Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ALBERTO RUÇO | ||
Descritores: | ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM RECONVENÇÃO ABUSO DE DIREITO | ||
Data do Acordão: | 03/12/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | SABUGAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.274, 334, 1053 CPC | ||
Sumário: | 1. Se em acção com processo especial para de divisão de coisa comum, regulado nos artigos 1052.º e seguintes, do Código de Processo Civil, for deduzida reconvenção, a mesma só pode ser admitida, face ao disposto no n.º 3 do artigo 274.º, do mesmo código, sem prejuízo de outras razões para a rejeição, se as questões suscitadas nos articulados implicarem o prosseguimento dos autos, seguindo o processo comum declarativo, mas não se o processo terminar nesta fase, devido ao facto de tais questões serem decididas logo após os articulados. 2. O direito de fazer cessar a compropriedade, conferido pelo n.º 1, do artigo 1412.º, do Código Civil, não pode ser exercido, face ao disposto no artigo 334.º do mesmo Código, verificadas estas circunstâncias: a) O objecto da compropriedade é constituído por uma faixa de terreno, com 20 metros de comprimento, por 4 metros de largura, situada a sul do prédio dos autores e a nascente do prédio dos réus; b) Desde que a faixa existe, a única função por si desempenhada tem sido a de servir de passagem de pessoas e carros para ambos os prédios; b) Esta faixa de terreno é o único espaço que permite o acesso de veículos à garagem do prédio dos réus e de lenha para as respectivas arrecadações; c) Objectivamente, com a cessação da compropriedade sobre esta faixa, os autores não obtêm qualquer benefício relevante e adicional a favor do seu prédio; d) O prosseguimento da acção pode implicar para os réus a perda do actual acesso com veículos à garagem do seu prédio e respectivas arrecadações; e) No futuro poderá ser ou não constituída uma servidão de passagem por essa mesma faixa a favor do prédio dos réus; assim como pode implicar para os autores a perda do acesso por essa faixa ao seu prédio. | ||
Decisão Texto Integral: | I. Relatório.
a) O presente recurso tem origem numa acção de divisão de coisa comum que os autores, ora recorridos, instauraram contra os réus recorrentes, com o fim de porem termo à situação de indivisão em que se encontra uma faixa de terreno com 20 metros de comprimento por 4 metros de largura, a qual confronta a norte com a casa de habitação dos autores e a poente com a habitação dos réus. Os réus apresentaram contestação sustentando que os autores não podem obter a cessação da compropriedade porque o exercício de tal direito por parte deles constitui uma situação de abuso de direito face ao disposto no artigo 334.º do Código Civil, na medida em que essa faixa de terreno não tem qualquer outra utilidade a não ser proporcionar o acesso aos edifícios ali existentes, designadamente o acesso dos réus à garagem e arrecadações do seu prédio. Foi proferida decisão a julgar a contestação improcedente e a ordenar o prosseguimento da acção com vista a obter-se a cessação da compropriedade, por se entender que não ocorria a apontada situação de abuso de direito, fundamentalmente por se considerar que os réus, caso não fiquem a ser donos exclusivos da parcela, sempre poderão exigir a constituição de uma servidão de passagem através dessa faixa. Decidiu-se ainda julgar inadmissível a reconvenção deduzida pelos réus recorrentes argumentando-se que a reconvenção «…mais não é do que uma mera consequência da contestação, não existindo um pedido autónomo e cindível da defesa apresentada», e que «…não são susceptíveis de ser decididas em sede reconvencional questões como a divisibilidade do prédio cuja compropriedade de pretende findar, a desnecessidade do exercício de dissolução da compropriedade ou o carácter abusivo desse exercício, as quais serão devidamente tratadas na apreciação do mérito da contestação». É de ambas as decisões que vem interposto o presente recurso. b) Os réus recorrentes concluíram desta forma: «1 – O pedido reconvencional deduzido pelos RR resulta do facto jurídico que serve de fundamento à acção. 2 – O pedido reconvencional é autónomo da oposição deduzida na contestação porque os efeitos pretendidos são diversos designadamente porque com a reconvenção os RR pretendem a declaração de existência de abuso de direito pelos AA no recurso à divisão da compropriedade. 3 – O julgamento do pedido reconvencional não exige especialidades processuais especificas que contrariem a especificidade da acção de divisão, visto que se trata, pura e simplesmente de uma decisão de direito, uma vez que os factos principais em apreço constam de duas decisões judiciais anteriores com certidões das mesmas juntas aos autos. 4 – Existem assim fundamentos para a admissão do pedido reconvencional no caso dos autos 5 – Tendo havido assim pelo tribunal a quo e nessa parte violação do disposto no artº 274º nºs 1 e 2 a) do C.P.Civil. 6 – Existem, para além disso nos autos, elementos suficientes para decidir desde já de tal pedido no sentido constante do pedido reconvencional. 7 – Com efeito o terreno de que foi pedida a divisão referido no artº 1º da P.I. é indivisível atenta a função que desempenha e o fim para que existe. 8 – O referido terreno por decisões judiciais já transitadas em julgado tem como fim económico e social a passagem e acesso gratuito a prédios urbanos pertença de AA e prédios pertença dos RR., sendo que para um prédio dos RR é o único acesso de veículos para garagens e arrecadações a partir de uma rua pública. 9 – Não existe qualquer vantagem seja para AA seja para os RR em que o prédio seja objecto de divisão pois da mesma pode resultar injustificadamente a alteração do direito e para pior do que lhes foi reconhecido na acção sumária nº 64/08.9TBSBG 10 – No caso vertente não existe razão para se proceder à divisão do bem em causa, uma vez que tal não é exigido para desbloquear a inércia de qualquer dos comproprietários ou activar qualquer acto ou negócio jurídico que qualquer dos comproprietários necessite de executar sobre o referido bem. 11 – O recurso pelos AA à acção de divisão excede manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que os mesmos possuem sobre o prédio referido no artº 1º da P.I. 12 – A concentração da propriedade do terreno num dos comproprietários dificultará a situação ao comproprietário que não ficar com o terreno pois terá de pagar o direito de passagem de que hoje beneficia gratuitamente. 13 – Verificam-se assim, no caso, as circunstâncias a que alude o artº 334º do Código Civil, 14 – Sendo completamente injustificado o recurso pelos AA ao direito a findar a compropriedade. 15 – Excedendo, injustificadamente, o recurso pelos AA ao direito á divisão, os limites impostos pelo fim económico e social do direito em causa. Pelo que: A) Deve ser revogada a douta decisão recorrida com os fundamentos supra expostos E em consequência B) Admitir-se o pedido reconvencional e Por os autos conterem os elementos bastante para produção da decisão C) Julgar-se procedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR e declarar-se que o recurso pelos AA à presente acção de divisão excede manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que os mesmos possuem sobre o prédio referido no artº 1º da P.I., D) Condenando-se os AA. a reconhecer as situações referidas supra de 1 a 15 e em custas e procuradoria. Ou assim não sendo entendido e porque os autos contém os elementos necessários á decisão E) Julgar-se procedente a oposição deduzida pelos RR com os fundamentos referidos supra de 7º a 15º da conclusão, F) Absolvendo-se os RR do pedido com todas as consequências legais». c) Os autores contra-alegaram pugnando pela manutenção da sentença. Alegam, em resumo, que o pedido reconvencional não é admissível porque «Com tais pedidos eles visam que se declare a indivisibilidade do terreno, indivisibilidade que já estava alegada e justificada na petição inicial da presente acção de divisão de coisa comum; que se declare que o terreno tem como fim a passagem e acesso a prédios urbanos pertencentes a AA. e aos RR., o que também já estava mencionado na petição inicial, e que os AA. sejam condenados a tal reconhecer. Ora, não se pode condenar o autor a reconhecer o que expressamente já aceitou e reconheceu na petição inicial, pelo que tais pedidos de declaração e consequente condenação dos autores a reconhecê-la não consubstanciam pedidos reconvencionais. Mais pedem nela os réus que se declare que não há vantagem para as partes que o prédio seja dividido, que não existe razão para proceder à divisão pedida pelos autores, e que estes, ao intentarem a presente acção, excederam manifesta e injustificadamente o fim social e económico do direito que eles possuem no prédio, condenando-se os AA. a tal reconhecerem. Estes pedidos são, como se infere da decisão impugnada, mera consequência da defesa que os recorrentes efectuaram na contestação e que, sendo procedentes, motivariam a improcedência da acção e absolvição dos RR., e nunca qualquer condenação dos autores» E quanto ao alegado abuso de direito entendem que o mesmo não se verifica. Com efeito, «…o temor dos RR., no caso de deixarem de ser comproprietários do imóvel, de que o direito de passagem para os prédios urbanos de que são proprietários possa ser embaraçado, ou mesmo impedido pela pedida divisão de coisa comum, não tem o mínimo fundamento. Concretizada a divisão, a sentença que vier a ser proferida no final desta acção não colide com o fim a que o terreno se destina, nem prejudica o decidido na sobredita sentença». «Por isso, o direito de pedir a divisão é um direito potestativo cujo exercício só pode ser impedido enquanto vigorar a convenção em que se determinou que a coisa se conserve indivisa. Decorrido o período de tempo fixado na convenção, se ele não for renovado, qualquer comproprietário pode exigir a divisão. No caso dos autos as partes nunca convencionaram a indivisibilidade do terreno, nem os RR. o aludiram na contestação. Por isso, o simples exercício de direito potestativo de pedir a divisão ao abrigo do artigo 1412.º do Cód. Civil não pode exceder o fim social e económico mesmo direito, fim esse que é o de obter a divisão, terminar com a compropriedade… Não há, portanto, abuso de direito». d) Objecto do recurso. As questões que o presente recurso coloca são as seguintes: Em primeiro lugar, cumpre verificar se a reconvenção é admissível; em segundo lugar, se o pedido feito na petição inicial configura uma situação de abuso de direito face ao disposto no artigo 334.º do Código Civil. II. Fundamentação. A – Matéria de facto provada. Muito embora a decisão sob recurso não contenha matéria de facto provada, cumpre, de acordo com a estrutura própria das decisões, indicar tal matéria, o que se passa a fazer, estando a mesma provada documentalmente. 1 – Os autores e os réus são comproprietários de uma faixa de terreno situada a sul dos prédios (dos ora autores) descritos sob os artigos urbanos x ....º e y ....º da matriz urbana da freguesia da Malcata, e entre os prédios dos réus a poente e a Rua ... a nascente, com o comprimento de cerca de 20 metros e largura de cerca de 4 metros, por o haverem adquirido por usucapião conforme sentença proferida na acção sumária que correu termos no Tribunal judicial da comarca de Sabugal sob o n.º 64/08.9TBSBG. 2 – Do dispositivo do processo n.º 64/08.9TBSBG, já transitado em julgado, consta o seguinte: A faixa de terreno situada a sul dos prédios descritos sob os artigos x ....º e y ....º da matriz urbana da freguesia de Malcata, entre os prédios dos réus a poente e a Rua ... a nascente, com o comprimento de 20 metros e largura de cerca de 4 metros é espaço comum destinado a rua, passagem e acesso para os prédios urbanos descritos na matriz urbana da freguesia de Malcata sob os artigos x ..., y ..., w ... e z .... Por tal espaço existe o único acesso para veículos tractores e lenhas para as garagens e arrecadações dos réus existentes no prédio descrito sob o artigo z ... da Malcata. 3 – Esta faixa não está a mesma inscrita como prédio urbano na respectiva matriz, carecendo, por isso, de artigo matricial próprio e, por consequência, também carece de descrição na conservatória do Registo Predial competente. 4 – Os réus A (…) e esposa intentaram nova acção no tribunal judicial da comarca de Sabugal, a qual coube o n.º 83/10.5TBSBG, através da qual pediram anulação do averbamento à descrição que os autores J (…) e esposa chegaram a fazer na Conservatória do Registo Predial e Sabugal, em que passaram a área total dos prédios descritos sob os artºs x ... e y ... da freguesia de Malcata de 324 m2 para 451,44m2, incorporando a área da parcela. 5 – Esta acção foi julgada procedente e o averbamento à descrição registral 2406-Malcata da C.R. Predial de Sabugal, foi cancelado. B – Questões objecto do recurso. 1 – Em primeiro lugar cumpre verificar se a reconvenção é admissível. Procedendo a uma análise directa e pragmática do caso, cumpre desde logo ter em consideração o disposto no n.º 3, do artigo 274.º, do Código de Processo Civil, na parte que aqui interessa, cuja redacção é a seguinte: «Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos…». Verifica-se, no caso dos autos, que a 1.ª instância tomou conhecimento do mérito da contestação findos os articulados e decidiu no sentido de julgar a contestação improcedente. Face ao disposto no mencionado n.º 3 do artigo 274.º do Código de Processo Civil, esta situação processual implica automaticamente a inadmissibilidade da reconvenção, na medida em que a admissibilidade da reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, fica dependente das vicissitudes sofridas pela forma de processo que segue o pedido do autor. No caso das acções de arbitramento, como a espécie dos autos, em que se visa obter a divisão de coisa comum, as questões suscitadas pelo réu na contestação podem ou não ser resolvidas logo a seguir aos articulados. Se tais questões não forem logo resolvidas, isso implica que o processo prossiga segundo as regras do processo comum que for aplicável, tendo em conta o valor da causa, pelo que, nestas condições processuais e só nestas, o pedido reconvencional pode ser conhecido pelo tribunal, na medida em que é compatível com a forma processual seguida pelo processo especial de divisão de coisa comum. É este o regime processual, como se pode constatar pela redacção dos n.º 2 e 3 do artigo 1053.º (Citação e oposição) do Código de Processo Civil, onde se prescreve o seguinte: «2 - Se houver contestação ou a revelia não for operante, o juiz, produzidas as provas necessárias, profere logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão, aplicando-se o disposto no artigo 304.º; da decisão proferida cabe apelação, que subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. 3 - Se, porém, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, mandará seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum, adequados ao valor da causa». No caso dos autos, como se disse, foi proferida decisão na fase que se seguiu aos articulados, a qual pôs termo ao processo, logo, se a reconvenção fosse admissível, implicaria que o processo seguisse só para a apreciar a si, mas não é esta a situação que a lei processual prevê, antes prevê a inversa, pois se as questões suscitadas na contestação forem resolvidas, a fase declarativa deste processo especial termina aqui. Sendo assim, só por este facto, a reconvenção não é admissível, por não ser compatível com a forma processual seguida pelo pedido do autor. Na Revista de Legislação apreciei largamente o problema, chegando à conclusão de que o acórdão de 5-5.º-943 decidida correctamente. Desde que, por força da 2.ª alínea do art. 1051.º, o processo tinha de seguir os trâmites comuns, a questão da simulação da venda podia, sem dúvida, ser discutida e julgada juntamente com a matéria da contestação. Dava-se até a circunstância de que o fundamento da contestação era precisamente o mesmo que o da reconvenção» ([1]). Face ao que fica dito, mesmo sem proceder à análise dos pedidos formulados pelos réus, no sentido de verificar se são pedidos susceptíveis de serem deduzidos em reconvenção, pode concluir-se que a mesma não pode prosseguir, salvo se se concluir o processo tem de ir além da fase em que presentemente se encontra. Apesar do que fica dito, sempre se dirá, no que concerne a aptidão processual dos pedidos, que não se afigura, por exemplo, que os pedidos formulados sobre os n.º 3 e 4 sejam pedidos susceptíveis de serem formulados numa acção ou numa reconvenção (isto é: «3 – Não existe qualquer vantagem seja para AA seja para os RR em que o prédio seja objecto de divisão pois da mesma pode resultar injustificadamente a alteração do direito que lhes foi reconhecido na acção sumária nº 64/08.9TBSBG» e «4- No caso vertente não existe razão para se proceder à divisão do bem em causa, uma vez que tal não é exigido para desbloquear a inércia de qualquer dos comproprietários ou activar qualquer acto ou negócio jurídico que qualquer dos comproprietários necessite de executar sobre o referido bem»). Com efeito, as acções, no caso de simples apreciação, destinam-se, nos termos da al. a), do n.º 2, do artigo 4.º do Código de Processo Civil, a «…obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto». Ora, com os pedidos em causa não se pede a declaração da existência de um direito e a correspondente obrigação do devedor, nem a declaração da existência de um facto, sendo um facto um fragmento singular da realidade, algo, portanto, situado num certo tempo e num certo espaço ([2]). E quanto aos dois primeiros pedidos, ou seja, «1 – O terreno de que se pede a divisão referido no art. 1.º da P.I. é indivisível atenta a função que desempenha e o fim para que existe» e «2- O referido terreno tem como fim económico a passagem e acesso a prédios urbanos pertença de AA e prédios pertença dos RR., sendo que para um prédio dos RR é o único acesso de veículos para garagens e arrecadações», não se afigura que haja interesse em agir por parte dos réus ([3]). Como referiram os autores Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, «…nas acções de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave. Será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor. As circunstâncias exteriores geradoras da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação de um facto, o acto material de contestação dum direito, a existência dum documento falso até a um acto jurídico (de requerimento da assistência judiciária ou de procuração a um advogado para a proposição de uma acção), etc. A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor. A afirmação da existência de uma servidão sobre determinado prédio pode, por exemplo, dificultar a alienação dele pelo seu justo preço; o boato da falsidade da assim atura de um dos subscritores da letra pode impedir o desconto dela; a paternidade da criança atribuída a certa pessoa pode abalar o prestígio social e o bom nome do visado, etc. Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir através da acção de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual» ([4]). Ora, os autores reconhecem na petição a realidade correspondente à indivisibilidade da faixa de terreno e quanto ao segundo pedido o mesmo faz parte do dispositivo da decisão tomada no processo nº 64/08.9TBSBG, como se vê pelo teor da matéria de facto que ficou supra exarada. Por conseguinte, quanto a tais pedidos, a instância findaria quanto a eles. Verdadeiramente o único pedido que poderia subsistir é o formulado em último lugar relativamente ao abuso de direito, dos quais os anteriores pedidos serão as suas premissas. Concluindo: Como houve decisão final na fase posterior à dos articulados, a qual pôs termo à contestação dos réus, a reconvenção é inadmissível. Mas como a decisão está dependente de recurso, tal inadmissibilidade, com este fundamento, depende, ainda, do trânsito em julgado de tal decisão. Por conseguinte, como essa questão depende da confirmação ou revogação da decisão que declarou inexistir abuso de direito relativamente à proposição da acção, a questão da admissibilidade da reconvenção só pode ser decidida, no final, conjuntamente com esta segunda questão. Passando, por conseguinte, à análise da outra questão colocada no recurso. 2 – Consiste em saber se o pedido feito na petição inicial configura uma situação de abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º do Código Civil. Prescreve-se nesta norma que «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». Ou, como nos diz Menezes Cordeiro: «Um sistema jurídico postula um conjunto de normas e princípios de Direito, ordenado em função de um ou mais pontos de vista. Esse conjunto projecta um sistema de acções jurídicas – portanto de comportamentos que, por se colocarem como actuações juridicamente permitidas ou impostas, relevam para o sistema. O não-acatamento das imposições e o ultrapassar do âmbito posto às permissões contraria o sistema: há disfunção» ([7]). Continuando com Menezes Cordeiro, «O desequilíbrio no exercício corresponde a um tipo extenso e residual de actuações inadmissíveis, por abuso contrário à boa fé. Ele abriga subtipos diversificados: em comum têm o despropósito entre o exercício questionado e os efeitos dele derivados. Donde a ideia de desequilíbrio», cabendo nesta categoria três sub-hipóteses, «a do exercício danoso inútil; a do dolo agit qui perit quod statim redditurus est; a da desproporção entre a vantagem do titular e o sacrifício por ele imposto a outrem» ([12]). ─ Esta faixa constitui o único acesso para veículos tractores e transporte de lenha para as garagens e arrecadações dos réus existentes no prédio descrito sob o artigo matricial z .... ─ Esta faixa pertence a autores e réus em compropriedade. Como se referiu já, mais que uma vez, os autores têm na sua esfera jurídica o poder de fazer cessar a compropriedade, o qual se encontra previsto no artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, onde se dispõe que «Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa». Resumindo esta já longa exposição, conclui-se que o pedido formulado pelos autores, se prosseguisse, poria fim a uma situação de facto que existiu desde que as habitações das partes foram construídas e que permite a ambas as partes satisfazerem os seus interesses no que respeita ao acesso a partir da rua pública para as suas habitações, no caso dos réus com veículos para a garagem e lenhas para as arrecadações. O fim da situação de compropriedade da parcela não realiza objectivamente finalidades dos autores tuteladas pela ordem jurídica, mas, em contrapartida, prejudica a posição jurídica dos Réus. Ora, os direitos são conferidos para através do seu exercício serem dirimidos conflitos entre cidadãos e não para gerarem outros conflitos até então inexistentes e que vão pedir uma solução ao sistema jurídico. Concluiu-se, por conseguinte, que o pedido de divisão de coisa comum constitui, neste caso particular, à luz do disposto no artigo 334,º do Código Civil, uma forma ilícita de exercício por parte dos autores do direito conferido no artigo 1412.º, n.º 1 do mesmo Código. 3 – Coloca-se ainda uma outra questão que não é aflorada nos autos, mas sobre a qual se deve dizer algo e que é esta: o prédio cuja divisão é pedida está omisso na matriz predial. Ora, nos termos do artigo do artigo 13.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro), os proprietários e outros destinatários da norma, devem proceder à inscrição dos prédios na matriz ou, se já estão aí inscritos, a actualizar a matriz, contando-se entre estes casos a situação em que «Uma dada realidade física passar a ser considerada como prédio» – al. a) do seu n.º 1. Por outro lado, a lei, através do disposto no artigo 124.º do mesmo diploma, determina às entidades públicas o seguinte: «1 - As entidades públicas, ou que desempenhem funções públicas, que intervenham em actos relativos à constituição, transmissão, registo ou litígio de direitos sobre prédios, devem exigir a exibição de documento comprovativo da inscrição do prédio na matriz ou, sendo omisso, de que foi apresentada a declaração para inscrição. 2 - Sempre que o cumprimento do disposto no número anterior se mostre impossível, faz-se expressa menção do facto e das razões dessa impossibilidade, devendo comunicar-se tal facto ao serviço de finanças da área da situação dos prédios». Este conjunto de normas mostra que é obrigatória (o artigo 13.º, n.º 1, al. f) deste código estabelece a obrigação de comunicar aos serviços de finanças a existência de prédios omissos na matriz) a inscrição dos prédios na matriz e que as entidades públicas, entre as quais figuram os tribunais, têm o dever de fiscalizar o cumprimento destes deveres e de não permitir que as respectivos actos possam produzir efeitos jurídicos sem se mostrarem regularizadas matricialmente as situações prediais. Daí que o avanço da acção, caso prosseguisse, devesse ficar dependente da inscrição da faixa de terreno na matriz. 4 – Concluindo-se como se conclui, cumpre revogar a sentença sob recurso e, ao mesmo tempo, retirar a consequência necessária, ao abrigo do disposto no artigo 334.º do Código Civil, que consiste em absolver os réus do pedido, verificando-se também que a questão relativa à admissibilidade da reconvenção fica prejudicada face a esta decisão. IV. Decisão. Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e decide-se que o presente pedido de divisão de coisa comum constitui, à luz do disposto no artigo 334,º do Código Civil, uma forma ilícita de exercício por parte dos autores do direito conferido no artigo 1412.º, n.º 1 do mesmo Código, pelo que, em consequência, se absolvem os réus do pedido. Custas pelos autores. *
Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator ) Fernando de Jesus Fonseca Monteiro Maria Inês Carvalho Brasil de Moura [1] Processos Especiais, Vol. II (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1982, pág. 25. [2] «Ao falar de factos temos em vista acontecimentos, circunstâncias, relações, objectos e estados, todos eles situados no passado, espácio-temporalmente ou mesmo só temporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepção externa ou interna e ordenados segundo as leis naturais. Como a maioria das acções puníveis, no momento do processo, apenas são principalmente as regras de experiência e conclusões lógicas muito complexas que tornam possível a verificação dos factos» - Karl Engisch. Introdução ao Pensamento Jurídico, 5.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, pág. 72. [3] «Nas acções constitutivas e nas acções de simples apreciação, em que falta o interesse processual, a sanção consiste na absolvição do réu da instância. O tribunal deve abster-se de conhecer do mérito da causa, precisamente por faltar um pressuposto da acção) o interesse em agir» - Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora. Manual de Processo Civil, 1.ª edição. Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pág. 179. [4] Ob. cit., pág. 177-178. [5] Como refere Coutinho de Abreu, o termo ilegitimamente «…, segundo a generalidade dos autores, é, no artigo em análise, sinónimo de antijuridicidade ou ilicitude» - Do Abuso de Direito. Coimbra, Livraria Almedina, 1983, pág. 68. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, 2.ª reimpressão da edição de Maio de 2005. Coimbra: Livraria Almedina, 2011, pág., 239. [6] Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pág. 23. [7] Ob., cit. (nota 5), pág. 368. [8] Ob., cit. (nota 5), pág., 241. Sobre a boa fé e o sistema jurídico, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II. Coimbra: Livraria Almedina, 1984, pág. 1258 e seguintes. [9] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3.ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 2009, pág., 415. [10] Ob., cit., (nota 9), pág. 416. [11] «…é abusivo o comportamento emulativo, isto é, o que visa apenas prejudicar outrem. Neste caso, é claro, o comportamento não realiza interesses do seu autor, antes nega somente interesses alheios (…). Exemplificando singelamente os três casos com a construção de um muro, haverá abuso de direito, respectivamente, quando se vise com ele tão só retirar luz a um prédio urbano próximo; quando o muro com que se cerca o prédio rústico é demasiado alto, de modo a provocar, sem interesse para o seu autor, sombra para outro(s) prédio(s); quando se cerca um desutilizado prédio rústico, bastante pequeno e pobre, com um muro construído de maneira a chocar fortemente com o estilo de prédio urbano contíguo (v. g. hotel de traça antiga ou monumento nacional)» - Coutinho de Abreu, ob. cit. (nota 5), pág. 44-45. [12] Ob., cit. (nota 5), pág. 341. [13] Pois não é líquido que tenham direito a constituir uma servidão legal de passagem por o prédio não se encontrar totalmente encravado – Cfr. artigo 1550.º, n.º 1, do Código Civil. [14] Como referem os autores Pires de Lima/Antunes Varela, a respeito das partes comuns na propriedade horizontal, «A comunhão provém, nestes casos, ou da ligação fundamental das coisas com todo o prédio ou da aptidão objectiva que elas revestem para a utilização comum do edifício ou de certas partes dele…» - Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada. Coimbra Editora, 1987, pág. 430. [15] Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I. Coimbra Editora, 1987, pág. 8. [16] Abuso do Direito em Matéria de Responsabilidade Civil. Boletim do Ministério da Justiça n.º 85, pág. 250. [17] Ob. cit. (nota 5), pág. 43-44. |