Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1793/09.5TBFIG-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.235, 236, 237, 238 DO CIRE
Sumário: I. – Muito embora a exoneração do passivo restante preveja a cessão do rendimento disponível do devedor a favor dos credores, a inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho inicial previsto no artigo 239.º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo.

II. - O prejuízo para os credores, a que alude a al. d), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE, resultante da apresentação do devedor em juízo após terem passado mais de seis meses sobre o conhecimento da sua própria insolvência, não decorre automaticamente da passagem do tempo e vencimento de juros, tratando-se antes de um prejuízo concreto, a demonstrar a partir de factos já apurados no processo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente…………………A (…) e esposa B (…) residentes na Rua (…) .....

Recorridos………………….Credores dos insolventes, identificados nos autos.


*

I. Relatório:

a) Os recorrentes A (…) e B (…) apresentaram-se à insolvência, invocando a insuficiência do activo para satisfazer todos os seus compromissos vencidos e vincendos.

Pediram a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto nos artigos 236.º, n.º 3 e 237.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante designado apenas por CIRE), alegando que preenchiam os requisitos legais previstos na lei.

O tribunal apreciou este pedido e decidiu indeferi-lo, fundamentalmente por entender que a apresentação à insolvência ocorreu alguns anos após se ter completado o prazo de 6 meses para o insolvente se apresentar em juízo, previsto no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, contados a partir do momento em que caiu em situação de insolvência.

Ponderou-se na decisão recorrida que a requerente encerrou a loja de pronto-a--vestir no ano de 2000 e, ainda que, «…para pagamento das dívidas do estabelecimento, o requerente marido procedeu, em 2002, à venda de alguns prédios rústicos, sendo que o produto desta venda não foi suficiente para proceder ao pagamento da totalidade das dívidas do estabelecimento comercial; o apartamento onde viviam foi penhorado e vendido num processo de execução fiscal; sobre o vencimento de €1280,00 auferido pelo requerente, passou a incidir uma penhora à ordem desse processo; os €700,00 que lhe sobram desse desconto são insuficientes para fazer, actualmente, face às despesas do agregado; a requerida alega não poder trabalhar e nada tendo sido alegado, em concreto, sobre esta impossibilidade, depreende-se que tal se deve ao facto de ter três filhos, como refere.

Parece-nos, assim, poder afirmar que os requerentes já desde há vários anos que se encontram impossibilitados de cumprir as suas obrigações, estando em situação de insolvência pelo menos desde 2002, sem terem requerido a sua insolvência e o pedido agora em apreço».

Foi ainda entendido pelo tribunal a quo que este atraso na apresentação à insolvência originou prejuízos para os credores devido ao avolumar dos seus créditos face ao vencimento de juros e pelo consequente avolumar do passivo global da insolvente, o que dificulta o pagamento dos créditos.

Referiu-se também na decisão que os requerentes não se pronunciaram sobre as condições exigidas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, ou seja, não declararam expressamente a sua disponibilidade para observar todas as condições aí exigidas.

Por fim, argumenta-se no sentido de não se vislumbrar, face às alegações dos requerentes, que a curto prazo exista alguma perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, pois a requerente diz que não pode trabalhar, por incapacidade física, o que implica que os credores não possam ter quaisquer expectativas de que venha a existir cessão do rendimentos dos requerentes a seu favor.

b) Os recorrentes discordam do decidido e recorrem, em síntese, pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, porque, contrariamente ao decidido, a situação de insolvência  só surgiu em Junho de 2009.

Com efeito, dizem, muito embora a requerente mulher tenha encerrado o estabelecimento comercial de pronto-a-vestir no ano de 2000, o requerente marido procedeu em 2002 à venda de alguns prédios rústicos e com o produto dos mesmos pagou parte das dívidas do estabelecimento comercial; o apartamento onde viviam foi penhorado e vendido num processo de execução fiscal; sobre o vencimento de €1280,00 auferido pelo requerente, passou a incidir uma penhora à ordem desse processo; os €700,00 que lhe sobram desse desconto são insuficientes para fazer, actualmente, face às despesas do agregado.

Sempre pagaram todas as contas com maior ou menor dificuldade e previam poder contar com o dinheiro do vencimento da requerente mulher para continuarem os pagamentos.

Foi só ao verificarem, em 28-06-­2009, a impossibilidade da requerente mulher poder trabalhar, por incapacidade física, que ambos tiveram a noção que tinham ficado em situação de insolvência.

Por outro lado, o CIRE só entrou em vigor em Setembro do ano de 2004.

Até essa altura vigorava o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (CPEREF) e nesta última legislação não existia o instituto de exoneração do passivo restante, nem a pessoa singular estava obrigada a apresentar-se à falência, como decorre do o disposto no artigo 6.º do CPEREF, só aplicável à empresa, pelo que, o aludido prazo de 6 meses não lhe é aplicável, na medida em que a nova lei, nos termos do artigo 12.º do Código Civil só dispõe para o futuro.

Em segundo lugar, sendo certo que a exoneração do passivo tem como contrapartida a cessão do rendimento disponível do devedor, a inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho inicial, previsto no artigo 239.º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.

Em terceiro lugar, não existiu agravamento do passivo. As dívidas do casal são do tempo do negócio falhado da recorrente mulher e daí em diante não contraíram mais dívidas, antes pelo contrário, pois têm vindo a pagá-las, pelo que, se se entendesse, por hipótese, que os recorrentes se apresentaram à insolvência fora do prazo dos seis meses, então, ainda assim, a exoneração do restante passivo podia e devia ter sido deferida e admitida liminarmente, pois estão presentes os demais requisitos.

Em quarto lugar, nenhum dos credores em assembleia se opôs ao pedido de exoneração do passivo restante, nem a administradora de insolvência, razão porque, sendo o direito concedido ou a conceder aos requerentes disponível, não deve o juiz substituir-se aos credores que não se opõem à concessão da admissão liminar da exoneração do passivo, com o argumento que o mesmo a ser concedido prejudicaria os credores.

c) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, nas questões enunciadas na alínea que antecede.

II. Fundamentação.

1. A matéria de facto relevante para a questão a decidir é esta:

A requerente e o requerido contraíram casamento em 30 de Setembro de 1996.

A requerente mulher em 1996 abriu uma loja de pronto-a-vestir na ...., que encerrou em 2000.

Para pagamento das dívidas do estabelecimento o requerente marido procedeu, em 13 de Julho de 2002, à venda de alguns prédios rústicos.

O produto da venda dos prédios rústicos não foi suficiente para proceder ao pagamento da totalidade das dívidas do estabelecimento comercial.

O apartamento onde viviam foi penhorado e vendido num processo de execução fiscal.

O requerente marido trabalha na ...., auferindo mensalmente cerca de €1280,00 e tem o vencimento penhorado à ordem de processos de execução fiscal.

Os requerentes têm três filhos: (…), nascido em 20/06/98; (…), nascido em 25/03/00 e (…), nascida em 28/02/06.

A requerente mulher soube que padece de osteoporose, osteomalácia e cítose que a impedem de trabalhar.

Os requerentes assumiram as seguintes dívidas à administração fiscal:

- processos executivos n.º 0744199901013394, no valor global de €6.670,36 euros;

- proc. n.º 0744200201015869, no montante de €197,00 euros;

-proc. n.º 0744200201027298, no montante global de €7.348,95 euros;

- proc. n.º 0744200301000195, no montante global de €9.178,61 euros;

- proc. n.º 0744200601011677, no montante global de €231,90 euros;

- proc. n.º 0744200601027913, no montante global de €213,16 euros;

- proc. n.º 0744200701009443, no montante global de €202,31 euros;

- proc. n.º 0744200701033174, no montante de €194,56 euros;

- os requerentes assumem ainda as seguintes dívidas:

- à (…), S. A., no montante global €1.837,93 euros;

- Ao (…), S. A., no montante de €6.492,62 euros;

- A (…), Ld.ª, no montante de €7.512,99 euros;

- Ao Banco (…), S. A., no valor de €1.590,46 euros.

- A (…), Ld.ª, no montante global de €591,06 euros;

- Ao (…), S. A., no valor de €600,00 euros.

- A (…), no valor de €750,00 euros;

Além destes factos dados como provados na sentença que declarou a insolvência pode ainda aditar-se o seguinte:

Os requerentes apresentaram-se em juízo, solicitando a sua insolvência, em 17 de Julho de 2009 (data do registo de entrada da petição – folhas 19).

2 - Passando à análise da questão objecto do recurso.

Nos termos do artigo 235.º do CIRE, «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».

A «exoneração do passivo restante» é uma medida nova, introduzida no ordenamento jurídico pelo actual código da insolvência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março.

No preâmbulo deste diploma o legislador referiu-se a esta medida nos seguintes termos:

«O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.

Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores»

Vejamos os fundamentos do recurso.

a) Em primeiro lugar, cumpre averiguar se a situação de insolvência existe apenas desde Junho de 2009 ou se já existia há mais de 6 meses, considerando a data da instauração da acção, que é a de 17 de Julho de 2009.

Com efeito, nos termos da al. d), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE, se «O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica», é indeferido liminarmente o pedido.

Nos termos do n.º 1, do artigo 3.º, do CIRE, «É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas».

Com referiu Pedro Macedo, citando Ferrara Junior, «O conceito de insolvência ilumina-se comparando-o com o conceito de inadimplemento. Este é um facto, aquele um estado, uma situação patrimonial. O inadimplemento consiste no facto de não cumprir, pelo que se refere a uma obrigação determinada e tem um alcance relativo ao credor singular que se mostra prejudicado. A insolvência, por sua vez, tem um alcance geral (refere-se a todos os credores). É insolvente o que não está em situação de satisfazer regularmente as suas obrigações, e regularmente significa em conformidade com a regra, portanto prestando a “res debita” e no tempo devido».

«É insolvente não só o que não pode pagar a ninguém, mas ainda o que pode pagar só a alguns, deixando insatisfeitos os outros credores ou que pode pagar as suas obrigações só parcialmente, ou então pode pagar integralmente, mas em data posterior ao vencimento» -  Manual de Direito das Falências, Vol. I, pág. 217, Coimbra 1964.

Acrescentando ainda este autor: «Se o activo supera o passivo, se os meios líquidos actuais são suficientes para permitir o cumprimento das obrigações à vista, fica desde logo excluída a insolvência.

A hipótese inversa, porém, não é verdadeira: se o activo não for suficiente para solver o passivo, nem por isso a insolvência é necessária.

Há, aqui, um elemento importantíssimo a ter em conta - o crédito - factor primordial na vida comercial de hoje (...).

Só é insolvente o comerciante que não tenha crédito nem activo líquido suficiente para cumprir as suas obrigações actuais.

Assim, conforme o entendimento tradicional e largamente predominante na doutrina e no direito positivo, a insolvência é uma incapacidade patrimonial do devedor para satisfazer regularmente as suas obrigações» - ob. cit. pág. 224/225.

Estas palavras são ainda actuais e dão-nos uma imagem do que é o estado de insolvente.

Verifica-se, face ao passivo acima assinalado, que existe uma situação manifesta de insolvência, a qual é admitida pelos Recorrentes, porquanto se apresentaram à insolvência, alegando isso mesmo.

A questão consiste em saber se tal situação já existia em Dezembro de 2008, isto é, há mais de 6 meses, tendo em conta a data da entrada desta acção em tribunal.

A resposta é afirmativa.

Com efeito, nada ocorreu desde Dezembro de 2008 até Julho de 2009 que tivesse produzido a dívida global assinalada e a situação de insolvência.

Os próprios requerentes admitem que as dívidas foram geradas no âmbito da actividade do estabelecimento de pronto-a-vestir, o qual encerrou em 2000.

Alegaram que, para pagamento das dívidas do estabelecimento, o requerente marido procedeu, em 13 de Julho de 2002, à venda de alguns prédios rústicos, mas o seu produto foi insuficiente para proceder ao pagamento da totalidade das dívidas do estabelecimento comercial.

O apartamento onde viviam também foi penhorado e vendido num processo de execução fiscal.

O requerente marido trabalha na ...., auferindo mensalmente cerca de €1280,00 e tem o vencimento penhorado à ordem de processos de execução fiscal.

A requerida não trabalha e tem estado desempregada.

Apesar dos pagamentos já feitos, a dívida ascende a €24 236,85 euros no que respeita ao Fisco e a €19 374,69 euros quanto a outros credores.

Ora, como se disse, não há notícia de qualquer facto que mostre ter gerado estas dívidas, que  somadas ascendem a €43 611,54 euros, entre Dezembro de 2008 e Julho de 2009, o que permite concluir, com a necessária certeza, que neste período ter-se-ão apenas vencido alguns juros relativos às dívidas existentes e que situação de insolvência já é antiga, existindo já em 2002, época em que o requerente vendeu alguns prédios, mas não conseguiu pagar as dívidas nem conseguiu evitar também a penhora e venda do apartamento onde residia o casal.

A insolvência é um estado objectivo que existe por si mesmo, independentemente dos insolventes terem consciência ou não da sua existência.

A alegação dos recorrentes de que só tiveram conhecimento da insolvência em Junho de 2009, quando ficou assente que a insolvente mulher não podia trabalhar, é um a afirmação inverosímil.

Com efeito, é praticamente impossível existir aquela dívida de €43 611,54 euros e todo o historial de dívidas, com pagamentos forçados e voluntários, como vem alegado, e, ao mesmo tempo, os recorrentes desconhecerem que o seu activo era insuficiente para pagar o passivo.

É sim de concluir, como na sentença recorrida, que quando o requerente marido vendeu os prédios em 2002 e não conseguiu pagar as dívidas, o estado de insolvência existia e os requeridos conheciam-no.

Nada ocorreu depois, tanto quanto revela o processo, além da passagem do tempo e da contagem de juros, que tivesse agravado a dívida existente nessa altura.

Face ao exposto, concluiu-se que os recorrentes se apresentaram em tribunal, alegando a sua insolvência, mais de seis meses após este estado existir e ser também do conhecimento dos recorrentes.

b) Vejamos agora a questão suscitada pelo facto do regime da exoneração do passivo só ter entrado em vigor em Setembro do ano de 2004.

Os recorrentes sustentam que até Setembro do ano de 2004 vigorou o CPEREF e nesta legislação não existia o instituto de exoneração do passivo restante, nem a pessoa singular estava obrigada a apresentar-se à falência, como decorre do o disposto no artigo 6.º do CPEREF, aplicável apenas às empresas, pelo que, o aludido prazo de seis meses não lhe é aplicável, porque a nova lei, nos termos do artigo 12.º do Código Civil, só dispõe para o futuro.

Vejamos.

A exigência de apresentação do insolvente no prazo de seis meses tem a ver com a necessidade de evitar o agravamento do passivo e facilitar o ressarcimento dos credores.

Esta finalidade existe em qualquer momento e em qualquer processo de insolvência, seja o processo anterior ao actual regime ou contemporâneo, preveja a lei ou não preveja um eventual benefício resultante da apresentação atempada do devedor em juízo a requerer a sua insolvência.

Trata-se, pois, de uma situação permanente, que se prolonga no tempo.
Verifica-se que o estado de insolvência dos recorrentes já existia, como se referiu na alínea anterior, quando o actual código da insolvência entrou em vigor, pelo que, não podem falar de uma aplicação retroactiva da lei, competindo sim a quem estivesse na situação de insolvência, à data da entrada em vigor da actual lei, apresentar-se no prazo de seis meses em juízo, contados após a entrada em vigor do actual regime legal (neste sentido ver ac. Tribunal da Relação do Porto de 15-07-2009, em http://www.gdsi.pt, proc. n.º 6848/08.0TBMTS).
Não há, por conseguinte, aplicação retroactiva, mas sim aplicação actual do novo regime a uma situação de facto verificada ainda na sua vigência.
Improcede, pois, esta alegação.

c) Em terceiro lugar, muito embora a exoneração do passivo tenha como contrapartida a cessão do rendimento disponível do devedor, a inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho inicial, previsto no artigo 239.º do CIRE, não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.

Afigura-se que esta alegação é procedente.

Vejamos o que vem disposto no n.º 1 do artigo 238.º do CIRE relativamente ao indeferimento liminar do pedido:

«1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

a) For apresentado fora de prazo;

b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;

d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência».

Verifica-se que a inexistência de rendimento disponível no momento em que é proferido o despacho inicial não constitui fundamento, só por si, para se indeferir o pedido de exoneração do passivo restante.

Não é impossível, com efeito, que no futuro venha a existir rendimento disponível para entrega aos credores.

d) Vejamos agora se o facto dos requerentes não se terem apresentado à insolvência no prazo de seis meses após a entrada em vigor da presente lei, isto é, seis meses após 19 de Setembro de 2004, resultou «…prejuízo (…) para os credores, e sabendo (os ora requerentes), ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica» - al. d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE.

Ocorrerá prejuízo para os credores, resultante da não apresentação atempada à insolvência, se de tal omissão resultar um agravamento do passivo.

A este respeito verifica-se que as dívidas dos requerentes foram geradas no âmbito do negócio de pronto-a-vestir da recorrente mulher, portanto, entre 1996 e 2000.

Desde então, os requerentes não contraíram mais dívidas, antes pelo contrário, pois têm vindo a pagá-las.

Por conseguinte, cumpre verificar se há alguma diferença, em termos de prejuízo para os credores, entre o facto real de os requerentes se terem apresentado à insolvência em Julho de 2009 e a situação que existiria se eles se tivessem apresentado nos seis meses posteriores a 19 de Setembro de 2004.

Os factos não permitem apontar qualquer diferença a não ser quanto ao aumento da dívida de juros.

Se os requerentes pagaram dívidas neste período poderá ter havido algum prejuízo para credores preferentes, se porventura algum credor foi pago com preterição das regras legais da graduação de créditos que seriam observadas no processo de insolvência.

Porém, não há factos que permitam confirmar ou infirmar uma tal hipótese.

Por conseguinte, o eventual prejuízo dos credores circunscreve-se à questão dos juros.

Os juros correm, quer haja, quer não haja apresentação à insolvência, pois só deixam de se vencer com o pagamento.

A apresentação ou a não apresentação à insolvência pode ter alguma influência sobre os juros face ao disposto na al. b), do artigo 48.º do CIRE, onde se determina:

«Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:

a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que (…);

b) Os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência, com excepção dos abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até ao valor dos bens respectivos;

c) Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes;

d) Os créditos que tenham por objecto prestações do devedor a título gratuito;

e) Os créditos sobre a insolvência que, (…);

f) Os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração da insolvência;

g) Os créditos por suprimentos».

Por sua vez o artigo 177.º do CIRE dispõe que «1 - O pagamento dos créditos subordinados só tem lugar depois de integralmente pagos os créditos comuns, e é efectuado pela ordem segundo a qual esses créditos são indicados no artigo 48.º, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral.

2 - No caso de subordinação convencional, é lícito às partes atribuírem ao crédito uma prioridade diversa da que resulta do artigo 48.º».

Verifica-se face ao mencionado artigo 48.º, que o contínuo vencimento dos juros pode causar prejuízo a alguns credores, pelo menos aos credores cujos créditos não beneficiam de qualquer garantia.

Quanto aos outros credores, titulares de créditos com garantia real ou privilégio geral, como é o caso dos créditos relativos às dívidas fiscais, que sempre estão garantidos, pelo menos, por privilégio geral, não sofrem prejuízo porque os juros não se incluem na categoria de créditos subordinados.

Com efeito, como resulta do artigo 8.º, do Decreto-Lei n.º 73/99 de 16 de Março, «As dívidas provenientes de juros de mora gozam dos mesmos privilégios que por lei sejam atribuídos às dívidas sobre que recaírem».

Desta forma, em termos abstractos, havendo dívidas que beneficiam de garantias reais ou privilégios gerais, a demora na apresentação à insolvência é susceptível de prejudicar os credores comuns, pois estes poderiam eventualmente obter pagamento, ainda que parcial, se a apresentação à insolvência fosse feita no prazo de seis meses após a verificação do estado de insolvência, podendo dar-se o caso, se tal apresentação não for feita, que, depois, não obtenham qualquer pagamento, devido ao facto do dinheiro disponível ter sido utilizado para pagar juros relativos aos créditos que beneficiavam de garantias reais ou privilégios gerais.

Porém, esta é uma situação analisada em abstracto, como uma hipótese que no caso concreto poderá ou não verificar-se, servindo apenas de orientação, pois o que a lei exige para negar liminarmente o direito à exoneração do passivo restante é a existência de um prejuízo, mas claro está, tem de se tratar de um prejuízo concreto, real.

Ora, neste aspecto, verifica-se que não temos elementos factuais que permitam saber se existiu ou não existiu um prejuízo efectivo para os credores indicados na matéria de facto dada como provada resultante do contínuo vencimento de juros.

Como se disse, o único facto detectado, susceptível de gerar prejuízo aos credores, a alguns deles, não a todos, consiste no vencimento contínuo de juros e do facto de poder haver juros que beneficiem de garantias reais, como será o caso das dívidas fiscais.

Porém, não é possível saber se em concreto, o contínuo vencimento de juros gerou ou não gerou um prejuízo real para algum dos credores, ou seja, se algum deles poderia vir a receber algum pagamento, ainda que parcial, que não virá a obter porque os requerentes protelaram por alguns anos a apresentação à insolvência.

Para responder a tal questão seria necessário, neste caso concreto, podendo não o ser em outros casos, simular uma graduação de créditos tendo em conta a data da apresentação à falência, em 2009, e a data anterior de 19 de Setembro de 2004, comparando ambas as situações para verificar se algum credor foi prejudicado.

Operação esta praticamente impossível, pois era necessário que nesta fase estivessem definidos todos os créditos e também o activo, o que não se verifica.

Coloca-se ainda outra questão.

Que consiste em saber a quem incumbe fazer a prova deste pressuposto constante da al. d), do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, isto é, «que não resultou prejuízo para os credores derivado do incumprimento, por parte do devedor, da sua apresentação no prazo de seis meses após conhecer o estado de insolvência.

Ou seja, cumpre saber se a existência de prejuízo é facto impeditivo do direito a obter a exoneração do passivo ou se é facto constitutivo e, neste caso, é o devedor que tem de provar a inexistência de prejuízo.

Nas palavras do Prof. Antunes Varela, «Ao Autor cabe a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável servem de pressuposto ao efeito jurídico por ele pretendido. O Autor terá assim o ónus de provar os factos correspondentes à situação de facto (tatbestand) traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão. Ao Réu incumbirá, por sua vez, a prova dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva (do efeito jurídico pretendido pelo Autor) por ele (Réu) invocada» - Prof. A. Varela, R.L.J., ano 117, pág. 30/31.

Em geral, as causas enumeradas na lei como fundamentos de indeferimento de uma pretensão são sempre causas impeditivas do respectivo pedido.

Face à redacção da lei, que comina com indeferimento o pedido de exoneração do passivo, com fundamento na apresentação extemporânea à insolvência por parte do devedor, desde que resulte do atraso um prejuízo para os credores, afigura-se que esta factualidade constitui um facto impeditivo do direito, pois a lei só exige ao requerente devedor a formulação do pedido de exoneração.

Como facto impeditivo do direito que é, a ausência de prova, sobre se há ou não o apontado prejuízo, não pode implicar o indeferimento do pedido.

Conclui-se, por conseguinte, que o processo não permite concluir que existiu um prejuízo concreto para algum dos credores pelo facto dos requerentes não se terem apresentado a pedir a sua insolvência no prazo de seis meses após a entrada em vigor do CIRE.

e) Face à conclusão a que se chegou, verifica-se que o recurso deve proceder, razão pela qual não tem interesse analisar a questão seguinte, cujo valor argumentativo é, aliás, secundário.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se procedente o recurso e revoga-se o despacho recorrido, devendo-se dar continuidade ao pedido de exoneração do passivo.

Custas pela massa insolvente.