Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/12.6GAMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: QUEIXA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
PODER DE DIRECÇÃO
DOLO
Data do Acordão: 01/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 14.º, 49.º, 50.º, 311.º, 322.º, E 323.º, DO CP
Sumário: I - A legitimidade para promover a acção penal nos crimes particulares depende da existência de queixa, da constituição do ofendido como assistente e, finalmente, da dedução de acusação particular.

II - Só pode ser levado à acusação particular, deduzida em crime de natureza particular, em sentido estrito, o facto transmitido na respectiva queixa, pressuposta a sua relevância jurídico-penal. Quando tal não acontece, quando não existe correspondência – com a amplitude supra delimitada – entre o facto transmitido na queixa e o facto acusado, resta concluir pela não verificação da mencionada condição de procedimento.

III - Não tendo a questão da condição de procedimento, in casu, da legitimidade para o procedimento, sido conhecida no despacho proferido nos termos do art. 311.º do C. Processo Penal, não existe caso julgado formal sobre ela. Nos termos do disposto no art. 595.º, n.º 3 do C. Processo Civil, aplicável ex vi, art. 4.º do C. Processo Penal, aquele despacho só constituiu caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.

IV - O assistente/recorrente, com a concreta questão que submete ao conhecimento do tribunal da Relação, não sindica uma qualquer decisão da Mma. Juíza a quo, que tenha revestido uma das duas formas referidas, designadamente, não aponta qualquer erro, nesta sede, à sentença recorrida. Se entendia que tal condução da audiência violava, de alguma forma, os seus direitos de defesa, seria aí, na audiência de julgamento que teria que invocar a nulidade ou irregularidade que entendia estar a ser cometida, cabendo da decisão que sobre ela tivesse recaído o competente recurso. E, se porventura, se tivessem verificado os pressupostos do direito de protesto previsto no art. 75.º, n.º 2 Estatuto da Ordem dos Advogados, haveria tão só que lavrá-lo em acta, com os legais efeitos.

III - O dolo – o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal] – é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro e por isso, a sua demonstração probatória, quando não exista confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal. Nestes casos, a prova do dolo só pode ser feita por inferência, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em especial, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.

VI - Se a arguida quis dizer o que disse (chamar vigarista ao assistente), conhecendo o seu significado, as regras da experiência comum, as regras de normalidade impõem a conclusão de que quis imputar, como imputou, ao assistente, aquela qualidade, sabendo, como qualquer cidadão medianamente atento saberia, que ao fazê-lo atentaria contra a honra e consideração àquele devidas.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 

I. RELATÓRIO

            No [já extinto] Tribunal Judicial da comarca de Montemor-o-Velho o assistente M..., desacompanhado do Ministério Público, requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, da arguida A..., com os demais sinais nos autos, a quem imputou a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, ambos do C. Penal, contra ela tendo também deduzido pedido de indemnização civil, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 1.500 por danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora.

 

            Por sentença de 6 de Fevereiro de 2013 foi a arguida absolvida da prática dos imputados crimes e absolvida do pedido de indemnização civil contra si formulado.

*

            Inconformado com a decisão recorreu o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

            I. Não se concorda, nem se pode concordar com o conteúdo do proferido pelo TRP no processo 787/03.9GBMTS PI, de 10/11/2010 (embora na sentença recorrida se referencie outro acórdão), pois as conclusões e afirmações sobre a concordância da queixa nos crimes particulares com a acusação particular, como condição de procedibilidade do procedimento criminal são inconcebíveis e inaceitáveis.

II. Os crimes de natureza particular, têm de ser denunciados, com a formulação de que se pretende procedimento criminal contra o denunciado, devendo o queixoso se constituir assistente, pagar a taxa de justiça e ser acompanhado de advogado. Quando o queixoso denuncia de que foi vítima de "distrates" e outras considerações ofensivas da sua honra e consideração por parte da denunciada, tal situação não é diferente de outra queixa onde outro queixoso denuncia, tão só, que foi, no dia x, no lugar y, vítima de agressão por parte de F …, sendo então apurado em inquérito, após a recolha de prova, que efectivamente F …, agrediu o queixoso, às z horas, do dia …, no lugar y, causando-lhe um hematoma na face, outro no braço, que lhe causaram n dias de doença, com incapacidade para o trabalho … E que tal seja vertido numa acusação pública de um crime de ofensas corporais!

III. O inquérito nos crimes particulares, tem o mesmo fim de outros crimes, de diferente natureza, ou seja a recolha de indícios suficientes para se verificar a existência, ou não, ainda que de forma indiciária, da prática de crimes por parte do arguido.

IV. Não existe norma do Direito Criminal e Processual Penal, onde se esclarece/exige que a queixa que verse crimes particulares de injúria e difamação tem de mencionar as expressões injuriosas, de forma exacta e absolutamente precisa, como condição de procedibilidade do próprio inquérito, da acusação particular e do próprio procedimento criminal contra o denunciado.

V. Uma coisa é não haver queixa alguma sobre injúrias, sequer referência à existência da prática do denunciado de expressões injuriosas, outra bem diferente, é existir uma denúncia de que foram proferidas pelo denunciado expressões ofensivas da honra e consideração do queixoso, mesmo que as não descrimine, desejo de procedimento criminal, constituição de assistente, paga a taxa de justiça, constituição de advogado, inquérito, prova concreta no mesmo que confirma e detalhe das injúrias proferidas e consequente acusação particular!

VI. Em abono da nossa tese, basta atentar no conteúdo do art. 49º, nº 1 do CPP, onde se diz "Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo." O sublinhado é nosso!

VII. O "facto" aí referido não são as expressões Injuriosas concretas, antes um comportamento ilícito do denunciado, bastando, para tal dizer, que o ofendido foi vítima por parte do denunciado de expressões atentatórias da sua honra e consideração, mesmo que as não descrimine!

VIII. Em reforço de tal entendimento, deve se atentar no conteúdo do art. 246º, nº 1 do CPP "A denúncia pode ser feita verbalmente ou por escrito e não está sujeita a formalidades especiais." … Ou do seu nº. 4, onde inequivocamente, liberta a denúncia do rigor formalista e civilista enunciado no referido acórdão do TRP contestado e supra enunciado, pois aí expressamente se diz "A denúncia contém na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do nº 1 do artigo 243º, este sim impondo algum rigor formal (o sublinhado é nosso).

IX. Nestes termos, a tese, mais civilista, fazendo lembrar o princípio do dispositivo do Processo Civil, defendida em tal acórdão citado na sentença recorrida, não tem sustentação legal, no direito processual penal vigente em Portugal, pelo que, não pode sustentar a fundamentação vertida em tal sentença, de que se recorre no presente recurso.

X. Assim sendo, deveria a sentença recorrida ter apreciado todos os factos constantes da acusação particular, pelo que, em sede de reapreciação de prova neste recurso devem os mesmos ser considerados.

XI. Sem prescindir, ainda assim, tomando a ideia da sentença recorrida de uma queixa insuficiente, formulando-se acusação particular e dela não se requerendo instrução em devido prazo, aceitando-se a mesma e remetendo-a para julgamento, parece-nos, salvo o devido respeito, tendo o mesmo despacho de aceitação transitado em julgado, não é possível fazer retroceder o processo à fase da acusação para justificar a extinção do procedimento criminal por insuficiência de queixa relativamente a algumas expressões injuriosas!

XII. O objecto do processo penal é fixado e definido pela acusação, art. 379, nº 1 al b) do CPP, pelos que, os factos nela descritos, vinculam o tribunal no decurso do processo, sendo inaceitável a sentença recorrida, nesta parte, quando limita a verificação das expressões injuriosas aquelas que são vertidas na queixa inicial ou seu aditamento, porquanto, tal não é exigível em qualquer norma do Direito Criminal em geral, e em particular por qualquer norma Processual Penal.

XIII. O Recorrente não aceita, salvo o devido respeito, a forma como são interpretados pela Meritíssima Juiz "a quo" os poderes que lhe são conferidos nos artigos 322º e 323º do CPP e a interpretação que é feita dos mesmos no decorrer da audiência de julgamento deste processo.

XIV. O Tribunal permitiu, livremente, que todos os intervenientes poderiam falar nas questões contabilísticas e outras que levaram à discussão e desavenças entre a arguida e o assistente, disputa de um documento, excepto ao assistente e ao seu mandatário!

XV. A tomada de declarações e esclarecimentos solicitados pelo mandatário do assistente ao próprio, foram reiteradamente interrompidos e com limitações expressas de poder esclarecer a questão sobre o documento que é referido pela arguida que lhe foi "roubado" pelo assistente e demais expressões injuriosas por ela proferidas em resposta às exigências do assistente enquanto TOC, pelo que deve ser ordenada a repetição do julgamento, para que o assistente possa explicar tais factos, de forma livre e contínua, que determinam o comportamento injurioso da arguida.

XVI. Mantendo-se o demais factos dados como provados, na sentença recorrida, existem outros factos dados como não provados que se querem ver novamente reapreciados, com base no depoimento das testemunhas F..., G... e H... e corroborado pelas declarações do assistente supra transcritos, determinam a inclusão dos seguintes pontos aos factos provados para o dia 04/01/2012:

1.1 – Foi explicado pelo assistente, no fim do ano de 2011, à arguida que por notificação do INCI, em face da existência de capitais próprios negativos no ano de 2010, teria de fazer um aumento de capital na sociedade, com a realização efectiva do montante correspondente ao aumento na conta bancária da sociedade, para que não lhe fosse retirado o alvará por aquela entidade.

1.2 – Como a realização efectiva capital correspondente a tal aumento não foi efectuada de forma a que o mesmo ficasse disponível, e perante a arguida dirigindo-se ao assistente disse-lhe que era um "vigarista" e "incompetente".

1.3 – A arguida nesse mesmo dia disse ao assistente para "ir levar no cu mais os gajos do INCL".

1.4 – Quando a arguida neste dia 04/01/2012 profere tais expressões "vigarista" e "incompetente" e para o Assistente "ir levar no cu mais os gajos do INCI", age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente.

1.5 – A arguida antes de se ir embora do referido escritório, amarfanhou um papel que tinha consigo, o qual era disputado pelo assistente.

1.6 – A arguida nesse mesmo dia, retirou-se do escritório do assistente, lá deixando uma pasta com documentos que lhe pertenciam.

1.7 – Tal pasta foi entregue pelo assistente no posto da GNR de Montemor-o-Velho, no dia 04/01/2012.

1.8 – Em queixa apresentada pela arguida A... no posto da GNR de Montemor-o-Velho e assinada por esta, a Fls. 3 dos autos consta que a pasta reclamada por esta, se encontrava naquele posto, entregue pelo assistente e lhe foi devolvida naquele acto (parte final de fls 4 ).XVI

XVII. Na sentença recorrida os factos dados como não provados e que se querem ver novamente reapreciados, com base no depoimento das testemunhas F..., G... e H... e corroborado pelas declarações do assistente supra transcritos, determinam a inclusão dos seguintes pontos aos factos provados para o dia 18/01/2012:

2.1 – Tal encontro tinha sido previamente acordado entre o assistente e a arguida para entrega de pastas e pagamento dos serviços de contabilidade, em face do termo da prestação de assistência e serviços de contabilidade por parte do assistente.

2.2 – Nesse mesmo dia a arguida disse que o assistente era um "ladrão" "vigarista" e "incompetente" e que "tinha sido o causador da falência da sua empresa".

2.3 - Quando a arguida neste dia 18/01/2012 profere tais expressões "vigarista" e "ladrão" e que o Assistente "tinha sido o causador da falência da sua empresa", age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente.

XVIII. Deve ser aditado um ponto 3.1, imediatamente a seguir ao ponto 3. dos factos dados como provados, onde conste o seguinte:

3.1 – Quando a arguida em carta datada de 31/01/2012 e afirma que este "roubou uma mala como documentos", sabendo que tal imputação era falsa, age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente.

XIX. Existe omissão notória na fixação dos factos dados por provados, independentemente de se restringir a apreciação dos factos submetidos a julgamento, por ausência de queixa, quanto à expressão "vigarista" que é injuriosa, no contexto em que é referida pela arguida!

XX. Tal expressão é de forma espontânea referenciada pelo assistente, testemunhas F..., G... e H..., como proferida pela arguida, dirigindo-se ao assistente, no dia 04/01/2012 e dia 18/01/2012, bem como consta do aditamento da queixa apresentada pelo queixoso M...a fls. 16 a 20 do processo.

XXI. Na sentença recorrida, tal expressão total e absolutamente omitida dos provados, com a justificação ou fundamentação, que "a falta de prova ficou a dever-se às duas versões contraditórias apresentadas em julgamento", sendo tal justificação/fundamentação para a falta de prova, manifesta e grosseiramente insuficiente, pois é usual, ou regra em audiência de julgamento, existirem duas versões contraditórias, sendo dever de quem julga, a final, nomeadamente, optar por uma, como aconteceria no caso em apreço, onde a versão contrária, sustentada pela arguida e suas testemunhas não oferece qualquer credibilidade e segurança.

XXII. Nesta parte, existe omissão notória nos factos dados como provados por parte do Tribunal "a quo", porquanto, não existem dúvidas, perante a evidência objectiva de uma análise isenta do depoimento daqueles intervenientes no presente processo, o que logo implicaria decisão final diversa da que foi proferida, sendo dada como provado que a arguida proferiu tal expressão injuriosa, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida.

XXIII. Existe erro notório e ostensivo de apreciação da matéria de facto dada como provada, quanto à injúria que a arguida profere na carta que lhe escreveu em 31/01/2012, onde acusa o assistente de lhe ter "roubado" uma mala com documentos, tendo em atenção que esta pasta lhe foi devolvida pela GNR em 04/01/2012 e que o suposto documento que aquele assistente se pretendia apropriar, foi amarfanhado pela própria arguida e metido no seu bolso, tendo-o levado consigo.

XXIV. Tal afirmação injuriosa, por falsa, de que o assistente lhe tinha "roubado uma mala com documentos" expressa em carta escrita pelo seu próprio punho, depois da mesma lhe ter sido devolvida pela GNR, só pode determinar um juízo de censura jurídico-penal de tal comportamento da arguida, mesmo que se descredibilize a demais prova testemunhal. 

XXV. Em face da procedência do presente recurso, dando-se como provado que a arguida, se dirigiu ao assistente, como "ladrão" "vigarista" e "incompetente" e que "tinha sido o causador da falência da empresa", bem como, para o Assistente "ir levar no cu mais os gajos do INCI", e ainda, que em carta feita pelo seu próprio punho o acusava falsamente de que lhe tinha "roubado uma mala com documentos", bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e com o intuito de ofender aquele na sua honra e consideração, esta tem de ser punida nos termos do artigo 181º do C. Penal, em pena, não inferior a 80 dias de multa, à taxa diária de cinco euros.

XXVI. Dando-se como provado que a arguida ao proferir tais expressões injuriosas dirigidas aos assistente, referidas na alínea anterior, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e com o intuito de ofender aquele na sua honra e consideração, o que causou, consequente e necessariamente para o ofendido vergonha pública e social (expressões proferidas perante terceiros), bem como, foi atingido o seu bom nome profissional (expressões proferidas perante clientes), notoriamente condição essencial de manutenção de clientela, traduzindo-se tal situação, num verdadeiro dano não patrimonial, que deve ser ressarcido pela arguida, devendo esta ser condenada no pagamento de uma indemnização ao ofendido em quantia de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros à taxa legal após o trânsito em julgado da sentença (art.s 483º e 484º do CC).

Fazendo-se desta forma a adequada JUSTIÇA.

*

                        Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            I. Analisando o teor da queixa apresentada pelo assistente constata-se que a factualidade aí alegada não corresponde à factualidade plasmada na acusação particular deduzida, ou seja, a arguida mostra-se acusada, em parte, por factos pelos quais o ofendido/assistente não apresentou queixa, inexistindo identidade entre a queixa e a acusação particular.

II. Ora, tendo presente o teor do artigo 49.º, do Código de Processo Penal, em conjugação com o disposto no artigo 50º do mesmo Código, retira-se que a queixa se caracteriza e consiste numa manifestação de vontade de perseguição criminal, sendo pois condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semipública e particular, como neste caso.

III. Na verdade, quando o procedimento criminal depende de acusação particular como é o caso dos autos (artigos 180.º e 188.º, do Código Penal), é necessário que o ofendido, além de apresentar queixa, se constitua assistente e deduza acusação particular (artigo 50º, nº 1, do Código de Processo Penal).

IV. Sendo certo que, só pode ser objeto da acusação particular o facto jurídicopenalmente relevante expresso na queixa.

V. Assim, tendo por certo que a acusação particular deduzida contra a arguida se reporta a factos pelos quais o assistente não apresentou queixa, temos que, quanto àqueles se verifica ausência de queixa, falecendo pois uma condição essencial de procedibilidade.

VI. Não há, pois, uma correspondência (ainda que indireta) entre os factos descritos na queixa e parte dos descritos na acusação particular.

VII. Quanto à restante factualidade acusada, bem andou o Tribunal a quo, em absolver a arguida, na senda da posição já antes manifestada pelo Ministério Público, não só, quando não acompanhou a acusação particular, mas também, em sede de alegações finais, quando não sustentou a condenação.

VII. Com efeito, eleger um meio de prova como sendo mais credível do que outro é a manifestação pura da apreciação da prova, que no caso foi realizada atendendo às regras da lógica, da razoabilidade e princípios da experiência.

IX. O elenco dos factos dados como historicamente verificados merece a nossa adesão e bem assim a motivação da decisão recorrida, por ser clara, suficiente, objctiva e assente numa valoração racional e coerente da prova produzida.

 X. Do texto da decisão recorrida não se vislumbra qualquer incoerência factual ou lógica, antes evidenciando racionalidade, uma vez que as conclusões estão fundamentadas com recurso à utilização de meios de prova legais e às regras da experiência comum.

XI. Também o dever de fundamentação foi cumprido, em termos que indicando os meios de prova que serviram para formar a convicção sobre a matéria de facto e justificando a razão dessa convicção, permitiu conhecer das razões do decisor.

XII. Tudo ponderado. a douta decisão não violou a lei penal e ou a lei processual penal.

Razões pelas quais entendemos dever ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, deverá manter-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, Com o que V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!

*

            A arguida não apresentou resposta ao recurso.

*

*

 Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a contramotivação do Ministério Público, e concluiu pela improcedência do recurso.

*

Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

*

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

*

*

*

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A falta de correspondência da queixa e seu aditamento a todo o teor da acusação particular [conclusões I a XII];

- A incorrecta utilização pela Mma. Juíza dos poderes conferidos pelos arts. 322º e 323º do C. Processo Penal e a repetição do julgamento [conclusão XV];

- O erro notório na apreciação da prova, quanto à carta de 31 de Janeiro de 2012, onde lhe é atribuída a prática do roubo de uma mala [conclusões XXIII e XXIV];

- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e consequente condenação, crime e cível, da arguida [conclusões XVI a XXII];

- As consequências da modificação da decisão de facto relativamente à tipicidade da conduta e ao pedido de indemnização civil [conclusões XXV e XXVI]

*

            Para a resolução desta questão importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

            A) Nela se decidiu a seguinte questão prévia:

            “ (…).

                No caso em apreço, na queixa de fls. 3, do inquérito apenso incorporado nestes autos, apresentada pelo assistente contra a arguida em 04.01.212, consta, no que ora importa, o seguinte: "Hoje (04.01.2012), pelas 16.30 horas, no escritório da sua empresa, sito na Rua (...) na localidade da Carapinheira, a denunciada, na presença de testemunhas, quis de certa forma, obrigá-lo a subscrever tal acto, indo em contra os seus princípios pessoais e profissionais, ameaçando-o de que se assim não procedesse iria divulgar que este (o denunciante) lhe tinha prestado informações que a tinham informado a actuar de acordo como a mesma fez, facto que não corresponde à verdade".

Posteriormente, em 09.02.2012, no aditamento a tal queixa, constante de fls. 16 a 20 dos presentes autos, apresentado pelo assistente, consta, no que ora importa que:

- No dia 04.01.2012, no escritório da N..., a ora arguida: "Ameaçou o TOC M..., que o iria difamar e injuriar, imputando-lhe factos ofensivos da sua honra e consideração profissional, caso não colaborasse com Ela";

- No mesmo dia e local, a arguida "Afirmou que tinha falado com o filho e que o mesmo lhe tinha confirmado que tinha mandado o M... vai para o caralho e proferido demais palavreados do mesmo género aquando da conversa que tinham tido acerca da situação da sociedade".

- No dia 18.01.2012: "Como já o tinha feito voltou em resumo a proferir os mesmos ditos afincando nomeadamente: a. Que o TOC era um vigarista (…)."

- No dia 31.01.2012. "O TOC foi acusado pela Srª A... de ter roubado uma pasta".

- No dia 02.02.2012: "O participante teve conhecimento que andava a ser difamado, nomeadamente se anda a divulgar que o TOC tinha sido expulso da OTOC por ter sido acusado em três processos disciplinares, pela prática de diversos actos em desconformidade com o estatuto e o código deontológico dos TOCs e que não fazia os descontos para a segurança social das empresas suas clientes ou ficava com eles".

Na acusação particular deduzida pelo assistente contra a arguida, constante de fls. 102 e segs., o assistente acusa a arguida de, nomeadamente, no dia 04 de Janeiro de 2012, da parte da tarde em hora não concretamente apurada, e posteriormente no dia 18 de Janeiro de 2012, no escritório da N..., propriedade do assistente, sito na Rua (...), Carapinheira, a mesma se ter envolvido em discussão com o assistente a propósito de factos relativos à contabilidade da empresa do filho da mesma, que é assegurada pelo assistente e, perante várias testemunhas, de forma audível, dirigindo-se ao assistente disse-lhe:

- "Ó M..., tu não me enganes, tu és incompetente, tu já tens feito algumas asneiras M..., porque o meu filho também já te disse para tu ires apanhar no cu com esses gajos do INCI, a minha empresa não deve nada a ninguém (…)".

"Tu és um ladrão …".

"Que era um ladrão como os outros do INAC, culpando-o de ser o causador da falência da empresa".

Como se vê, a queixa e seu aditamento, é totalmente omissa no que se à seguinte factualidade plasmada na acusação particular: "Ó M..., tu não me enganes, tu és incompetente, tu já tens feito algumas asneiras M..., porque o meu filho também já te disse para tu ires apanhar no cu com esses gajos do INCI, a minha empresa não deve nada a ninguém (…)" "Tu és um ladrão ... ". "Que era um ladrão como os outros do INAC, culpando-o de ser o causador da falência da empresa".

Esta factualidade acaba apenas por surgir na acusação particular formulada pelo assistente.

Como se sabe, o objecto do processo fixa-se com a acusação (ou pronúncia). Como se refere no Ac. do TRP de 25.05.2010, in www.dgsi.pt., no caso dos crimes particulares, como o é o crime de injúria, para que os factos atinentes possam constar da acusação, é necessário que os mesmos se mostrem vertidos na queixa. É isso que a lei exige e a isso se chama condição de procedibilidade.

Como se refere no mesmo aresto, "Nos crimes de natureza particular, a queixa, a constituição de assistente (e a acusação particular), constituem condições de procedibilidade, na medida em que conferem ao Ministério Público a legitimidade para o exercício da acção penal que, sem elas, não existe.

E se assim é, facilmente se conclui que a legitimidade do assistente para formular acusação particular sobre determinados factos surge apenas em relação àqueles relativamente aos quais, em devido tempo (isto é, dentro do prazo de seis meses que a lei estipula), exerceu o seu direito de queixa e houve lugar a apuramento, no decurso do inquérito, por para tal ter o MºPº poderes de exercício da acção penal.

Não lhe assiste, pois, legitimidade para fazer constar e ver definitivamente fixados, como objecto do processo, quaisquer outros factos que entretanto lhe possam ocorrer mas relativamente aos quais não cumpriu a respectiva condição de procedibilidade – isto é, não fez verter na queixa. Assim, e em bom rigor, no que a factos ausentes de tal queixa se refere, o MºPº não tem sequer legitimidade para promover o processo, o que significa que sobre os mesmos não pode incidir o inquérito (vide arts 48, 49 e 50, todos do C.P.Penal)".

Como se sintetiza no sumário do referido acórdão "I. A legitimidade do assistente para formular acusação por crimes de natureza particular afere-se pelo conteúdo da queixa. II. Assim, não lhe assiste legitimidade para deduzir acusação particular por factos não vertidos na queixa, ainda que resultem do desenvolvimento do inquérito".

No caso em apreço, quanto às expressões e imputações supra referidas plasmada na acusação particular, objectivamente consubstanciadoras de crime de injúria, de natureza particular, não constando as mesmas da queixa apresentada pelo assistente, há que concluir que não se mostra cumprida a condição de procedibilidade imposta por lei, o que implica que sobre tais factos imputados pelo assistente à arguida, não pode haver procedimento criminal, urgindo dar como não escrita toda a matéria factual plasmada na acusação particular que se mostra ausente da queixa, o que se determina.

(…)”.

B) Dela constam os seguintes factos provados:

“ (…).

1. No dia 04 de Janeiro de 2012, por volta das 16.00 horas, a arguida dirigiu-se ao escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, para tratar de assuntos relacionados com a contabilidade da empresa do seu filho, de que o assistente era contabilista, tendo-se ambos evolvido em discussão.

2. No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida dirigiu-se ao escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, para tratar de assuntos relacionados com a contabilidade da empresa do seu filho, de que o assistente era contabilista, tendo-se ambos evolvido em discussão.

3. No dia 31 de Janeiro de 2012, a arguida enviou ao assistente, que recebeu, a carta junta a fls. 31, escrita pelo seu punho, onde consta" … então aí resolverei a minha situação se quem deve pedir desculpas eu ao o senhor M...o qual me roubou uma mala com documentos que não lhe pertêncião sem razão para o fazer …".

4. A arguida é agricultora, e criadora de porcos, cultivando para si e para vender a terceiros, vendendo igualmente leitões, auferindo no exercício dessa actividade proventos não concretamente apurados.

5. Reside em casa própria com o marido, reformado, o qual aufere uma pensão de reforma no montante mensal de € 300,00, e com um filho maior e dono de uma empresa de construção civil.

6. Paga € 200,00 mensais a título de prestação de empréstimo que contraiu.

7. É pessoa considerada, respeitadora e respeitada por os que a conhecem.

8. Não tem antecedentes criminais.

(…)”.

C) Dela constam os seguintes factos não provados:

“ (…).

1.1. No dia 04 de Janeiro de 2012, da parte da tarde, a hora não concretamente apurada, a arguida no escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, de viva voz, perante terceiros, dirigindo-se ao assistente apodou-o de "vigarista", e disse-lhe para ir para o "caralho".

2.2. No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida no escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Mcntemor-o-Velho, de viva voz, perante terceiros, dirigindo-se ao assistente apodou-o de "vigarista", e disse-lhe para ir para o "caralho".

3.3. A arguida com a conduta referida em 3. dos factos provados e em 1.1. e 2.2. supra, agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito declarado de ofender o assistente na sua honra, consideração, brio e competência profissionais, bem sabendo da idoneidade de tais expressões a tanto, e que a sua conduta era proibida e punido por lei penal.

4.4. A arguida, perante terceiros, referindo-se ao assistente disse que este "tinha processos disciplinares na OTOC, que já tinha sido expulso dessa ordem e ainda, que não fazia os descontos para a Segurança Social das empresas suas clientes ou ficava com eles".

5.5. As pessoas que tal ouviram da arguida avisaram clientes do assistente, tendo o assistente tido conhecimento do que disse a arguida, em 02.02.2012.

6.6. A arguida ao imputar factos falsos relativos à actividade profissional do assistente, bom nome e integridade moral, afectam definitivamente a sua profissão e credibilidade perante a clientela.

7.7. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito declarado de ofender o assistente na sua honra, consideração, bom nome pessoal e profissional, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

8.8. Em consequência da conduta a arguida o assistente/demandante sentiu vergonha pública e social e revolta, agravado pelo facto de ser um profissional extremamente zeloso e exigente no exercício da sua actividade, prejudicando assim a arguida o seu bom nome profissional, condição essencial de manutenção da sua clientela e único sustento da sua família.

9.9. Em consequência da conduta a arguida o assistente/demandante vem sentindo sofrimento e angústia sempre que algum cliente lhe pede explicações sobre tal situação.

(…)”

D) Dela consta a seguinte motivação de facto:

“ (…).

Quanto aos factos provados, o tribunal fundou a sua convicção, na conjugação crítica e sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, dos seguintes elementos de prova:

- CRC junto aos autos.

- Declarações da arguida, do assistente e depoimentos das testemunhas F..., cliente do assistente, G..., funcionária do assistente desde 1998, H..., funcionária da testemunha F..., J... e L..., que acompanharam a arguida quando esta se dirigiu ao escritório do assistente no dia 18.01.2012, que confirmaram que a arguida, nos dias 04 e 18 de Janeiro de 2012, se deslocou ao escritório do assistente, a fim de tratar de assuntos relacionados com a contabilidade da empresa do seu filho, de que o assistente era contabilista, tendo-se ambos evolvido em discussão nessas duas ocasiões.

- Declarações da arguida que admitiu ter escrito pelo seu próprio punho a carta junta a fls. 31, que viu e confirmou em audiência, e que enviou ao assistente, e declarações deste que confirmou a recepção de tal carta.

- Declarações ela arguida quanto à sua situação pessoal.

_ Depoimento das testemunhas O... e P..., relativamente ao carácter e inserção social da arguida.

*

As testemunhas D... e E..., nenhum conhecimento revelaram ter dos factos em apreciação.

*

A falta de prova dos factos supra enunciados relativos à acusação particular referidos em 1.1., 2.2. e 3.3., ficou a dever-se às duas versões contraditórias apresentadas em julgamento.

Assim, a arguida negou que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas (dias 04 e 18 de Janeiro de 2012), dirigindo-se ao assistente o tenha apodado de "vigarista" e que o tenha mandado para o "caralho".

A testemunha J..., que acompanhou a arguida quando esta se dirigiu ao escritório do assistente no dia 18.01.2012, confirmou tal versão, referindo não ter ouvido a arguida proferir expressões injuriosas dirigidas ao assistente, referindo que nada houve digno de registo entre ambos. 

A testemunha L..., que igualmente acompanhou a arguida quando esta se dirigiu ao escritório do assistente no dia 18.01.2012, relatou que houve troca de palavras entre arguida e o assistente, nenhum facto digno de registo tendo presenciado, não tendo ouvido a arguida injuriar o assistente. 

Por outro lado, o assistente afirmou que nas duas referidas ocasiões, a arguida o apodou de "vigarista", esclarecendo que no dia 18.01.2012 estavam presentes aquando da ocorrência dos factos, designadamente, as testemunhas J... e L....

Tal versão foi confirmada pela testemunha G..., funcionária do assistente desde 1998, que, não obstante num registo manifestamente inconsistente, referiu que nessas duas ocasiões a arguida apodou o assistente de "vigarista". Esclareceu que no dia 04.01.2012 estava também presente a testemunha F... e que no dia 18.01.2012 estavam presentes aquando da ocorrência do factos a que se reportou no seu depoimento, para além de si, as testemunhas F..., a funcionária deste, H... e as testemunhas J... e L..., que acompanhavam a arguida.

A testemunha F..., cliente do assistente, que referiu ter presenciado os factos nas duas ocasiões, uma vez que se encontrava no escritório do assistente, relatou que no dia 18.01.2012 ouviu a arguida apodar o assistente de "vigarista", sendo porem, que relativamente ao dia 04.01.2012, não referiu que a arguida dirigindo-se ao assistente, lhe tenha chamado "vigarista". Mais referiu que no dia 04.01.2012, estava presente no local, para além de si, a testemunha G..., e que no dia 18.01.2012, aquando da ocorrência dos factos que relatou, estavam presentes, para além de si, as testemunhas G..., H... sua funcionária e que na ocasião o acompanhou, e as testemunhas J... e L..., que acompanhavam a arguida.

A testemunha H... referiu ter presenciado os factos na segunda ocasião, relatando que ouviu a arguida chamar "vigarista" ao assistente. Relatou que nesta ocasião a arguida entrou acompanhada de dois indivíduos, que a tudo terão assistido.

Da conjugação da prova produzida em julgamento, tendo em consideração as apontadas contradições, ficou o tribunal com fundada dúvida quanto à prática pela arguida dos factos descritos na acusação ora em apreciação.

A prova produzida cm julgamento revelou-se, assim, insuficiente para com plena segurança, ser da mesma retirada, sem a menor das dúvidas, a conclusão de que a arguida nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação chamou "vigarista" ao assistente, e o mandou para o "caralho", pelo que, necessariamente terá aqui de operar o princípio basilar do in dubio pro reo.

*

A falta de prova do facto referido em 3.3., reportada ao facto provado em 3. supra, radicou na conjugação crítica e sua valoração à luz das normais regras da experiência comum dos seguintes elementos de prova:

- Declarações da arguida que relatou que no dia 04.01.2012, quando se dirigiu ao escritório do assistente, pelos motivos que especificou e concretizou, o mesmo lhe retirou das mãos uma pasta com documentos que consigo trazia, e que, tendo-lhe pedido a sua devolução, o assistente não o fez, tendo-lhe tal pasta sido entregue no dia seguinte pela GNR, que aí teria sido entregue pelo assistente. Referiu que na ocasião da ocorrência de tal facto, apenas estavam presentes ela, o assistente e a funcionária deste, tendo após surgido a testemunha F..., que estaria noutra dependência do escritório.

Tal versão colhe consistência na circunstância de a arguida na queixa junta fls, 3 e segs., que apresentou contra o assistente, ter denunciado tal facto, e ainda no teor do depoimento da testemunha Q..., amiga da arguida, que não obstante não tenha revelado conhecimento directo dos factos, relatou que a arguida, no dia 04.01.2012 lhe apareceu muito lastimosa, queixando-se que o contabilista lhe tinha ficado com uma pasta.

A testemunha G..., funcionária do assistente, referiu no seu depoimento, pela forma inconsistente já supra referida, que a arguida na segunda ocasião que se dirigiu ao escritório do assistente apodou este de "ladrão" porque da primeira vez se tinha lá esquecido de uma pasta, o que atenta a forma como produziu o seu depoimento e o relato concreto desta situação, confere alguma consistência à versão da arguida, de que o assistente lhe retirou a pasta com documentos.

O assistente, a testemunha F..., e também a testemunha G..., relataram que na primeira ocasião em que a arguida se dirigiu ao escritório do assistente, deixou lá uma pasta com documentos que após o assistente entregou na GNR.

Face às versões contraditórias apresentadas, ficou o tribunal com fundada dúvida se a arguida ao escrever e dirigir ao assistente a carta junta a fls, 31, agiu com dolo, ou seja, que a mesma tinha a consciência de que a imputação que dirigiu ao assistente era ofensiva da sua honra e consideração, ou, dito de outro modo, que a arguida sabia que, com o seu comportamento, lesava ou podia lesar o bem jurídico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, não se absteve de agir.

Como se sabe, a doutrina dominante conceptualiza o dolo como o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, ou seja, o dolo decompõe-se em dois momentos, um momento intelectual e um momento volitivo, sendo que é neste momento volitivo que o dolo pode assumir matizes diversas.

Ora a prova produzida em julgamento revelou-se insuficiente para com plena segurança, ser da mesma retirada, sem a menor das dúvidas, a conclusão de que a arguida ao escrever e dirigir ao assistente a carta junta a fls. 31, agiu com dolo.

*

A falta de prova dos factos referidos em 4.4. a 7.7., radicou na falta de prova produzida em julgamento.

Com efeito, afirmou o assistente nas suas declarações que a arguida teria dito as referidas expressões sobre si à mãe da testemunha C..., que por sua vez as transmitiu ao filho, e este, por sua vez, transmitiu a seus patrões.

Porem, a testemunha I..., mãe de C..., negou que a arguida, sua vizinha, alguma vez lhe tenha relatado tais factos referentes ao assistente, nada sabendo sobre o assunto.

E, a testemunha C..., negou igualmente tal factualidade, referindo nada saber sobre o assunto, nunca lhe tendo sido relatadas quaisquer expressões ou imputações feitas pela arguida relativamente ao assistente, nada por conseguinte, referente ao assistente, tendo comentado com os seus patrões, apenas tendo conhecimento da situação quando foi chamado a depor na GNR. Afirmou ainda, que após ter ido à GNR, o assistente lhe disse que tinha os seus motivos para o indicar como testemunha e que se o depoimento dele não fosse a seu favor o iria processar.                                                                                     *

                A falta de prova relativa aos factos do pedido de indemnização civil, radicou na insuficiência de prova produzida em julgamento, uma vez que nenhuma das testemunhas ouvidas relatou factos consubstanciadores de danos morais sofridos pelo assistente/demandante decorrentes da conduta da arguida, conjugada ainda e valorada criticamente a globalidade da prova produzida.

            (…)”.

*

*

Da falta de correspondência da queixa e seu aditamento a todo o teor da acusação particular

1. Alega o assistente – conclusões I a XII – que não existe norma que exija que a queixa relativa a crime de injúria e de difamação deva mencionar, de forma exacta e absolutamente precisa, como condição de procedibilidade, as expressões injuriosas e difamatórias de que o ofendido foi alvo, bastando que da queixa conste que o denunciado proferiu expressões injuriosas e difamatórias, sem necessidade de as descriminar, tanto mais que o art. 49º, nº 1 do C. Processo Penal apenas prevê que o ofendido dê conhecimento do facto ao Ministério Público, não sendo o facto as expressões concretas mas o comportamento ilícito denunciado, e o art. 246º, nºs 1 e 4 do mesmo código estabelecem que a denúncia não está sujeita a formalidades especiais e que deve conter, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos no art. 243º, nº 1, pelo que, devia a sentença recorrida ter apreciado todos os factos levados à acusação particular, tanto mais que o despacho que a recebeu, transitou em julgado, requerendo a sua apreciação, em sede de reapreciação da prova.

Vejamos se lhe assiste ou não razão.

1.1. O assistente deduziu acusação contra a arguida, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, ambos do C. Penal. Os dois crimes imputados dependem de acusação particular, sendo, por isso, crimes particulares [em sentido estrito].

Dispõe o art. 49º, nº 1 do C. Processo Penal que, quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

E dispõe o art. 50º, nº 1 do C. Processo Penal que, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

A legitimidade para promover a acção penal nos crimes particulares, depende pois da existência de queixa, da constituição do ofendido como assistente e, finalmente, da dedução de acusação particular. 

A queixa é o requerimento feito pelo respectivo titular e não sujeito a forma particular, através do qual dá a conhecer a sua inequívoca vontade de que tenha lugar procedimento criminal por certo e determinado facto (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 675). Ensina este Mestre que na queixa é apenas indispensável que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona (ob. e loc. citados). 

 A queixa consubstancia, portanto, uma declaração de ciência feita acerca de um facto, e uma manifestação de vontade de perseguição criminal por esse mesmo facto (cfr. Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 181).

Por sua vez, facto é todo o acontecimento ou situação pertencente ao passado ou ao presente, susceptível de prova (cfr. Augusto Silva Dias, Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias, AAFDL, 1989, pág. 14). Naturalmente que o facto que releva é, não o facto natural, mas o facto humano, aquele a quem o respectivo sujeito confere dimensão humana. E, mais especificamente, o facto processual, o acontecimento histórico, o pedaço da vida delimitado no tempo e no espaço (cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 1995, pág. 79 e ss.).

Deste modo, a verificação da condição de procedimento estabelecida para os crimes particulares, ínsita no art. 50º, nº 1 do C. Processo Penal pressupõe a correspondência entre o facto transmitido na queixa e o facto levado à acusação.

Posto isto.

1.2. No inquérito 13/12.0GAMMV, apenso, o assistente apresentou queixa – apesar de fls. 3 e verso estar identificada como «Auto de Denúncia» – contra a arguida, pelas 16h44m do dia 4 de Janeiro de 2012, atribuindo a esta a prática dos factos que, em síntese, seguem, e manifestando a sua vontade de procedimento criminal:

- No mesmo dia, pelas 16h30m, no seu escritório de contabilidade, na Carapinheira, a arguida quis obrigá-lo a subscrever um acto de aumento de capital de uma empresa, que havia sido feito contra os conselhos e informações que previamente lhe havia dado, ameaçando que divulgaria que tal aumento havia sido feito de acordo com tais informações, o que não era verdade e, face à sua recusa, abandonou o local, levando consigo, sem sua autorização [do assistente], o documento manuscrito onde constavam as informações prestadas.

Aqui, o assistente transmitiu apenas factos subsumíveis à categoria normativa da ameaça e, aparentemente, do furto [de documento]. Nenhum facto reportado na queixa é subsumível à categoria normativa de injúria ou de difamação, e isso mesmo resulta até da circunstância de no auto não ter sido assinalado o espaço referente à natureza particular do crime.

No aditamento à queixa, de 9 de Fevereiro de 2012, a fls. 16 a 20 [já dos presentes autos], o assistente, afirmando que naquela havia utilizado um teor moderado e que não havia exposto todos os factos susceptíveis de conduzirem à acusação da arguida, porque esperava que esta apresentasse em tempo útil um pedido formal de desculpas, que não fez, veio então ‘completar’ a participação inicial, nos moldes seguintes:

- Começou por expor, pormenorizadamente, as razões que deram origem à divergência surgida com a arguida quanto à necessidade e forma como deveria ser processado o aumento de capital ou a realização de prestações suplementares, necessários à eliminação dos capitais próprios negativos da empresa e à manutenção do seu alvará [matéria de facto, em si mesmo, irrelevante];

- Passou depois a especificar o que entendeu ter ocorrido, no citado dia 4 de Janeiro de 2012, no seu escritório, dizendo que a arguida, em ‘voz alta e austera’, começou a destratar a sua colaboradora quando esta a esclareceu que o necessário aumento de capital não estaria correctamente efectuado, que ao aperceber-se do sucedido, se dirigiu à arguida a quem corroborou o esclarecimento da sua colaboradora, tendo esta continuado a ‘manifestar cada vez mais austeramente o teor da sua indisposição’, afirmando que ‘se o que pagava fosse pouco para fazer isso, pagaria o necessário pois gosta de compensar quem com ela colabora e que nunca ficou a dever nada a ninguém’, e ‘ameaçou o TOC M..., que o iria difamar e injuriar, imputando-lhe factos ofensivos da sua honra e consideração profissional caso não colaborasse com Ela’;

- Continuou com uma pormenorizada, mas irrelevante, exposição sobre as razões que o levaram [ao assistente] a solicitar à arguida uma série de documentos e aos esclarecimentos que nesse contexto, lhe prestou e depois, o relato da recusa da arguida em facultar-lhe o papel que manuscrevera com os procedimentos a observar no aumento de capital, assim impedindo que fosse fotocopiado;

- Seguiu-se o que a arguida terá dito, no próprio dia 4 de Janeiro de 2012, no posto da GNR, relevando apenas a parte em que terá dito que o assistente se estava a vingar porque o filho da arguida tinha mudado os seguros para outro mediador [a queixa da arguida, de fls. 3 a 4 destes autos, refere, objectivamente, que em Junho de 2011 a empresa por si representada retirou todos os seguros que possuía na empresa do assistente e que este, incomodado, não mais voltou a prestar informações correctas];

- Refere que, depois, em 18 de Janeiro de 2012 a arguida disse que o TOC [o assistente] era um vigarista e que não colaborava porque se estava a vingar por ter tirado os seguros e por o filho da arguida o ter destratado, que em 31 de Janeiro de 2012 foi acusado pela arguida de lhe ter roubado uma pasta, e que em 2 de Fevereiro de 2012 teve conhecimento de que andava a divulgar que tinha sido expulso da OTOC por ter sido acusado em três processos disciplinares, pela prática de actos contrários à deontologia profissional, pela não realização de descontos para a segurança social de empresas clientes e pela apropriação de descontos feitos.

Neste aditamento, são irrelevantes, além do mais, a ‘voz alta e austera’ com que a arguida terá destratado a colaboradora do assistente, precisamente porque, a haver algum ofendido neste segmento, sempre seria a dita colaboradora, bem como, a forma como a arguida continuou a ‘manifestar cada vez mais austeramente o teor da sua indisposição’, agora ao assistente. Com efeito, uma forma de comunicação austera, ainda que em voz alta, é apenas e só, isso, não sendo subsumível a qualquer tipo legal e portanto, susceptível de procedimento criminal.

No segmento em que se refere ter a arguida insinuado compensar quem com ela colaborasse e ter ameaçado o assistente de que o iria difamar e injuriar através da imputação de factos ofensivos da sua honra e consideração profissional caso não colaborasse com ela, podendo relevar, respeitam a ilícitos típicos de outra natureza – ameaça – que não, de natureza particular [estes apenas aqui são referidos, embora não traduzidos em factos mas apenas como categoria normativa, enquanto mal ameaçado].

Já no segmento em que se refere ter a arguida dito que o assistente se estava a vingar por lhe terem tirado os seguros e por ter sido maltratado pelo seu filho, ter a arguida chamado o assistente de vigarista, ter a arguida dito que o assistente lhe tinha roubado uma pasta e ter a arguida propalado que o assistente tinha problemas disciplinares com a respectiva Ordem pelo não cumprimento dos seus deveres profissionais e deontológicos, estão efectivamente em causa factos susceptíveis de relevarem em sede de crimes contra a honra.

Procedendo agora a uma análise comparativa, da queixa e respectivo aditamento, por um lado, e da acusação particular, por outro, torna-se evidente que nesta constam expressões atribuídas à arguida que não integram o conteúdo daquelas, designadamente, que a arguida disse ao assistente ou a ele se dirigindo:

- Ó M..., tu não me enganes, tu és incompetente, tu já tens feito outras asneiras M..., porque o meu filho também já te disse para ires apanhar no cu com esses gajos do INCI, a minha empresa não deve nada a ninguém;

- Tu és um ladrão;

- Que era um ladrão como os outros do INAC, culpando-o de ser o causador da falência da empresa.   

   

Sendo inquestionável que o assistente não incluiu estes factos, nem na queixa, nem no aditamento posterior, há que conhecer das consequências desta omissão.

Já vimos que na queixa, o lesado está obrigado a transmitir factos, entendidos no sentido que supra se deixou exposto e não, a indicar qualificações jurídicas [até porque pode não ser, e muitas vezes, não é, um jurista].

Os factos que transmite ou comunica na queixa são aqueles pelos quais pretende que seja promovido o respectivo procedimento criminal. Aqueles, e não quaisquer outros que venham a apurar-se no decurso do inquérito. Estes, os novos factos, terão que ser objecto de queixa tempestiva [preferindo-se, objecto de aditamento à primitiva queixa], para que, por eles também possa ser movido o procedimento criminal, e isto, independentemente de poderem ou não comungar, com os factos levados à queixa inicial, a mesma qualificação jurídica.

Deste modo, a inexistência de correspondência entre os factos que constam da queixa e seus eventuais aditamentos e os factos que o lesado, já constituído assistente, levou à acusação particular, traduz-se na falta da condição de procedimento pressuposta pelo art. art. 50º, nº 1 do C. Processo Penal.

Mas esta correspondência não significa uma exigência de absoluta coincidência entre os factos objecto da queixa e os factos levados à acusação particular. Na verdade, apenas não é de aceitar que as discrepâncias verificadas constituam desvirtuamento do núcleo essencial dos factos objecto da queixa.

Aqui chegados, para além da qualificação de um cidadão como incompetente, num contexto de específicos actos integradores do exercício da profissão não conter, em nosso entender, carga injuriosa ou difamatória, embora seja, obviamente, ofensiva, susceptível de exigir tutela penal, e de a alegada repetição, pela arguida, do que o seu filho terá dito ao assistente e gajos do INCI para irem fazer, supra transcrita, constituir apenas, como cremos, grosseria e falta de educação, temos que, nem estes, qualificativo e expressão, nem o chamar o assistente de ladrão, este, sim, eivado de intensa carga injuriosa, nem directa, nem indirectamente, foram mencionados na queixa ou no seu aditamento, e o último não pode relacionar-se com o roubo da mala, mencionado no aditamento, até porque quase três semanas separam a respectiva ocorrência.

Em suma, só pode ser levado à acusação particular, deduzida em crime de natureza particular, em sentido estrito, o facto transmitido na respectiva queixa, pressuposta a sua relevância jurídico-penal. Quando tal não acontece, quando não existe correspondência – com a amplitude supra delimitada – entre o facto transmitido na queixa e o facto acusado, resta concluir pela não verificação da mencionada condição de procedimento.

1.3. E ter-se-á verificado o efeito do caso julgado invocado pelo assistente.

É certo que por despacho de fls. 135 e verso, já transitado, se procedeu ao saneamento do processo e, recebendo-se a acusação particular, foi designado dia para julgamento. Sucede que o saneamento foi meramente tabelar.

Nos termos do disposto no art. 595º, nº 3 do C. Processo Civil, aplicável ex vi, art. 4º do C. Processo Penal, aquele despacho só constituiu caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas.

Assim, não tendo a questão da condição de procedimento, in casu, da legitimidade para o procedimento, sido conhecida no despacho proferido nos termos do art. 311º do C. Processo Penal, não existe caso julgado formal sobre ela. 

1.4. Em conclusão do que fica dito, não merece censura este segmento da sentença impugnada, improcedendo as conclusões supra identificadas.

*

Da incorrecta utilização pela Mma. Juíza dos poderes conferidos pelos arts. 322º e 323º do C. Processo Penal e da repetição do julgamento

2. Alega o assistente – conclusões XIII a XV – que o tribunal a quo ultrapassou os poderes conferidos pelos arts. 322º e 323º do C. Processo Penal, limitando o âmbito das suas declarações pelas sucessivas interrupções que fez às instâncias do seu Mandatário, impedindo o pleno esclarecimento da natureza do documento que a arguida afirmava ter-lhe sido roubado, e demais expressões injuriosas, pelo que deve ser repetido o julgamento. No corpo da motivação o assistente, afirmando a exigência de um critério justo e igual para todos os intervenientes, para que o tribunal de recurso sindicasse o critério adoptado pela Mma. Juíza a quo, transcreveu, diz, o início das suas declarações e da arguida, e dos respectivos Mandatários, para depois concluir pela falta de critério justo e equilibrado quanto à igualdade de direitos, já que a todos, menos a si, falar livremente sobre as questões contabilísticas que conduziram à dissensão com a arguida, indicando como norma de suporte da pretendida repetição do julgamento, o art. 412º, nº 3, c) do C. Processo Penal, esclarecendo ainda que o seu Mandatário não usou do direito de protesto porque a audiência estava a ser gravada, relegando a questão para o recurso, se este viesse a ocorrer.

Vejamos.

Como é sabido, o recurso é uma das formas de reacção previstas na lei contra decisões judiciais, por quem, com elas, se sinta prejudicado. Mais especificamente, o recurso é o meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por parte de um tribunal hierarquicamente superior (Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 6ª Edição, 2007, pág. 24).

Por outro lado, os actos decisórios dos juízes revestem a forma de despachos e sentenças (art. 97º, nº 1 do C. Processo Penal) e só estes são recorríveis (art. 399º do mesmo código).

O assistente, com a concreta questão que submete ao conhecimento do tribunal da Relação, não sindica uma qualquer decisão da Mma. Juíza a quo, que tenha revestido uma das duas formas referidas designadamente, não aponta qualquer erro, nesta sede, à sentença recorrida. Pelo contrário, o que o assistente pretende é que o tribunal ad quem sindique um determinado comportamento na condução dos trabalhos no decurso da audiência de julgamento.

Se entendia que tal condução violava, de alguma forma, os seus direitos de defesa, seria aí, na audiência de julgamento que teria que invocar a nulidade ou irregularidade que entendia estar a ser cometida, cabendo da decisão que sobre ela tivesse recaído o competente recurso. E se porventura, se tivessem verificado os pressupostos do direito de protesto previsto no art. 75º, nº 2 Estatuto da Ordem dos Advogados, haveria tão só que lavrá-lo em acta, com os legais efeitos.

Como nem uma nem outra hipótese ocorreram, e o recurso tem que ter por objecto uma decisão judicial e não a conduta de um magistrado, carece de fundamento a pretendida repetição do julgamento, sendo certo que a norma invocada pelo assistente é, salvo o devido respeito que é muito, inadequada ao fim visado.         

Em conclusão, improcedem as conclusões supra identificadas.

*

Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto e consequente condenação, crime e cível, da arguida

3. Alega o assistente – conclusões XVI a XXII – que, face às suas declarações e aos depoimentos das testemunhas F..., G... e H..., existem factos não provados que deveriam constar dos factos provados da sentença recorrida, a saber:

Factos ocorridos 4 de Janeiro de 2012

- [1.1] Foi explicado pelo assistente, no fim do ano de 2011, à arguida que por notificação do INCI, em face da existência de capitais próprios negativos no ano de 2010, teria de fazer um aumento de capital na sociedade, com a realização efectiva do montante correspondente ao aumento na conta bancária da sociedade, para que não lhe fosse retirado o alvará por aquela entidade;

- [1.2] Como a realização efectiva capital correspondente a tal aumento não foi efectuada de forma a que o mesmo ficasse disponível, e perante a arguida dirigindo-se ao assistente disse-lhe que era um "vigarista" e "incompetente";

- [1.3] A arguida nesse mesmo dia disse ao assistente para "ir levar no cu mais os gajos do INCL";

- [1.4] Quando a arguida neste dia 04/01/2012 profere tais expressões "vigarista" e "incompetente" e para o Assistente "ir levar no cu mais os gajos do INCI", age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente;

- [1.5] A arguida antes de se ir embora do referido escritório, amarfanhou um papel que tinha consigo, o qual era disputado pelo assistente;

- [1.6] A arguida nesse mesmo dia, retirou-se do escritório do assistente, lá deixando uma pasta com documentos que lhe pertenciam;

- [1.7] Tal pasta foi entregue pelo assistente no posto da GNR de Montemor-o-Velho, no dia 04/01/2012;

- [1.8] Em queixa apresentada pela arguida A... no posto da GNR de Montemor-o-Velho e assinada por esta, a Fls. 3 dos autos consta que a pasta reclamada por esta, se encontrava naquele posto, entregue pelo assistente e lhe foi devolvida naquele acto (parte final de fls 4 ).

Factos ocorridos em 18 de Janeiro de 2012

- [2.1] Tal encontro tinha sido previamente acordado entre o assistente e a arguida para entrega de pastas e pagamento dos serviços de contabilidade, em face do termo da prestação de assistência e serviços de contabilidade por parte do assistente;

- [2.2] Nesse mesmo dia a arguida disse que o assistente era um "ladrão" "vigarista" e "incompetente" e que "tinha sido o causador da falência da sua empresa";

- [2.3] Quando a arguida neste dia 18/01/2012 profere tais expressões "vigarista" e "ladrão" e que o Assistente "tinha sido o causador da falência da sua empresa", age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente.

Pretende ainda o assistente que seja aditado à matéria de facto provada um novo facto com a seguinte redacção:

- [3.1] Quando a arguida em carta datada de 31/01/2012 e afirma que este «roubou uma mala com documentos», sabendo que tal imputação era falsa, age livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta não lhe é permitida, com o intuito de ofender a honra e consideração do assistente.     

E conclui que, com a pretendida modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto, se verifica a tipicidade da conduta da arguida, impondo-se, em consequência, a sua condenação, crime e cível.

 

No corpo da motivação o assistente transcreveu os segmentos das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas identificadas, nas quais funda a impugnação de facto deduzida.

Mostra-se assim cumprido o ónus de especificação previsto no art. 412º, nº 3, a) e b) e 4, do C. Processo Penal, pelo que não existe impedimento ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto, com o objecto que lhe foi fixado pelo assistente.    

3.1. Como ponto prévio, cumpre dizer que as palavras «incompetente» e «ladrão» e as expressões «ir levar no cu mais os gajos do INCI» e «tinha sido o causador da falência da sua empresa», contrariamente ao pretendido pelo assistente, não foram consideradas como não provadas na sentença recorrida. O que aconteceu é que, pura e simplesmente não foram consideradas, por não terem sido objecto de queixa.

Decidiu-se no ponto 1. que antecede, não merecer censura este segmento da sentença. Por isso, os factos objecto da impugnação serão expurgados dos elementos excluídos.

i) O facto supra identificado como 1.1 não constava da acusação particular e, mesmo que, em tese, possa resultar da discussão da causa, é irrelevante para a sua decisão, tratando-se de facto incidental, destinado a enquadrar a conduta da arguida ao apodar o assistente do que é referido no facto 1.2 que se lhe segue. Poderia ter tido alguma utilidade em sede de audiência de julgamento, mas é, em si mesmo, indiferente para a solução de direito.

Assim, porque não integra o objecto do processo, tal como o define o art. 339º, nº 4 do C. Processo Penal, não deve tal facto ser aditado à matéria de facto provada.

ii) O facto supra identificado como 1.2, no segmento «Como a realização efectiva capital correspondente a tal aumento não foi efectuada de forma a que o mesmo ficasse disponível, e perante(…)», também não constava da acusação particular. Este segmento é a continuação do enquadramento dado pelo facto 1.1 pelo que, precisamente pelas razões mencionadas em i), não deve ser aditado à matéria de facto provada.

Não havendo a considerar a palavra «incompetente», resta a palavra «vigarista», atribuída à arguida, dirigindo-se ao assistente, matéria que foi levada ao ponto 1.1. dos factos não provados da sentença.

Nos segmentos do depoimento da testemunha F..., transcritos no corpo da motivação [nos termos e para os efeitos do art. 412º, nº 4 do C. Processo Penal], não é feita qualquer referência à palavra «vigarista» como sendo uma das que a arguida chamou ao assistente.

Já a testemunha G..., nos segmentos do seu depoimento transcritos no corpo da motivação, afirmou, em dois distintos momentos, que a arguida chamou o assistente de «vigarista».

Da motivação de facto da sentença resulta que a convicção do tribunal quanto ao ponto 1.1. dos factos não provados se fundou nas declarações da arguida, que negou ter chamado o assistente de «vigarista» e nas declarações do assistente, que afirmou o facto, conjugadas com o depoimento da testemunha F... que não afirmou que tal tenha sucedido no dia 4 de Janeiro de 2012 [apenas o afirmou quanto ao dia 18 de Janeiro de 2012], e com a ponderação do depoimento da testemunha G... [que afirmou o facto] que foi considerado como produzido num ‘registo manifestamente inconsistente’.  

Aqui chegados, impõem-se algumas considerações breves sobre a valoração da prova.

A verdade material, cuja descoberta é o fim de todo e qualquer processo penal, não é uma verdade absoluta, mas uma verdade judicial, prática e, sobretudo, processualmente válida (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 194). Na sua busca o tribunal está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, assim formulado no art. 127º, do C. Processo Penal: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.».

Este princípio não atribui ao julgador o poder de valorar a prova determinado por um convencimento exclusivamente subjectivo. A ‘livre convicção’ não significa arbítrio ou decisão irracional. Pelo contrário, a valoração da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência e na percepção da personalidade dos declarantes e depoentes, tendo como horizonte a dúvida inultrapassável que conduz ao princípio in dubio pro reo, devendo da conjugação de todos estes elementos resultar uma convicção objectivável e motivável, únicas características que permitem que a decisão se imponha, dentro e fora do processo. Note-se, porém, que esta convicção é também uma convicção pessoal, na medida em que nela têm papel de relevo, para além da actividade meramente cognitiva, elementos não racionalmente explicáveis, como a própria intuição, e mesmo elementos exclusivamente emocionais (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 205 e Lições de Direito Processual Penal, pág. 135 e ss).

A convicção do tribunal resulta assim da conjugação dos dados objectivos consubstanciados nos documentos e em outras provas constituídas, com as impressões proporcionadas pela prova por declarações, tendo em conta a forma como esta foi produzida, relevando designadamente, a razão de ciência dos declarantes e depoentes, a sua serenidade e distanciamento, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem e cultura, os sinais e reacções comportamentais revelados, a coerência ou falta dela, do seu raciocínio. Esta conjugação só é possível de alcançar, no grau desejável, pela imediação e oralidade pois só o contacto directo do julgador com a prova, o ‘frente a frente’ entre o juiz e a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.

O princípio da livre apreciação da prova vigora em todas as instâncias que conhecem de facto, mas há que reconhecer a substancial diferença entre a valoração da prova por declarações efectuada na 1ª instância e a apreciação que sobre ela pode ser feita pelo tribunal de recurso, limitado que está à audição – mais raramente, à visualização – das passagens concretamente indicadas pelos intervenientes processuais e de outras, eventualmente consideradas relevantes, e nesta medida, incapaz de apreender, em grande parte, os elementos atrás enunciados, por impossibilidade do seu registo audio, elementos que, porém, foram apreendidos, interiorizados e valorados na sua globalidade por quem os presenciou ou seja, pelo juiz do julgamento. Esta a razão pela qual, quando a 1ª instância atribui [ou não] credibilidade a uma fonte de prova por declarações, fundando a opção tomada na imediação, o tribunal de recurso, em princípio, só a deva censurar se for feita a demonstração de que a opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum. Por isso, o art. 412º, nº 3, b) do C. Processo Penal exige a indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, não se bastando com provas que permitam uma decisão diversa da recorrida. 

Dito isto.

A circunstância de a testemunha F... não ter referido a prática do facto pela arguida no dia 4 de Janeiro de 2012 [tendo embora afirmado a prática de facto idêntico no dia 18 do mesmo mês] e a negação da arguida, retiram força probatória ao depoimento da testemunha G..., quando afirma a prática do factos em ambos os dias o que, aliado à apreciação global feita ao seu depoimento pela Mma. Juíza, necessariamente moldada pela imediação do mesmo na audiência de julgamento, e a não evidenciação da violação de qualquer regra da experiência que afecte a razoabilidade da decisão, conduzem-nos à conclusão de que, não só a decisão de facto quanto ao ponto 1.1. dos factos não provados, no segmento relativo a ter a arguida apodado o assistente de «vigarista», se mostra conforme a prova produzida valorada à luz do art. 127º do C. Processo Penal, como também os meios de prova especificados pelo assistente como impondo decisão diversa da recorrida, são insusceptíveis de atingirem este objectivo.

Improcede pois nesta parte, a pretensão do assistente.

iii) O facto supra identificado como 1.3 não constava da acusação particular com a redacção agora pretendida pelo assistente, mas com redacção aproximada.

Em qualquer caso, porque se encontra abrangido pelo que se decidiu no ponto 1. que antecede, não pode agora ser aditado.

Improcede pois nesta parte, a pretensão do assistente.

iv) O facto supra identificado como 1.4, porque referente ao dolo dos factos identificados como 1.1. a 1.3, tem, necessariamente, que seguir o mesmo destino destes o que significa que, não devendo estes, pelas razões expostas, ser aditados à matéria de facto provada, também aquele o não pode ser.

Improcede pois nesta parte, a pretensão do assistente.

v) Os factos identificados, supra, como 1.5 a 1.8 não constavam da acusação particular.

O facto 1.5 e o facto 1.6, independentemente da respectiva prova, são irrelevantes para a boa decisão da causa e por isso, não devem ser aditados.

O facto 1.7 e o facto 1.8, porque referentes, indirectamente, ao teor da carta de 31 de Janeiro de 2012, manuscrita pela arguida e enviada ao assistente, referida no ponto 3 dos factos provados da sentença, podendo contribuir para a delimitação da questão a decidir, relevam para a boa decisão da causa.

Nos segmentos dos depoimentos das testemunha F... e G..., transcritos no corpo da motivação, não é feita qualquer referência à entrega de uma pasta da arguida, feita pelo assistente, no posto da GNR.

Acontece que o meio de prova essencial para a demonstração do facto é levado pelo assistente, numa opção que, ressalvado sempre o devido respeito, nos parece pouco curial, ao próprio facto 1.8, que refere a queixa de fls. 3 e seguintes, apresentada pela arguida na GNR.   

Efectivamente, no designado auto de denúncia de fls. 3 a 4, elaborado pelas 10h27m do dia 5 de Janeiro de 2012, no posto da GNR de Montemor-o-Velho, por um militar desta força, consta o seguinte, a fls. 4: «No acto da apresentação da queixa-crime foi entregue à denunciante a pasta com os documentos que havia sido entregue neste posto pelo denunciado, faltando um papel manuscrito por ele, com instruções para ela se deslocar ao Banco a fim de fazer o aumento de capital.».  

Por outro lado, tendo o tribunal da Relação ouvido a gravação do depoimento da testemunha F..., pôde constatar ter este afirmado [circa 00:05:31 do depoimento] que, após a arguida ter saído do escritório do assistente, o aconselhou a levar a pasta daquela à GNR, o que fizeram. E que o assistente esteve no posto da GNR no dia 4 de Janeiro de 2012, pelas 16h44, resulta do auto de denúncia de fls. 3 e verso do inquérito 13/12.0GAMMV, apenso.   

Não restam, portanto, dúvidas de que no dia 4 de Janeiro de 2012 o assistente entregou uma pasta da arguida no posto da GNR, pasta que no dia seguinte foi entregue, por esta autoridade, à respectiva proprietária.

Assim, procede parcialmente a pretensão do assistente, devendo aditar-se aos factos provados da sentença, um novo facto – facto 9. – com a seguinte redacção:

- No dia 4 de Janeiro de 2012, o assistente entregou no posto da GNR de Montemor-o-Velho uma pasta com documentos, pertencente à arguida, pasta que aquela autoridade restituiu à proprietária no dia seguinte

   vi) O facto supra identificado como 2.1 não constava da acusação particular. Ainda que possa resultar da discussão da causa, é um facto absolutamente irrelevante para a sua decisão, pois a descrição de enquadramento já consta do ponto 2. dos factos provados da sentença com suficiente pormenor.

Deste modo, não deve tal facto ser aditado à matéria de facto provada.

vii) Ao facto supra identificado como 2.2, no que se refere à palavra «ladrão» e à expressão «tinha sido o causador da falência da sua empresa», porque ambas se encontram abrangidas pelo decidido em 1. que antecede, não podem agora ser aditadas, pelo que terá que improceder esta pretensão do assistente.

Resta a palavra «vigarista», atribuída à arguida, dirigindo-se ao assistente, matéria que foi levada ao ponto 2.2. dos factos não provados da sentença.

 

  A testemunha F..., nos segmentos do seu depoimento transcritos no corpo da motivação, afirma uma vez, que a arguida chamou o assistente de vigarista.

Também a testemunha G..., nos segmentos do seu depoimento transcritos no corpo da motivação, afirma uma vez, que a arguida chamou o assistente de vigarista.

E o mesmo sucede com os segmentos transcritos do depoimento da testemunha H..., que afirma uma vez, que a arguida chamou o assistente de vigarista.

Da motivação de facto da sentença resulta que a convicção do tribunal quanto ao ponto 2.2. dos factos não provados se fundou nas declarações da arguida, que negou ter chamado o assistente de «vigarista» e nas declarações do assistente que afirmou o facto, conjugadas com o depoimento da testemunha F... que afirmou ter presenciado a prática do facto no dia 18 de Janeiro de 2012, com o depoimento da testemunha H... que também afirmou ter presenciado o facto, com a ponderação do depoimento da testemunha G..., considerado como produzido num ‘registo manifestamente inconsistente’, mas que afirmou igualmente ter presenciado o facto, e ainda com os depoimentos das testemunhas J... e L..., dizendo o primeiro, não ter ouvido expressões injuriosas e nada ter ocorrido digno de registo, e o segundo, ter havido troca de palavras, não ter presenciado qualquer facto digno de registo e não ter ouvido injúrias.

É assim claro que ao tribunal a quo foram trazidas duas versões completamente opostas. Uma, sustentada pelo assistente e pelas testemunhas F..., G... e H..., segundo a qual a arguida chamou o assistente de «vigarista», e outra, sustentada pela arguida e pelas testemunhas J... e L..., segundo a qual tal não aconteceu. E perante estas versões contraditórias entendeu ser incapaz de ultrapassar a dúvida.

O tribunal da Relação ouviu os depoimentos das testemunhas supra identificadas, apesar da transcrição da prova por declarações que o assistente juntou à sua motivação de recurso.

Dessa audição resultou que as testemunhas F..., G... e H... afirmaram que no dia em questão [mais ou menos precisado] a arguida, no escritório do assistente, onde todos se encontravam, o chamou de «vigarista».   

O depoimento da testemunha F... [ouvido integralmente] pareceu-nos sereno, seguro e concordante em todas as suas fases. Nele não se manifesta qualquer sinal de animosidade para com a arguida [sendo aliás, patente a tendência para desculpar o comportamento que lhe atribuiu, com o estado de enervamento em que se encontraria] e não descortinamos motivo válido para questionar a sua razão de ciência.  

O depoimento da testemunha G... [ouvido integralmente] – único que o tribunal recorrido, de certa forma, desconsidera, ao dizer que foi feito num ‘registo manifestamente inconsistente’ – tanto quanto a respectiva gravação permite a imediação da prova, pareceu-nos igualmente sereno e seguro, quanto a ter a arguida chamado o assistente de «vigarista», apenas tendo revelado a testemunha alguma dificuldade de expressão quanto ao que, em determinada altura do depoimento, especificamente lhe era solicitado que reproduzisse [o que a arguida teria dito que o filho dizia do assistente e de um determinado organismo], aspecto que se veio a revelar, aliás, alheio ao objecto do processo [pelo decidido em 1.], sendo certo que também quanto a esta testemunha não detectámos motivo válido para questionar a sua razão de ciência. 

Também o depoimento da testemunha H... [ouvido integralmente] nos pareceu sereno e seguro quanto a ter a arguida chamado o assistente de «vigarista», não se descortinando motivo para questionar a sua razão de ciência. 

Já a apreciação crítica feita na motivação de facto dos depoimentos das testemunhas J... e L... suscita algumas dificuldades. Explicando.

A testemunha J... começou por dizer que não tinha acontecido nada de anormal para logo referir que houve umas desavenças que eles diziam que se tinha passado noutro dia. Depois esclareceu que se encontrava presente a pedido da arguida e logo reafirmou a ideia de nada digno de registo se ter passado, para de imediato referir que o assistente disse à arguida «Esteve cá e disse que ele é um vigarista.» e ela disse, «Não, quem é um vigarista eras tu.», tudo isto sem que, em seu entender [assim afirmou a instâncias da Ilustre Defensora da arguida], tenha existido discussão entre ambos. Mais adiante esclareceu que quando chegou ao escritório do assistente já aí se encontrava a arguida, desconhecendo o que se possa ter passado antes, mas quando chegou ao escritório, a arguida estava com a testemunha L... que lhe dizia que era preciso ter calma pois era com calma que as coisas se resolviam. Finalmente [a instâncias da Mma. Juíza Presidente] disse que não ouviu então a arguida proferir palavras ofensivas designadamente, a palavra «vigarista», mas ter ouvido eles mencionarem que isso tinha acontecido noutro dia, e que neste dia apenas ouviu a arguida dizer que o assistente não tinha feito a escrita em condições. Convenhamos que este depoimento, na sua objectividade, revela uma testemunha esforçada no não comprometimento da posição da arguida. Com efeito, não se vê como não houve altercação quando, segundo a testemunha, a arguida e o assistente discutiam por a primeira ter chamado ao segundo, dias antes, «vigarista», quando a testemunha L... recomendava calma à arguida e quando a arguida sempre punha em questão a qualidade dos serviços prestados pelo assistente. Acresce, agora numa outra perspectiva, que a própria testemunha reconheceu não ter presenciado todos os acontecimentos.

A testemunha L... começou por esclarecer que se tinha dirigido ao escritório do assistente, a pedido da arguida, para testemunhar a entrega das pastas da contabilidade. Disse depois, que houve uma troca de palavras entre o assistente e a arguida, não tendo constatado nada de anormal, e a instâncias da Mma. Juíza Presidente sobre se ouviu palavras ofensivas à arguida, disse [circa 00:11:28 do depoimento] «a dado momento, nas palavras que estavam a ser trocadas entre ambos, verifiquei algum nervosismo por parte da D. A..., talvez por antecedentes que tivessem, portanto, tido acerca desse assunto, mas palavras em concreto, enfim, assim, portanto, que eu ficasse com elas registadas não, sinceramente, não me lembro.». Referiu, em seguida, que conversa anterior que tinha tido com a arguida lhe fizera antever a existência nervosismo nesta, mas que a mesma, quando entrou no escritório, estava, aparentemente calma, mas que, com a troca de palavras com o assistente, apenas se recorda de pedir calma à arguida, para não estar nervosa pois nada adiantaria. Perguntado pela Mma. Juíza Presidente sobre se tinha ouvido a arguida chamar o assistente de «vigarista» disse não se recordar de ter ouvido essa palavra, e perante a insistência sobre se não recordava ou se a palavra [e outras] não foi proferida, disse [circa 00:16:05 do depoimento], «Não digo que não proferisse, eu não posso confirmar que as ouvi, portanto, nesses termos, portanto, como foram várias as palavras trocadas pela D. A... e pelo Sr. M..., portanto, referiam-se a coisas do passado …». E a nova insistência sobre se, caso tivesse sido dita a palavra, ela teria ficado registada no seu subconsciente, a testemunha respondeu à Mma. Juíza Presidente [circa 00:17:45 do depoimento], «Tudo depende da atenção com que eu estivesse às palavras que estavam a ser trocadas mas como o meu (…) o meu objectivo e a minha preocupação foi a passagem das pastas para a mão da D. A... e foi isso, pura e simplesmente, que eu me preocupei de, portanto, de verificar, o resto, enfim …». Mais adiante, a instâncias do Ilustre Mandatário do assistente, disse que tinha ido ali não para assistir a discussões e trocas de insultos e finalmente, a instâncias da Ilustre Defensora da arguida disse que tinha havido troca de galhardetes, não logrando concretizar, a insistência da Mma. Juíza Presidente, o conteúdo dessa troca, referindo dificuldades de memória, por doença. Em suma, um depoimento sobre o qual paira a existência de uma discussão entre arguida e assistente – que até seria normal, dado o conflito profissional instalado – nunca admitida pela testemunha, apesar de reconhecer o nervosismo da arguida, o seu aconselhamento à calma, e a troca de palavras, ou de galhardetes entre os intervenientes, que não memorizou, por não estar ali para isso, mas para testemunhar a entrega das pastas da contabilidade, ainda que não tenha afastado a possibilidade de a arguida ter chamado «vigarista» ao assistente ou seja, também este um depoimento onde é patente a preocupação em não comprometer a posição da arguida.

Ora, perante três depoimentos, aparentemente serenos e seguros e por isso, credíveis, concordantes no sentido de que, no dia 18 de Janeiro de 2012, no escritório do assistente, este foi chamado de «vigarista», e dois depoimentos que foram incapazes de afirmar que a arguida, no mesmo circunstancialismo, não chamou o assistente de «vigarista», para além das declarações do arguido, que afirmou o facto e das declarações da arguida que o negou, não consideramos razoável a dúvida que assolou o tribunal recorrido sobre o que efectivamente aconteceu.

A prova produzida, analisada à luz do art. 127º do C. Processo Penal aponta no sentido de que a arguida praticou o facto, pelo que procede a pretensão do assistente.

Assim, o ponto 2.2. dos factos não provados passa a ter a seguinte redacção:

- No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida no escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, de viva voz, perante terceiros, dirigindo-se ao assistente disse-lhe para ir para o "caralho".

E o ponto 2. dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:

- No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida dirigiu-se ao escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, para tratar de assuntos relacionados com a contabilidade da empresa do seu filho, de que o assistente era contabilista, tendo-se ambos evolvido em discussão no decurso da qual a arguida chamou o assistente de «vigarista».

vii) Os factos identificados supra como 2.3. e 3.1. referem-se ao dolo do crime de injúria imputado à arguida.

O dolo – o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade [em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal] – é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo, não directamente apreensível por terceiro e por isso, a sua demonstração probatória, quando não exista confissão, não pode ser feita directamente, designadamente, através de prova testemunhal.

Nestes casos, a prova do dolo só pode ser feita por inferência, terá que resultar da conjugação da prova de factos objectivos – em especial, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum. E as regras da experiência são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 30) ou, dito de outra forma, são regras que exprimem o que sucede na generalidade dos casos isto é, são regras extraídas de casos semelhantes (cfr. Ac. do STJ de 7 de Abril de 2011, proc. nº 936/08.0JAPRT.S1, in www.dgsi.pt).   

O crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal é um crime doloso, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que o preenchimento do respectivo tipo se basta com o dolo eventual (cfr. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 936) não sendo, portanto, exigível a verificação de um dolo específico, do animus injuriandi. Por outro lado, tratando-se de um crime de perigo, o dolo traduz-se previsão ou consciência do perigo, perigo este que, no tipo em análise, é um perigo abstracto-concreto isto é, o perigo referido ao modo de ser objectivo da acção (cfr. Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Almedina, pág. 56).

Na carta em questão, sobre cuja autoria não se suscitaram dúvidas, que a arguida enviou ao assistente e este leu, afirmou a subscritora que o destinatário lhe roubou uma mala com documentos, o que vale dizer que imputou ao assistente a prática um ‘roubo’, estando o termo usado no sentido impróprio mas popular, sinónimo de ‘furto’ ou seja, imputou ao assistente a prática de um crime contra o património. Esta afirmação escrita traduz-se, objectivamente, na imputação ao visado de um facto ofensivo da honra e consideração e por isso, na medida em que também não vem questionado que a arguida desconhecesse o significado da mesma, preenche o tipo objectivo do crime de injúria, posto que feita directamente ao lesado (arts. 181º, nº 1 e 182º do C. Penal). Ora, se a arguida escreveu a carta com aquele específico conteúdo e a fez chegar ao assistente, o que as regras da experiência comum, as regras de normalidade nos dizem é que, através da carta, quis imputar, como imputou, ao assistente, a prática de um crime, sabendo, como qualquer cidadão medianamente atento saberia, que tal imputação atentaria contra a honra e consideração àquele devidas.

Por outro lado, não se coloca a possibilidade de a arguida estar convencida de que o assistente lhe havia subtraído a pasta, na altercação havida no escritório deste, pela simples e decisiva razão de que, no próprio dia em que disse ter sido desapossada do bem, o assistente entregou-o GNR que, por sua vez, o entregou à proprietária, no dia seguinte conforme ponto 9 dos factos provados, aditado nos termos que ficaram referidos em v), o que, afastando a prova da verdade da imputação (cfr. art. 180º, nº 2, b) do C. Penal), permite concluir pela conhecimento da arguida pela ilicitude da sua conduta [se bem percebemos o raciocínio exposto na análise crítica da prova que consta da motivação de facto, é ao nível das causas de justificação, que a Mma. Juíza a quo – invocando as declarações da arguida e da testemunha Q... (esta, quanto aos factos, nada revelou saber) como sustentando a versão de que o assistente retirou a pasta à primeira e recusou a sua devolução, e invocando as declarações do assistente e o depoimento da testemunha G..., sustentando a versão de que a arguida esqueceu a pasta no escritório do assistente – colocou a questão da dúvida por si afirmada isto é, não, propriamente, ao nível do dolo, embora tenha concluído pela ausência da respectiva prova, mas ao nível da subtracção ou não da mala pelo assistente].

Por seu turno, a palavra «vigarista», cujo significado comum é o de burlão, dirigida pela arguida ao assistente traduz-se, objectivamente, na imputação ao visado de uma qualidade ofensiva da honra e consideração e por isso, não vindo questionado que a arguida desconhecesse o significado da mesma, preenche o tipo objectivo do crime de injúria. 

E se a arguida quis dizer o que disse, conhecendo o seu significado, as regras da experiência comum, as regras de normalidade impõem a conclusão de que quis imputar, como imputou, ao assistente, aquela qualidade, sabendo, como qualquer cidadão medianamente atento saberia, que ao fazê-lo atentaria contra a honra e consideração àquele devidas.

 

Deve, portanto, ser deferida a pretensão do assistente.

Assim, o ponto 3.3. dos factos não provados passa a ter a seguinte redacção:

- A arguida com a conduta referida em 1.1. e 2.2. supra, agiu livre, voluntaria e conscientemente, com o propósito declarado de ofender o assistente na sua honra, consideração, brio e competência profissionais, bem sabendo da idoneidade de tais expressões a tanto, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.  

E é aditado aos factos provados da sentença, um novo facto – facto 3.A – com a seguinte redacção:

- A arguida, com as condutas referidas em 2. e 3. agiu livre, voluntária e conscientemente, sabem que ao assim actuar, ofendia a honra e consideração devidas ao ofendido, o que quis, bem sabendo também que tais condutas eram proibidas pela lei penal.

*

Do erro notório na apreciação da prova [tendo por objecto a carta de 31 de Janeiro de 2012, onde lhe é atribuída a prática do roubo de uma mala]

4. Alega o assistente – conclusões XXIII e XXIV – que existe erro notório na apreciação da prova relativamente à carta da arguida de 31 de Janeiro de 2012 onde o acusa do roubo de uma mala com documentos uma vez que, mesmo descredibilizando toda a prova testemunhal, a circunstância de a mala lhe ter sido devolvida pela GNR em 4 de Janeiro de 2012 e de o documento de que, pretensamente, se pretenderia apropriar [o assistente] ter sido levado pela própria arguida, só poderia conduzir a um juízo de censura jurídico-penal.

4.1. Os vícios da decisão – onde se inclui o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2, do art. 410º do C. Processo Penal, são vícios intrínsecos da sentença penal, respeitam à sua estrutura interna. Por isso a lei exige que a sua demonstração resulte do texto da decisão, por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, não sendo admissível tal demonstração através de elementos a ela alheios, ainda que constem do processo.

No âmbito da designada revista alargada, o tribunal ad quem não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova, nos termos regulados no art. 412º do C. Processo Penal –, apenas detecta os vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, reenvia o processo para novo julgamento. 

            Ocorre o erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, Vol. III, 2ª Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74).

4.2. Balizado o vício invocado, cumpriria conhecer da sua verificação na sentença recorrida. 

Sucede, porém, que a modificação operada na decisão sobre a matéria de facto designadamente, a alteração da redacção do ponto 3.3. dos factos não provados e o aditamento à matéria de facto provada dos pontos 3.A e 9, nos termos supra expostos, a existir o vício, sempre o teriam sanado, ficando prejudicado o seu conhecimento.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto, nos termos em que o foi pela 1ª instância, com as modificações introduzidas pelo recurso.

*

            Das consequências da modificação da matéria de facto na tipicidade da conduta

            5. Cumpre agora verificar se, como pretende o assistente – conclusão XXV – as modificações operadas na matéria de facto conduzem à tipicidade da conduta da arguida.

            Como se disse, na acusação particular imputava-se à arguida a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, ambos do C. Penal.

            Não tendo sofrido alteração os pontos 4.4. a 8.8. dos factos não provados da sentença, resta concluir que não se mostra preenchido o tipo, objectivo e subjectivo, do imputado crime de difamação.

           

            Já não assim no que respeita ao crime de injúria.

Estando provado – atentas as modificações feitas à matéria de facto – que a arguida chamou o assistente de «vigarista» e que lhe escreveu uma carta, que este recebeu, onde, além do mais, dizia «(…) quem deve pedir desculpas eu ao o senhor M...o qual me roubou uma mala com documentos que não lhe pertêncião sem razão para o fazer» [pontos 2 e 3 dos factos provados], agindo voluntária e conscientemente, sabem que ao assim actuar, ofendia a honra e consideração devidas ao ofendido, o que quis, bem sabendo também que tais condutas eram proibidas pela lei penal [ponto 3A dos factos provados], dúvidas não restam ter a arguida, com o seu descrito comportamento, preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime de injúria, previsto no art. 181º, nº 1 do C. Penal, punível com prisão até três meses ou com multa até 120 dias.

6. Impõe-se agora proceder è escolha e determinação da medida concreta da pena.

Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena (art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal), reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.

A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.

Frequentemente a determinação da pena, em sentido amplo, passa pela operação de escolha da pena, o que sucede, designadamente, quando o crime é punido, em alternativa, com pena privativa e com pena não privativa da liberdade. O critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C. Penal segundo o qual, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.  

É o caso, como se deixou referido, do crime de injúria. Assim, não tendo a arguida antecedentes criminais, não sendo já uma mulher jovem, estando inserida social, familiar e laboralmente, e tendo a sua conduta decorrido no âmbito de um desentendimento a nível empresarial, torna-se evidente que a opção por pena de multa dará integral satisfação às exigências de prevenção requeridas.


Passemos à determinação da medida concreta da pena de multa.

Já sabemos que ela é feita em função das necessidades de prevenção e da culpa do agente. Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal). Entre outras, haverá então que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

Posto isto.

Não é de desprezar o grau de ilicitude do facto mas não podem considerar-se graves as suas consequências.

O dolo foi intenso.

Não se mostram elevadas as necessidades de prevenção geral e não se fazem sentir as necessidades de prevenção especial, apesar de a arguida não ter assumido qualquer comportamento revelador de ter interiorizado a sua culpa.  

A arguida não tem antecedentes criminais, está inserida familiar e socialmente, e exerce uma actividade empresarial de forma regular.

Assim, atenta a moldura abstracta prevista – multa de 10 a 120 dias (arts. 47º, nº 1 e 181º, nº 1 do C. Penal) – e o que fica dito, consideramos a pena de 75 dias de multa, porque situada ligeiramente abaixo do ponto médio, adequada aos fins visados e perfeitamente suportada pela culpa da arguida.

O critério legal para a fixação do quantitativo diário da multa encontra-se fixado no art. 47º, nº 2 do C. Penal, havendo, para tanto, que atender, à situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

Por outro lado, não pode nunca esquecer-se que a multa é uma pena criminal e que por isso, para alcançar os fins para que é decretada em cada caso, tem que significar sempre um sacrifício para o condenado.

Assim, exercendo a arguida uma actividade empresarial agrícola e de suinicultura, mas não se tendo apurado os concretos rendimentos auferidos, vivendo em casa própria com o marido, que é reformado, e um filho que é empresário da construção civil, e tendo um encargo mensal de € 200 com a prestação de um empréstimo, para além, como é óbvio, das normais e regulares despesas com a satisfação de necessidades básicas, afigura-se-nos razoável fixar aquele quantitativo diário em € 7.

Em conclusão, deve a arguida ser condenada na pena de 75 dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 525.

*

            Das consequências da modificação da matéria de facto no pedido de indemnização civil

            7. Finalmente, há que verificar se, como pretende o assistente – conclusão XXVI – as modificações operadas na matéria de facto conduzem à condenação da arguida no pedido de indemnização civil [agora ‘reduzido’ a € 750].

A prática de um facto típico pode dar origem a dois tipos de reacção, uma de natureza penal, consubstanciada na aplicação da pena e outra, de natureza civil, traduzida na reparação dos danos, patrimoniais e/ou não patrimoniais, daquela prática advinda. Esta reparação civil não é um efeito da condenação criminal e por isso, está sujeita às regras que, no direito civil, regulam a indemnização por perdas e danos isto é, regulam a obrigação de indemnizar (art. 129º do C. Penal). 

São pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (art. 483º, nº 1, do C. Civil), o facto, a ilicitude, a imputação subjectiva do facto ao agente, os danos, e o nexo de causalidade entre o facto e os danos.

Dano é toda a ofensa de bens ou interesses alheios tutelados pela ordem jurídica. Os danos distinguem-se em patrimoniais, quando são susceptíveis de avaliação em dinheiro, e não patrimoniais, quando não o são (cfr. M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª Edição, Almedina, pág. 533).

A apurada conduta da arguida permite concluir que esta, dolosamente, violou o bem jurídico honra, que integra a esfera jurídica do assistente. Trata-se de um bem não patrimonial e por isso, da sua lesão, resultam, além do mais, danos não patrimoniais.

Para eles, rege o art. 496º, nº 1 do C. Civil e assim, na determinação da respectiva indemnização deverão ser atendidos os danos desta natureza que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ora, a violação operada pela conduta da arguida assumiu a intensidade suficiente para merecer tutela jurídica.

Na fixação da indemnização o tribunal deve recorrer a critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpa do agente, a sua situação económica e a do lesado (arts. 494º e 496º, nº 3 do C. Civil).

Resultando apenas provado, como dano, a violação do próprio direito à honra, sem outras manifestações exteriores, considerando que tal violação foi perpetrada por duas distintas vias, consideramos que a quantia de € 400 para compensação de tal dano – calculada à data da presente decisão – assegura e realiza a justiça do caso concreto.  

Sobre a quantia fixada incidem juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito do presente acórdão e até integral pagamento (arts. 566º, nº 2, 805º, nº 3 e 806º, nº 1, todos do C. Civil, com a interpretação dada pelo Assento nº 4/2002 (DR, I-A, nº 146, de 27 de Junho de 2002).

*

*

*

*

            III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso. Consequentemente, decidem:

A) Modificar a decisão sobre a matéria de facto:

1. Aditando aos factos provados o facto 9., com a seguinte redacção:

- No dia 4 de Janeiro de 2012, o assistente entregou no posto da GNR de Montemor-o-Velho uma pasta com documentos, pertencente à arguida, pasta que aquela autoridade restituiu à proprietária no dia seguinte

2. Aditando aos factos provados o facto 3.A com a seguinte redacção:

- A arguida, com as condutas referidas em 2. e 3. agiu livre, voluntária e conscientemente, sabem que ao assim actuar, ofendia a honra e consideração devidas ao ofendido, o que quis, bem sabendo também que tais condutas eram proibidas pela lei penal.

3. Alterando a redacção do ponto 2. dos factos provados passa a ser a seguinte:

- No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida dirigiu-se ao escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, para tratar de assuntos relacionados com a contabilidade da empresa do seu filho, de que o assistente era contabilista, tendo-se ambos evolvido em discussão no decurso da qual a arguida chamou o assistente de «vigarista».

4. Alterando a redacção do ponto 2.2. dos factos não provados que passa a ser a seguinte:

- No dia 18 de Janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, a arguida no escritório do assistente denominado " N...", sito na Rua (...) , Carapinheira, Montemor-o-Velho, de viva voz, perante terceiros, dirigindo-se ao assistente disse-lhe para ir para o "caralho".

5. Alterando a redacção do ponto 3.3. dos factos não provados que passa a ser a seguinte:

- A arguida com a conduta referida em 1.1. e 2.2. supra, agiu livre, voluntaria e conscientemente, com o propósito declarado de ofender o assistente na sua honra, consideração, brio e competência profissionais, bem sabendo da idoneidade de tais expressões a tanto, e que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.  

*

            B) Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu a arguida e demandada da prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal e do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

*

C) Condenar a arguida A..., pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de € 7 (sete euros), perfazendo a multa global de € 525 (quinhentos e vinte e cinco euros).

*

            D) Condenar a arguida A... no pagamento ao assistente da quantia de € 400 (quatrocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o trânsito do presente acórdão e até integral pagamento.

*

            E) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.

*

*

Custas pelo recorrente, atento o decaimento parcial no recurso interposto, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs. (arts. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III do R. das Custas Processuais).

*

*

Coimbra, 21 de Janeiro de 2015

(Heitor Vasques Osório – relator)

(Fernando Chaves - adjunto)