Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
133/10.5TBPNL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
ALTERAÇÃO LEGISLATIVA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: PENELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.12, 2020 CC, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8
Sumário: 1. A união de facto ( art.2020 CC ) consubstancia uma situação factual duradoura, na medida em que se prolonga no tempo, mas cessa com a morte de um dos seus membros.

2.Para efeitos da aplicação da lei no tempo ( art.12 CC ), os factos que permitem desencadear o efeito de atribuição ou reconhecimento do direito a que se arroga o sobrevivente da união de facto devem reportar-se à data da morte, considerada como facto instantâneo.

3.A Lei nº 23/2010 de 30/8, que introduziu um novo regime legal da protecção da união de facto, não se aplica às situações em que o óbito de um dos seus membros ocorreu em data anterior à sua vigência.

Decisão Texto Integral: I - Relatório:

Aos 23.11.2010, F (…) demandou o Instituto de Segurança Social/Centro Nacional de Pensões pedindo que se declare que é titular do direito às prestações por morte do seu companheiro J (…), beneficiário da Segurança Social. Alegou, entre o mais, que viveu com este em união de facto durante mais de dois anos até ao óbito, ocorrido aos 23.11.2009.
O réu contestou, defendendo-se por impugnação.
Notificados sobre a possibilidade de o Tribunal decidir do mérito da acção, por força da mera junção pela autora dos documentos referidos no artigo 2.º-A, n.º 4, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, atendendo à alteração do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, operada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, a autora não se opôs (fls. 115) e o réu disse entender que, quanto aos óbitos ocorridos antes de 4 de Setembro de 2010 (data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2010) deve aplicar-se o regime em vigor à data do óbito, ou seja, o regime anterior à alteração operada pela Lei n.º 23/2010.
O tribunal proferiu saneador/sentença, em que, sem discriminar os factos provados e após reprodução de longo texto do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Fevereiro de 2011 (processo n.º 1029/10), apreciou e decidiu o seguinte:
«Face ao exposto, com os fundamentos invocados, entendo que a lei nova se aplica imediatamente às situações já constituídas e subsistentes ao tempo da sua entrada em vigor, pelo que se aplica à situação em apreciação nestes autos.
«Assim, basta ao unido de facto apresentar declaração emitida pela junta de freguesia que ateste que residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento; declaração, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data; certidão de cópia integral do seu registo de nascimento e certidão do óbito do falecido (artigo 2.º-A, n.º 4, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio), para beneficiar das prestações por morte concedidas ao cônjuge sobrevivo.
«Regressando à situação dos autos, temos que a autora juntou a referida declaração emitida pela junta de freguesia (fls. 12), a sua declaração, sob compromisso de honra, de que residia com o falecido há mais de dois anos à data da morte daquele (fls. 117), certidão de cópia do seu registo de nascimento (fls. 119), que nada tem averbado, e certidão de óbito do falecido (fls. 10).
«Face ao exposto, por se verificarem os pressupostos de que a lei faz depender o reconhecimento de que o unido de facto tem direito a beneficiar das prestações de morte concedidas ao cônjuge sobrevivo, ao abrigo das disposições legais citadas e com os fundamentos invocados, declaro que F (…) é titular do direito às prestações da Segurança Social por morte de J (…). Custas pelo réu, por ter ficado vencido e por ter contestado a acção (artigos 446.º e 449.º do CPC)».
Inconformado, vem o réu recorrer de apelação, concluindo a sua alegação:
1. Por sentença ora recorrida, que correu termos no Tribunal Judicial de Penela, Processo n.º 133/10.5TBPNL, o ora recorrente foi condenado a reconhecer à Autora o direito às prestações por morte de J (…) beneficiário n.º 1 110101972 8, para efeitos do disposto no art. 6.º da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio.
2. Porém, não se podendo com ele conformar, o ora Recorrente veio interpor recurso de Apelação para a Relação, nos termos do art. 691.º do CPC.
3. Tendo o óbito do beneficiário ocorrido em 23 de Novembro de 2009, salvo o devido respeito, não assiste razão ao meritíssimo Juiz nos fundamentos que invoca quando aplica o novo regime plasmado na Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, ao caso concreto.         
4. Relativamente ao disposto no art. 6º, nº 1, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, só beneficiarão dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do art. 3º, independentemente da necessidade de alimentos, os membros sobrevivos de união de facto cujo óbito do beneficiário tenha ocorrido após a entrada em vigor da Lei 23/2010, nos termos do disposto no nº 2, 1ª parte, do art. 12º do CC, e nesta medida não tem eficácia retroactiva;  
5. Ainda relativamente ao art. 6º, nº 1, reforçando a tese que defendemos da sua não retroactividade, não há qualquer dúvida, para nós, de que a lei dispõe sobre os efeitos (os direitos previstos nas al. e), f) e g) do art. 3º) em função dos factos que lhes deram origem (óbitos de beneficiários unidos de facto). Pelo que, só pode visar os factos novos, ou seja, os óbitos ocorridos após a sua entrada em vigor.
6. Aliás, o próprio elemento literal do nº 2, 2ª parte do art. 12º apoia esta nossa posição quando refere “…a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”, sublinhado nosso.
7. Esta é de resto a tese defendida nos recentes Acórdãos do STJ, de 21/02/2011 e 24/02/2011, da 2ª Secção e 7ª Secção, respectivamente.
8. Bem como nos recentes Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 22/02/2011 e 26/04/2011, da 1ª Secção e 2ª secção, respectivamente.
9. Ora, sabendo-se que um dos factores de dissolução da união de facto é a morte de um dos membros, os outros são a vontade de um dos membros e o casamento de um dos membros – art. 8º, nº 1 da Lei 7/2001, não pode aplicar-se o regime previsto no art. 6º, nº 1 a uma relação que já estava extinta, e portanto não subsistia, à data da sua entrada em vigor.
10. Defender posição contrária, atribuindo retroactividade a esta norma, seria violar quer o espírito quer a letra do art.12º, nº 2, 2ª parte, e poderia conduzir, no limite, à situação insustentável de aplicação do novo regime previste na Lei nº 23/2010, com as alterações que introduz no art. 2020º do CC, no Decreto-Lei nº 7/2001 e no art. 8º do Decreto-lei nº 322/90, a todos os óbitos ocorridos antes de 4 de Setembro de 2010.
11. A decisão ora impugnada foi proferida com base apenas na prova documental produzida nos autos, designadamente, declaração emitida pela junta de freguesia (fls. 12), declaração da A., sob compromisso de honra, de que residia com o falecido há mais de dois anos à data da morte daquele (fls. 117), certidão de cópia do seu registo de nascimento (fls. 119), que nada tem averbado, e certidão de óbito do falecido (fls. 10).
12. Salvo o devido respeito, à luz do regime em vigor data do óbito, os referidos documentos apenas fazem prova do estado civil da A. e da data do óbito do beneficiário.
13. A prova dos restantes requisitos de procedência da acção, vivência em condições análogas ás dos cônjuges há mais de dois anos, necessidade de alimentos por parte da A., impossibilidade de obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas do art. 2009º do CC, bem como da herança do beneficiário, deveria ter sido produzida através de prova testemunhal e documental.
14. Ora, o Réu considera que tais requisitos/factos são constitutivos do direito da Autora, nos termos do artigo 342.º do CC, pelo que, no caso sub judice, não tendo sido feita qualquer prova desses factos, teria necessariamente a acção que improceder.
15. Da conjugação, quer do artigo 8º do Decreto-Lei 322/90 de 18 de Outubro, quer do Decreto Regulamentar 1/94 de 18 de Janeiro, quer do artigo 6º da Lei n.º 135/99 e da Lei n.º 7/2001, sempre resultou que todos esses diplomas legais remeteram para o art. 2020º do CC.
16. Assim, tendo em conta a data do óbito do beneficiário, afigura-se-nos claro e pacífico que os requisitos exigíveis para o reconhecimento do direito de titular de prestações da Segurança Social são os fixados no anterior regime previsto no artigo 2020.º do CC.
17. Consequentemente, à luz daquele regime, importa determinar quais os requisitos que permitiam a atribuição do direito a alimentos em situações de união de facto.
· (…)
18. Concluindo-se que resulta das disposições enunciadas que o direito a prestações por morte de beneficiário, pela pessoa que com ele vivia em situação de união de facto, não depende apenas da prova dessa situação.
19. Exigindo-se prova de todos os requisitos previstos no artigo 2020º, n.º 1 do CC: a vivência de duas pessoas de sexo diferente, em condições análogas às do cônjuge, verificação dessa situação na altura do falecimento do beneficiário das prestações sociais e desde há mais de dois anos; ser essa pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens; e não poder a pessoa sobreviva obter alimentos do seu cônjuge, descendente, ascendente ou irmãos, para além do requisito geral de carência ou necessidade dos alimentos.
20. Como se concluiu no Acórdão do STJ de 9 de Fevereiro de 1999 (cfr. colectânea de jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, 1999, Tomo I), o direito às prestações por morte do beneficiário da Segurança Social, por parte de quem vivia com ele em união de facto, depende da verificação dos pressupostos do 2020º do CC.
21. Assim, importa concluir que os pressupostos do reconhecimento da titularidade do direito à pensão de sobrevivência por banda do sobrevivente de união de facto são factos constitutivos (positivos e negativos) do respectivo direito, cabendo o ónus da respectiva prova cabe a quem invoca a titularidade desse direito (artigo 342º, nº 1 do CC).
22. A impossibilidade de prestação de alimentos por parte das pessoas a tal legalmente vinculadas (artigo 2009º do CC) é, assim, não obstante se configurar como um facto negativo, um elemento constitutivo, em caso de união de facto juridicamente relevante, quer do direito a alimentos da herança do falecido, quer do direito à pensão de sobrevivência.
23. Assim, a respectiva demonstração compete a quem invoca o direito.
24. Como resulta da intencionalidade das normas dos artigos 2020º do CC, 8º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 322/90, e 1º e 3º do Decreto Regulamentar n.º 1/94 e bem assim, artigo 6º da Lei 7/2001, aquela impossibilidade – de obtenção de alimentos das pessoas a tal obrigadas – é pressuposto do direito a alimentos da herança e o direito a estes ou a impossibilidade da herança de os prestar são momentos constitutivos do direito à pensão de sobrevivência.
25. O que necessariamente tem como consequência que caberá à Autora a prova da necessidade de alimentos, a inexistência dos bens da herança que os não possa prestar e a impossibilidade de os obter dos familiares previstos nas alíneas a) a d) do art. 2009ºdo CC.
26. Pelo que, a Sentença ora recorrida viola as disposições conjugadas do artigo 8º do DL n.º 322/90 de 18 de Outubro, 1º e 3º do DR 1/94 de 18 de Janeiro, o artigo 6º da L 7/2001 de 11 de Maio e o artigo 2020.º do CC, tendo em conta o regime vigente à data do óbito do beneficiário, 13 de Outubro de 2009º, aplicável por força do nº 2, 1ª parte, do art. 12º do CC.
27. Viola também o princípio da não retroactividade da lei previsto no art. 12º, nº 1, 1ªparte do CC. Nestes termos e nos demais de direito deve a referida Sentença ser revogada.
A autora contra-alegou, concluindo:
1. A questão central do recurso, a que ora se responde, prende-se com a aplicação ou não da Lei 23/2010, de 30 de Agosto ao caso que foi julgado nos presentes autos.
2. O Recorrente sustenta a sua discordância com a sentença proferida em 1ª Instância, no facto do óbito do beneficiário ter ocorrido antes da entrada em vigor da invocada Lei 23/2010.
3. A Recorrida considera, com a devida vénia, que a interpretação do Recorrente quanto a aplicação da lei no tempo não merece provimento, devendo manter-se a Douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo na qual se louva inteiramente.
4. Depreende-se, assim, que a Sentença recorrida não violou nem fez uma incorrecta interpretação dos artigos constantes da Lei 23/2010, de 30 de Agosto, do art. 12º, 2009º e 2020º todos do CC, do art. 8º do DL 322/90 de 18 de Outubro, dos arts. 1º, 2º e 3º do Decreto-Regulamentar nº 1/94 de 18 de Janeiro, dos arts. 1º e 6º da Lei 135/99 de 28 de Agosto, bem como dos arts. 1º e 6º da Lei 7/2001 de 11 de Maio, como pretende fazer querer o Recorrente.
II. Aplicação da Lei 23/2010, de 30 de Agosto:
5. Conforme o entendimento da sentença recorrida - e na qual se invoca o Acórdão desta Relação, proferido em 23 de Fevereiro do 2011 - terá de se aplicar o art. 12º nº 2, 2ª parte do CC ao caso em apreço.
6. Assim, para efeitos de aplicação da lei nova a factos passados, importa averiguar se existe ou não uma situação jurídica constituída aquando da entrada em vigor da lei nova.
7. Neste sentido, a lei nova pode aplicar-se a factos passados, por referência ao seu início de vigência, desde que se trate de uma relação (situação) jurídica constituída e subsistente à data da entrada em vigor de uma lei nova (art. 12.º n.º 2, 2.ª parte do CC).
8. No caso vertente, o factor que fundamenta o direito ao benefício de recebimento das pensões em causa não é o óbito do beneficiário que vivia em união de facto, mas sim a situação de união de facto em si mesma considerada.
9. O óbito de um dos membros da união de facto apenas serve como elemento que permite desencadear o exercício dos direitos que advêm da situação de união de facto que se verificou anteriormente ao óbito do beneficiário falecido.
10. Assim, conforme Acórdão proferido por esta Relação em 15-03-2011, cujo Relator foi José Eusébio Almeida (in www.dgsi.pt ): ocorrida esta (a morte), no domínio de vigência da lei antiga, mas permanecendo por resolver a questão da atribuição de tal direito, aquando da entrada em vigor da lei nova, trata-se, então, de uma situação jurídica já constituída e pré-existente aquando do início de vigência da lei nova e a que esta se aplica directa e imediatamente.
11. Na verdade, o caso sub judice, em que a situação ainda não se encontrava decidida aquando do início de vigência da lei nova, revela-se um caso de conteúdo de relações jurídicas já constituídas e subsistentes à data da entrada em vigor da nova lei, a que esta se aplica.
12. Trata-se, portanto, de uma norma que visa regulamentar um direito do sobrevivo a uma união de facto e, por isso, nos termos expostos, sujeito à aplicação imediata da lei nova.
13. Independentemente da natureza interpretativa ou inovadora desta Lei, a Jurisprudência tem entendido que esta tem aplicação a processos pendentes e cujo falecimento do beneficiário ocorreu antes da sua entrada em vigor.
14. Outro argumento da aplicação da Lei 23/2010 prende-se com o facto daquela ter alargado o âmbito subjectivo da prestação social, tendo em consideração os princípios da universalidade e da igualdade.
15. “Dúvidas não restam de que a alteração introduzida pela Lei n.º 23/2010 respeita a princípios fundamentais de direito social, sendo assim defensável a aplicação imediata da lei nova às situações que constituem o respectivo campo de aplicação, merecedoras da tutela do direito, ainda que o evento “morte” tenha ocorrido em data anterior ao início de vigência da lei nova. (Ac. já citado, proferido por esta Relação em 15-02-2011, com o relator Fonte Ramos).
16. Acresce a todos estes argumentos o de índole processual – Aplicabilidade imediata da lei nova, quando esta nada estipule relativamente a esta matéria.
17. Assim, a lei processual nova tem aplicação imediata quer às acções que ainda não foram instauradas aquando da sua entrada em vigor, quer às pendentes.
18. Note-se que a alteração legislativa produzida pela Lei 23/2010, de 30 de Agosto, tem como objectivo simplificar e libertar os Tribunais de acções que deixam de ter sentido face à cada vez maior equiparação entre unido de facto e cônjuge.
19. Face a todo o exposto, a decisão deste Venerando Tribunal deverá ser no sentido da aplicação ao caso da Lei 23/2010, de 30 de Agosto, na senda da decisão da 1ª Instância.
III. Da matéria de facto relevante para a causa:
20. A Mmª Juiz do Tribunal a quo, ao considerar que se aplica ao caso vertente o novo regime, avaliou a prova que foi produzida a fim de verificar o preenchimento dos requisitos do actual regime.
21. Dest´arte, proferiu a Douta Sentença com base na prova documental apresentada, ou seja, declaração emitida pela junta de freguesia, declaração da A., sob compromisso de honra, de que residia com o falecido há mais de dois anos à data da morte daquele, certidão de cópia integral do registo de nascimento da A. que nada tem averbado e certidão de óbito do falecido.
22. Ora, a junção aos autos da referida prova documental foi a necessária e suficiente para que o Tribunal a quo se pudesse pronunciar, como fez, pela procedência da acção e não pela mera inutilidade superveniente da lide.
23. Sendo, pois, desnecessária, face ao novo regime aplicado, a produção de qualquer prova adicional, como pretende o Recorrente.
24. Por sua vez, se o Tribunal ad quem entender que se terá que aplicar o regime anterior ao presente processo - o que só por mera hipótese de raciocínio se admite - deverá ordenar a remessa do processo para a 1ª Instância no sentido de seguir os seus trâmites até final.
25. Como conclusão, entende-se que toda a prova produzida e valorada pelo Tribunal a quo foi a correcta, tendo em conta a aplicação da nova Lei 23/2010, de 30 de Agosto.
Correram os vistos.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II- A questão essencial do recurso consiste em decidir se ao caso é aplicável o regime originário da Lei nº 7/2001 de 11.5 e de outros diplomas conexos, na redacção anterior à Lei nº 23/2010 de 30.8, ou o regime instaurado por esta Lei.

III - Fundamentos:
1. A 1ª instância decidiu do mérito da causa sem discriminar os factos que julgou provados, contra o que dispõe o artigo 659º, nºs 2 e 3, do CPC. É aos factos julgados provados que o Direito se aplica, conhecendo do mérito da causa, em sentença ou despacho saneador com o mesmo valor.
Todavia, em atenção à reapreciação da questão fundamental suscitada no recurso (que versa a aplicação de leis no tempo), basta termos em conta o seguinte:
a)- A acção foi instaurada aos 23.11.2010, caracterizando-se aquela, quanto ao objecto, pelo que a esse respeito consta do relatório deste acórdão (v.g. quanto à necessidade de alimentos e quanto à impossibilidade de os obter e quanto ao efeito jurídico feito valer através do pedido);
b)- J (…) era beneficiário da segurança social e faleceu aos 23.11.2009, tendo a autora – alegadamente -- com ele vivido em união de facto (condições análogas às dos cônjuges) durante mais de dois anos até ao óbito.
Como vem no relatório, no momento do saneador, o Tribunal decidiu do mérito da causa, reconhecendo à autora o direito às prestações sociais por morte do companheiro, “por força da mera junção pela autora dos documentos referidos no artigo 2º-A, nº 4, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, atendendo à alteração do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, operada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto”, ou seja, sem base instrutória (apesar de haver factos controvertidos), e sem instrução e realização de audiência de julgamento. Aplicou, pois, a lei nova, naquele particular entendimento, com apelo a um acórdão desta Relação, proferido em outro processo. O Instituto de Segurança Social, porém, defende que ao caso é aplicável, não o novo regime instaurado pela Lei n.º 23/2010 que alterou a Lei n.º 7/2001 (e outros diplomas conexos), mas sim o regime da Lei n.º 7/2001 e de outros normativos conexos, na redacção anterior ao início de vigência desta Lei.
A Lei nº 7/2001 instaurou o regime fundamental de protecção às uniões de facto, complementado por preceitos avulsos. Essa Lei relevou tais uniões desde que os unidos vivessem em condições análogas aos cônjuges durante mais de dois anos e não se verificasse qualquer das excepções ali previstas. Anteriormente, os preceitos de protecção à união de facto estavam esparsos, em vários diplomas legais.
O direito à protecção social, por parte de membro sobrevivo de união de facto e a cargo da segurança social, vinha consignado e regulado nessa Lei nº 7/2001 (artigos 3º al. e) e 6º, com remissão para o artigo 2020º do CC), complementado pelos preceitos atinentes do DL nº 322790 e do Decreto-Regulamentar nº 1/94. O direito consignado nessa al. e) do artigo 3º consiste, fundamentalmente, no direito à pensão de sobrevivência, na eventualidade morte do beneficiário da segurança social, com o qual o sobrevivo vivia em união de facto.
A Lei nº 23/2010 veio alterar esses três diplomas legais (e outros), dispondo directamente sobre esse direito e alargando o campo de protecção jurídica com outros direitos. Sobre aplicação da lei no tempo, o diploma apenas contém o artigo 6º, epigrafado “Produção de efeitos”, com este teor: «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor», ou seja, desde 1.1.2011.
Como o preceituado nos artigos 3º al. e), f) e g) e 6º, com nova redacção, tem repercussão no orçamento da Segurança Social (e não vemos que outros preceitos da lei nova o tenham), a Lei nº 23/2010 só tem aplicação a partir de 1.1.2011, nessa parte.
Como todos os factos, alegados como causa de pedir a constituição do direito à protecção social, ocorreram antes de 1.1.2011 e como ainda não há decisão de mérito transitada em julgado, a questão que se coloca consiste fundamentalmente em apurar se as alterações levadas a cabo pela Lei nº 23/2010 são aplicáveis ao caso dos autos ou se ao caso é aplicável o regime existente antes dessas alterações.

2. Com a alteração ao regime básico da união de facto (pela Lei nº 23/2010), em matéria de protecção social nos termos da al. e) do artigo 3º da Lei nº 7/2001, deixou de ser exigível ao membro sobrevivo a propositura de uma acção judicial com vista ao reconhecimento do direito à protecção social a que se refere aquela al. e), bastando a formulação da pretensão junto da instituição de segurança social competente; deixou de ter de demonstrar a necessidade de alimentos e que não os podia obter das pessoas elencadas nas al. a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º CC e da herança do falecido; e aditaram-se algumas especificações ao regime de prova da existência de união de facto.
Vejamos a evolução legislativa nesta matéria.
Em 1977, o artigo 2020º do CC, na redacção do DL nº 496/77, de 25-11, sob a epígrafe “União de facto”, passou a dispor o seguinte:
«1. Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º.
«2. O direito a que se refere o número precedente caduca se não for exercido nos dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão.
«3. É aplicável ao caso previsto neste artigo, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo anterior».
Esse artigo 2020º do CC foi alterado, apenas no seu nº 1, pela Lei nº 23/10, que lhe conferiu a seguinte redacção:
«O membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido».
O Decreto-Lei nº 322/90 de 18 de Outubro, que visou a protecção por morte dos beneficiários abrangidos por regime de segurança social realizada a favor do agregado familiar mediante a concessão de prestações continuadas, indicou no nº 1 do seu artigo 7º as categorias de pessoas titulares do direito às prestações e precisou no nº 1 do seu artigo 8º que «o direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do artigo 2020º do Código Civil», ou seja, quem, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tivesse direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não pudesse obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º. E o nº 2 do art. 8º remetia para regulamentação específica, nomeadamente quanto à actividade processual de prova das situações e à definição das condições de atribuição das prestações.
O Decreto Regulamentar nº 1/94, de 18 de Janeiro, propôs-se definir «o regime de acesso às prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social, previstas no Decreto-lei nº 322/90, de 18 de Outubro, por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto» (artigo 1º), estatuindo o seu artigo 2º que «tem direito às prestações a que se refere o número anterior a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges». Por sua vez, o artigo 3º determinou:
«1. A atribuição das prestações referidas no artigo 2º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artigo 2020º do Código Civil.
«2. No caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações depende do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra instituição de segurança social competente para atribuição das mesmas».
Na sequência do disposto nos art. 8º do DL nº 322/90 e 3º do Dec-Regulamentar nº 1/94, a jurisprudência do STJ dividia-se sobre a solução da questão de saber se, para ter acesso às pensões de sobrevivência, o sobrevivo de união de facto devia intentar uma ou duas acções (ou demandar conjuntamente a herança do falecido e a instituição de segurança social ou só uma delas) antes de requerer nessa instituição as prestações por morte, com junção da sentença judicial transitada. Por exemplo, o acórdão do STJ de 7.12.1995 (BMJ 452/482) decidiu que antes de accionar a CNP o sobrevivo devia ter accionado a herança pedindo alimentos, embora sem êxito, por insuficiência ou inexistência de bens. Já o acórdão do STJ de 10.02.1998 (BMJ 474/562) decidiu que, para ver reconhecido o direito a alimentos (nos termos do art. 2020º do CC) como pressuposto do direito à pensão de sobrevivência, o sobrevivo devia propor a acção contra a CNP e não contra a herança do falecido. Também o acórdão da Relação do Porto de 26.01.2000 (BMJ 493/422) entendia que não era necessário demandar previamente a herança. A divergência radicava essencialmente na remissão do artigo 6º do DL nº 135/99 para o artigo 2020º do CC e na interpretação do artigo 5º do Dec-Regulamentar nº 1/94, que determinava que “o requerimento de prestações por morte deve ser acompanhado da sentença judicial que fixe o direito a alimentos ou declare a qualidade de titular dessas prestações”. Pelos vistos, a conjunção disjuntiva “ou” não era suficiente para se concluir que bastava ser intentada uma só acção.
A Lei 135/99 de 28.8 tomou medidas de protecção da união de facto, dispondo no art. 3º al. f) que quem vive em união de facto tem o direito a protecção na eventualidade morte do beneficiário, pelos regimes de segurança social. E, no artigo 6º, dispôs sobre o «Regime de acesso às prestações por morte»:
1 — Beneficia dos direitos previstos nas alíneas f) e h) do artigo 3º da presente lei quem reunir as condições previstas no artigo 2020º do Código Civil, decorrendo a acção perante os tribunais civis.
2 — Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição.
3 — Não obsta ao reconhecimento da titularidade do direito às prestações a inexistência ou insuficiência dos bens da herança para atribuição da pensão de alimentos.
4 — O direito à prestação pode ser reconhecido na acção judicial proposta pelo titular contra a herança do falecido com vista a obter a pensão de alimentos, desde que na acção intervenha a instituição competente para a atribuição das prestações.
5 — O requerente pode propor apenas acção contra a instituição competente para a atribuição das prestações.
(Essa Lei 135/99 foi revogada pelo art. 10º da Lei nº 7/2001).

            Veio a ser dimanado o Decreto-Lei nº 153/2008, de 06 de Agosto, que, além do mais, se propôs, conforme o seu relatório, proceder «à revisão do regime da concessão de pensões de alimentos ou de sobrevivência a pessoas que vivam em condições análogas às dos cônjuges. Com efeito, no regime actualmente em vigor, por força do disposto no artigo 2020.º do Código Civil, na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, e no Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, o acesso às prestações por morte das pessoas que vivam em união de facto nas condições aí previstas fica dependente de uma acção judicial perante os tribunais cíveis, proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição. Com o presente diploma, clarifica-se que a atribuição das prestações por morte fica dependente de apenas uma acção judicial, deixando de prever a exigência de uma segunda acção a intentar especificamente contra a instituição de segurança social competente para a respectiva atribuição». Em consonância, o seu artigo 2º preceituou:

     «O artigo 3.º do Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18 de Janeiro, passa a ter a seguinte redacção:
      1 - A atribuição das prestações por morte às pessoas referidas no artigo 2.º fica dependente de sentença judicial que lhes reconheça o direito a alimentos ou, na falta ou insuficiência de bens da herança, a qualidade de titular do direito a alimentos, nos termos do disposto no artigo 2020.º do Código Civil.
      2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acção declarativa deve ser interposta também contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das prestações referidas no artigo 1º».

            Pode facilmente defender-se a natureza de lei interpretativa deste preceito, natureza essa que é denotada pelas expressões do relatório, acima sublinhadas, e atentas as divergências antes constatadas. Embora tal não constitua questão a resolver neste processo, essa asserção servir-nos-á para fazer o contraponto com a Lei nº 23/2010 em relação à Lei nº 7/2001.
A Lei nº 7/2001, de 11.5, veio regular «a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos» (artigo 1º), prescrevendo a alínea e) do seu artigo 3º que «as pessoas que vivem em união de facto têm direito a protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei». E o artigo 6º, epigrafado “condições de acesso às prestações por morte”, dispõe na sua redacção originária:
         «1. Beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e) f) e g) do artigo 3º, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no artigo 2020º do Código Civil, decorrendo a acção perante os Tribunais cíveis.
         «2. Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito as prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição».
Mediante alteração pela Lei nº 23/10, o artigo 3º passou a dispor, no nº 1 al. e): «As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a: (…) e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei». Como se vê, cotejando com a redacção originária da al. e), a alteração é, no que aqui importa, meramente formal, embora essa lei tenha disposto directamente sobre esse direito (que forma o conteúdo da relação jurídica união de facto) como se alcança da alteração que efectuou no artigo 6º da Lei nº 7/2001.
Aquele originário artigo 6º (Regime de acesso às prestações por morte) passou a ter a seguinte redacção pela Lei nº 23/10:
«1 — O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, independentemente da necessidade de alimentos.
«2 — A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação.
«3 — Exceptuam -se do previsto no nº 2 as situações em que a união de facto tenha durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no nº 2 do artigo 1º».
Da alteração ao artigo 6º resulta claro que a lei nova, para o efeito de atribuição do direito do sobrevivo de união de facto à pensão de sobrevivência, deixou de exigir: que o sobrevivo “reúna as condições constantes no artigo 2020º do Código Civil” e tenha sequer de provar a necessidade de alimentos como estava no Projecto da lei nova; que tenha de “decorrer acção perante os Tribunais cíveis” (para reconhecimento do direito às prestações por morte ou das al. f) e g)); que “em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no nº 1 anterior, o direito as prestações se efective mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição”.
De outro modo, com a alteração do artigo 2019º (acrescento da expressão “iniciar união de facto”) ([1]) e com a alteração ao artigo 2020º, nº1, ambos do Código Civil, e ao artigo 6º da Lei nº 7/2001, o regime jurídico das uniões de facto foi alterado para o seguinte, na parte que agora interessa:
(A)-- o início de união de facto faz cessar o direito de alimentos a cargo dos familiares indicados nas al. a) a d) a que se referia o artigo 2020º/1;
(B)-- o direito de alimentos a favor do sobrevivo de união de facto e a cargo da herança do companheiro falecido deixa de depender de tais familiares não os puderem prestar (mas mantém-se o prazo de caducidade de dois anos a contar da morte, quanto a esse direito — art. 2020º/2);
(C)-- o sobrevivo de união de facto, para aceder (ou ser-lhe reconhecido o direito) às prestações por morte a cargo da segurança social, já não tem o ónus de alegação e prova da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter das pessoas a que aludem as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC e da herança do falecido;
(D)-- o direito a alimentos a favor do sobrevivo de união de facto e a cargo da herança do companheiro falecido pode ser cumulado com o direito à prestações por morte a que se refere as al. e), f) e g) do nº 1 do artigo 3º;
(E)—o sobrevivo já não carece de intentar acção judicial para ver reconhecido o direito, bastando formular o pedido perante a instituição de segurança social competente;
(F) – deixa de ser aplicável o prazo de caducidade de dois anos após a morte para ser intentada a acção de reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência e passa a ser aplicável o prazo geral de cinco anos constante do Estatuto respectivo.
A alteração (A) respeita claramente à introdução de um novo facto para o efeito da cessação da relação jurídica alimentar que se tenha constituído, designadamente a cargo de algum dos obrigados referidos nas al. a) e segs do artigo 2009º do CC. Esse facto é “o início de união de facto”.
As alterações (B) e (C) respeitam claramente aos requisitos ou pressupostos de facto de atribuição do direito a alimentos e do direito às prestações por morte, respectivamente.
A alteração (D) respeita claramente aos efeitos da união de facto. Com a lei antiga, como com a lei nova ([2]), da união de facto pode resultar o direito a alimentos (após a morte de um dos membros e a cargo da herança do falecido), bem como pode resultar o direito às prestações por morte referidas nas al. e) a g) do art. 3º (após a morte de um dos membros e a cargo de instituição de segurança social da qual o falecido fosse contribuinte). Mas há uma alteração na conjugação desses efeitos: enquanto anteriormente o direito às prestações por morte era subsidiário da possibilidade de outrem prestar alimentos (só se outrem não pudesse prestá-los é que haveria o direito às “prestações por morte”), com a lei nova tais direitos passam a ser cumuláveis. Além disso, essa alteração na conjugação de efeitos está directamente conexionada com a alteração dos requisitos factuais de atribuição do direito às “prestações por morte”: enquanto pela lei antiga o direito às prestações por morte dependia da alegação e prova da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter das pessoas a que aludem as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC e de os obter da herança do falecido, já pela lei nova o direito às prestações por morte não depende da necessidade de alimentos, o mesmo implicando que também não depende da impossibilidade de os obter das pessoas a que aludem as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC e de os obter da herança do falecido. Logo, neste campo, a lei nova modificou o regime dos efeitos (ou direitos) emergentes da união de facto, em conexão estreita com a alteração dos requisitos desses direitos (cuja atribuição não depende nem dependia aliás apenas da existência da união de facto).
Mas o direito a alimentos e o direito às prestações por morte referidas nas al. e) a g) do art. 3º são, na abstracção da lei, objecto imediato ou conteúdo de relações jurídicas diferentes: o direito a alimentos é objecto de uma relação jurídica alimentar (em que sujeito passivo nunca é uma instituição de segurança social), enquanto o outro direito é objecto de uma relação jurídica ligando o pensionista a uma instituição de segurança social. Na presente acção, a autora não pretende a constituição de uma relação jurídica substantiva alimentar, mas sim a constituição de uma relação jurídica substantiva ligando-a, como pensionista, à instituição de segurança social demandada. Isto, embora a autora devesse alegar e provar (segundo a Lei nº 7/2001 na redacção originária) factos tradutores da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter das pessoas a que aludem as alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC e da herança do falecido, como melhor explicitaremos abaixo. O direito a alimentos a favor do unido de facto e a cargo da herança vinha regulado no artigo 2020º do CC. A remissão do artigo 6º da Lei nº 7/2001 para aquele artigo 2020º não atribuía mais um direito a alimentos, antes logicamente equiparava a situação de carência económica do companheiro sobrevivo, como justificativa da atribuição do direito à pensão de sobrevivência, à carência de alimentos a que se reportava aquele artigo 2020º.
            A alteração (E) respeita à competência para conhecer do direito às “prestações por morte” a cargo da segurança social: pela lei antiga, o reconhecimento do direito às prestações por morte dependia de acção judicial a intentar para esse efeito (havendo sentença favorável o interessado pedia depois a atribuição dos seus direitos junto da instituição de segurança social com base na sentença); pela lei nova, o interessado sobrevivo já não tem de intentar acção judicial para esse efeito (acção que era de natureza constitutiva). Daí a introdução do artigo 2º-A na Lei 7/2001, a cuja matéria de prova já o nº 2 do art. 8º do DL nº 322/90 de 18.10 aludia e para a qual a sua nova redacção remete («A prova da união de facto é efectuada nos termos definidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adopta medidas de protecção das uniões de facto»), tal como para ela remete a nova redacção do artigo 41º, nº 2, do DL nº 142/73, de 31.3 («O direito à pensão de sobrevivência por parte das pessoas que vivam em união de facto está dependente da prova da existência dessa união que deverá ser efectuada nos termos definidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adopta medidas de protecção das uniões de facto»). Há desjudicialização, operada pela Lei nº 23/10: para o futuro, a atribuição do direito do sobrevivo de união de facto à pensão de sobrevivência deixa de estar necessariamente subordinada à acção judicial.
Embora sem fazer coincidir inteiramente, aproximou-se o regime da união de facto ao regime do casamento no que interessa à pensão de sobrevivência, o que se compreende, face à eliminação dos requisitos relativos a alimentos. Assim como, havendo um sobrevivo ao casamento, é fácil a comprovação, pela instituição de segurança social, por via documental, do casamento, do óbito de um dos cônjuges e da qualidade de contribuinte/beneficiário do falecido, também no caso de união de facto a instituição terá ou poderá ter alguma facilidade na verificação destes elementos. A verificação dos requisitos relativos a alimentos e, em alguma medida, a verificação da existência de união de facto por mais de dois anos são tarefas complexas que melhor quadram à actividade dos tribunais. Desaparecendo os anteriores requisitos relativos a alimentos, a tarefa da instituição de segurança social está facilitada, tanto mais quando haja documentos destinados a comprovar também a união de facto (daí o novo art. 2º-A respeitante à prova): mesmo assim, a lei nova não deixou de prever a possibilidade de haver dúvidas sobre a existência da união de facto por mais de dois anos, facultando nesse caso a propositura de acção pela instituição, embora apenas para a verificação da existência da união de facto (vd. alteração ao art. 6º nº 2). Tudo isso se compagina com o entendimento de que a LN se deve (em coerência) aplicar em bloco: as alterações introduzidas estão pré-ordenadas à abolição da necessidade de instauração de acção judicial para o reconhecimento do direito, passando a competência para a instituição de segurança social.

3. Foi aditado o artigo 2º-A pela Lei nº 23/2010 à Lei nº 7/2001, artigo esse epigrafado “Prova da união de facto” e do qual se destacam aqui os seus nºs 1, 2 e 4:
1 — Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.
2 — No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles.
…4 — No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.
A Lei nova altera o artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro, cujo nº 2 passa a dispor que a prova da união de facto é efectuada nos termos definidos na alterada Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, e altera o Decreto-Lei nº 142/73, de 31 de Março (Estatuto das Pensões de Sobrevivência), cujo artigo 41º passa a dispor no nº 2 que «o direito à pensão de sobrevivência por parte das pessoas que vivam em união de facto está dependente da prova da existência dessa união que deverá ser efectuada nos termos definidos na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio».
O novo regime sobre as uniões de facto não se limita a remeter para a prova nos termos gerais de direito civil (nº 1 do art. 2ºA), âmbito civilístico no qual já vigorava a regra de que a prova se faz por qualquer meio legalmente admissível, salvo disposição em contrário. A factualidade caracterizadora da existência da união de facto e a sua duração podiam provar-se por qualquer meio, vg testemunhas. Diversamente, além de reafirmar essa regra no novo nº 1 do artigo 2º-A, a lei nova faculta nos nºs 2 e 4 que o interessado possa provar a união de facto mediante declaração emitida pela junta de freguesia e declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos ([3]), e outras certidões de registo; e, conforme nºs 2 e 3 do artigo 6º, se a Segurança Social tiver fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente “acção judicial” com vista à sua comprovação, mas não o pode fazer se a união de facto tiver durado mais de quatro anos (como se a duração superior a quatro anos de uma convivência qualquer apagassem as dúvidas sobre se o interessado convivera com o beneficiário em condições análogas às dos cônjuges!), restando-lhe deferir ou indeferir a pretensão.
Note-se que a 1ª instância decidiu como se pela lei nova (que foi a que aplicou) a prova se cingisse aos documentos referidos naqueles nºs 2 e 4 do artigo 2ºA que essa lei aditou, assim restringindo os meios de prova admissíveis. Dessa forma, a decisão da 1ª instância suscita dois problemas: um, que consiste em saber se os nºs 2 e 4 do artigo 2ºA restringem a prova aos documentos, cuja junção aliás foi feita por iniciativa do tribunal invocando a lei nova; outro, que consiste em saber se, na sucessão das duas Leis, é ou não aplicável ao caso a lei nova.
Quanto ao primeiro problema, convém já deixar claro que – quer na hipótese de a lei nova ser aplicável nesta acção judicial, quer na hipótese de o não ser – o artigo 2ºA não obsta a que sejam oferecidos outros meios de prova além dos documentos: basta atentar no nº 1 desse artigo.
Com a lei nova, a prova dos requisitos a preencher para obtenção da pensão de sobrevivência por parte de quem viveu em união de facto com o falecido beneficiário da Segurança Social passa a ser feita, primacialmente, perante a Segurança Social, em cuja instituição tenha apresentado a sua pretensão. E tal instituição só em alguns casos pode accionar em juízo o interessado e, podendo accionar, só o pode fazer para a declaração sobre a existência ou não da união de facto (não para o reconhecimento do direito à pensão). E, ainda no novo regime, devendo a pretensão ser formulada pelo interessado junto da Segurança Social (e não junto do tribunal), a Segurança Social tem de apreciar a prova que perante ela seja produzida, sem que possa (maxime quando a alegada união de facto tenha durado mais de quatro anos) exercer o contraditório como exerceria em julgamento pelo tribunal: quem decide não pode exercer o contraditório.
A substancialidade das alterações da nova Lei em matéria de prova está à vista, sobretudo pela restrição dos meios probatórios, operada na interpretação e aplicação pela 1ª instância: bastou-se com a prova documental, não exarou base instrutória e não permitiu que ambas as partes oferecessem e produzissem em audiência os meios de prova (incluindo testemunhas) que entendessem… Ora, como escrevia Vaz Serra, in RLJ 111º, p. 4 (nº4), “em matéria de aplicação temporal de leis sobre prova, há que distinguir entre as relativas ao formalismo processual e as que afectam a substância do direito, repercutindo-se [estas] sobre a própria viabilidade deste [direito], e que por isso pertencem (pelo menos para fins de conflito de leis, no tempo ou no espaço) ao direito substancial)”.
No caso, a 1ª instância entendeu que «a lei nova se aplica imediatamente às situações já constituídas e subsistentes ao tempo da sua entrada em vigor, pelo que se aplica à situação em apreciação nestes autos» e que pela lei nova bastava a prova documental, tal como foi produzida mediante convite, para que se devesse reconhecer o direito da autora às prestações sociais por morte do seu companheiro beneficiário da Segurança Social.
Sucede, todavia, que o artigo 2º-A aditado pela lei nova (Lei nº 23/2010) incide sobre a “prova da união de facto”. E as certidões de nascimento e de óbito apenas interessam à prova do estado civil, da idade dos companheiros e do falecimento do beneficiário da Segurança Social com quem a autora vivia. Não só a certidão da junta omite quais as condições análogas às dos cônjuges que concretamente se verificavam, como, por aplicação da lei nova, se deixou de produzir prova sobre essas condições e sobre factos alegados tendentes a traduzir a necessidade de alimentos por parte da autora e a impossibilidade de os obter das pessoas indicadas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC e a impossibilidade de os obter da herança do seu falecido companheiro, por inexistência ou insuficiência de bens.
Além disso, não basta que os autos retratem “situações já constituídas e subsistentes ao tempo da sua entrada em vigor”, para que seja aplicável a lei nova. E a 1ª instância deixou por esclarecer que “situações” são essas concretamente.
Dada a substancialidade das alterações em matéria de prova – na interpretação e aplicação feita pela 1ª instância – temos de concluir que, nessa matéria, como nas restantes, se devem seguir os critérios de selecção da lei aplicável no tempo em conformidade com o artigo 12º do CC como se verá adiante.

4. No âmbito da lei antiga (redacção originária da Lei nº 7/2001 e legislação complementar), relativamente aos requisitos exigíveis ao membro sobrevivo de união de facto para que pudesse aceder às prestações por morte do companheiro beneficiário de qualquer regime jurídico da segurança social, o Supremo Tribunal de Justiça tem evidenciado uma quase unanimidade quanto aos requisitos ou pressupostos de facto necessários ao reconhecimento do direito à protecção social a que se refere a dita al. e) do artigo 6º da dita Lei.
Conforme acórdão do STJ de 24-2-2011, Pº 7116/06.8TBMAI.P1.S1, 7ª sec, Granja da Fonseca, dgsi, os requisitos do direito invocado pela autora são cumulativamente os seguintes, na redacção originária da Lei nº 7/2001:
- Vivência com outrem em condições análogas às de cônjuges, há mais de dois anos, à data do decesso do outro membro;
– Que o membro da união de facto falecido não seja casado à data da sua morte ou que, sendo casado, se encontre nessa altura separado judicialmente de pessoas e bens;
- Que este seja beneficiário de instituição de segurança social;
– Necessidade de alimentos por parte da autora e impossibilidade desta prover à sua subsistência;
– Impossibilidade de o/a requerente obter alimentos das pessoas indicadas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC;
– Impossibilidade de igualmente obter alimentos da herança do seu falecido companheiro, por inexistência ou insuficiência de bens;
– Que o direito tenha sido exercido (o pedido tenha sido formulado na entidade competente) dentro dos dois anos subsequentes à data da morte do membro beneficiário.
Nesse sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Supremo:
-- de 29/6/95, C.J./STJ ano III, tomo II, pág. 147;
-- de 9/2/1999, C.J./STJ ano VII, tomo I, pág. 89;
-- de 19/3/2002, www dgsi.pt/jstj;
-- de 6/7/2005 (Pº 05B1721, Oliveira Barros), www.dgsi.pt/jstj (note-se que este acórdão revogou o Ac desta Relação de14.12.2004 com idêntica tese ao do Ac da mesma Relação de 16.11.2004 - Pº 986/09);
-- de 28/7/2007, Pº 07B2319, www.dgsi.pt;
-- de 23.10.2007, Pº 07A2949, www.dgsi.pt;
-- de 24.4.2007, Pº 07A677, www.dgsi.pt;
-- de 20.9.2007, Pº 07B1752 www.dgsi.pt;
-- de 13.9.2007, Pº 07B1619, www.dgsi.pt.
Todos esses acórdãos – se bem vemos – se pronunciaram no sentido da necessidade de prova dos requisitos estabelecidos no artigo 2020º do CC (referidos à necessidade de alimentos e à impossibilidade de os obter das pessoas indicadas em a) a d) do art. 2009º e de os obter da herança do membro falecido) para que pudesse ser reconhecido o direito do sobrevivo à protecção social, direito que veio a ficar consignado na al. e) do artigo 6º da Lei nº 7/2001 na redacção originária.
Mesmo os acórdãos do Supremo que, na sequência da Lei nº 23/10, têm decidido ser esta lei aplicável aos casos em que o óbito ocorreu antes do seu início de vigência, têm considerado que à luz da Lei nº 7/2001 (e legislação complementar) era necessário o preenchimento daqueles requisitos referidos à necessidade de alimentos e à impossibilidade de os obter das pessoas indicadas em a) a d) do art. 2009º e de os obter da herança do membro falecido, para que pudesse ser reconhecido o direito do sobrevivo à protecção social (cf. acórdãos de 6.9.2011 – pontos nº 42 e 43 (Pº 322/09-6ª), de 16.6.2011 – ponto nº 3 (Pº 1038/08-7ª) e de 12.7.2011, Pº 125/09-1ª). Assim também o entendeu o Supremo no seu acórdão de 24.2.2011 – ponto nº 4, Pº 7116/06-7ª, Cons. Granja da Fonseca (acórdão no qual se decidiu que a Lei nº 23/10 não retroage os seus efeitos e não é aplicável ao caso de união de facto cujo membro beneficiário da segurança social falecera anteriormente).
Cabe na esfera da liberdade legislativa, sem que tal represente ofensa de atinentes normas ou princípios da Constituição, optar pela exigência de requisitos relativos à necessidade alimentar do sobrevivo para efeito de este obter a protecção da segurança social por pensão de sobrevivência, ou pela sua não exigência, como o demonstram vários acórdão do Tribunal Constitucional.
Na verdade, o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade da norma interpretada no sentido de ser necessária a prova daqueles requisitos referidos à necessidade de alimentos e à impossibilidade de os obter, decidiu inexistir inconstitucionalidade pela invocada ofensa do princípio da igualdade, nos acórdãos nº 275/2002 e 195/2003. O acórdão do Tribunal Constitucional nº 88/04-3ª (de 10.02.2004), embora incidindo sobre as normas dos art. 40º e 41º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (DL n° 142/73, de 31.3, na redacção do DL n° 191-B/79 de 25.6), mas face à mesma exigência de prova daqueles requisitos referidos à necessidade de alimentos, entendeu inexistir inconstitucionalidade pela invocada ofensa do princípio da igualdade e decidiu existir inconstitucionalidade por ofensa do princípio da proporcionalidade e ordenar a reforma do acórdão do STJ de 3.4.2003. Esta decisão de inconstitucionalidade foi isolada, dado que posteriormente o mesmo Tribunal Constitucional inflectiu tal posição, passando a decidir pela não inconstitucionalidade, por infracção de um ou outro dos ditos princípios ou da norma do art. 67º da CRP, nos acórdãos 159/2005, 614/2005, 134/2007 e 651/2009. Neste último acórdão, tirado em Plenário, aos 15.12.2009, foi decidido: «Não julgar inconstitucional as normas do nº 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei nº 322/90 e do artigo 3.º do Decreto-Regulamentar nº1/94, de 18 de Janeiro, quando interpretadas no sentido segundo o qual o direito à atribuição da pensão de sobrevivência por morte do beneficiário, a quem com ele convivia em união de facto, depende de o interessado estar nas condições do artigo 2020º do Código Civil, isto é, ter direito a obter alimentos da herança, por não os poder obter das pessoas referidas no artigo 2009º, nº 1, alíneas a) a d) do mesmo Código».   
Vimos os requisitos exigíveis no âmbito da Lei nº 7/2001 (e legislação complementar), na sua versão originária. Aí, mercê do disposto nos artigos 6º dessa Lei, 2020º nº 1 do CC e nº 1 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 322/90 e do artigo 3º do Decreto-Regulamentar nº1/94, de 18 de Janeiro, a protecção social referida na al. e) do artigo 3º daquela Lei só era atribuída ao sobrevivo carente de alimentos e, ainda assim, subsidiariamente em relação à possibilidade de os obter dos familiares indicados nas al. a) a d) do artigo 2009º do CC e da herança do companheiro falecido, ou seja: o impetrante da protecção social tem, sob esse regime, o ónus de provar a sua necessidade de alimentos e que os não podia obter desses familiares ou dessa herança. Se o sobrevivo não cumpre esse ónus, não lhe pode ser reconhecido o direito à protecção social, designadamente o direito à pensão de sobrevivência, a cargo da segurança social.

5. Em 19.02.2009, um grupo parlamentar da Assembleia apresentou o Projecto de Lei n.º 665/X/4, para a “Primeira Alteração à Lei das Uniões de Facto”, em cujo relatório ou articulado não consta qualquer alusão à necessidade de tomar posição em relação a divergências doutrinárias ou jurisprudenciais sobre os requisitos para acesso às prestações por morte em benefício de sobrevivo de união de facto. Pelo contrário, a projectada alteração ao artigo 6º, nº1, era a seguinte: «O membro sobrevivo de união de facto que careça de alimentos beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do artigo 3º». Projectava-se ainda a alteração a outros artigos legais, entre eles os artigos 2019º e 2020º, nº 1, do CC. Quer dizer: quanto aos requisitos antes exigidos, o projecto deixava cair o da impossibilidade de obter alimentos dos familiares indicados nas al. a) a d) do artigo 2009º do CC e da herança do companheiro falecido, mas não prescindia do da carência de alimentos. E do Projecto não constava qualquer referência à repercussão orçamental das alterações visadas, nem alguma norma sobre aplicação da lei no tempo.
Do Projecto para a Lei nº 23/10, desapareceram a exigência de preenchimento do requisito de carência de alimentos, a necessidade de propositura de acção cível e o aditamento de um art. 5ºA sobre relações patrimoniais, apareceram alterações aos DL nº 142/73 e DL nº 322/90 além das projectadas ao CC, foi revogada a Lei nº 135/99 de 28.8 e foi dimanado um artigo 6º nessa Lei nº 23/10, epigrafado “Produção de efeitos”, com este teor: «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor», ou seja, desde 1.1.2011, aspecto esse que o Projecto havia descurado. Na republicação da Lei nº 7/2001 foi mantido o seu artigo 11º, epigrafado “Entrada em vigor”, com este teor: «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor». Ou seja: a Lei 23/10, com o seu artigo 6º, não alterou nem substituiu o artigo 11º da Lei nº 7/2001, de redacção idêntica mas com alcance diferente (referem-se a diferentes OGE) ([4]).
A LN, ao eliminar os requisitos relativos a alimentos, tende a alargar o número de beneficiários de pensão de sobrevivência. Daí que o artigo 6º da LN não seja mera repetição nem substitua o disposto no artigo 11º da Lei nº 7/2001, que manteve: a razão de ser está no tendencial alargamento do número de beneficiários de pensão de sobrevivência e na exigência das normas de previsão e de cabimentação de despesa orçamental.
Preceitos com clara repercussão orçamental são os do artigo 3º, al. e) a g), e do artigo 6º à face da LA e à face da LN. Não vemos que outros a possam ter. Mas a LN alargar o âmbito dos beneficiários dos direitos das al. e) a g), por ser menos exigente quanto aos requisitos de acesso.

6. O conceito de “entrada em vigor” de uma lei não coincide necessariamente com o de “produção de efeitos” (sobre esses conceitos, vd. António Katchi, Dicionário da Parte Geral do Código Civil, 2ª ed).
A única norma da Lei nº 23/2010 sobre aplicação temporal consta do seu artigo 6º, “Produção de efeitos”: «Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do OGE posterior à sua entrada em vigor». Distingue pois entre “Produção de efeitos” e “entrada em vigor”. Preceitos com repercussão orçamental são claramente os das al. e), f) e g) do artigo 3º em conjugação com o artigo 6º alterado, tanto mais que essa Lei, ao banir o requisito da necessidade de alimentos para tais efeitos, alargou o círculo de beneficiários possíveis, sobrecarregando o orçamento da segurança social (que integra o OGE); e não vemos que outros preceitos possam ter repercussão orçamental. A aplicação dos preceitos relativos à protecção social referida nas al. e) a g) do nº 1 do artigo 3º, por força da alteração ao artigo 6º da Lei nº /2001, implica repercussão orçamental, até porque a alteração tende a alargar o número dos beneficiários de pensões a cargo da segurança social, ao diminuir o elenco dos requisitos para atribuição do direito.
Assim, a Lei nº 23/2010, de 30.8, entrou em vigor, segundo as regras gerais, em 4.9.2010, embora alguns preceitos, entre eles os da al. e) do artigo 3º que aqui interessa, apenas produzam efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2011, data em que entrou em vigor o OGE para 2011.
Deste modo, os conceitos de “factos passados” ou de “factos novos” ou de “relações jurídicas subsistentes”, utilizados no artigo 12º do CC, devem ter em conta o referido marco temporal.
Encurtando razões, entendemos que, quando esteja em causa um direito estatuído na al. e) do artigo 3º, cujos factos constitutivos venham alegados como factos passados, ou seja, ocorridos antes do início dos efeitos em 1.1.2011, há que aplicar a lei vigente à data da sua ocorrência, a não ser que a lei nova seja retroactiva ou interpretativa ou seja aplicável o disposto na 2ª parte do nº 2 do artigo 12º do CC. E, como veremos, a lei nova não é retroactiva, nem é interpretativa da Lei nº 7/2001.

7. Como dissemos, na presente acção a autora não pretende a constituição de uma relação jurídica alimentar, mas sim a constituição de uma relação jurídica ligando-a, como pensionista, à instituição de segurança social demandada. Mas esta última relação jurídica não é seguramente a relação jurídica «já constituída e que subsista à data da entrada em vigor» da lei nova, a que se refere o artigo 12º/2 – 2ª parte do CC: diversamente, esta acção é condição necessária para que, se proceder, se constitua essa relação jurídica.
Aqui interessa a protecção social referida na al. e) do artigo 3º da Lei, onde vem preceituado que as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a protecção (social) na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação dos regimes de segurança social.
Nessa al. e), cujo teor substancial não difere na LA e na LN, vêm referenciados determinados requisitos para atribuição do direito à “protecção social”:
- existência de união de facto (nas condições previstas na presente lei, ou seja, tal como o art. 1º a define e não se verificando alguma das excepções do artigo 2º);
- eventualidade/ocorrência da morte de um dos membros (morte que faz cessar a união de facto – art. 8º/1a));
- que o falecido seja beneficiário da segurança social.
(E, tratando-se de pensão de sobrevivência, o pedido da sua atribuição deve ser formulado no prazo de caducidade de cinco anos a contar da data do óbito, por aplicação do regime do DL nº 322/90 – artigo 48º). Aqueles três requisitos são comuns aos que a LA continha, salvo que o LN veio eliminar os requisitos relativos a alimentos, como dissemos. O referido direito (que é um dos efeitos jurídicos enumerados no dito art. 3º, vd. al. e)), enquanto objecto imediato da relação jurídica substantiva a estabelecer entre o pensionista e a instituição de segurança social, é o mesmo na LA e na LN. O que, na sucessão das duas leis, é diferente é o elenco de requisitos factuais cuja verificação é exigida para atribuição do direito.
Convém sublinhar que, por força da lei nova, o prazo de caducidade para requerer a atribuição do direito do sobrevivo de união de facto à pensão de sobrevivência, que era de dois anos a contar da data da morte (art. 2020º do CC para o qual remetia o art. 6º/1 da LA) passou a ser de cinco anos também a contar da data da morte segundo o regime geral das pensões de sobrevivência (art. 48º do DL nº 322/90). Quando a lei aplicável seja a LA vale o prazo de dois anos; quando a lei aplicável seja a LN vale o prazo de cinco anos. A contar da data da morte: neste aspecto não houve alteração ([5]).

8. Ao caso não interessam as normas adjectivas/processuais sobre aplicação das leis no tempo, constantes do artigo 142º do CPC, pois a alteração legislativa em causa não se refere aos actos, rito, formalidades ou formas do processo civil. Nem interessam aqui as normas sobre aplicação das leis no tempo constantes dos artigos 22º ou 24º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (a questão da competência ou da admissibilidade de recurso não vêm aqui colocadas). Há que atender primacialmente ao domínio legal substantivo sobre a questão em apreço. A Lei nº 23/2010 não contém preceitos de direito transitório, pelo que há que atender à lei substantiva geral – art. 12º e 13º do Código Civil.

9. O art. 12º do CC refere-se a factos e a efeitos.
Os factos regulados por lei podem ser constitutivos, modificativos ou extintivos duma relação jurídica, ou seja, a lei pode requerer que ocorram determinados factos para que se constitua ou se modifique ou se extinga uma relação jurídica, o mesmo é dizer, para que se constituam ou se modifiquem ou se extingam direitos ou deveres ou outros elementos do conteúdo de uma relação jurídica. E porque a lei requer ou pressupõe a ocorrência de certos factos para lhe associar a constituição ou a modificação ou a extinção duma relação jurídica, ou de algum elemento do conteúdo (direito, dever, etc), esses factos designam-se requisitos, ou pressupostos de facto. É comum a expressão “requisitos legais”, mas ela deve entender-se como se referindo a requisitos (de facto) exigidos por lei, ainda que a lei se lhes refira através de conceitos de direito (por exemplo, união de facto).
Há factos de execução ou ocorrência instantânea, vg. a morte ou a celebração de contrato; e há factos de execução duradoura, os que se protelam ou perduram ao longo do tempo. Um facto duradouro pode decorrer em parte na vigência de uma lei e em outra parte na vigência da lei nova: vg, a posse iniciada em 1960 que perdure até hoje ou uma união de facto iniciada em 2002 que perdure até hoje. O mesmo tipo de facto duradouro pode ter-se iniciado na vigência de uma lei e ter cessado antes da vigência de lei nova que alterou ou substituiu a anterior: vg, a posse iniciada em 1960 e cessada em 1966 ou uma união de facto iniciada em 2002 e cessada em 2009. 
No caso dos autos, a invocada união de facto, a ter existido, entre a A. e o seu companheiro beneficiário da Segurança Social, decorreu até à morte deste, em 23.11.2009 ([6]), portanto anteriormente à Lei nº 23/2010 de 30.8. Por força do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 8º, e até por imperativo lógico, a morte faz cessar a união de facto. O decesso ocorreu na vigência da LA. E os efeitos a considerar são os direitos de protecção social (onde avulta a pensão de sobrevivência), a favor do sobrevivente de uma união de facto.
Os factos, em geral, podem ser constitutivos ou modificativos ou extintivos de uma relação jurídica, ou de um qualquer efeito jurídico (direito, dever, ónus, sanção...) que integre o conteúdo de uma relação jurídica, mas no caso dos autos interessam-nos os factos constitutivos da relação união de facto, os extintivos dessa relação e os constitutivos da relação entre pensionista e segurança social.
Os factos constitutivos da relação união de facto são, positivamente, os que traduzam a vivência entre duas pessoas em condições análogas às dos cônjuges por mais de dois anos e, negativamente, os referidos no artigo 2º da Lei nº 7/2001.
Entre os factos extintivos dessa relação consta a morte, na LA e na LN.
Os factos constitutivos da relação jurídica substantiva entre pensionista e segurança social (relação cujo conteúdo será formado pelo direito da al. e) do artigo 3º e pela obrigação correspondente) são uns na LA e em parte outros na LN, como dissemos acima nos pontos 4 e 7.
Assim, os factos constitutivos da relação jurídica união de facto vêm abstracta e genericamente previstos, directamente ou por remissão, por exemplo nos artigos 1º, 2º, 6º da Lei nº 7/2001 (versão originária) e 2020º do Código Civil. Os efeitos jurídicos que formam o conteúdo da relação jurídica união de facto vêm estatuídos abstracta e genericamente, por exemplo, nos artigos 3º (onde consta a dita al. e) sobre a dita protecção social), 4º, 5º, 7º da Lei nº 7/2001 (versão originária) e legislação complementar. Os efeitos são as consequências jurídicas associadas a determinados factos. Para a constituição (ou modificação ou extinção) de um direito, objecto de uma relação jurídica, a lei pode exigir a verificação de um elenco maior ou menor de factos.
A união de facto traduz uma situação factual duradoura, na medida em que se prolonga no tempo, mas aquela cessa com a morte de um dos membros (além de outros modos de cessação que aqui não relevam). A união de facto, para ser protegida por lei, há-de ter pelo menos a duração de dois anos e um dia, computando o tempo naturalmente até que ela cesse. Como a união de facto (alegadamente por mais de 2 anos) cessou com a morte, que é facto instantâneo, então, embora seja em si mesma uma situação duradoura, deve haver-se, no âmbito em que nos movemos, como sendo “facto” instantâneo, ou seja, como algo que cessou ainda no âmbito da lei antiga (Lei nº 7/2001 na versão originária). A Lei nº 7/2001, apesar de alterada, mantém que a morte faz cessar a união de facto (art. 8º/1 a)), pelo que é absurdo defender-se que a união de facto perdura depois da morte.
A morte é, apesar da curiosa discordância isolada de alguma doutrina ([7]), um facto instantâneo: ocorre em data determinada, não perdura no tempo, não é facto duradouro. Com a morte de um dos membros cessa a união de facto e começa imediatamente a sobrevivência do outro, a não ser que haja comoriência de ambos. A sobrevivência é que perdura; perdura desde aquele óbito de 23.11.2009 e perdurará até que o sobrevivo também faleça. E é por a sobrevivência da A. perdurar sem que o seu direito à pensão de sobrevivência esteja decidido por sentença transitada em julgado, e por entretanto ter entrado em vigor a Lei nº 23/2010 alterando o regime da união de facto, é que se coloca o problema da aplicação das leis no tempo. Ser-se sobrevivo, a sobrevivência, não traduz uma relação jurídica substantiva, mas apenas o facto de alguém ter-se mantido ou manter-se vivo após a morte de outrem. Já o ser-se pensionista exprime a existência de relação jurídica: relação entre sujeitos credor e devedor de pensão, em razão de certo facto ou factos, por virtude de lei que atribuiu o direito (tutela jurídica).
A partir do momento em que o companheiro da A. faleceu, podia a A. (podia juridicamente) fazer valer o seu invocado direito de protecção social. Subjaz a ambas as Leis o pensamento de que, a partir desse momento, podem estar reunidos todos os pressupostos de facto exigidos para a A. fazer valer os seus direitos (daí as referências à “morte” ou “(data de) falecimento” nos artigos 3º al. e) da LA, 2020º/1 do CC na redacção anterior à LN, 2º-A/4, 3º/1 al. e), 5º/2 da LN e nº 3 do art. 41º do DL nº 142/73 alterado pela LN, bem como tal referência no não alterado nº 2 do art. 2020º do CC). Segundo ambos os regimes legais (LA e LN), o membro sobrevivo podia e pode fazer valer o seu direito a partir da morte do companheiro, que no caso ocorreu em 23.11.2009. Por isso, a lei antiga conta a partir daquele momento o prazo de caducidade (artigo 2020º/2 do CC ao referir expressamente a data da morte como termo inicial do prazo), sendo que os prazos de caducidade começam a correr quando o direito pode ser exercido – art. 329º do CC. Daí que, para o efeito de aplicação das leis no tempo, deve entender-se que os factos que permitem desencadear o efeito de atribuição ou o reconhecimento do direito a que se arroga o sobrevivente da união de facto se devem reportar à data da morte. É a partir da morte do companheiro que a A. podia contar com determinado regime jurídico de protecção social ([8]). E esse regime jurídico era, então, o constante da Lei nº 7/2001 e legislação complementar, na redacção anterior à conferida pela Lei nº 23/2010.
Isso quanto a factos. E, nesse âmbito, tanto a LA como a LN se debruçam sobre factos, pois que em boa parte é nessa alteração que se baseia a sentença proferida (decisão de mérito assente sobre os factos da causa de pedir embora sem discriminação do provado) e é essa alteração que é objecto da LN, cuja regulação visa o efeito “protecção social”.
Vejamos agora quanto aos efeitos. Estes são as consequências jurídicas que a lei atribui a um facto ou a um conjunto de factos. E, tendo efeitos jurídicos, o facto é um facto jurídico, ou seja, facto relevante para o Direito. Os efeitos jurídicos podem ser variados: atribuição de direitos, deveres, obrigações, ónus, sanções… Aqui interessa antes de mais – porque é a ele que se refere o pedido – o efeito que se pode designar como direito à protecção social pela Segurança Social, mais precisamente o direito à pensão de sobrevivência.
            Ora, se bem vemos, esse efeito jurídico, ou direito, é o mesmo na LA (art. 3º al. e)) e na LN (art. 3º/1 al. e)) – embora a redacção da alínea divirja em aspectos formais aqui despiciendos -- acrescendo que a alteração efectuada pela LN aos DL nº 322/90 de 18.10 e nº 142/73 de 31.3 não modifica esse efeito jurídico mas incide sobre ele. Ao nível do direito à pensão de sobrevivência, as alterações legislativas incidiram sobre os pressupostos de facto exigidos para a constituição do direito à pensão e do correspondente dever de a pagar (logo, requisitos de constituição da relação jurídica entre pensionista e segurança social), sobre a prova dos factos e sobre a competência (lato sensu) para conhecer da pretensão.
Como já referimos, analisado o teor da LN, pode concluir-se que tais alterações de regime estão aparelhadas para serem aplicadas em conjunto pela mesma entidade, a instituição de Segurança Social, no que à “protecção social” e reconhecimento do direito respeita, prosseguindo-se desse modo e nesse âmbito a desjudicialização e o alargamento do número de sujeitos beneficiários da pensão de sobrevivência (deste último aspecto é eloquente a retirada dos requisitos relativos a alimentos). E, a passagem da competência para a entidade administrativa, conexiona-se ainda com o aditamento do art. 2º-A, com a facultação do aligeiramento da prova (que o impetrante pode cingir à prova documental): facultação ao impetrante, mas não obrigatoriedade. Em matéria de pensões de sobrevivência a favor de sobrevivo de união de facto, a LN apenas prevê a intervenção do tribunal judicial no caso de o ISSS ter dúvidas sobre a existência da união de facto que tenha durado no máximo quatro anos e apenas para o efeito dessa comprovação. Compreende-se que as entidades administrativas não estejam tão bem vocacionadas para a complexidade da indagação sobre a existência da união de facto e, sob a LA, sobre as questões alimentares, como o estarão os tribunais.
O nº 2 do art. 12º do CC refere-se ainda ao conteúdo de relações jurídicas, ao prever a hipótese de lei que «dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem».
Os elementos essenciais duma relação jurídica são os sujeitos, o objecto (ou conteúdo), o facto, a garantia (tutela). O conteúdo, estrutura interna ou objecto imediato, define-se pelo conjunto dos direitos, deveres, vinculações, sujeições ([9]). Para a constituição, modificação ou extinção de um direito por lei, esta pode exigir a verificação de determinados factos, que são os requisitos ou pressupostos de facto. Quando uma lei atribui, modifica ou extingue um direito, ela está a dispor directamente sobre o conteúdo de uma relação jurídica. Quando uma lei posterior amplia ou restringe os pressupostos de facto exigidos para a atribuição do mesmo direito que uma lei anterior atribuía, aquela continua a dispor directamente sobre o conteúdo da relação. E daí pode resultar que, ampliando os requisitos, restrinja o número de beneficiários do direito abstractamente estatuído ou que, restringindo os requisitos, aumente o número de beneficiários do direito abstractamente estatuído.
Uma lei pode dispor directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. É o que sucede por exemplo com uma possível lei nova que venha dispor que os proprietários de imóveis podem erigir muros nas estremas até à uma vez e meia a altura de um homem médio: aí não interessaria o modo como a propriedade se constituiu e a lei nova aplicar-se-ia a todos os que venham a ser proprietários na sua vigência e também aos que o continuam a ser. Aí o regime incide apenas sobre o “estatuto legal” da propriedade.

10. Preceitua o art. 12º do Código Civil:
1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
A regra fundamental consta do nº1: a lei aplica-se para o futuro, o mesmo vale por dizer, aplica-se aos factos que ocorram a partir da sua entrada em vigor; a lei nova aplica-se, pois, aos “factos novos”; por regra, a lei não é retroactiva; é de aplicação imediata, quanto aos factos que regula e ocorram a partir do seu início de vigência e quanto aos seus efeitos. Mesmo quando a lei nova seja retroactiva, presume-se que os efeitos já produzidos sob a vigência da lei antiga não são atingidos por essa retroactividade. Uma lei tem eficácia retroactiva quando estende os seus efeitos a factos passados, ocorridos antes de ela entrar em vigor. A retroactividade não se presume: só pode ser expressa ou deduzida do seu regime.
Se não só os factos ocorreram, como também o efeito se produziu e se esgotou, sob o império da lei antiga (ou seja, antes do início de vigência da lei nova), então não há conflito entre leis que se sucedem no tempo: a lei nova não se lhes aplica. Isto, mesmo que a lei nova tenha eficácia retroactiva; a não ser que a lei nova pretenda estender, retroactivamente, os efeitos aos factos passados ou atingir os efeitos já produzidos (nº 1-2ª parte).
Se não só os factos ocorreram, como também o efeito se produziu, sob o império da lei nova (ou seja, a partir ou após o início da vigência da lei nova), também não há conflito entre leis que se sucedem no tempo: é a lei nova que se lhes aplica (nº 1-1ª parte).
Aqui a questão coloca-se porque, em casos como o presente, perante a questão da selecção da lei aplicável, há divergências na doutrina e na jurisprudência sobre se há factos que perduram ainda à data do início de vigência da lei nova e se, perante efeitos que ainda se não produziram (a atribuição do direito à pensão de sobrevivência), a lei nova dispõe directamente sobre o conteúdo de relação jurídica que subsista à data do início de vigência da lei nova, abstraindo dos factos que lhe deram origem. Há entendimentos divergentes sobre a aplicação dos preceitos do art. 12º do CC e há acórdãos que, na busca de critérios para selecção da lei aplicável, se socorrem de argumentos atinentes à natureza processual das normas, à natureza do direito social em causa, aos princípios das Bases Gerais da Segurança Social, aos princípios da Constituição como o princípio da igualdade, etc.
Na doutrina, João Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13.ª Reimpressão, Almedina, 2002, a pág. 233, entende que a lei nova que dispõe sobre certas situações jurídicas e as modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem, tem aplicação imediata, sempre que se trate de situações jurídicas constituídas antes da lei nova mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência, isto é: ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data do início de vigência da lei nova, aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos. E a pág. 235 e 236 refere que importa averiguar, para efeitos de aplicação da lei nova a factos passados, se existe ou não existe uma situação jurídica constituída quando da entrada em vigor da lei nova, podendo esta aplicar-se a factos anteriores se os mesmos se destinarem apenas a servir como pontos de referência para a definição do regime de direito material da situação jurídica criada ou a criar na sua vigência. Na obra do mesmo Autor, "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil", Almedina, 1968, diz-se a fl.s 356 que "... o artigo 12.º permite abranger na aplicação futura da LN factos passados-presentes (factos pressupostos) e que a distinção entre normas reguladoras de factos e normas reguladoras de direitos (...) constitui o núcleo de sentido do n.º 2 daquele artigo".
Note-se que esse Autor utiliza a expressão “situação jurídica” em vez de “relação jurídica” (também assim Menezes Cordeiro e Oliveira Ascensão; já C. A. Mota Pinto, in TGDC, 2005, p. 33, prefere utilizar a expressão “relação jurídica”): as expressões são substituíveis, mas o CC está estruturado com base na relação jurídica e esta é a expressão utilizada no artigo 12º do CC.
Como ensina a doutrina, tanto a 1ª parte como a 2ª parte do nº 2 do dito art. 12º supõem a sua aplicação apenas “em caso de dúvida”, ou seja, só se aplicam se da interpretação da lei em causa não resultar solução diferente ([10]). A selecção da lei aplicável pode estar dependente da sua interpretação, a fim de se apurar se a lei rege o problema da sucessão de leis, se é retroactiva ou não, se é interpretativa ou inovadora. Só no caso de a solução (sobre qual a lei aplicável de entre as que sucedem no tempo) não resultar da interpretação da lei nova é que temos de nos socorrer do disposto no nº 2 do artigo 12º do CC.  
A jurisprudência do Supremo diverge sobre se em casos como o presente é aplicável a lei antiga ou a lei nova.
De um lado, pela aplicação da lei nova a casos em que o óbito ocorreu antes da sua entrada em vigor, temos por exemplo o douto acórdão do Supremo de 16.6.2011 (Pº 1038/08-7ª, Sérgio Poças) que, pelo que se nos afigura, baseia a sua posição no seguinte, em suma:
- Que como a lei não faz depender expressamente a sua aplicação da morte do unido, segue-se que do novo regime não pode ser arredado o sobrevivo quando a morte ocorreu antes da sua entrada em vigor;
- Que a lei veio permitir um direito social mais favorável “em novos moldes” e sem fazer depender a sua aplicação da morte do beneficiário, e constando das Bases Gerais da Segurança Social os princípios da universalidade, da igualdade e da equidade social (“O princípio de equidade social traduz-se no tratamento igual de situações iguais e no tratamento diferenciado de situações desiguais”), não se pode conceder a um unido o que se não concede a outro, só porque a morte ocorreu antes ou depois da sua entrada em vigor;
- Donde, a lei nova é a aplicável, nos termos da 1ª parte do nº 1 do artigo 12º do CC;
- Que, de todo o modo, é aplicável o disposto no nº 2, 2ª parte do art. 12º do CC, pois que a lei, ao suprimir requisitos antes exigidos, alterou o conteúdo da situação jurídica, abstraindo do facto que lhe deu origem, e tal situação subsiste enquanto nada for decidido sobre a pensão. O “facto que lhe deu origem” é a dissolução por morte de uma união de facto. O que, “no essencial”, define a “situação jurídica em análise é o facto de o unido sobrevivo ter vivido em união de facto com o falecido beneficiário durante mais de dois anos”, é esse o facto constitutivo da situação jurídica. A morte apenas permite desencadear o exercício do direito à pensão;
- Que quem defende a inaplicabilidade da lei nova aos casos de óbitos anteriores com base no artigo 15º do DL nº 322/90 (“Momento da verificação das condições de atribuição”: «As condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário») e no artigo 11º da Lei nº 7/01 na redacção dada pela Lai nº 23/10 («Os preceitos da presente lei com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor») não tem razão, face aos campos de aplicação distintos: é que no art. 6º da Lei nº 7/01 são definidos os requisitos de que depende o exercício do direito à prestação social, enquanto no dito art. 15º só se define o momento da verificação das condições de atribuição. E o requisito necessidade de alimentos nunca poderia ser aferido à data da morte, pois que o requisito estava sujeito à apreciação actual. O dito artigo 11º apenas se refere aos normativos com repercussão orçamental e não a normas definidoras do âmbito subjectivo da prestação.
Quanto a nós, a tarefa do julgador pode desdobrar-se em: 1º-selecção da lei aplicável e interpretação dessa lei; 2º-aplicação da lei assim interpretada aos factos apurados. Com o devido respeito por entendimento diferente, consideramos não se dever confundir a justiça do caso concreto com a prévia selecção da lei aplicável de entre as que se sucedem no tempo: esta operação é anterior àquela.
Em sentido contrário ao daquele acórdão, encontramos o acórdão do STJ de 24-2-2011, Pº 7116/06.8TBMAI.P1.SI, 7ª sec, Granja da Fonseca, dgsi, de que se transcreve o seguinte excerto:
« (…) Interessa, então, saber se a Lei 23/2010 é uma lei inovadora, embora com eficácia retroactiva ou, pelo contrário, uma lei inovadora, incidindo apenas sobre o futuro e respeitando o passado, ou, então, não sendo uma coisa nem outra, se é lei interpretativa, o que, a verificar-se, gozaria de retroactividade, salvaguardadas as realidades enunciadas no art 13º do CC.
«Como regra, a lei não é nem deve ser retroactiva, incidindo apenas sobre o futuro e respeitando, pois, o passado É o que estabelece o artigo 12º, n.º 1, 1ª parte.
«Porém, como observa Galvão Telles(1), esta determinação obriga tão – somente o executor ou aplicador da lei, o qual não deve fazer desta uma aplicação retroactiva, excepto na medida e nos termos em que a lei, convenientemente interpretada o imponha, não vinculando, porém, o próprio legislador que pode, em princípio, fazer leis retroactivas (artigo 12ª, n.º 1, 2ª parte, “in initio”).
«Quando, porém, o legislador faça uma lei retroactiva, presume-se que ele pretende abranger exclusivamente, além dos factos e efeitos futuros, os efeitos pendentes, não se estendendo aos factos e efeitos passados, a não ser que o legislador manifeste de forma inequívoca essa sua vontade, afastando a aludida presunção (artigo 12º, n.º 1, 2ª parte, “in fine”.
«Assim, nada estabelecendo a Lei 23/2010 quanto à sua aplicação no tempo, vigora o princípio da sua não retroactividade, estando o julgador obrigado a esta determinação. Só assim não seria se a interpretação da Lei 7/2001, na sua actual redacção, apesar do legislador nada haver dito, impusesse a sua aplicação aos efeitos pendentes ou a factos pretéritos ou aos seus efeitos também pretéritos, o que manifestamente não acontece.
«Na verdade, apesar da Lei 23/2010 ter sido publicada em 30 de Agosto de 2010, os preceitos desta lei com repercussão orçamental, como é o caso do artigo 6º da Lei 7/2001, alterada, produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, por força do artigo 6º da Lei 23/2010, ou seja, a partir de 1 de Janeiro de 2011, data da entrada em vigor da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro, sendo certo que o acórdão recorrido havia sido proferido em 10/11/2009.
«Desde logo, o art 6º da Lei 23/2010 obsta a qualquer veleidade de se pretender atribuir eficácia retroactiva a esta lei.
«A não ser assim, a partir de quando seriam devidas as prestações ao membro sobrevivo: A partir da data do decesso do companheiro da autora, como o articulado da Lei 7/2001, primitiva redacção impõe, mas que o artigo 6º da Lei 23/2010 impede, ou apenas a partir de 1 de Janeiro de 2011 como esta lei impõe em manifesta contradição com o determinado na Lei 7/2001, que serviu de fundamento ao pedido da autora?
«Mais. Se o membro sobrevivo da união de facto não propusesse a acção para exercitar o direito a que se refere o n.º 1 do artigo 2020º do CCivil, nos dois anos subsequentes à data da morte do seu companheiro, caducaria esse direito.
«A entender-se que a lei teria eficácia retroactiva estariam salvaguardados não só os efeitos pendentes como todas as situações pretéritas, dada a circunstância da nova lei ter abolido o prazo de caducidade para a propositura da acção.
«Assim, ainda que um qualquer membro sobrevivo da união de facto não tivesse proposto a acção dentro do prazo de dois anos, a partir do decesso do companheiro, nomeadamente por não se verificarem os requisitos exigidos pela Lei 7/2001, nada obstaria, nessa interpretação, a que agora o fizesse, o que seria um absurdo.
«Poder-se-á, ao menos, considerar o artigo 6º da Lei 7/2001, na redacção dada pela Lei 23/2010, como norma interpretativa?
«Com efeito, caso se tratasse de uma norma interpretativa, integrar-se-ia na norma interpretada, o que quer dizer que retroagia os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada.
«Assim, o que atrás se deixou dito a propósito da não retroactividade da Lei 23/2010, vale para afastar a ideia de que se estaria perante uma lei interpretativa.
«Acresce que, com a alteração do artigo 6º da Lei 7/2001, na redacção dada pela Lei 23/2010, os requisitos exigidos para que o membro sobrevivo de uma união de facto possa beneficiar da protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, são distintos dos exigidos pelo citado preceito na sua primitiva redacção. Enquanto ali se exigiam, para a procedência da acção, a alegação e prova de factos que consubstanciassem os requisitos acima referidos, desde a carência/necessidade de alimentos por parte da autora e impossibilidade desta prover à sua subsistência e igual impossibilidade desta obter alimentos do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes ou dos irmãos, ou seja das pessoas indicadas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 2009º do CC bem como da herança do seu falecido companheiro, por inexistência ou insuficiência de bens, contenta-se agora a lei com a vivência em condições análogas às de cônjuges, há mais de dois anos, à data do decesso do membro beneficiário, independentemente da necessidade de alimentos do membro sobrevivo, só impedindo a atribuição de direitos ou benefícios o casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens.
«Para que uma lei nova possa ser realmente interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites impostos normalmente à interpretação e aplicação da lei (2).
«Ora, nem a solução do direito anterior era incerta ou controvertida, nem o julgador, em face do texto antigo do artigo 6º da Lei 7/2001, se podia sentir autorizado a adoptar a solução que a lei nova vem consagrar, pelo que, com segurança, se poderá afirmar que esta é decididamente inovadora, não se aplicando ao caso em apreço».

Propendemos para a solução deste último acórdão, ou seja, pela aplicação da lei anterior à Lei 23/10, em casos como o presente, em que a união de facto cessou por morte antes do início de produção de efeitos dessa Lei.
Primeiro, porque os factos constitutivos do direito feito valer através do pedido e que constam da causa de pedir são todos alegadamente passados, em relação à vigência da lei nova. Logo, pelo nº 1 – 1ª parte do artigo 12º do CC, a lei nova não é a aplicável ao caso.
Segundo, porque a lei nova não se apresenta como retroactiva. Faça-se o contraponto da Lei 23/10 alterando a Lei 7/01 com o Decreto-Lei nº 153/2008 de 6 de Agosto (referido acima no nº 2). E, por argumento de maioria de razão, se a lei nova quis que os seus efeitos se produzissem para uma data posterior à data de entrada em vigor, seria irrazoável que retroagisse os seus efeitos a factos passados, sem se assumir expressamente como lei retroactiva.
Terceiro, a lei nova não se apresenta como interpretativa da anterior, porque a controvérsia não incidia sobre a necessidade ou não de alimentos por interpretação do artigo 6º, mas sim sobre a exigência ou não de a herança ser também demandada. Houve um ou outro acórdão do STJ a afastar a exigência da necessidade de alimentos, mas à volta de questões de inconstitucionalidade com eco no Ac TC 88/04, cuja doutrina aliás veio a ser repetidamente repelida pelo mesmo TC (ver acima nº 4).
Por último, a relação material controvertida não é uma relação jurídica substantiva que subsista à data da entrada em vigor da lei nova, como passamos a explicar.
Seguindo o método clássico, aqui útil, na análise da norma da 2ª parte do nº 2 do artigo 12º do CC, temos:
-Parte previsiva ou hipotética: quando (a lei nova) dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, (e essas relações sejam) relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor;
-Parte estatutiva: entender-se-á que a lei (nova) abrange essas relações.
Importa então verificar qual é a relação jurídica sobre a qual a lei nova disponha e que não só esteja constituída e ainda subsista à data da sua entrada em vigor. Variados acórdãos falam em “situação… que ainda não está resolvida” (vg. acórdão desta Relação, de 23.02.2011, Arlindo Oliveira, Pº 1029/10, em www.dgsi.pt) e que assim subsistiria ainda, para justificarem a aplicação da lei nova.
Evidentemente, que não é essa situação ou circunstância de ainda não haver decisão de mérito que releva para efeito do artigo 12º do CC: essa é apenas a circunstância justificativa de termos de seleccionar uma das várias leis que se sucedem no tempo, mas não é critério que o artigo 12º do CC releve para a selecção da lei. O direito invocado pela autora ainda não está reconhecido, pois que ainda não há decisão final de mérito, transitada em julgado: enquanto não houver decisão definitiva favorável à A. não há relação jurídica substantiva constituída entre ela e a segurança social.
Relações jurídicas substantivas congemináveis ou possíveis (com os elementos a que já aludimos acima no nº 9) apenas vemos duas: a relação união de facto ou a relação entre pensionista e segurança social.
Todavia, a relação jurídica substantiva pensionista/segurança social ainda não está constituída; se e quando o estiver provocará uma alteração na ordem jurídica existente (art. 4º/2-c) do CPC). Apenas existe por enquanto uma relação jurídica processual, das duas partes perante o tribunal. Mas as normas, da LA ou da LN, a aplicar no caso vertido neste processo pela autora, não são normas de natureza processual, mas sim de natureza substantiva como vimos: o processo é apenas o “locus” em que a questão da aplicação das leis no tempo se tem de resolver. E a relação jurídica substantiva entre membros da união de facto já não é subsistente à data da entrada em vigor da lei nova: tal relação já cessara com a morte de um dos membros.
É certo que a lei nova dispõe directamente sobre o conteúdo de uma relação jurídica (a da união de facto), como se vê pelo artigo 6º que alterou e com referência ao art. 3º al. e) a g), e que o faz abstraindo dos factos que lhe deram origem (que deram origem a essa relação). Mas essa relação não subsistia à data da entrada em vigor da lei nova. Ela subsistiria sim se tivesse começado antes da data da entrada em vigor da lei nova e se tivesse cessado já durante a vigência da lei nova.

11. Discordamos, pois, do douto acórdão desta Relação de 23.02.2011, segundo o qual «o factor que fundamenta o direito ao benefício de recebimento das pensões em causa não é o óbito do beneficiário (…), mas sim a situação de união de facto em si mesma considerada, que se dissolveu»… É para nós evidente que a factualidade que fundamenta o direito é múltipla e um dos factos é a morte – basta ver a al. e) do artigo 3º (…”eventualidade morte”…) e devemos atentar no prazo de caducidade que se conta a partir da morte, sendo a partir desse o direito pode ser exercido, como já dissemos (cf. 48º do DL nº 322/90 que estabelece o prazo de 5 anos a partir do óbito e cf. art. 329º do CC).
Também discordamos do douto acórdão segundo o qual, «em casos como o presente, em que a situação ainda não se encontrava decidida aquando do início de vigência da lei nova, trata-se de um caso de conteúdo de relações jurídicas já constituída e subsistente à data da entrada em vigor da nova lei». É que não há relação jurídica subsistente e a “situação não se encontrar decidida” não é uma relação jurídica.
Há também quem apele à ideia de que se trata de direito social e que a lei nova é mais favorável, havendo pelo menos um acórdão que faz apelo a este princípio do direito penal.
Só que: a) o direito tanto é social na LA como na LN, é o mesmo; b) tratar-se de direito social não é critério legal utilizado para seleccionar a lei aplicável entre as que se sucedem no tempo e o juiz não deve imaginar critérios; c) o regime dos direitos sociais, pelo menos o que está em causa, não tem normativo diferenciado dos restantes direitos quanto à aplicação das leis no tempo; d) tratar-se de lei mais favorável é critério utilizado sim no direito penal, mas esta não é acção penal e as normas excepcionais não são susceptíveis de aplicação analógica (art. 11º do CC).
Há também quem apele à ideia de que para a relação alimentar o que interessa é a necessidade actual, deixando implícita a ideia de que assim não se pode, em casos como o presente, falar em “factos passados”.
Só que: embora a LA exija a verificação de requisitos relativos à necessidade alimentar, esta não é uma acção de alimentos; o critério da actualidade tem a ver com a fixação da obrigação alimentar, mas aqui não se pretende nem há lugar a tal fixação. Acresce que: para efeitos do artigo 12º do CC, a interpretação decisiva a efectuar não é a da LA mas sim a da LN, mas esta abole o requisito da necessidade alimentar.
Há também quem apele à ideia de que a aplicação da LN é necessária em atenção ao princípio da igualdade perante a lei, não se devendo distinguir entre óbitos ocorridos antes e depois da data da entrada em vigor da nova lei.
Só que, segundo nos parece, saber se, num caso concreto (e aos tribunais judiciais só interessa o caso concreto), determinada norma infringe ou não a CRP, pressupõe metodologicamente que primeiro se seleccione a lei aplicável e de seguida se faça dada interpretação da lei escolhida. Só perante uma norma seleccionada, e interpretada em determinado sentido, é que terá cabimento ponderar a inconstitucionalidade. A não ser que tal inconstitucionalidade já esteja declarada (o que, já o explicámos, não ocorre – vd. acórdãos do TC citados).
De resto, a dimanação de leis que alteram leis anteriores, conferindo novo tratamento jurídico a casos da vida real, é frequente. Muitas vezes essas leis são motivadas por novas concepções acerca da vida real ou por adaptação a novas realidades ou por razões de oportunidade. Se uma LN, que consagre novas concepções acerca da vida real, pudesse sem mais tornar inaplicáveis as “leis dos factos” passados, só porque ainda não há caso julgado, então ou se paralisava boa parte da actividade legislativa ou o artigo 12º do CC ter-se-ia há muito tempo tornado letra morta.
Discordamos também do entendimento segundo o qual a LN é retroactiva atendendo a que o artigo 9º do Dec-Regulamentar nº 1/94 também o era. É que, por um lado, a LN não tem preceito semelhante e, por outro lado, sabendo-se que a regra é a de as leis não serem retroactivas, devemos atender ao artigo 11º do CC: as normas excepcionais não comportam aplicação analógica.

Concluímos que ao caso é aplicável a Lei nº 7/2001 e não a Lei nº 23/2010.

IV- Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão impugnada, que deve ser substituída por outra que faça prosseguir o processo e sem restringir os meios de prova legalmente admissíveis como restringiu.
Custas pela apelada.


Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira ( vencido ) Entendo que é aplicável o art.12 nº2, 2ª parte do C.C. numa interpretação que julgo ser hodiernamente maioritária do S.T.T.


[1] Preceituava o artigo 2019º do Código Civil (CC), na redacção da Lei nº 61/2008: «Em todos os casos referidos nos artigos anteriores, cessa o direito a alimentos se o alimentado contrair novo casamento, ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral». A Lei nº 23/10 alterou esse artigo para os termos seguintes: «Em todos os casos referidos nos artigos anteriores, cessa o direito a alimentos se o alimentado contrair novo casamento, iniciar união de facto ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral».
[2] Passamos a referir lei antiga ou LA para designar a Lei nº 7/2001 e a legislação complementar, em qualquer caso com a redacção anterior à Lei nº 23/2010. E passamos a referir lei nova ou LN para designar a Lei nº 23/2010, bem como a nova redacção que esta Lei conferiu à Lei nº 7/2001 e à referida legislação complementar.
[3] Note-se que, independentemente da alteração à Lei nº 7/2001, a união de facto que a lei tutela não é um simples facto, mais do que isso é um conceito de Direito, conforme seus artigos 1º e 2º. Daí, como atribuir valor probatório pleno a uma certidão da junta, declarando que tal e tal viveram em união de facto durante mais de dois ou de quatro anos? Onde a especificação das condições análogas às dos cônjuges, concretamente verificadas? E se ocorrer alguma das excepções previstas no art. 2º?
[4] Contra, mas contendo alguns lapsos visíveis no texto na net, ver acórdão do STJ de 16.6.2011, Pº 1038/08-7ª, abaixo citado.
[5] O artigo 297º do CC resolve a questão da alteração de prazos, na sucessão de leis. Mas a caducidade não é questão aqui colocada. Apenas quisemos sublinhar a contagem dos prazos desde a data da morte em qualquer dos dois regimes.
[6] Dissemos “até”, porque logicamente só duas pessoas vivas podem estar unidas, em termos de “união de facto”. O novo nº 3 do artigo 6º prevê uniões de facto que tenham «durado pelo menos dois anos após o decurso do prazo estipulado no n.º 2 do artigo 1º», ou seja, pelo menos 2 anos após uma duração superior a 2 anos contados até à morte de um dos companheiros. O que traduz um duplo lapso do legislador: não pode ser «após», dado que a união cessa com a morte, por necessidade lógica e biológica (e pelo art. 8º/1 a)); não se somam dois anos a uma duração superior a dois anos – só tem sentido somar dois e dois. Parece que o legislador terá pretendido referir-se, nesse nº 3, a uma duração superior a 4 anos, contada até à morte…
[7] Assim, Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra Editora, 2002, pág. 773, escreve: «(…) se a expressão nos é permitida, não há facto mais duradouro que a morte; ou seja, esse requisito necessariamente perdura no futuro. Diríamos mesmo que é o único que, se existia no momento da lei antiga, irremediavelmente continua a existir no domínio da lei nova». Todavia, dizemos nós, esse juízo contraria a observação empírica e os dados fornecidos pelos certificados médicos de óbitos e os registos de óbito. E contraria o sentido da lei, cujos preceitos se tornariam ininteligíveis, por exemplo nos art. 68º/1 (a personalidade cessa com a morte), 71º/1 (“depois da morte”), 114º/3 (“dia da morte presumida”), 118º/1 (idem), 2020º/2 (prazo de caducidade contado após “data da morte”), 2025º, 2031º (“momento da morte”)… todos do CC. Com o devido respeito, o Autor confunde morte com a situação de falecido (particípio passado de falecer). Evidentemente, é próprio afirmar-se, mesmo após 4.9.2010, que José Francisco Vaz faleceu aos 23.11.2009, mas isto não significa ser a morte um facto duradouro, que ainda perdure, antes significa ser a morte um facto irreversível.
[8] Isso não implica que eventuais alterações na situação de facto verificadas posteriormente, até à propositura duma acção ou mesmo até à sentença, não possam relevar: configure-se a hipótese de entretanto se apurar que a certidão de óbito era falsa e a pessoa afinal vive ou a hipótese de entretanto a herança passar a poder alimentar o sobrevivo ou deixar de poder alimentar…
[9] Cf. João de Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, 1994, p. 128 s.
[10] Cf. Vaz Serra, RLJ 110º, p. 271 – 2ª col. e p. 272.