Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/12.4TBSBG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
RECONVENÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.274, 334, 1053 CPC
Sumário: 1. Se em acção com processo especial para de divisão de coisa comum, regulado nos artigos 1052.º e seguintes, do Código de Processo Civil, for deduzida reconvenção, a mesma só pode ser admitida, face ao disposto no n.º 3 do artigo 274.º, do mesmo código, sem prejuízo de outras razões para a rejeição, se as questões suscitadas nos articulados implicarem o prosseguimento dos autos, seguindo o processo comum declarativo, mas não se o processo terminar nesta fase, devido ao facto de tais questões serem decididas logo após os articulados.

2. O direito de fazer cessar a compropriedade, conferido pelo n.º 1, do artigo 1412.º, do Código Civil, não pode ser exercido, face ao disposto no artigo 334.º do mesmo Código, verificadas estas circunstâncias:

a) O objecto da compropriedade é constituído por uma faixa de terreno, com 20 metros de comprimento, por 4 metros de largura, situada a sul do prédio dos autores e a nascente do prédio dos réus;

b) Desde que a faixa existe, a única função por si desempenhada tem sido a de servir de passagem de pessoas e carros para ambos os prédios;

b) Esta faixa de terreno é o único espaço que permite o acesso de veículos à garagem do prédio dos réus e de lenha para as respectivas arrecadações;

c) Objectivamente, com a cessação da compropriedade sobre esta faixa, os autores não obtêm qualquer benefício relevante e adicional a favor do seu prédio;

d) O prosseguimento da acção pode implicar para os réus a perda do actual acesso com veículos à garagem do seu prédio e respectivas arrecadações;

e) No futuro poderá ser ou não constituída uma servidão de passagem por essa mesma faixa a favor do prédio dos réus; assim como pode implicar para os autores a perda do acesso por essa faixa ao seu prédio.

Decisão Texto Integral: I. Relatório.

a) O presente recurso tem origem numa acção de divisão de coisa comum que os autores, ora recorridos, instauraram contra os réus recorrentes, com o fim de porem termo à situação de indivisão em que se encontra uma faixa de terreno com 20 metros de comprimento por 4 metros de largura, a qual confronta a norte com a casa de habitação dos autores e a poente com a habitação dos réus.

Os réus apresentaram contestação sustentando que os autores não podem obter a cessação da compropriedade porque o exercício de tal direito por parte deles constitui uma situação de abuso de direito face ao disposto no artigo 334.º do Código Civil, na medida em que essa faixa de terreno não tem qualquer outra utilidade a não ser proporcionar o acesso aos edifícios ali existentes, designadamente o acesso dos réus à garagem e arrecadações do seu prédio.

Foi proferida decisão a julgar a contestação improcedente e a ordenar o prosseguimento da acção com vista a obter-se a cessação da compropriedade, por se entender que não ocorria a apontada situação de abuso de direito, fundamentalmente por se considerar que os réus, caso não fiquem a ser donos exclusivos da parcela, sempre poderão exigir a constituição de uma servidão de passagem através dessa faixa.

Decidiu-se ainda julgar inadmissível a reconvenção deduzida pelos réus recorrentes argumentando-se que a reconvenção «…mais não é do que uma mera consequência da contestação, não existindo um pedido autónomo e cindível da defesa apresentada», e que «…não são susceptíveis de ser decididas em sede reconvencional questões como a divisibilidade do prédio cuja compropriedade de pretende findar, a desnecessidade do exercício de dissolução da compropriedade ou o carácter abusivo desse exercício, as quais serão devidamente tratadas na apreciação do mérito da contestação».

É de ambas as decisões que vem interposto o presente recurso.

b) Os réus recorrentes concluíram desta forma:

«1 – O pedido reconvencional deduzido pelos RR resulta do facto jurídico que serve de fundamento à acção.

2 – O pedido reconvencional é autónomo da oposição deduzida na contestação porque os efeitos pretendidos são diversos designadamente porque com a reconvenção os RR pretendem a declaração de existência de abuso de direito pelos AA no recurso à divisão da compropriedade.

3 – O julgamento do pedido reconvencional não exige especialidades processuais especificas que contrariem a especificidade da acção de divisão, visto que se trata, pura e simplesmente de uma decisão de direito, uma vez que os factos principais em apreço constam de duas decisões judiciais anteriores com certidões das mesmas juntas aos autos.

 4 – Existem assim fundamentos para a admissão do pedido reconvencional no caso dos autos

5 – Tendo havido assim pelo tribunal a quo e nessa parte violação do disposto no artº 274º nºs 1 e 2 a) do C.P.Civil.

6 – Existem, para além disso nos autos, elementos suficientes para decidir desde já de tal pedido no sentido constante do pedido reconvencional.

7 – Com efeito o terreno de que foi pedida a divisão referido no artº 1º da P.I. é indivisível atenta a função que desempenha e o fim para que existe.

8 – O referido terreno por decisões judiciais já transitadas em julgado tem como fim económico e social a passagem e acesso gratuito a prédios urbanos pertença de AA e prédios pertença dos RR., sendo que para um prédio dos RR é o único acesso de veículos para garagens e arrecadações a partir de uma rua pública.

9 – Não existe qualquer vantagem seja para AA seja para os RR em que o prédio seja objecto de divisão pois da mesma pode resultar injustificadamente a alteração do direito e para pior do que lhes foi reconhecido na acção sumária nº 64/08.9TBSBG

10 – No caso vertente não existe razão para se proceder à divisão do bem em causa, uma vez que tal não é exigido para desbloquear a inércia de qualquer dos comproprietários ou activar qualquer acto ou negócio jurídico que qualquer dos comproprietários necessite de executar sobre o referido bem.

11 – O recurso pelos AA à acção de divisão excede manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que os mesmos possuem sobre o prédio referido no artº 1º da P.I.

12 – A concentração da propriedade do terreno num dos comproprietários dificultará a situação ao comproprietário que não ficar com o terreno pois terá de pagar o direito de passagem de que hoje beneficia gratuitamente.

13 – Verificam-se assim, no caso, as circunstâncias a que alude o artº 334º do Código Civil,

14 – Sendo completamente injustificado o recurso pelos AA ao direito a findar a compropriedade.

15 – Excedendo, injustificadamente, o recurso pelos AA ao direito á divisão, os limites impostos pelo fim económico e social do direito em causa.

Pelo que:

A) Deve ser revogada a douta decisão recorrida com os fundamentos supra expostos

E em consequência

B) Admitir-se o pedido reconvencional e

Por os autos conterem os elementos bastante para produção da decisão

C) Julgar-se procedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR e declarar-se que o recurso pelos AA à presente acção de divisão excede manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que os mesmos possuem sobre o prédio referido no artº 1º da P.I.,

D) Condenando-se os AA. a reconhecer as situações referidas supra de 1 a 15 e em custas e procuradoria.

Ou assim não sendo entendido e porque os autos contém os elementos necessários á decisão

E) Julgar-se procedente a oposição deduzida pelos RR com os fundamentos referidos supra de 7º a 15º da conclusão,

F) Absolvendo-se os RR do pedido com todas as consequências legais».

c) Os autores contra-alegaram pugnando pela manutenção da sentença.

Alegam, em resumo, que o pedido reconvencional não é admissível porque «Com tais pedidos eles visam que se declare a indivisibilidade do terreno, indivisibilidade que já estava alegada e justificada na petição inicial da presente acção de divisão de coisa comum; que se declare que o terreno tem como fim a passagem e acesso a prédios urbanos pertencentes a AA. e aos RR., o que também já estava mencionado na petição inicial, e que os AA. sejam condenados a tal reconhecer. Ora, não se pode condenar o autor a reconhecer o que expressamente já aceitou e reconheceu na petição inicial, pelo que tais pedidos de declaração e consequente condenação dos autores a reconhecê-la não consubstanciam pedidos reconvencionais.

Mais pedem nela os réus que se declare que não há vantagem para as partes que o prédio seja dividido, que não existe razão para proceder à divisão pedida pelos autores, e que estes, ao intentarem a presente acção, excederam manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que eles possuem no prédio, condenando-se os AA. a tal reconhecerem.

Estes pedidos são, como se infere da decisão impugnada, mera consequência da defesa que os recorrentes efectuaram na contestação e que, sendo procedentes, motivariam a improcedência da acção e absolvição dos RR., e nunca qualquer condenação dos autores»

E quanto ao alegado abuso de direito entendem que o mesmo não se verifica.

Com efeito, «…o temor dos RR., no caso de deixarem de ser comproprietários do imóvel, de que o direito de passagem para os prédios urbanos de que são proprietários possa ser embaraçado, ou mesmo impedido pela pedida divisão de coisa comum, não tem o mínimo fundamento. Concretizada a divisão, a sentença que vier a ser proferida no final desta acção não colide com o fim a que o terreno se destina, nem prejudica o decidido na sobredita sentença».

«Por isso, o direito de pedir a divisão é um direito potestativo cujo exercício só pode ser impedido enquanto vigorar a convenção em que se determinou que a coisa se conserve indivisa. Decorrido o período de tempo fixado na convenção, se ele não for renovado, qualquer comproprietário pode exigir a divisão.

No caso dos autos as partes nunca convencionaram a indivisibilidade do terreno, nem os RR. o aludiram na contestação.

Por isso, o simples exercício de direito potestativo de pedir a divisão ao abrigo do artigo 1412.º do Cód. Civil não pode exceder o fim social e económico mesmo direito, fim esse que é o de obter a divisão, terminar com a compropriedade… Não há, portanto, abuso de direito».

d) Objecto do recurso.

As questões que o presente recurso coloca são as seguintes:

Em primeiro lugar, cumpre verificar se a reconvenção é admissível; em segundo lugar, se o pedido feito na petição inicial configura uma situação de abuso de direito face ao disposto no artigo 334.º do Código Civil.

II. Fundamentação.

A – Matéria de facto provada.

Muito embora a decisão sob recurso não contenha matéria de facto provada, cumpre, de acordo com a estrutura própria das decisões, indicar tal matéria, o que se passa a fazer, estando a mesma provada documentalmente.

1 – Os autores e os réus são comproprietários de uma faixa de terreno situada a sul dos prédios (dos ora autores) descritos sob os artigos urbanos x ....º e y ....º da matriz urbana da freguesia da Malcata, e entre os prédios dos réus a poente e a Rua ... a nascente, com o comprimento de cerca de 20 metros e largura de cerca de 4 metros, por o haverem adquirido por usucapião conforme sentença proferida na acção sumária que correu termos no Tribunal judicial da comarca de Sabugal sob o n.º 64/08.9TBSBG.

2 – Do dispositivo do processo n.º 64/08.9TBSBG, já transitado em julgado, consta o seguinte:

A faixa de terreno situada a sul dos prédios descritos sob os artigos x ....º e y ....º da matriz urbana da freguesia de Malcata, entre os prédios dos réus a poente e a Rua ... a nascente, com o comprimento de 20 metros e largura de cerca de 4 metros é espaço comum destinado a rua, passagem e acesso para os prédios urbanos descritos na matriz urbana da freguesia de Malcata sob os artigos x ..., y ..., w ... e z ....

Por tal espaço existe o único acesso para veículos tractores e lenhas para as garagens e arrecadações dos réus existentes no prédio descrito sob o artigo z ... da Malcata.

3 – Esta faixa não está a mesma inscrita como prédio urbano na respectiva matriz, carecendo, por isso, de artigo matricial próprio e, por consequência, também carece de descrição na conservatória do Registo Predial competente.

4 – Os réus A (…) e esposa intentaram nova acção no tribunal judicial da comarca de Sabugal, a qual coube o n.º 83/10.5TBSBG, através da qual pediram anulação do averbamento à descrição que os autores J (…) e esposa chegaram a fazer na Conservatória do Registo Predial e Sabugal, em que passaram a área total dos prédios descritos sob os artºs x ... e y ... da freguesia de Malcata de 324 m2 para 451,44m2, incorporando a área da parcela.

5 – Esta acção foi julgada procedente e o averbamento à descrição registral 2406-Malcata da C.R. Predial de Sabugal, foi cancelado.

B – Questões objecto do recurso.

1 – Em primeiro lugar cumpre verificar se a reconvenção é admissível.

Procedendo a uma análise directa e pragmática do caso, cumpre desde logo ter em consideração o disposto no n.º 3, do artigo 274.º, do Código de Processo Civil, na parte que aqui interessa, cuja redacção é a seguinte:

«Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos…».

Verifica-se, no caso dos autos, que a 1.ª instância tomou conhecimento do mérito da contestação findos os articulados e decidiu no sentido de julgar a contestação improcedente.

Face ao disposto no mencionado n.º 3 do artigo 274.º do Código de Processo Civil, esta situação processual implica automaticamente a inadmissibilidade da reconvenção, na medida em que a admissibilidade da reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, fica dependente das vicissitudes sofridas pela forma de processo que segue o pedido do autor.

No caso das acções de arbitramento, como a espécie dos autos, em que se visa obter a divisão de coisa comum, as questões suscitadas pelo réu na contestação podem ou não ser resolvidas logo a seguir aos articulados.

Se tais questões não forem logo resolvidas, isso implica que o processo prossiga segundo as regras do processo comum que for aplicável, tendo em conta o valor da causa, pelo que, nestas condições processuais e só nestas, o pedido reconvencional pode ser conhecido pelo tribunal, na medida em que é compatível com a forma processual seguida pelo processo especial de divisão de coisa comum.

É este o regime processual, como se pode constatar pela redacção dos n.º 2 e 3 do artigo 1053.º (Citação e oposição) do Código de Processo Civil, onde se prescreve o seguinte:

«2 - Se houver contestação ou a revelia não for operante, o juiz, produzidas as provas necessárias, profere logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão, aplicando-se o disposto no artigo 304.º; da decisão proferida cabe apelação, que subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

3 - Se, porém, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, mandará seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum, adequados ao valor da causa».

No caso dos autos, como se disse, foi proferida decisão na fase que se seguiu aos articulados, a qual pôs termo ao processo, logo, se a reconvenção fosse admissível, implicaria que o processo seguisse só para a apreciar a si, mas não é esta a situação que a lei processual prevê, antes prevê a inversa, pois se as questões suscitadas na contestação forem resolvidas, a fase declarativa deste processo especial termina aqui.

Sendo assim, só por este facto, a reconvenção não é admissível, por não ser compatível com a forma processual seguida pelo pedido do autor.
Sobre esta problemática, o Prof. Alberto dos Reis exprimiu-se (neste sentido), a propósito de um caso sobre o qual incidiu um acórdão da Relação de Lisboa, de 5 de Maio de 1943, nos seguintes termos:
«A Relação de Lisboa revogou o despacho. Decidiu que a reconvenção era admissível, por isso que, em consequência da contestação do réu o processo tinha de seguir os termos do processo comum (ordinário ou sumário), termos que eram os adequados para se julgar a questão posta na reconvenção.

Na Revista de Legislação apreciei largamente o problema, chegando à conclusão de que o acórdão de 5-5.º-943 decidida correctamente. Desde que, por força da 2.ª alínea do art. 1051.º, o processo tinha de seguir os trâmites comuns, a questão da simulação da venda podia, sem dúvida, ser discutida e julgada juntamente com a matéria da contestação. Dava-se até a circunstância de que o fundamento da contestação era precisamente o mesmo que o da reconvenção» ([1]).

Face ao que fica dito, mesmo sem proceder à análise dos pedidos formulados pelos réus, no sentido de verificar se são pedidos susceptíveis de serem deduzidos em reconvenção, pode concluir-se que a mesma não pode prosseguir, salvo se se concluir o processo tem de ir além da fase em que presentemente se encontra.

Apesar do que fica dito, sempre se dirá, no que concerne a aptidão processual dos pedidos, que não se afigura, por exemplo, que os pedidos formulados sobre os n.º 3 e 4 sejam pedidos susceptíveis de serem formulados numa acção ou numa reconvenção (isto é: «3 – Não existe qualquer vantagem seja para AA seja para os RR em que o prédio seja objecto de divisão pois da mesma pode resultar injustificadamente a alteração do direito que lhes foi reconhecido na acção sumária nº 64/08.9TBSBG» e «4- No caso vertente não existe razão para se proceder à divisão do bem em causa, uma vez que tal não é exigido para desbloquear a inércia de qualquer dos comproprietários ou activar qualquer acto ou negócio jurídico que qualquer dos comproprietários necessite de executar sobre o referido bem»).

Com efeito, as acções, no caso de simples apreciação, destinam-se, nos termos da al. a), do n.º 2, do artigo 4.º do Código de Processo Civil, a «…obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto».

Ora, com os pedidos em causa não se pede a declaração da existência de um direito e a correspondente obrigação do devedor, nem a declaração da existência de um facto, sendo um facto um fragmento singular da realidade, algo, portanto, situado num certo tempo e num certo espaço ([2]).

E quanto aos dois primeiros pedidos, ou seja, «1 – O terreno de que se pede a divisão referido no art. 1.º da P.I. é indivisível atenta a função que desempenha e o fim para que existe» e «2- O referido terreno tem como fim económico a passagem e acesso a prédios urbanos pertença de AA e prédios pertença dos RR., sendo que para um prédio dos RR é o único acesso de veículos para garagens e arrecadações», não se afigura que haja interesse em agir por parte dos réus ([3]).

Como referiram os autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, «…nas acções de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave.

Será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação de um facto, o acto material de contestação dum direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (de requerimento da assistência judiciária ou de procuração a um advogado para a proposição de uma acção), etc.

A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor. A afirmação da existência de uma servidão sobre determinado prédio pode, por exemplo, dificultar a alienação dele pelo seu justo preço; o boato da falsidade da assim atura de um dos subscritores da letra pode impedir o desconto dela; a paternidade da criança atribuída a certa pessoa pode abalar o prestígio social e o bom nome do visado, etc.

Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da acção de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual» ([4]).

Ora, os autores reconhecem na petição a realidade correspondente à indivisibilidade da faixa de terreno e quanto ao segundo pedido o mesmo faz parte do dispositivo da decisão tomada no processo nº 64/08.9TBSBG, como se vê pelo teor da matéria de facto que ficou supra exarada.

Por conseguinte, quanto a tais pedidos, a instância findaria quanto a eles.

Verdadeiramente o único pedido que poderia subsistir é o formulado em último lugar relativamente ao abuso de direito, dos quais os anteriores pedidos serão as suas premissas.

Concluindo:

Como houve decisão final na fase posterior à dos articulados, a qual pôs termo à contestação dos réus, a reconvenção é inadmissível.

Mas como a decisão está dependente de recurso, tal inadmissibilidade, com este fundamento, depende, ainda, do trânsito em julgado de tal decisão.

Por conseguinte, como essa questão depende da confirmação ou revogação da decisão que declarou inexistir abuso de direito relativamente à proposição da acção, a questão da admissibilidade da reconvenção só pode ser decidida, no final, conjuntamente com esta segunda questão.

Passando, por conseguinte, à análise da outra questão colocada no recurso.

2 – Consiste em saber se o pedido feito na petição inicial configura uma situação de abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º do Código Civil.

Prescreve-se nesta norma que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Vejamos então o que, no caso dos autos, poderá estar a ser exercido ilegitimamente (ilicitamente) ([5]).
É consensual no processo que o objecto do exercício do direito consiste no poder conferido pela ordem jurídica aos autores, no confronto com os réus, de fazerem cessar a situação de compropriedade em que se encontram uns e outros relativamente à faixa de terreno de 20m de comprimento, por 4m de largura, que se situa a sul do prédio dos autores e a nascente do prédio dos réus.
Os autores alegam que «o direito de pedir a divisão é um direito potestativo cujo exercício só pode ser impedido enquanto vigorar a convenção em que se determinou que a coisa se conserve indivisa. Decorrido o período de tempo fixado na convenção, se ele não for renovado, qualquer comproprietário pode exigir a divisão.
No caso dos autos as partes nunca convencionaram a indivisibilidade do terreno, nem os RR. o aludiram na contestação. 
Por isso, o simples exercício de direito potestativo de pedir a divisão ao abrigo do artigo 1412.º do Cód. Civil não pode exceder o fim social e económico mesmo direito, fim esse que é o de obter a divisão, terminar com a compropriedade… Não há, portanto, abuso de direito».
Estas afirmações dos autores correspondem, sem dúvida, à realidade jurídica do caso.
À primeira vista, esta posição dos autores parece incontestável, mas é sabido que todo o exercício concreto de um direito pode ser confrontado com a norma do artigo 334.º do Código Civil, invocada pelos réus, que proíbe certas formas de exercício do direito.
Com efeito, a ordem jurídica é um sistema.
 Como todo o sistema, a ordem jurídica é constituída por um conjunto de elementos interligados e dispostos de modo a formar um todo organizado e coerente dirigido a um fim que consiste no objectivo geral a atingir.
Tal fim identifica-se genericamente com a Justiça, o que mostra que o sistema é vassalo dos valores que a tornam possível, sendo certo que essa justiça só se obtém quando se materializa promovendo de facto os valores dominantes na ordem jurídica na justa composição do litígio subjacente a dada caso concreto.
As relações entre os diversos componentes de um sistema ocorrem através de fluxos, os quais são de natureza tão diversificada consoante a natureza do sistema em questão, podendo o fluxo ser de informação (serviço de informações do estado), de matéria (fábrica de transformação de matérias-primas), de sangue (sistema sanguíneo de um corpo), de energia (redes de distribuição de energia eléctrica), etc.
No caso do direito, os componentes da ordem jurídica são os princípios gerais de direito, os institutos e normas jurídicas e os fluxos que ocorrem entre eles são composto por informação jurídica que canaliza os valores fundamentais do sistema/ordem jurídica, na sua mútua adequação e conexão.
Nas palavras de Claus-Wilhelm Canaris, «O papel do conceito de sistema é (…) o de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica» ([6]).

Ou, como nos diz Menezes Cordeiro: «Um sistema jurídico postula um conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista. Esse conjunto projecta um sistema de acções jurídicas – portanto de comportamentos que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas, relevam para o sistema. O não-acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões contraria o sistema: há disfunção» ([7]).
Compreende-se, pois, que um sistema de direito careça de uma norma como a do artigo 334.º do Código Civil, destinada precisamente a assegurar a coerência valorativa da ordem jurídica naquelas situações em que formalmente se exerce um direito, mas materialmente se verifica no caso concreto um resultado que a ordem jurídica não pretende e não pretende porque contraria os valores fundamentais que a estruturam.
Como resulta do teor do artigo 334.º do Código Civil, um desses valores estruturantes do sistema jurídico é o da boa fé, valor este que se dirige ao exercício dos direitos, no sentido das acções dos cidadãos, com relevo jurídico, se harmonizarem com este valor.
Esclarecendo o sentido do papel da boa fé nesta norma do Código Civil, Menezes Cordeiro assevera que «Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objectiva. Aparentemente, lidamos com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os artigos 227.º/1, 239.º, 437.º/1 e 762.º/2. Teríamos, então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente» ([8]).
Não estando em causa no caso dos autos, aparentemente, um caso de tutela da confiança, cumpre referir quanto à primazia da materialidade subjacente, seguindo a lição deste autor, que o direito visa, através dos seus preceitos, resolver os problemas concretos que a vida quotidiana coloca às pessoas, obtendo soluções efectivas para os conflitos de interesses.
Ora, para que o problema possa ficar resolvido é imperativo agir sobre a sua substância e definindo as situações para futuro, pelo que é insuficiente a adopção de condutas que apenas na forma correspondem aos objectivos jurídicos.
 A boa fé exige, pois, que os conflitos de interesses sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as consequências que acarretem na vida das pessoas ([9]), nisto se traduzindo a primazia da materialidade subjacente.
Continuando com Menezes Cordeiro ([10]), há três vias para realizar a estes objectivos:
1 - Conformidade material das condutas.
Exige-se que no exercício das posições jurídicas se realizem efectivamente os valores pretendidos pelo ordenamento jurídico e não apenas o ritualismo exterior, sendo contrária à boa fé a conduta que apenas dê forma aquilo que o direito prevê e quer que seja observado.
2 - Idoneidade valorativa.
Tem a ver com a harmonia do sistema. Ninguém pode utilizar a sua posição jurídica resultante da violação da ordem jurídica para, a partir do ilícito, tirar partido disso contra outrem, sendo, por isso, contrário à boa fé, por exemplo, provocar um dano e exigir de outrem a reparação.
3 - Equilíbrio no exercício das posições.
Este item implica a necessidade de averiguar permanentemente se as posições jurídicas exercidas, ainda que lícitas, respeitam os valores inerentes à globalidade do sistema.
Têm-se em vista, por um lado, os denominados actos emulativos: actuação danosa para outrem, sem proveito para o próprio e, por outro, as acções gravemente desequilibradas como são aquelas em que alguém para conseguir uma vantagem mínima gera um grave dano para outrem ([11]).
Para o caso dos autos, interessa esta última vertente que tem a ver com o (des)equilíbrio no exercício do direito por parte dos autores.

Continuando com Menezes Cordeiro, «O desequilíbrio no exercício corresponde a um tipo extenso e residual de actuações inadmissíveis, por abuso contrário à boa fé. Ele abriga subtipos diversificados: em comum têm o despropósito entre o exercício questionado e os efeitos dele derivados. Donde a ideia de desequilíbrio», cabendo nesta categoria três sub-hipóteses, «a do exercício danoso inútil; a do dolo agit qui perit quod statim redditurus est; a da desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem» ([12]).
Cumpre agora focar a atenção no caso concreto para verificar se o exercício do direito accionado pelos autores, destinado a colocar termo à compropriedade, ofende os valores da ordem jurídica que se encontram depositados na norma do artigo 334.º do Código Civil, acima já transcrita.
Vejamos então a situação factual em que os autores exercem o direito tal como resulta da matéria de facto provada.
Tal situação caracteriza-se desta forma:
─ Existe uma faixa de terreno com 20m de comprimento, por 4m de largura, a qual confronta com os prédios das partes; com o dos autores a norte, com o dos réus a poente, com a Estrada do Beco a nascente, desconhecendo-se a sua confrontação sul.
─ Esta faixa é e sempre foi um espaço comum destinado a rua, passagem e acesso para os prédios urbanos descritos na matriz urbana da freguesia de Malcata sob os artigos x ... e y ..., que pertencem aos Autores e artigos w ... e z ... propriedade dos Réus.

Esta faixa constitui o único acesso para veículos tractores e transporte de lenha para as garagens e arrecadações dos réus existentes no prédio descrito sob o artigo matricial z ....

Esta faixa pertence a autores e réus em compropriedade.

Como se referiu já, mais que uma vez, os autores têm na sua esfera jurídica o poder de fazer cessar a compropriedade, o qual se encontra previsto no artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, onde se dispõe que «Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa».
A questão que se coloca agora é esta: se os autores exercerem este poder, qual é a situação factual e jurídica que poderá emergir do exercício desse poder?
Como resulta do disposto no artigo 1056.º e seguintes do Código de Processo Civil, e dos princípios gerais, as situações hipotéticas são três:
Primeira – as partes acordam que a faixa seja adjudicada aos réus;
Segunda – as partes acordam que a faixa seja adjudicada aos autores;
Terceira – as partes acordam que a coisa seja vendida e, neste caso, a faixa ficará a pertencer exclusivamente ou aos réus, ou aos autores ou a terceiros.
Do ponto de vista dos réus, o exercício por parte dos autores do direito de não permanecerem na indivisão prejudica-os sempre, pelas seguintes razões:
Se forem os autores ou terceiros a adquirir a faixa, os réus deixam automaticamente de poder passar pela referida faixa com veículos tractores e lenhas para a garagem e arrecadações do seu prédio, sendo certo que esta faixa constitui o único acesso para o efeito.
Os réus poderão obter no futuro uma servidão de passagem por essa faixa, mas enquanto isso não acontecer e se acontecer ([13]), está-lhes vedado passar na aludida faixa.
Mas não é certo que consigam obter tal sevidão.
Se a faixa for adquirida pelos réus, estes continuarão a poder passar pela faixa de terreno em questão, mas para poderem aceder à sua titularidade terão de disputar (licitar) a aquisição do direito de propriedade como os restantes e eventuais interessados e isso implica o dispêndio de dinheiro.
Do ponto de vista dos autores, o exercício, por parte deles, do direito de não permanecerem na indivisão implica as seguintes situações:
– Se forem os autores a adquirir a faixa em exclusivo, despenderão dinheiro com a aquisição da quota dos réus, mas continuarão a passar pela faixa, agora de forma exclusiva, mas ficam sujeitos a dar passagem aos réus se a estes for possível exigir a constituição de uma servidão legal de passagem, o que poderão fazer de forma consensual ou, então, litigiosamente.
– Se a faixa for adquirida pelos réus ou por terceiros, os autores deixarão de poder passar pela faixa. Receberão dinheiro pela sua quota-parte e, se tiverem esse direito, poderão exigir passagem aos réus ou a terceiros, para o seu prédio, o que poderão fazer de forma consensual ou litigiosamente
Verifica-se que todas estas situações não representam objectivamente uma melhoria relevante e adicional da situação jurídico-económica de qualquer das partes em relação à situação de que são actualmente titulares.
Com efeito, se se perguntar que vantagem os autores retiram, que já não tenham hoje, em termos objectivos, pelo facto de eventualmente passarem a ser donos exclusivos da faixa, não se vislumbra qualquer ganho objectivo, pois, como resultou provado, a função da faixa sempre consistiu em ser um «…espaço comum destinado a rua, passagem e acesso para os prédios urbanos descritos na matriz urbana da freguesia de Malcata sob os artigos x ..., y ..., w ... e z ...».
Claro que se pode conjecturar sempre uma qualquer utilização dessa faixa, como, por exemplo a ampliação de qualquer uma das construções existentes sobre essa faixa ou ocupação dessa faixa com novas construções ou qualquer outra utilização (canil, galinheiro, churrasqueira, jardim, etc.)
O que se pretende dizer, é que as partes sempre organizaram até ao presente o espaço e a sua vida em ambos os prédios não contando com a utilização desta faixa para outro fim que não fosse o de acesso a ambos os prédios e, ao invés, sempre contaram com tal acesso em termos presentes e futuros.
Por conseguinte, não é agora que tal faixa vai ser objectivamente necessária para o que quer que seja além da função que sempre desempenhou.
Pelos menos é razoável raciocinar nestes termos, pois nada foi alegado em sentido diverso.
Para melhor compreensão da questão afigura-se adequado efectuar aqui uma analogia entre esta situação de compropriedade e o instituto da propriedade horizontal.
É que não pode deixar de se notar a similitude funcional que existe entre esta faixa em regime de compropriedade e as partes comuns aos diversos condóminos no instituto da propriedade horizontal.
Na propriedade horizontal, as partes comuns são comuns porque necessárias, em regra, à fruição das fracções ([14]); também no caso dos autos a compropriedade da faixa de terreno resulta do facto desta ser necessária à fruição dos prédios, pelo menos por parte dos réus.
Ora, na propriedade horizontal, como se retira do artigo 1420.º, n.º 1, e expressamente do artigo 1423.º do Código Civil, não é lícito ao condómino renunciar à parte comum, nem aliena-la separadamente da sua fracção, sendo estas partes comuns indivisíveis, o que implica que neste instituto a compropriedade em relação às partes comuns não possa ser suprimida.
Dada a função da referida faixa de terreno e não lhe sendo conhecida, nem se vislumbrando outra, há, por conseguinte, em termos objectivos, uma boa razão para a faixa em causa ser compropriedade de autores e réus, pois permite a ambos acederem às partes dos seus prédios que confrontam com ela, sendo em relação ao prédio dos réus o único acesso, como se disse, havendo objectivamente interesse para ambas as partes que a faixa continue com tal função e estatuto jurídico, porque ambas se servem dela, como sempre se têm servido ao longo dos anos.
Porém, como não se trata juridicamente de uma situação de propriedade horizontal, os Autores gozam do direito de pôr termo à compropriedade.
Ora, face ao que fica dito, afigura-se que o exercício de tal direito é ofensivo dos limites impostos pela boa fé – artigo 334.º do Código Civil –, enquanto vector estruturante da ordem jurídica vigente, pelas seguintes razões:
a) Objectivamente, os Autores nenhuma vantagem retiram da cessação da compropriedade, pois se receberem algum dinheiro pela alienação da sua quota parte deixam, em contrapartida, de poder passar pela faixa e se pretenderem passar terão certamente de despender dinheiro para adquirir uma servidão de passagem.
b) Os réus ficarão sempre prejudicados, como se referiu acima, pois se continuarem a poder passar é porque tiveram de despender dinheiro para adquirir a parte dos autores, e poderão ter de despender verba elevada em relação ao real valor da parcela, caso tenham de licitar em confronto com os autores, sendo certo que agora passam e não têm de despender o que quer que seja; se não puderem continua a passar é porque receberam dinheiro, mas esta situação não os compensará seguramente da impossibilidade de passar para a garagem e arrecadações do seu prédio e terão de constituir uma servidão de passagem, o que levará tempo e acarretará incómodos e gastos de dinheiro, não sendo certo que o possam fazer potestativamente.
c) O historial da relação litigiosa entre as partes, com epicentro nesta parcela, permite colocar a hipótese, como altamente provável, da intenção dos autores subjacente ao exercício do direito ser a de prejudicarem os Réus, seja adquirindo a parcela para eles e impedindo automaticamente os réus de continuar a passar; seja obrigando os réus, através das licitações a pagar um preço desproporcionado pela aquisição da parcela.
Esta hipótese é sustentada por estes factos:
─ Os autores instauraram já a acção n.º 64/08.9TBSBG contra os Réus, com o fim de obterem sentença que declarasse serem eles os únicos proprietários da parcela.
Tal acção culminou com a declaração de que a parcela era compropriedade de autores e réus, por a haverem adquirido por usucapião, através da composse de uns e outros.
─ Depois, os autores procuraram incluir tal faixa de terreno no artigo matricial dos seus prédios, aumentando a área, situação que deu origem à acção n.º 83/10.5TBSBG do Tribunal judicial da Comarca de Sabugal, que determinou o cancelamento do respectivo averbamento.
─ Não se vislumbra, objectivamente, qualquer vantagem económica ou jurídica, para qualquer das partes, na aquisição da propriedade exclusiva da parcela.
É possível, por isso, incluir a presente acção na mesma linha intencional de apropriação exclusiva da parcela por parte dos autores, que implica o afastando dos réus da fruição da parcela como comproprietários, continuando a presente acção o litígio que alimentou as duas acções judiciais anteriores.
Ora, como se referiu já, «os limites impostos pela boa fé» obrigam o cidadão a exercer os direitos em conformidade material com os valores da ordem jurídica, pelo que, no caso, o direito de fazer cessa a compropriedade, que em princípio é absoluto, autorizaria o titular a exercê-lo, sem ter que apresentar qualquer justificação, mas no caso concreto dos autos esse exercício não permite aos autores obter qualquer vantagem objectivamente relevante em relação à situação de que são titulares hoje, mas, em contrapartida, causarão sempre um prejuízo aos réus, pois estes, se não tiverem capacidade para superar os valores obtidos pelos demais interessados, ficam automaticamente impedidos de aceder com veículos para as garagens e de transportar lenha para as arrecadações do seu prédio.
Neste contexto, afigura-se que o pedido formulado na acção preenche as características do abuso de direito.
Insistindo ainda na falta de justificação material para o exercício do direito de fazer cessar a compropriedade por parte dos autores, dir-se-á, com Manuel da Andrade, a propósito do exercício dos direitos:
 «Todo o direito objectivo – e, portanto, também o direito subjectivo – foi criado para satisfazer interesses humanos (hominum causa omne jus constitutumD., 1, 5, 2). Mais precisamente, o direito privado objectivo material surgiu para dirimir conflitos de interesses entre os homens, dizendo qual dos interesses conflituantes deve prevalecer, com sacrifício do outro; ou em que medida cada um deles deve ter a prevalência e em que medida deve ser sacrificado. Por via de regra, a prevalência de um interesse é assegurada mediante a concessão de um direito subjectivo» ([15]).
Ora, no caso dos autos, o exercício por parte dos autores do direito subjectivo, potestativo, de obter a cessação da compropriedade não dirime qualquer conflito, pois objectivamente não existe qualquer conflito numa situação em que uma faixa de terreno, como a dos autos, serve igualmente ambas as partes.
Tal exercício gerará um conflito, na medida em que uma das partes ou as duas poderão ficar impedidas automaticamente de passarem naquela faixa a caminho das suas habitações como desde sempre o têm feito.
Ora, como referiu Vaz Serra, «O exercício [do direito] não pode ter para o agente o fim de causar danos (…). O facto de o acto não poder ter outro fim senão o de prejudicar não pode ser directamente provado: o que podem é provar-se factos que autorizem o juiz a concluir tal coisa» ([16]).
Na mesma linha, Coutinho de Abreu sustenta que «…se se invoca um direito para legitimar um comportamento inadequado àquela funcionalidade, essa invocação é espúria, pois tal comportamento não pode então traduzir as faculdades em que o direito se analisa. Isto é, não pode, em rigor falar-se nesse caso de exercício de um direito – por mais que o comportamento pareça sê-lo (residindo, porém, nesta aparência, o sinal distintivo do abuso de direito, em relação à pura e simples ilegalidade. Mas só isto não basta. A simples não actuação ou mesmo negação de interesses próprios pelo sujeito de um direito é juridicamente irrelevante enquanto se não projectar na esfera de interesses de outrem. Só quando o referido comportamento for susceptível de causar um prejuízo não insignificante a um terceiro se configurará o abuso de direito» ([17]).

Resumindo esta já longa exposição, conclui-se que o pedido formulado pelos autores, se prosseguisse, poria fim a uma situação de facto que existiu desde que as habitações das partes foram construídas e que permite a ambas as partes satisfazerem os seus interesses no que respeita ao acesso a partir da rua pública para as suas habitações, no caso dos réus com veículos para a garagem e lenhas para as arrecadações.

O fim da situação de compropriedade da parcela não realiza objectivamente finalidades dos autores tuteladas pela ordem jurídica, mas, em contrapartida, prejudica a posição jurídica dos Réus.

Ora, os direitos são conferidos para através do seu exercício serem dirimidos conflitos entre cidadãos e não para gerarem outros conflitos até então inexistentes e que vão pedir uma solução ao sistema jurídico.

Concluiu-se, por conseguinte, que o pedido de divisão de coisa comum constitui, neste caso particular, à luz do disposto no artigo 334,º do Código Civil, uma forma ilícita de exercício por parte dos autores do direito conferido no artigo 1412.º, n.º 1 do mesmo Código.

3 – Coloca-se ainda uma outra questão que não é aflorada nos autos, mas sobre a qual se deve dizer algo e que é esta: o prédio cuja divisão é pedida está omisso na matriz predial.

Ora, nos termos do artigo do artigo 13.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro), os proprietários e outros destinatários da norma, devem proceder à inscrição dos prédios na matriz ou, se já estão aí inscritos, a actualizar a matriz, contando-se entre estes casos a situação em que «Uma dada realidade física passar a ser considerada como prédio» – al. a) do seu n.º 1.

Por outro lado, a lei, através do disposto no artigo 124.º do mesmo diploma, determina às entidades públicas o seguinte:

«1 - As entidades públicas, ou que desempenhem funções públicas, que intervenham em actos relativos à constituição, transmissão, registo ou litígio de direitos sobre prédios, devem exigir a exibição de documento comprovativo da inscrição do prédio na matriz ou, sendo omisso, de que foi apresentada a declaração para inscrição.

2 - Sempre que o cumprimento do disposto no número anterior se mostre impossível, faz-se expressa menção do facto e das razões dessa impossibilidade, devendo comunicar-se tal facto ao serviço de finanças da área da situação dos prédios».

Este conjunto de normas mostra que é obrigatória (o artigo 13.º, n.º 1, al. f) deste código estabelece a obrigação de comunicar aos serviços de finanças a existência de prédios omissos na matriz) a inscrição dos prédios na matriz e que as entidades públicas, entre as quais figuram os tribunais, têm o dever de fiscalizar o cumprimento destes deveres e de não permitir que as respectivos actos possam produzir efeitos jurídicos sem se mostrarem regularizadas matricialmente as situações prediais.

Daí que o avanço da acção, caso prosseguisse, devesse ficar dependente da inscrição da faixa de terreno na matriz.

4 – Concluindo-se como se conclui, cumpre revogar a sentença sob recurso e, ao mesmo tempo, retirar a consequência necessária, ao abrigo do disposto no artigo 334.º do Código Civil, que consiste em absolver os réus do pedido, verificando-se também que a questão relativa à admissibilidade da reconvenção fica prejudicada face a esta decisão. 

IV. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e decide-se que o presente pedido de divisão de coisa comum constitui, à luz do disposto no artigo 334,º do Código Civil, uma forma ilícita de exercício por parte dos autores do direito conferido no artigo 1412.º, n.º 1 do mesmo Código, pelo que, em consequência, se absolvem os réus do pedido. 

Custas pelos autores.


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Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Processos Especiais, Vol. II (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1982, pág. 25.
[2] «Ao falar de factos temos em vista acontecimentos, circunstâncias, relações, objectos e estados, todos eles situados no passado, espácio-temporalmente ou mesmo só temporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepção externa ou interna e ordenados segundo as leis naturais. Como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, apenas são principalmente as regras de experiência e conclusões lógicas muito complexas que tornam possível a verificação dos factos» - Karl Engisch. Introdução ao Pensamento Jurídico, 5.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, pág. 72.
[3] «Nas acções constitutivas e nas acções de simples apreciação, em que falta o interesse processual, a sanção consiste na absolvição do réu da instância. O tribunal deve abster-se de conhecer do mérito da causa, precisamente por faltar um pressuposto da acção) o interesse em agir» - Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora. Manual de Processo Civil, 1.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pág. 179.
[4] Ob. cit., pág. 177-178.
[5] Como refere Coutinho de Abreu, o termo ilegitimamente «…, segundo a generalidade dos autores, é, no artigo em análise, sinónimo de antijuridicidade ou ilicitude» - Do Abuso de Direito. Coimbra, Livraria Almedina, 1983, pág. 68. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão da edição de Maio de 2005. Coimbra: Livraria Almedina, 2011, pág., 239.
[6] Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pág. 23.
[7] Ob., cit. (nota 5), pág. 368.
[8] Ob., cit. (nota 5), pág., 241. Sobre a boa fé e o sistema jurídico, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II. Coimbra: Livraria Almedina, 1984, pág. 1258 e seguintes.
[9] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3.ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2009, pág., 415.
[10] Ob., cit., (nota 9), pág. 416.
[11] «…é abusivo o comportamento emulativo, isto é, o que visa apenas prejudicar outrem. Neste caso, é claro, o comportamento não realiza interesses do seu autor, antes nega somente interesses alheios (…). Exemplificando singelamente os três casos com a construção de um muro, haverá abuso de direito, respectivamente, quando se vise com ele tão só retirar luz a um prédio urbano próximo; quando o muro com que se cerca o prédio rústico é demasiado alto, de modo a provocar, sem interesse para o seu autor, sombra para outro(s) prédio(s); quando se cerca um desutilizado prédio rústico, bastante pequeno e pobre, com um muro construído de maneira a chocar fortemente com o estilo de prédio urbano contíguo (v. g. hotel de traça antiga ou monumento nacional)» - Coutinho de Abreu, ob. cit. (nota 5), pág. 44-45.
[12] Ob., cit. (nota 5), pág. 341.
[13] Pois não é líquido que tenham direito a constituir uma servidão legal de passagem por o prédio não se encontrar totalmente encravado – Cfr. artigo 1550.º, n.º 1, do Código Civil.
[14] Como referem os autores Pires de Lima/Antunes Varela, a respeito das partes comuns na propriedade horizontal, «A comunhão provém, nestes casos, ou da ligação fundamental das coisas com todo o prédio ou da aptidão objectiva que elas revestem para a utilização comum do edifício ou de certas partes dele…» - Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra Editora, 1987, pág. 430.
[15] Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I. Coimbra Editora, 1987, pág. 8.
[16]   Abuso do Direito em Matéria de Responsabilidade Civil. Boletim do Ministério da Justiça n.º 85, pág. 250.
[17] Ob. cit. (nota 5), pág. 43-44.