L..., a quantia de € 8.169,90 imputada no capital em dívida e € 9.311,80 imputada nos juros de mora, num total de € 17.481,70, tal como referido em 10, com o esclarecimento de que:

- o crédito 7 de fls. 400 da lista de créditos da AI, no valor de € 8.524,36, constitui parte daqueles € 17.481,70, pagos por C... e D...;

- o crédito 63 da L... (capital e juros) passa a ser no montante de € 281.334,82.[2]

21. A insolvente tinha a sua sede na Rua ... em Viseu, e por objecto social a “comercialização de equipamentos de escritório, sistemas informáticos e de telecomunicações, desenvolvimento de software e formação”.

22. Os trabalhadores da sociedade insolvente cujos créditos foram reconhecidos pela Administradora da Insolvência não tinham o seu local de trabalho habitual nas fracções autónomas referidas em 1.

23. Desde pelo menos o ano de 2006 que as fracções autónomas referidas em 1. passaram a ser utilizadas como armazém de matérias e equipamentos da insolvente, tratando-se de matérias e equipamentos obsoletos, designadamente os computadores.

24. A partir dessa altura vários trabalhadores ao serviço da insolvente, de identidade não apurada, deslocaram-se às referidas fracções para colocar e retirar materiais.
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De Direito

i. Conforme se referiu em I. e aqui se reitera por facilidade de exposição, apresentada pela Sr.ª AI a lista definitiva de créditos, a ora apelante apresentou impugnação, nos termos do n.º 1 do art.º 130.º do CIRE[3], dissentindo da qualificação dos créditos reclamados pelos trabalhadores como garantidos (providos de privilégio imobiliário especial) tendo alegado, em fundamento, que aqueles não prestavam a sua actividade laboral nos imóveis apreendidos e identificados no ponto 1. da matéria de facto.

À impugnação não responderam os credores reclamantes G..., H... e J...(detentores dos créditos relacionados sob os n.ºs 24, 50 e 52 da relação de fls. 400 a 407), apesar de para tanto terem sido expressamente notificados. Não obstante, na sentença recorrida, veio o Mm.º juiz a considerar que a resposta oferecida pelos demais trabalhadores aproveitava àqueles, argumentando como segue:

“Nos termos do disposto nos arts. 131.º, n.º 3 do CIRE, na falta de resposta à impugnação, esta deve ser julgada procedente. Todavia, como iremos ver, alguns trabalhadores responderam à impugnação da O... em moldes que aproveitam a todos os trabalhadores (…), pelo que se impõe sobrepor ao cego formalismo de uma certa interpretação da norma a realização da justiça material. Isto é, quando um credor responde à impugnação em termos que aproveitam a outros credores, que estão nas mesmas condições do respondente mas não contraditaram a impugnação, deve entender-se que aquela resposta lhes aproveita, nos termos do disposto no art. 485.º, al. a) do CPC, aplicável por força do preceituado no art. 17.º do CIRE. Ora, no caso dos autos, os trabalhadores Q..., R... e outros alegaram no art. 19.º da sua resposta (ver fls. 286-verso) que as fracções apreendidas passaram a ser utilizadas como armazém de materiais, equipamentos e mobiliário, ou seja, associaram essas fracções autónomas a uma função própria da insolvente. Tal facto, como iremos ver, aproveita a todos os trabalhadores da insolvente e impede o tribunal de julgar procedente a impugnação do privilégio creditório imobiliário especial de G..., H... e J..., apesar de não terem respondido à impugnação”.

Insurge-se a apelante contra tal entendimento, que refere mesmo como sendo violador do princípio da igualdade plasmado no art.º 13.º da nossa Lei Fundamental, uma vez que pressupõe o uso de “dois pesos e duas medidas”, e isto porque se o credor que tiver fundamento para impugnar a lista o não o fizer, vê operar a homologação da lista nos termos apresentados, não lhe aproveitando a impugnação que outro credor venha deduzir; inversamente, se o credor cujo crédito foi impugnado não responder à impugnação, pode beneficiar da impugnação que um credor diligente haja oferecido. Ademais, a interpretação defendida na decisão recorrida afronta o teor literal do preceito, sendo certo que foi intenção clara do legislador consagrar neste domínio o cominatório pleno, conforme, aliás, explicitou no Preâmbulo do DL 200/204, de 18/8, que modificou a redacção original do preceito.

Vejamos se procedem tais argumentos recursivos.

Não se discute que as soluções adoptadas pelo CIRE obedecem, em primeira linha, a preocupações de celeridade, orientando-se inequivocamente no sentido da desjudicialização, subtraindo ao juiz matérias cuja apreciação tradicionalmente lhe era cometida e ensaiando consagrações do princípio do cominatório, neste âmbito se inscrevendo inequivocamente as soluções preconizadas pelo n.º 3 do art.º 130.º e n.º 3 do art.º 131.º.

Em causa está pois, como vimos, a interpretação e aplicação do disposto no n.º 3 do art.º 131.º e, dada a convocação da apelante a fim de estabelecer um lugar paralelo, também a da conexa disposição contida no n.º 3 do art.º 130.º.

Declarada a insolvência, devem os credores reclamar a verificação dos seus créditos, nos termos previstos no art.º 128.º. Ao administrador de insolvência cabe elaborar e apresentar uma lista dos créditos por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, consoante prevê o art.º 129.º, listas que podem ser alvo de impugnações, nos termos do art.º 130.º.

Dispõe o n.º 3 deste último preceito que “Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

Não obstante a redacção dada ao normativo em causa, vem o mesmo suscitando larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, inexistindo consenso quanto à amplitude dos poderes que, nesta sede, podem ser exercidos pelo juiz. Assim, enquanto uns defendem uma interpretação literal do preceito, restringindo a intervenção oficiosa do juiz aos casos em que a lista apresentada pelo administrador revele um erro -nessa medida manifesto ou aparente- de facto ou de direito na qualificação e/ou quantificação dos créditos[4], não lhe cabendo pois realizar quaisquer indagações oficiosas tendentes a confirmar a natureza, montante e qualidade dos créditos relacionados e não impugnados, outros entendem que “o juiz não deve abrir mão dos poderes inquisitórios, enquanto garante da legalidade, devendo acautelar uma correcta verificação e graduação dos créditos, com respeito pelos pressupostos formais e substanciais”. Tal é a solução que vem obtendo acolhimento por banda do nosso STJ[5], devendo “interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar, para o que pode [deve, dizemos nós], solicitar ao administrador os elementos de que necessite”[6], fazendo-se ainda notar que o erro de que aqui se fala pode respeitar “à indevida inclusão do crédito na lista, ao seu montante ou às suas qualidades”[7].

Deste modo, e contrariamente ao entendimento que a apelante parece perfilhar, não é de modo nenhum de aceitação pacífica que estejamos aqui perante a consagração de um cominatório pleno, antes avançando a posição maioritária em sentido contrário.

Epigrafado de “Resposta à impugnação”, dispõe por seu turno o art.º 131.º que pode responder a qualquer das impugnações o administrador da insolvência e qualquer interessado que assuma posição contrária, incluindo o devedor (vide o n.º 1). Todavia, se a impugnação se fundar na indevida inclusão de certo crédito na lista de credores reconhecidos, na omissão da indicação das condições a que se encontra sujeito, ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou a atribuição de uma qualificação de grau superior à correcta, só o próprio titular do crédito impugnado poderá responder, no prazo de 10 dias, para o que só ele será notificado (art.º 131.º n.ºs 2 e 3 e 134.º n.º 4).

Do regime legal assim desenhado resulta que, tendo a impugnação por fundamento alguma das situações previstas no n.º 2, só o titular desse crédito pode responder à impugnação “o que, realmente, se compreende, pois nessas hipóteses só o titular tem verdadeiro interesse em contradizer”[8]. Caso o titular não responda, expressa o n.º 3 do preceito, que “a impugnação é julgada procedente”.

Face ao assim preceituado, há efectivamente quem perfilhe o entendimento de que o legislador optou pela consagração de um cominatório pleno, operando quanto à existência, montante e natureza dos créditos e, bem assim, quanto às garantias de que gozem. Prevaleceria aqui o princípio da auto-responsabilização dos interessados que, não cumprindo o ónus que a lei sobre eles faz impender, suportariam as consequências desvantajosas.[9] Em reforço deste entendimento faz-se apelo ao Preâmbulo do Dec. Lei 200/2004 de 18/08, que modificou a redacção original deste artigo, no qual o legislador fez consignar expressamente “Quanto às reclamações de créditos, esclarece-se que todas as impugnações das reclamações de créditos serão imediatamente consideradas procedentes quando às mesmas não seja oposta qualquer resposta, assim obviando a eventuais dúvidas que a anterior redacção pudesse suscitar”.

Ora, se a vinculação judicial à matéria da impugnação que não é respondida se aceita sem grande dificuldade no que se refere à existência e montante do crédito, já no que concerne à graduação, nomeadamente no que se reporta às garantias e privilégios “ad substantiam”, não pode recusar-se pertencerem inequivocamente ao domínio da actividade jurisdicional. Com efeito, não é de todo consentâneo com a evolução legislativa que aboliu, também por razões de ordem constitucional -tutela efectiva do direito de defesa-, o efeito cominatório pleno do nosso direito processual civil, a admissão desse efeito em matéria atinente aos direitos dos credores -cuja protecção e satisfação, afinal, são o desígnio primeiro do procedimento falimentar (cf. art.º 1.º)- não procedendo a invocação de razões de celeridade que se lhe sobreponham[10]. Deste modo, e tal como parecem preconizar Carvalho Fernandes e João Labareda, fazendo apelo à natureza e estrutura declarativa do processo de graduação de créditos[11], a solução há-de ser encontrada no art.º 490.º, n.ºs 1 e 2 do CPC[12], admitindo-se a consagração de um cominatório semi-pleno.

No caso vertente, a Sr.ª AI da insolvência, embora desconhecendo se os imóveis identificados eram ou não o local de trabalho dos credores reclamantes, relacionou os créditos em causa como revestidos de privilégio mobiliário especial na consideração de que as fracções apreendidas nos autos se encontravam afectadas pela insolvente ao desenvolvimento da sua actividade empresarial. A consideração de tal facto, ainda que não expressamente alegado pelos trabalhadores reclamantes, não estava vedada ao Tribunal, dada a actual e indiscutida prevalência no nosso direito processual civil dos princípios do inquisitório e da aquisição processual (arts. 265.º e 515.º do CPC) sobre o princípio do dispositivo.[13] Aliás, a apelante não invoca a falta de alegação dos factos pertinentes, mas tão-só a ausência de prova.

Deste modo, a versão da impugnante encontrava-se antecipadamente contrariada, termos em que, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 490.º, n.º 2 e 505.º do CPC, aplicáveis “ex vi” da remissão operada pelo art.º 17.º, não poderiam ter-se como assentes os factos por si em adverso alegados. Por isso sobre a factualidade pertinente incidiu a actividade instrutória do Tribunal, havendo a final que aplicar o direito aos factos. Tal como foi feito, embora em termos que mereceram a discordância da apelante, o que nos introduz na segunda questão enunciada.

Improcedem, pelo exposto, as conclusões recursivas 1.ª a 4.ª.
*

ii. No que tange à segunda questão colocada, desde já se antecipa, afigura-se não assistir razão à reclamante.
Antes de mais, urge precisar que a apelante não questiona, nem a existência, nem a natureza ou sequer o montante dos créditos laborais reconhecidos, pondo em causa apenas e só o privilégio imobiliário especial que lhes foi conferido e, consequentemente, o seu lugar na graduação final.

Tem sido pacificamente entendido, e não se questiona neste recurso, que a lei aplicável à graduação de créditos em processo de insolvência é a que se encontra em vigor na data do trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência[14]. Deste modo, e aplicando tal entendimento, do qual não se vê razão para dissentir, ao caso em apreço é aplicável o disposto no artigo 333.º do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.

Epigrafado de “Garantias de créditos do trabalhador”, dispõe o preceito em referência:

Privilégios creditórios

1 – Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748.º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.

É igualmente indiscutido que para o gozo do privilégio creditório previsto no artigo acabado de transcrever é essencial a alegação e demonstração de que os trabalhadores prestaram a sua actividade no imóvel apreendido, ónus que sobre eles recai (art. 342.º, n.º 1, do CC).

No caso dos autos, foram apreendidas para a massa insolvente as três fracções autónomas identificadas em A). O Mm.º juiz “a quo”, reconhecendo embora ter-se apurado que os trabalhadores da sociedade insolvente cujos créditos foram reconhecidos não tinham ali o seu local de trabalho habitual, considerou, ainda assim, a existência de privilégio imobiliário especial sobre tais imóveis. E fê-lo com respaldo em jurisprudência, que citou, segundo a qual o art.º 333.º, n.º 1, al. b) do CT é de interpretar extensivamente, de modo a que o privilégio imobiliário aqui consagrado abranja todos os imóveis do insolvente afectos à actividade empresarial do mesmo, afectação que atribuiu às fracções apreendidas.

A apelante insurge-se contra este entendimento porquanto, defende, ao ter-se dado como provado que os trabalhadores não tinham na fracção em causa o seu local de trabalho habitual, impõe-se concluir não terem cumprido o ónus probatório que sobre eles impendia, não se verificando o pressuposto previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 333.º do CT. Depois, no confronto entre a segurança do registo de hipoteca sobre determinado imóvel que não é a sede da hipotecante, e no qual os trabalhadores desta não tinham o seu local de trabalho, e uma interpretação extensiva no sentido de conferir privilégio imobiliário especial aos trabalhadores sobre todos os imóveis afectos à actividade empresarial da insolvente, deve ser dada prevalência à hipoteca registada protegida pelo princípio da confiança e da segurança, sob pena de violação do disposto na nossa lei Fundamental.

Vejamos da valia destes argumentos.

Antes de mais, há que ter em mente que o legislador não define o que seja o local de trabalho. Do labor doutrinário emerge o conceito, que se tem por aceite, que se trata do centro estável ou permanente da prestação de certo trabalhador, sendo certo que a sua determinação, tal como indica a apelante, obedece essencialmente ao intuito de se dimensionarem no espaço as obrigações e os direito e garantias que a lei, enquanto tal, lhe reconhece.
O art.º 333.º do CT ocupa-se das garantias dos créditos dos trabalhadores e veio revesti-los, para o que aqui importa, de privilégio imobiliário especial, o que constitui um reforço face ao antigo privilégio imobiliário geral que vigorava ao abrigo das Leis n.ºs 17/86, de 14 de Junho, e 96/2001, de 20 de Agosto, dada a sua prevalência sobre a consignação de rendimentos, hipoteca ou direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores (cf. art.º 751.º do CC, na redacção introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março). Não obstante, e justamente, ficou excluído “o património do empregador não afecto à sua organização empresarial, notadamente os imóveis exclusivamente destinados à fruição pessoal do empregador tratando-se de pessoa singular, ou de qualquer modo integrados em estabelecimento diverso daquele em que o reclamante desempenhou o seu trabalho”.[15] Mas se ficaram excluídos do âmbito da garantia tais bens, razões de justiça e igualdade entre os trabalhadores impõem que se considere abrangida “a universalidade dos bens imóveis existentes no património da falida (insolvente) e afectos à sua actividade industrial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam, v.g., um escritório, um armazém, um prédio destinado à produção, etc., supondo que o património da empresa é constituído por vários prédios (…)”[16]. Tal interpretação extensiva, assente nos enunciados princípios da igualdade e não discriminação injustificada dos trabalhadores, vem sendo persistentemente defendida pela nossa jurisprudência, dando resposta a todas as situações -e não apenas, conforme pretende a apelante, ao caso dos trabalhadores da construção civil, cuja actividade implica que não disponham de um local de trabalho habitual, tal como se deixou definido- em que uma interpretação meramente literal do preceito e sem atender aos critérios plasmados no n.º 1 do art.º 9.º do CC, conduziria a uma iníqua situação de desprotecção de uns trabalhadores face a outros da mesma entidade patronal[17]. Basta pensar em todos aqueles trabalhadores que desenvolvem actividades que, pela sua natureza, recusam um centro estável ou permanente, ou ainda naqueles que, desempenhando idênticas funções, desenvolvem a sua actividade em imóvel arrendado, caso em que os seus créditos concorreriam sem protecção, no confronto com colegas de trabalho que, por desempenharem funções em imóvel pertencente à entidade patronal, veriam os seus créditos dotados de reforçada garantia.
Isto dito, face ao acervo factual apurado, e assistindo razão à apelante quando refere que as fracções em causa não eram o local onde os credores laborais desenvolviam de modo habitual a sua actividade, a verdade é que lograram estes fazer a prova de que tais imóveis se encontravam ainda afectos à organização empresarial da insolvente, não tendo qualquer distinta afectação. Ademais, note-se que em tais fracções, tal como a apelante destaca, desenvolveu a insolvente em data anterior a actividade de formação, contida no seu objecto social, e se, posteriormente, por razões que não ficaram cabalmente esclarecidas, passaram a funcionar como depósito de equipamento obsoleto, aí se deslocando os trabalhadores -irrelevando, para este efeito, que se não tenham apurado com precisão as suas identidades- para depositar e levantar materiais, estamos ainda no âmbito da actividade desenvolvida pela insolvente, pois tratando-se de equipamentos e materiais por si utilizados, no final da sua vida útil e até lhes ser dado o seu destino final, tinha, naturalmente, necessidade de os armazenar. Aliás, a considerar o entendimento expendido pela apelante, naquelas hipóteses, muitíssimo frequentes, em que, por força das crescentes dificuldades e consequente diminuição da laboração, a entidade patronal vai desactivando alguns dos edifícios antes afectos à mesma, destinando-os por hipótese a armazéns/depósito ou deixando-os mesmos devolutos, estariam tais imóveis excluídos do âmbito da garantia conferida por lei aos créditos laborais, entendimento que cremos contrariar abertamente o espírito do normativo em causa, sendo certo que, na interpretação da lei, e conforme justamente acentuou o Mm.º juiz “a quo”, há-de presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. n.º 3 do já convocado art.º 9.º do CC).
Em remate, no caso em apreço, estamos perante fracções que satisfazem o conceito estendido de local de trabalho, tal como se deixou definido -interpretação do art.º 333.º mais consentânea com os critérios interpretativos consagrados no art.º 9.º- pelo que resulta cumprido o ónus probatório que sobre os trabalhadores incidia. E não se diga que por esta via interpretativa se repristina o antigo privilégio imobiliário geral porquanto, como se deixou dito, são de excluir do âmbito da garantia concedida pelo preceito em referência, não só todos os imóveis do empregador com afectação pessoal, como ainda os afectos a actividade desenvolvida por distinto estabelecimento e cuja exploração seja igualmente por aquele assegurada.
*
Pretende finalmente a recorrente que o entendimento assim propugnado é violador do princípio da confiança e segurança jurídica consagrado no art.º 2.º da nossa Lei Fundamental. Também sem razão o faz.
A questão, tal como a apelante a coloca, foi suscitada por diversas vezes, quer antes, no domínio de vigência das leis 17/86 e 96/2001, quer mais recentemente, tendo obtido sempre resposta negativa[18].
Submetida mais uma ao TC, decidiu este recentemente que “(…) A questão da restrição à tutela da confiança do credor hipotecário na prioridade da satisfação do seu crédito face aos créditos salariais foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional. Entendeu-se que uma tal restrição encontra justificação constitucionalmente adequada na circunstância de o direito dos trabalhadores à remuneração se configurar como expressão de um direito fundamental, susceptível de legitimar a compressão do direito concedido pela garantia hipotecária. Pelo Acórdão n.º 498/2003 (publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Janeiro de 2004), o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a “norma constante da al. b) do n.º 1 do art. 12º da Lei n.º 17/86, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido aos créditos emergentes do contrato individual de trabalho prefere à hipoteca, nos termos do art. 751º do Código Civil”.
Porque o então decidido e respectiva fundamentação valem, para a situação que ora nos ocupa, (…) não obstante hoje seja diversa a norma, embora substancialmente idêntica, até porque precedeu a ora sindicada, transcreve-se, com proveito, os seguintes excertos do mencionado aresto:
“(…) do lado do credor hipotecário está em causa a tutela da confiança e da certeza do direito, constitucionalmente protegidas pelo artigo 2.º da Constituição e particularmente prosseguidas através do registo, como se observou, por exemplo, no acórdão n.º 215/2000 (Diário da República, II série, de 13 de Outubro de 2000):
No caso, esta segurança jurídica tem a ver com o interesse de ordem geral: o registo, na medida em que confere publicidade e segurança ao acto registado, está a realizar a certeza e a segurança do direito ou do facto sujeito a registo e, do mesmo passo, torna seguro o comércio jurídico que possa ter por objecto os factos ou direitos registados, assim se fomentando também o princípio constitucional da liberdade de iniciativa económica, reconhecida na Lei Fundamental após a Revisão de 1997 (artigo 80º, alínea c) da Constituição).
O princípio geral da segurança jurídica ínsito no princípio do Estado de Direito prevê que qualquer cidadão possa, de antemão, saber que aos actos que praticar ou negócios que realizar se ligam determinados efeitos, incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas decorrentes de normas jurídicas em vigor, por forma que cada um tenha plena consciência das consequências da sua actividade (ou da sua omissão) na comunidade.
Este princípio está intimamente relacionado com o princípio da confiança na medida em que o registo, enquanto constitui publicidade do seu conteúdo, torna este digno de crédito, isto é, as pessoas, em geral, têm de poder confiar nos factos constantes do registo.
Por um lado, a segurança registral, quando o registo é definitivo, faz presumir que o direito existe e pertence ao titular inscrito (admitindo prova em contrário).
Por outro lado, a segurança jurídica registral visa a protecção de terceiros que fizeram aquisições confiando na presunção registral resultante do registo anterior em favor do transmitente.
Assim, o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança que decorrem do princípio do Estado de Direito democrático constante no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa credenciam a prevalência registral que pode favorecer um adquirente «a non domino», na medida em que o princípio da publicidade que atribui essa prevalência determina a extinção do direito incompatível.
Do outro lado, porém, encontra-se um direito constitucionalmente incluído entre os direitos fundamentais dos trabalhadores, o direito à retribuição do trabalho, que visa “garantir uma existência condigna”, conforme preceitua o artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e que o Tribunal Constitucional já expressamente considerou como direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (…)
O caso dos autos coloca-nos assim perante uma situação de conflito entre um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, o direito dos trabalhadores à retribuição do trabalho, e o princípio geral da segurança jurídica e da confiança no direito.
Muito embora o modo como a norma impugnada solucionou o conflito, fazendo prevalecer o direito à retribuição, não pareça poder ser avaliado, directamente, à luz do disposto no artigo 18º da Constituição, isso não significa que não deva ser analisado do ponto de vista de um critério de proporcionalidade.
Na verdade, as exigências do princípio da proporcionalidade decorrem, não só especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas também, justamente, do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º (cfr., neste sentido, o Acórdão n.º 491/02, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 2003).
Assim, e em primeiro lugar, há que observar que parece manifesto que a limitação à confiança resultante do registo é um meio adequado e necessário à salvaguarda do direito dos trabalhadores à retribuição; na verdade, será, eventualmente, o único e derradeiro meio, numa situação de falência da entidade empregadora, de assegurar a efectivação de um direito fundamental dos trabalhadores que visa a respectiva ‘sobrevivência condigna’.
Muito embora a falência da entidade empregadora seja também a falência da entidade devedora, é precisamente este último aspecto, ou seja, a retribuição como forma de assegurar a sobrevivência condigna dos trabalhadores, que permitiria justificar em face da Constituição a solução da norma impugnada, na interpretação aludida.
Mas esta consideração carece de ser confrontada com outros aspectos, e, em particular, com o âmbito da tutela constitucional da retribuição (artigo 59º, n.º 1, al. a), da Constituição), para saber se incide apenas sobre o direito ao salário ou abrange também, de modo mais geral, os créditos indemnizatórios emergentes do despedimento.
Ora, a verdade é que não se descortinam quaisquer razões que justifiquem uma interpretação do direito constitucional à retribuição dos trabalhadores no sentido de vedar ao legislador ordinário a equiparação, para o efeito agora em análise, da tutela conferida a ambos os créditos.
No fundo, é manifesto que o crédito à indemnização desempenha uma evidente função de substituição do direito ao salário perdido.
Acresce ainda que a inclusão, repita-se, para o efeito agora em causa, do direito ao salário e do direito à indemnização por despedimento no âmbito da tutela constitucional do direito à retribuição é a que mais se ajusta à referência constitucional a uma “existência condigna”, exprimindo o que João Leal Amado (ob. cit., p. 22) designa de carácter alimentar e não meramente patrimonial do crédito salarial, neste sentido (ou seja, no confronto com os créditos dos titulares de direitos reais de garantia levados ao registo).
Nesta conformidade, deve entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”.
Tudo para concluir que “Ponderadas as exigências do princípio da proporcionalidade, perante a natureza dos direitos conflituantes, concluiu-se “dever entender-se que a restrição do princípio da confiança operada pela norma impugnada não encontra obstáculo constitucional”[19].

Ora, sendo a argumentação expendida pelo TC, em nosso entender, irrefutável, e dando resposta cabal às dúvidas a propósito levantadas pela apelante -o que nos absolve, cremos, da longa transcrição- impõe-se concluir que a interpretação dos normativos em conflito, fazendo prevalecer o crédito garantido dos trabalhadores sobre o crédito, igualmente garantido, da credora hipotecária, não padece da assacada desconformidade com a nossa Constituição, com o que improcedem as demais conclusões recursivas.

Assim, e em conclusão, gozam todos os créditos laborais relacionados e reconhecidos do privilégio creditório imobiliário especial sobre os fracções autónomas apreendidas previsto no art. 333.º, n.º 1, al. b) do Código do Trabalho e graduam-se nos termos previstos no art. 333.º, n.º 2, al. b) do mesmo diploma, isto é, antes dos créditos do Estado por imposto municipal sobre imóveis, imposto municipal sobre transacções, imposto de selo resultante de sucessões e doações e contribuições para a segurança social, preferindo ainda, tal como entendido na sentença apelada, à hipoteca que favorece a recorrente, ainda que constituída em data anterior (cf. artºs 686.º e  751.º do Código Civil).
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III Decisão

Em face a todo o exposto, e na total improcedência do recurso, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em manter na íntegra a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante.


[1] Verificou-se lapso de escrita daquele C... e D... no art. 42.º da sua impugnação, rectificado na tentativa de conciliação de fls. 333, tendo a M...admitido o pagamento por conta a fls. 258 e 344 dos autos.
[2] Houve impugnação de C... e D... a fls. 226 a 232, tendo a L... reconhecido o pagamento e a redução do seu crédito a fls. 282.
[3] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[4] Em reforço desta posição a consideração de que os requerimentos de reclamação são endereçados ao administrador da insolvência (artigo 128.º, n.º 2), não tendo este de os fazer juntar aos autos respectivos (artigo 129.º n.º 1). Deste modo, o apenso não inclui as reclamações de créditos que, assim, e no desenho legal, podem nem chegar ao conhecimento do juiz, sendo certo ainda que a matéria do reconhecimento e graduação dos créditos está subtraída ao inquisitório, como se vê do preceituado no art.º 11.º CIRE.
[5] V. aresto de 25/11/2008, revista n.º 3102/08, 6.ª secção, sumários do STJ da responsabilidade dos Srs. Juízes assessores, e ainda de 15/5/2013, proferido no processo n.º 3057/11.5 TBGDM-A.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[6] João Labareda, “O Novo Código da Insolvência”, págs. 46-47, citado por Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado,  vol. I, págs. 460/461.
[7] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. e loc. citados.
[8]  Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado vol. I, pág. 462.
 [9] Parece ir neste sentido Maria do Rosário Epifânio, in “Manual de Direito da Insolvência”, pág. 189 e nota 533, assim tendo decidido a Relação de Évora em aresto de 3 de Maio de 2012, processo n.º 733/09.6 TBABT-R.E1, também acessível em www.dgsi.pt.
[10] Aflorando apenas a questão, Mariana França Gouveia, “Verificação do Passivo”, in THEMIS 2005, Revista da Faculdade de Direito da UNL, ed. especial, 2005, pág. 158.
[11] CIRE anotado, vol. I, pág. 463.

[12] Não se secunda aqui o entendimento do Mm.º juiz “a quo”, quando importou o regime da al. a) do art.º 485.º do CPC como forma de obstar ao cominatório (semi-pleno), uma vez que as normas do CPC, segundo a disposição remissiva constante do art.º 17.º, só são aplicáveis quando não contrariarem as disposições do código. Ora, da interpretação dos preceitos do CIRE que se deixaram citados, resulta ter o legislador conferido expressamente e em exclusivo ao titular do crédito impugnado, nos casos previstos no n.º 2, legitimidade para responder e assim obstar ao aludido efeito. Tendo sido esta a solução perfilhada, permitir, pela via da aplicação da al. a) do art.º 485.º, que a impugnação de um outro credor aproveitasse ao revel, seria conferir legitimidade para responder a outrem que não o próprio titular, o que contrariaria abertamente as aludidas disposições legais.

[13] Neste preciso sentido Acs. STJ de 19/10/2010, Revista n.º 2029/07.9 TJVNF-B.P1-S1, 6.ª secção, de 13-09-2011, Revista n.º 504/08.7TBAMR-D.G1.S1 - 1.ª Secção, in sumários do STJ da responsabilidade dos Srs. juízes asssessores, e ainda aresto de 7/2/2013, processo n.º 148/09.6 TBPST-F.L1.S1., acessível em www.dgsi.pt.
[14] Cf., a título de exemplo, os acórdãos do STJ de 22 de Outubro de 2009, proc. nº 6054/04.0TJVNF-A-S1, de 8 de Junho de 2010, proc. nº 3147/04.0TBSTS-A.P1.S1 e, mais recentemente, de 7/2/2013, proc. n.º 148/09.6 TBPST.F.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt

[15] Acórdão desta mesma RC de 16.10.2007-processo 3213/04.2TJCBR-AL.C1- acessível em www.dgsi.pt.

[16] Cf., para além dos arestos citados na decisão recorrida, o acórdão da RC de 27.02.2007-processo 530/04.5TBSEI-X.C1, acessível no mesmo site. Neste mesmo sentido, e por todos, aresto do STJ de 13/9/2011, revista n.º 504/08.7 TBAMR-D.G1.S1-1.ª secção, in sumários do STJ, de que se destacam os seguintes pontos do sumário respectivo “ (…) II - Num processo de insolvência, a reclamação de créditos não pode dissociar-se desse processo global de liquidação universal em que se insere, pelo que, se nele está documentada a identificação dos imóveis onde laborava a empresa de construção insolvente, constituídos por um conjunto de edifícios onde eram exercidas as actividades comerciais e industriais, e imóveis destinados à construção ou construídos para revenda, deve considerar-se processualmente adquirido esse facto e ser valorado pelo juiz na graduação de créditos.

III - Os trabalhadores reclamantes gozam do privilégio relativamente a todos os imóveis integrantes do património da insolvente afectos à sua actividade empresarial, e não apenas sobre um específico prédio onde trabalham ou trabalharam (v.g., edifício destinado às instalações administrativas, edifício de armazenamento de stocks, ou o ocupado com a linha de produção), e independentemente do seu particular posto e local de trabalho ser no interior ou exterior das instalações (operário fabril, operador de bancada, informático ou porteiro).
IV - Mas apenas sobre os prédios que integram a mesma actividade e não sobre outros que, porventura, a insolvente tenha afectos a diferente e diversa actividade empresarial ou para sua fruição pessoal (…).
[17] V., aresto desta Relação de 28 de Junho de 2011, processo n.º 494/09.9 TBNLS.C.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[18] V. arestos do STJ de 21/10/2010, processo n.º 3382/06.7 TBVCT-A. G2. S1, 2.ª secção e de 10/11/2011, (revista n.º 278/10.1) processo n.º TBFND.C.C1.S1, 1.ª secção, Relação de Guimarães de 7/6/2011, processo n.º 3210/09.1 TBBCL.G1 e, muito recentemente, acórdão desta mesma Relação de 10/9/2012, processo n.º 113/11.3 TBCLB.B.C2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[19] Ac. TC de 17/6/2011, processo n.º 287/2011, 1.ª secção, acessível no link do TC.