Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1119/10.5TBPBL-L.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA INÊS MOURA
Descritores: INSOLVÊNCIA
APENSAÇÃO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CAUSA PREJUDICIAL
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.8, 146, 148 CIRE, 279 Nº2 CPC
Sumário: 1. Não tem aplicação a disposição específica do artº 8 do CIRE, mas antes as normas do Código de Processo Civil, no âmbito de acção que corre termos por apenso à insolvência, intentada ao abrigo do artº 146 ss. do CIRE e que segue a forma de processo sumário, por disposição do artº 148 nº 1 do CIRE.

2. Correndo termos processo crime, onde foi deduzido pedido de indemnização cível, que se reporta ao mesmo crédito cujo reconhecimento é pedido nestes autos, deve suspender-se a instância, por existência de causa prejudicial, até à decisão que venha a ser proferida naquele processo e desde que não se verifiquem os obstáculos previstos no artº 279 nº 2 do C.P.C.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

C (…), vem intentar a presente acção sumária ao abrigo dos artº 146 e 148 do CIRE contra a Massa Insolvente de MC (…) e mulher MJ (…) representada pela Administradora Judicial, e todos os credores dos insolventes (…), requerendo que os RR. sejam condenados a reconhecer a existência do crédito do A. sobre a massa insolvente no montante de € 157.543,59, acrescido de juros vincendos calculados sobre € 129.047,07 desde 12/07/2011, até integral pagamento.

Alegam, em síntese, para fundamentar o seu pedido que o A. e a sociedade de que o R. era sócio eram proprietários de um prédio rústico, na proporção de 2/5 e 3/5 respectivamente, adquirindo também o direito a receber o valor de Esc. 64.679.040$00 por força de expropriação do mesmo, tendo o R. recebido da Brisa tal valor e não devolvendo ao A. a parte que lhe pertencia de Esc. 25.871.616$00 equivalente a € 129.047,07. Corre termos processo crime, no qual o R., além do mais, foi condenado a pagar tal valor ao A. acrescido de juros de mora, decisão que se encontra em recurso no Tribunal da Relação de Lisboa. Tal quantia foi recebida em proveito comum do casal, sendo o crédito reclamado nos autos da responsabilidade de ambos os RR.

Foi citada a massa insolvente e os credores por éditos.

A Massa insolvente de MC (…) e MJ (…) representada pela Administradora da Insolvência (…), vem contestar, impugnando os factos alegados na petição inicial, referindo desconhecer o negócio e não ter recebido quaisquer quantias da Brisa, não sabendo também os contornos da mencionada acção penal. Refere que tendo sido interposto recurso da decisão que titula o crédito, o mesmo terá de ser sujeito a condição resolutiva, tal como os juros, nos termos do artº 50 do CIRE.

Foi proferido despacho saneador onde se conheceu a validade e regularidade da lide e foi dispensada a selecção da matéria de facto assente e controvertida.

Procedeu-se à realização do julgamento com observância do formalismo legal adequado, tendo no início da audiência, o A. requerido a suspensão da instância ao abrigo do artº 279 nº 1 do C.P.C., até ser proferida decisão no processo nº 124/01.4TASNT, do 3º juízo de média instância criminal de Sintra, invocando que nele se discute a mesma dívida reclamada nestes autos, estando aquele processo em fase de julgamento, o que foi indeferido, com fundamento em que os credores da insolvência só podem exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE durante a pendência do processo de insolvência, não tirando a razão de ser a este processo a sentença que venha a ser proferida no processo crime; referiu ainda que a natureza urgente deste processo não é compatível com a demora decorrente da suspensão.

Foi proferida sentença julgando improcedente o pedido formulado pelo A. e absolvendo os RR. do mesmo.

Não se conformando com a sentença proferida vem o A., interpor recurso de apelação de tal decisão, impugnando a matéria de facto, bem como da decisão que indeferiu a requerida suspensão da instância, apresentando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso é tempestivo nos precisos termos do disposto nos artº 689 nº 1 e 7 e 699 nº 1 e 5 do C.P.C.

2.  O A. Recorrente requereu a suspensão da instância na presente audiência, face à existência do processo crime Nº 124/01TASNT do 3º juízo criminal, onde se discutem os mesmos factos.

3. Tal requerimento foi indeferido, mas de verdade- a decisão da presente causa depende da decisão a tomar naquele primeiro processo.

4. Sempre se imporia a este tribunal que sobrestasse a decisão deste processo, uma vez que aquele processo se encontra em fase de julgamento.

5. Assim, ao não deferir tal pedido, a Meritíssima Juiz produziu nulidade do processo a partir desse momento, nos termos do artº 201 nº 1 do C.P.C., por ter produzido decisão com influência na decisão da causa.

6. Sempre a prova a produzir naquele processo onde se discute crime de abuso de confiança por parte do R. M (..) , viria a suprir eventuais omissões probatórias que este tribunal julgue existentes. Daí o prejuízo quanto ao decidido na presente causa.

7. E esta questão pode ser conhecida no presente recurso, nos termos do disposto no artº 691 nº 1 alínea f) e m) do C.P.C. e artº 14º do CIRE, por ofensa ao que dispõe o artº 97 e 279 do C.P.C.

8. Mas não se conhecendo de tal nulidade, com todas as consequências legais. Sempre:

9. Existe erro notório na apreciação da matéria de facto quanto ao alegado nos artigos 2º, 4º, 5º, 6º, 10º, 12º, 15º, 16º e 17º da petição inicial, uma vez que conforme resulta da prova documental existente nos autos, e com prova plena e ao declarado pelas testemunhas S (..) e F (..) , resulta provado que:

10. O A. Recorrente e o R. (…), adquiriram também o direito ao recebimento do preço da expropriação (artº 2º da petição inicial).

11. Os anteriores proprietários outorgaram procuração ao Dr. (…)para efeitos do processo de expropriação, com todos os poderes no interesse do R. (…)e assim do A. Recorrente. (artº 4º da petição inicial).

12.  O R. marido (…), recebeu a totalidade do valor da expropriação, no montante total de € 322.617,69. (artº 5º da petição inicial).

13. O R. não devolveu ao A. Recorrente a sua parte no montante de € 129.047,07 correspondente a 2/5 do total da indemnização. (artº 6º da petição inicial).

14. O R. Recorrido foi notificado no processo crime em 26/11/2006 (artº 10º da petição inicial).

15. Os RR. não devolveram ao A. Recorrente quaisquer quantias. (artº 12º da petição inicial).

16.  A R. insolvente mulher, beneficiou da posse da indemnização total por parte do R. marido, pois não exerce qualquer profissão e vive em economia comum com o referido R. (artº 15º, 16º e 17º da petição inicial).

17. Face ao exposto, deve este Venerando Tribunal, nos termos do artº 712 nº 1 alínea a) e b) do C.P.C. proceder à modificação da decisão da matéria de facto nos termos expostos, uma vez que notoriamente os elementos do processo impõem decisão diversa da tomada pelo tribunal de 1ª instância.

18. A aliás douta sentença violou assim, além do mais, o disposto nos artº 342, 350, 762, 787 do C.C. e 97, 297, 516 e 646 nº 4 do C.P.C.

A R. Massa Insolvente de MC (…) e MJ (…) vem apresentar as suas contra alegações. Começa por referir que o recurso é extemporâneo por não se pretender a apreciação da prova gravada e pugna pela manutenção da decisão recorrida.

II. Questões a decidir

Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas suas conclusões (artº 684 nº 3 e 685 A nº 1 do C.P.C.), salvo questões de conhecimento oficioso- artº 660 nº 2 in fine.

- da tempestividade do recurso- questão prévia;

- da suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão proferida no processo crime que corre termos;

- do erro notório na apreciação da matéria de facto quanto ao alegado nos artigos 2º, 4º, 5º, 6º, 10º, 12º, 15º, 16º e 17º da petição inicial,

III. Fundamentos de Facto

Tendo em conta o disposto nos artº 713 nº 2 e 659 nº 3 do C.P.C. são os seguintes os factos que resultam provados, considerando a decisão da 1ª instância, que não é impugnada na parte em que aponta os factos como provados (pretendendo apenas o Recorrente que sejam ainda considerados provados outros factos por si alegados) e ainda a certidão junta aos autos a fls. 510 ss.:

1. Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Queluz, a aquisição por compra a (…) e marido (…), do prédio descrito sob o nº (..) , como “Horta, de cultura arvense, e dependência agrícola”, denominada (..) , concelho de Sintra, com área total de 26965 m2, inscrito na matriz rústica sob o artº 41 da secção S, na proporção de 3/5 para a sociedade “ VIT(..) , Ldª” e de 2/5 para o autor, através da inscrição Ap. 7 de 1996/05/22- facto provado por documento.

2. Por sentença proferida em 12 de Abril de 1996 no âmbito do processo de expropriação nº 6574/94 da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, em que figura como expropriante “Brisa- Autoestradas de Portugal, S.A. e expropriados (…)e marido (…)a e mulher (…) foi fixada à expropriação da parcela 421, com a área de 14972 m2, a desanexar do prédio misto denominado “Casal de Santo António”, situado na freguesia de Belas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o nº (..) , a indemnização global de 64.679.040$00 (sessenta e quatro milhões seiscentos e setenta e nove mil e quarenta escudos)- facto provado por documento.

3. (…) recebeu no processo de expropriação nº 6574/95 do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste- Juízos de Sintra, em 4 de Fevereiro de 1997, precatório cheque no valor de €42.232.640$00.

4. O R. marido era empresário.

5. Corre processo crime Nº 124/01.7TASNT, do 3º juízo- 2ª secção do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste- Juízo de Média Instância Criminal, contra M (..) .

6. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra datado de 06/10/2011 foi declarada nula a sentença proferida em 5. E ordenada a reabertura da audiência com produção da prova oferecida relativamente ao pedido cível, ou a qualquer outra que, à luz do artº 340 se venha a mostrar necessária para a boa decisão da causa, mesmo na parte referente à matéria de natureza penal, proferindo-se depois, nova sentença.

7. No âmbito do processo crime em questão o reclamante (…) deduziu pedido cível contra o aqui insolvente, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 129.047,07.

8. Foi proferida sentença em 1ª instância, com data de 25 de Junho de 2012 que condenou o arguido no pagamento ao reclamante da quantia de que se apropriou, no valor de € 129.047,07.

9. De tal sentença foi interposto recurso pelo arguido, aqui insolvente, em 18 de Julho de 2012.

III. Razões de Direito

Questão prévia:

            Da tempestividade do recurso

Nas suas contra alegações a Recorrida invoca a intempestividade do recurso apresentado, referindo que a Recorrente não podia beneficiar do prazo suplementar de 10 dias previsto no artº 685 nº 7, do CPC, o que faz em abuso de direito, porquanto as alegações que apresenta não implicam a reapreciação desse tipo de prova, por fazer referência aos excertos dos depoimentos das testemunhas, gravados, que a meritíssima Juiz do tribunal a quo indica na fundamentação da resposta à matéria de facto, sem concretizar o que contraria a resposta dada. Conclui pelo indeferimento do recurso, nos termos da alínea a) do nº 2 do artº 685 C do C.P.C., por ser manifestamente extemporâneo, não pretendendo a reapreciação da prova gravada.

No seu requerimento de interposição do recurso o recorrente invoca como questão prévia a tempestividade do mesmo, indicando que ao prazo legal de 15 dias, por se tratar de processo urgente, acrescem mais 10 dias, por o recurso ter por objecto a reapreciação da prova gravada.

Na 1ª instância foi proferido despacho a admitir o recurso, considerando-se que o mesmo foi apresentado em tempo.

Vejamos. Está em causa a questão de saber se o Recorrente usou indevidamente o prazo alargado de interposição do recurso previsto no nº 7 do artigo 685 do CPC, nos termos do qual, se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.

O prazo para a interposição do recurso, na medida em que se trata de processo urgente, nos termos do artº 9º do CIRE, é de 15 dias, de acordo com o disposto no artº 685 nº 1 e 691 nº 5 do C.P.C., a que acresce o prazo de 10 dias se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada- artº 685 nº 7 do C.P.C.

O artº 685º-B, do CPC, impõe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, o ónus de: enunciar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a) do nº1) e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação que impunham decisão diversa relativamente a essa matéria (al. b do nº 1); deve ainda, neste último caso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição (nº2).

Assim, no que se refere à rejeição do recurso com fundamento na reapreciação da prova gravada, há a distinguir o prazo de interposição do recurso e apresentação das alegações, com a concessão do prazo suplementar de 10 dias, com referência à tempestividade do recurso, da questão que se refere à observância ou não pelo Recorrente, dos requisitos de admissibilidade do recurso e que tem a ver com o conhecimento do mesmo.

No primeiro caso, o uso do prazo alargado depende do propósito do recorrente em impugnar a decisão de facto, o que deverá resultar não só das alegações, mas das conclusões que constituem e delimitam o objecto do recurso, se assim não for, o recurso é extemporâneo.

No segundo caso, o Recorrente não obstante ter manifestado intenção de impugnar a matéria de facto dada como provada, não cumpre as especificações obrigatórias previstas no artº 685-B nº2, que constituem os requisitos de admissibilidade para o conhecimento do objecto do recurso, apenas nessa parte específica, da impugnação da matéria de facto.

            Podendo surgir a dúvida, na questão de saber se a verdadeira intenção do Recorrente era a de impugnar a matéria de facto, não o conseguindo com sucesso por não o ter efectuado nos termos devidos ou utilizar tal expediente unicamente para poder beneficiar de prazo mais alargado para a interposição do recurso, a avaliação terá de efectuar-se através do teor das próprias alegações apresentadas e em caso de dúvida terá de salvaguardar-se o direito ao recurso, reconhecendo-se tão só que se está perante um recurso que, visando também a impugnação da decisão de facto, não foi apresentado em termos que formalmente viabilizem o seu conhecimento. Vd. neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/06/2012, in. www.dgsi.pt

            Só se for seguro concluir que o Recorrente apresenta uma aparência de recurso de facto para poder beneficiar de prazo mais alargado é que se poderá considerar o mesmo extemporâneo e por isso inadmissível.

No caso em presença a notificação da sentença foi enviada ao A. a 12 de Abril de 2012, conforme resulta de fls. 360.

O A. Recorrente apresenta o requerimento de interposição do recurso a 10 de Maio de 2012 e refere interpor recurso, na sequência da notificação da sentença, de apelação, nos termos dos artº 686, 684-B, 651 nº 1 e nº 7 e 691 nº 1 e nº 5 do C.P.C. e para impugnação da matéria de facto.

            No recurso por si interposto o Recorrente vem invocar, entre outras questões, o erro na apreciação da prova, considerando que foram incorrectamente julgados os pontos da petição inicial que identifica, por referência aos artigos da mesma, quer no corpo das suas alegações, quer nas conclusões que apresenta. Refere a favor da sua posição o depoimento das testemunhas ouvidas que identifica e transcreve.

Entendemos por isso que não está em causa qualquer incumprimento por parte do Recorrente do ónus processual imposto pelo artº 685-B nº 1 do C.P.C., resultando evidente a sua intenção expressa de ver alterada a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto fundamentada em prova gravada, mostrando-se por isso legítimo o uso do prazo legal alargado sendo, nessa medida, o recurso tempestivo e por isso admissível.

- da suspensão da instância até ao trânsito em julgado da decisão proferida no processo crime que corre termos.

Importa apreciar e decidir se o tribunal “a quo” devia ter suspendido a instância, conforme o requerido, até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida no âmbito do processo crime em causa e que tem enxertado o pedido cível do reclamante, relativo ao pagamento da quantia que o mesmo também pretende nestes autos.

A presente acção é intentada ao abrigo do disposto nos artº 146 a 148 do CIRE, estabelecendo este último artigo que as acções a que se refere este capítulo correm por apenso aos autos de insolvência e seguem, qualquer que seja o seu valor, os termos do processo sumário.                                 

É-lhes assim aplicável a forma de processo regulada nos artº 783 ss do C.P.C. e naturalmente as normas do processo civil previstas em tal código.

Isto para significar, a propósito do regime da suspensão da instância, que há que ter em conta, neste caso, o artº 279 do C.P.C., norma que aliás foi a ponderada pelo tribunal “a quo”, não havendo que recorrer à disposição específica do artº 8 do CIRE que expressamente regula a suspensão da instância e prejudicialidade no processo de insolvência e que restringe a suspensão da instância do processo de insolvência aos casos expressamente previstos no CIRE.

O artº 279 nº 1 do C.P.C. estabelece que: “O tribunal pode ordenar a suspensão, quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorra outro motivo justificado”. Acrescenta o nº 2 que: “Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.”

Pode dizer-se que uma causa é prejudicial em relação a outra quando o julgamento ou decisão da questão a apreciar na primeira possa influir ou afectar o julgamento ou decisão da segunda, nomeadamente modificando ou inutilizando os seus efeitos ou mesmo tirando razão de ser à mesma- vd. neste sentido, vd. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 15/02/2005, e Alberto dos Reis, in. Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed., vol. I, pág. 384.

No caso em presença, não há dúvidas de que, em parte, a questão que se discute nestes autos e no processo crime, considerando o enxerto cível, é a mesma, no que se refere ao reconhecimento da existência do alegado crédito do reclamante sobre o insolvente, no valor de € 129.047,47 valor relativo a indemnização atribuída no âmbito de um processo de expropriação, de que o mesmo alegadamente se apropriou indevidamente.

E diz-se apenas em parte, porque, para ver reconhecido o seu crédito no âmbito do processo de insolvência, o credor tem de efectuar a reclamação do seu crédito em tal processo. Com efeito, mesmo o credor que tenha o direito de crédito reconhecido por decisão definitiva, “não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”, como resulta, expressamente, do disposto no art.º 128º nº 3, do CIRE.

Por esta razão, não podemos falar de uma prejudicialidade absoluta, na medida em que a condenação do insolvente no âmbito do processo crime em questão e a procedência do pedido cível aí formulado no sentido de ser condenado a pagar a quantia reclamada como crédito também nestes autos, nunca tiraria em absoluto a razão de ser ao presente processo, que o A. teria sempre de intentar, caso pretendesse obter o pagamento do seu crédito.

Não podemos, no entanto, esquecer que ainda que estejamos, por um lado, perante uma acção sumária intentada por apenso ao processo de insolvência, nos termos do artº 146 do CIRE e por outro lado, perante um processo crime em que é imputado ao arguido, aqui insolvente um crime de abuso de confiança, com pedido cível, em ambos os processos discute-se a questão fundamental de saber se existe um direito de crédito do aqui A. sobre o insolvente/arguido no montante de € 129.047,47 respeitante a valor alegadamente por ele recebido em nome do A., no âmbito de processo de expropriação que correu termos e não entregue.

Assim, forçoso se torna concluir que a decisão a proferir no âmbito do referido processo crime tem importância para a decisão destes autos, já que pode influenciar ou afectar a decisão a proferir nos mesmos. O conhecimento da questão do abuso de confiança é aliás da competência do tribunal criminal.

O que se verifica, é que, prosseguindo os dois processos, um em cada tribunal, podemos ter duas decisões contraditórias proferidas por dois tribunais diferentes, que apreciaram a mesma questão e que é o que se verifica actualmente com as decisões dos dois tribunais de primeira instância, as duas sem trânsito em julgado: a decisão do tribunal “a quo” que considerou que não foi feita prova da existência do crédito da reclamante e nessa medida não o reconheceu; a decisão do tribunal criminal que considerou a apropriação indevida pelo arguido (insolvente) da quantia que o mesmo aqui reclama, condenando-o no seu pagamento ao A., por força do pedido cível aí formulado.

E se podemos dizer que de nada serve a sentença proferida em acção instaurada contra o devedor, a reconhecer eventualmente o direito de crédito, se o credor não o reclamar no processo de insolvência, seja no prazo fixado, para tal efeito, nos termos do artº 128 nº 1 do CIRE, seja ulteriormente nos prazos previstos no artº 146º do CIRE, já se o credor reclamar o seu crédito, tal premissa não é verdadeira. A sentença condenatória que seja proferida em acção declarativa pode ser invocada para efeitos da verificação do crédito na insolvência- vd. neste sentido, entre outros, Ac. Tribunal da Relação do Porto de 02/03/2010, in.www.dgsi.pt

Permitir o prosseguimento dos dois processos é permitir que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir decisões, o que é naturalmente lesivo para a segurança jurídica e credibilidade dos tribunais.

Em face do que fica exposto, conclui-se que existe causa prejudicial, na medida em que a decisão destes autos pode ser influenciada ou afectada por aquela que venha a ser proferida no âmbito do processo crime em questão, nos termos da primeira parte do artº 279 nº 1 do C.P.C., embora não tire a razão de ser a este processo, de acordo com o disposto no artº 128 nº 3 do CIRE pois, conforme se referiu, mesmo que o credor tenha o seu crédito reconhecido por decisão judicial, não está dispensado de o reclamar no âmbito do processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento. Se assim não fosse até se poderia falar de uma situação de litispendência.

Assim, a sentença a proferir na acção pendente pode servir para fazer prova do crédito, tendo em vista a sua verificação e reconhecimento no processo de insolvência- vd. neste sentido, Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 20/02/2011, in dgsi.pt

Por outro lado, não se verifica o obstáculo à suspensão da instância previsto no artº 279 nº 2 do C.P.C., que dispõe que: “Não obstante a existência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada, que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.”

Neste caso, o processo crime que corre termos é de 2001, tendo o A. ali deduzido pedido cível, numa data muito anterior àquela em que esta acção sumária foi intentada, em 13/07/2011. Pode por isso dizer-se com toda a segurança que tal pedido não visou a suspensão deste processo.

Por outro lado, se é verdade que estes autos têm caracter urgente, conforme dispõe o artº 9º do CIRE, também se afigura que a demora na decisão definitiva do processo crime, considerando o estado em que o mesmo se encontra, com decisão já proferida em 1ª instância e interposto recurso, não é de molde a prejudicar de forma relevante o andamento destes autos. Crê-se por isso que os prejuízos da suspensão, que se referem a algum retardamento destes autos não são relevantes.

Nestes termos, revoga-se a decisão do tribunal de 1ª instância que indeferiu a suspensão da instância requerida, substituindo-se a mesma por outra que determina a suspensão destes autos até ao trânsito em julgado da sentença proferida no processo crime nº 124/01.7TASNT, do 3º juízo de média instância criminal, 2ª secção do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, anulando-se todo o processado posterior à audiência de julgamento de 17 de Janeiro de 2012.

Em consequência do decidido, que determina a anulação do julgamento efectuado, fica prejudicada a apreciação do erro notório na decisão da matéria de facto.

V. Sumário:

1. Não tem aplicação a disposição específica do artº 8 do CIRE, mas antes as normas do Código de Processo Civil, no âmbito de acção que corre termos por apenso à insolvência, intentada ao abrigo do artº 146 ss. do CIRE e que segue a forma de processo sumário, por disposição do artº 148 nº 1 do CIRE.

2. Correndo termos processo crime, onde foi deduzido pedido de indemnização cível, que se reporta ao mesmo crédito cujo reconhecimento é pedido nestes autos, deve suspender-se a instância, por existência de causa prejudicial, até à decisão que venha a ser proferida naquele processo e desde que não se verifiquem os obstáculos previstos no artº 279 nº 2 do C.P.C.

VI. Decisão:

Em face do exposto, julga-se procedente o recurso de apelação interposto pelo A. C (..) , revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que determina a suspensão da instância, nos termos do artº 279 nº 1 do C.P.C. até ao trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito do processo crime em causa.

Custas pela Recorrida.

Notifique.

                                               *

                                                            

                                               Maria Inês Moura (relatora)

                                               Virgílio Mateus (1º adjunto)

                                               Luís Cravo (2º adjunto)