Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2560/10.9TBPBL-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
DEPENDÊNCIA
INSTRUMENTALIDADE
ACÇÃO PRINCIPAL
SENTENÇA
Data do Acordão: 03/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 362, 364 CPC
Sumário: 1. O art. 364º do Código de Processo Civil consagra as características da instrumentalidade e da dependência do procedimento cautelar relativamente à acção principal.

2. Surgindo o procedimento para servir o fim da acção principal, de que aquele depende, tal significa que a providência cautelar é emitida no pressuposto de vir a ser favorável ao autor a decisão a produzir no processo principal.

3. Proferida decisão no processo principal que indefere a pretensão do A./requerente do procedimento, embora não transitada, isso basta para indeferir a providência cautelar, não devendo o juiz, neste caso, dar cumprimento ao art. 367º do NCPC, com produção de prova, já que de prova indiciária apurada na providência cautelar não se poderá falar mais, face ao apurado e decidido na acção principal.

4. Admitir tese contrária seria desvirtuar a finalidade da providência cautelar, já que o requerente dela acabaria por conseguir com a providência aquilo que não logrou com a acção principal de que ela é dependência e no qual buscou a mesma medida, mas definitiva.

Decisão Texto Integral:




I – Relatório

1. M (…), Lda., com sede em (...) , instaurou (em 18.1.2018) procedimento cautelar comum, contra J (…) e M (…) ambos residentes em (...) , pedindo a restituição provisória da posse das divisões ilegitimamente ocupadas pelos requeridos.

Alegou, em síntese ser uma sociedade destinada à exploração de lar de idosos, e ter celebrado, para esse objectivo, contrato de locação financeira relativo a fracção autónoma designada pela letra “B” do imóvel sito na Rua

(…) , concelho de (...) . Que os requeridos ocuparam 4 divisões integrantes da fracção “B”, correspondentes a 4 arrumos, sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e 2 arrecadações, impedindo-a de usar e fruir as referidas divisões para as finalidades que lhe estavam previamente adstritas e que são essenciais à prossecução do normal funcionamento do lar. Tal lar dispõe de alvará do Instituto de Segurança Social, sendo que a conduta dos requeridos poderá determinar a perda do referido alvará, o qual, foi aprovado e emitido tendo em conta a existência daqueles espaços destinados ao funcionamento do lar de idosos. Entretanto (em 10.1.018), o referido ISS deliberou o encerramento do Lar, fixando em 30 dias o prazo para a requerente cessar a sua actividade. Que os requeridos ocupam ilicitamente parte da fracção B do imóvel, bem sabendo que lhes não pertence, causando prejuízo económico.

Os requeridos deduziram oposição, onde, em síntese, excepcionam a repetição da providência requerida, a falta de interesse processual, mais impugnando a factualidade alegada pela requerente. Requereram, também, a condenação da A. como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a 2.500 €.

A requerente deduziu resposta às excepções invocadas pelos requeridos, pugnando pela sua improcedência.

A 21.5.2018, nos autos principais, foi proferida sentença, onde se decidiu julgar a acção parcialmente procedente, declarar que as divisões identificadas como arrumos (4 divisões), sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e arrecadação, integram a Fracção “B” do imóvel sito na Rua (…), , concelho de (...) , e absolver os aí réus J (…) e M (…)dos demais pedidos formulados pela autora, ora requerente, designadamente o pedido de entrega de tais divisões e indemnização inerente.

Nessa sentença, além do decidido, entendeu-se que “não resulta demonstrada qualquer ocupação dos réus sobre a coisa reivindicada, pelo que, falecendo o segundo pressuposto acima referido, improcede a pretensão reivindicativa formulada pela Autora”.

Por entender que estava em condições de proferir decisão de mérito o tribunal a quo ouviu as partes só a requerente se tendo pronunciado.

*

Foi, depois, proferida decisão que julgou improcedente o procedimento cautelar.

*

2. A A. recorreu, tendo apresentado as seguintes longas (e meramente repetitivas do corpo das alegações) conclusões:

(…).

3. Os RR contra-alegaram, concluindo que:

(…)

II – Factos Provados

A factualidade a considerar dimana do exposto no relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade da decisão.

- Prossecução dos autos para produção de prova.

- Ampliação do objecto do recurso.

2. Defende a recorrente que a decisão é nula, nos termos do art. 615º, nº 1, b), do NCPC, porque não existe fundamentação de facto, nem de direito. Sem razão.

Na dita decisão, sobre a fundamentação de facto escreveu-se que:  

“A factualidade relevante para a decisão a proferir é a que consta do relatório “supra”, e que aqui se dá por integralmente reproduzida.”

O que consta desse relatório supra é no essencial e quase na íntegra o que consta do relatório deste acórdão, na parte I. E na economia da decisão do tribunal a quo e da do presente recurso essa factualidade é a relevante e suficiente para o que se vai decidir. A saber: o pedido da A. de restituição provisória da posse das divisões alegadamente ocupadas ilegitimamente pelos requeridos; a causa de pedir narrada, para tal, com base na circunstância de a fracção “B”, pertença da A., abranger as 4 divisões correspondentes a 4 arrumos, sala de pessoal, sala de refeitório de pessoal, casa de banho, vestiário e 2 arrecadações, que os requeridos ocupam, impedindo-a de usar e fruir as referidas divisões para as finalidades que lhe estavam previamente adstritas e que são essenciais à prossecução do normal funcionamento do lar; que com tal ocupação ilícita causam prejuízo económico à A.; que a dita ocupação e não entrega de tais divisões será causal da deliberação do ISS de encerramento do Lar; a 21.5.2018, nos autos principais foi proferida sentença, onde se decidiu julgar a acção parcialmente procedente, declarando-se que as referidas 4 divisões integram referida a Fracção “B”; a absolvição dos aí réus J (…) e M (…) dos demais pedidos formulados pela autora, ora requerente, designadamente o pedido de entrega de tais divisões e indemnização inerente; o facto de nessa sentença, além do decidido, se ter entendido que “não resulta demonstrada qualquer ocupação dos réus sobre a coisa reivindicada, pelo que, falecendo o segundo pressuposto acima referido, improcede a pretensão reivindicativa formulada pela Autora”.

É esta a factualidade a considerar que emerge do relatório da decisão apelada e também do relatório do presente acórdão. Existe, por conseguinte, factualidade assente (não está é numerada ou enunciada por letras ou outra forma).

Quanto à falta de fundamentação de direito não se alcança mesmo tal invocação. Efectivamente a sua existência é patente, e vamos transcrevê-la parcialmente mas praticamente por inteiro:  

“Contudo, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15-11-2007 (Proc. 2519/07-2 in www.dgsi.pt), “(...) o problema é outro, como outra é a respectiva solução no caso de ainda não haver decisão do procedimento cautelar no momento em que é decidida a improcedência da acção principal; nesse caso, a solução parece que não passa pela inutilidade superveniente da lide (ou do procedimento) mas, coerentemente com aquela decisão, pelo indeferimento deste por inexistência do direito a acautelar: com efeito, se se entende que o direito não existe, então não tem que ser acautelado ...”.

Ora, salvo o devido respeito por decisão contrária, se na ação principal, após produção de prova, se decidiu não resultar demonstrada qualquer ocupação dos réus (aqui requeridos) sobre a coisa reivindicada – ou seja, a lesão do direito da requerente – não se afiguraria coerente, no presente procedimento, onde, realce-se, a prova a produzir é meramente indiciária, considerar que, afinal, existe a alegada ocupação, e concluir pela lesão grave do direito, e consequentemente da existência do direito a acautelar.

Por outro lado, afigura-se-nos, desde logo, e do teor da própria alegação da requerente, inexistir o pressuposto do periculum in mora.

Com efeito, quanto a este aspeto, alega a requerente que (cfr. artigos 132.o e ss. do r.i.) a executar-se a deliberação da Segurança Social, de encerramento do estabelecimento em causa, determinar-se-á a “morte imediata” da Requerente, passando a mesma de uma situação de pleno funcionamento, para de encerramento.

(…)

De todo o modo, a decisão de encerramento, já havia sido tomada, pois que, no dia 10-01-2018 foi a Requerente notificada, na pessoa do seu Mandatário, da Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto da Segurança Social, I.P., onde, para além do mais, se decidiu ordenar o encerramento administrativo imediato do estabelecimento.

Com efeito, é sabido que são requisitos comuns de uma providência cautelar, a aparência do direito, o perigo de insatisfação desse direito a adequação da providência cautelar para conjurar o perigo (cfr. art.º 362.º, n.º 1 do CPC).

O perigo de insatisfação do direito supõe que o seu titular se encontra perante simples ameaça de violação desse direito. Se a ameaça já se consumou (in casu, com a decisão de encerramento administrativo imediato do estabelecimento), então não há perigo mas sim eventual consumação da eventual lesão do direito, pelo que, em tal caso, a providência cautelar requerida carece de utilidade.

Por outro lado, não resultando dos autos, que tenha havido reclamação hierárquica dessa decisão ou impugnação judicial da mesma, não se vislumbra, como é que a decisão a decretar a providência requerida, possa vir a inverter a situação jurídico-administrativa em causa, afigurando-se-nos, deste modo, e com o devido respeito pela posição defendida pela requerente, irrelevante, que a decisão de encerramento tenha ou não sido executada, para efeitos, de consumação de ameaça.

Desta forma, não se mostram preenchidos os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida, e, de todo o modo, ainda que viesse a ser produzida prova (que todo o modo seria perfunctória), tal revelar-se-ia inútil, face à já constatada impossibilidade de verificação desses pressupostos.”.

Inexiste, por isso, a arguida nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito da decisão recorrida. 

3. Importa apreciar a seguinte questão: proferida já sentença na acção principal, com base na respectiva matéria de facto aí apurada, o juiz pode proferir decisão no processo cautelar indeferindo-o, sem que no âmbito da providência tivesse sido dado cumprimento ao disposto no art. 367º do NCPC (com a epígrafe audiência final) e sem que tivesse havido lugar à produção de prova.

O art. 362º (com a epígrafe relação entre o procedimento cautelar e a acção principal), seu nº 1, do NCPC, estatui que sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência (conservatória ou antecipatória) concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Por sua vez o art. 364º, nº 1, do mesmo código, estabelece que o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção.

Com as providências cautelares pretende-se garantir o efeito útil da acção, prevenindo a ocorrência ou continuação de danos, ou antecipando os seus efeitos visados através de medidas definitivas.

O referido art. 364º, nº 1, consagra as características da instrumentalidade ce dependência. O procedimento cautelar surge para servir o fim da acção, e assim a relação entre o processo cautelar e o processo principal (de que aquele depende) é uma relação instrumental, o que significa que a providência cautelar é emitida na pressuposição ou na previsão da hipótese (instrumentalidade hipotética) de vir a ser favorável ao autor a decisão a produzir no processo principal.

Por sua vez o nº 4 de tal normativo estatui que nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da acção principal. Como se vê, a lei estabelece uma não eficácia da providência cautelar em relação à acção principal. Na verdade, naquela, factores como o carácter sumário da mesma e perfunctório das diligências probatórias, a celeridade imposta pela natureza e objectivos da providência, até mesmo a convicção do julgador, levam a que a decisão proferida no processo cautelar tenha uma natureza precária/indiciária, insusceptível de influenciar a decisão na acção definitiva (principal).

Mas se isto é assim já não o é no caso contrário, ou seja, a influência que o processo principal pode ter ou tem no procedimento cautelar. Aqui as razões já são outras. Por isso, o juiz deve ponderar os elementos e as decisões constantes do processo principal, porque rodeadas de maior solenidade, de contraditório e por isso de garantias de maior acerto do que a prova sumária feita no processo cautelar.

Isto é, a lei veda a influência da apreciação do processo cautelar na apreciação da acção principal, mas não inibe o contrário, ou seja, que na apreciação desta o juiz não possa servir-se dos elementos constantes daquele. Mesmo que tenhs sido interposto recurso na acção principal (vide neste preciso sentido o Ac. do STJ de 30.9.1999, em BMJ nº 489, págs. 294 e segs. que acompanhámos).

Na mesma direcção observa A. Geraldes (em Temas da Reforma do P. Civil, Vol. III, 4 ª Ed., Procedimento Cautelar Comum, nota 35.2 ao anterior artigo 383º do CPC, pág. 161/162) que embora não existam obstáculos formais á dedução de pretensão cautelar quando na acção principal já tenha sido proferida decisão desfavorável ao requerente, ainda não transitada em julgado, esse facto não deixará de ser valorado, repercutindo-se negativamente na apreciação de um dos requisitos substantivos da providência: a probabilidade quanto à existência do direito. Bastando nas providências cautelares a verificação da provável existência do direito, a sua negação apurada no âmbito de um processo com as garantias do contraditório e propiciador de maior segurança jurídica constituirá um obstáculo de muito difícil transposição as decretamento de uma medida cautelar. Aquando da prolação da decisão cautelar, o juiz não deixará de relevar a decisão favorável ou desfavorável que eventualmente já tenha sido proferida no processo principal, mesmo que ainda não tenha transitado em julgado. Neste sentido vai igualmente Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Ed., pág. 233.

Ora, como sabemos, os requeridos, réus na acção principal foram aí absolvidos, dos pedidos formulados pela aí autora, ora requerente/apelante, designadamente o pedido de entrega das mencionadas divisões e indemnização inerente, tendo nessa sentença se entendido que “não resulta demonstrada qualquer ocupação dos réus sobre a coisa reivindicada, pelo que, falecendo o segundo pressuposto acima referido, improcede a pretensão reivindicativa formulada pela Autora”. Não há, pois, razão, face ao explicitado, para os autos prosseguirem, com produção de prova, já que de prova indiciária apurada na providência cautelar não se poderá falar mais, face ao apurado e decidido na acção principal.

Aceitar outra tese, a da recorrente, seria desvirtuar a finalidade da providência. O requerente dela acabaria por conseguir com a providência aquilo que não logrou com o processo principal de que ela é dependência e no qual buscou a mesma medida, mas definitiva.

Não procede, por isso, o recurso.    

4. Face ao que se explicou e vai ser decidido, a improcedência do recurso, torna-se desnecessário conhecer do objecto da ampliação do recurso, nos termos do art. 636º, nº 2, do NCPC.

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O art. 364º do Código de Processo Civil consagra as características da instrumentalidade e da dependência do procedimento cautelar relativamente à acção principal;

ii) Surgindo o procedimento para servir o fim da acção principal,  de que aquele depende, tal significa que a providência cautelar é emitida no pressuposto de vir a ser favorável ao autor a decisão a produzir no processo principal;

iii) Proferida decisão no processo principal que indefere a pretensão do A./requerente do procedimento, embora não transitada, isso basta para indeferir a providência cautelar, não devendo o juiz, neste caso, dar cumprimento ao art. 367º do NCPC, com produção de prova, já que de prova indiciária apurada na providência cautelar não se poderá falar mais, face ao apurado e decidido na acção principal;

iv) Admitir tese contrária seria desvirtuar a finalidade da providência cautelar, já que o requerente dela acabaria por conseguir com a providência aquilo que não logrou com a acção principal de que ela é dependência e no qual buscou a mesma medida, mas definitiva.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

*

Custas pela recorrente.

*

Coimbra, 19.3.2019

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias