Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4327/16.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL BANCÁRIA
INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
CULPA GRAVE
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 01/23/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS304, 212, 324 CVM, 227, 325, 334, 483 CC.
Sumário: 1.O Banco intermediário financeiro tinha o dever de prestar “todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada”, nomeadamente as respeitantes aos riscos envolvidos nas operações a realizar (art. 312º, al. a) do CVM, na sua redacção originária aplicável).

2.- A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação.

3.- Provando-se que o Banco propôs ao autor uma aplicação financeira com garantia do capital investido e que este aceitou a mesma, nesse pressuposto e por se tratar de um produto comercializado pelo próprio Banco, este é responsável pelo compromisso assumido com o cliente.

4.- Actua com culpa grave aquele Banco que oculta informação e desconsidera grosseiramente o perfil do cliente, que conhece há vários anos, colocando-lhe um produto financeiro que este não subscreveria se tivesse conhecimento de todas as características do produto.

5.- O prazo de prescrição do art. 324º, n.º 2, do Código dos Valores Mobiliários, não se aplica quando o intermediário financeiro atue com culpa grave.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A (…) e AG (…) instauraram ação contra o B (…), SA, pedindo a condenação deste a pagar-lhes € 350.000,00, acrescido de juros, que contabilizaram na data da interposição da ação em € 11.805,72, e ainda de € 15.000,00 a título dos danos não patrimoniais, com os juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 31 de agosto de 2016, até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegaram os autores, em síntese:

Investiram € 350.000,00 em obrigações SLN Rendimento Mais 2004 e SLN 2006, o que fizeram na qualidade de clientes do réu, e por o seu gestor lhes ter garantido tratar-se de uma aplicação em tudo similar a um depósito a prazo, com capital garantido.

Nunca foram fornecidas aos autores quaisquer informações ou explicações sobre o investimento em causa, pelo que desconheciam estarem a subscrever produtos de risco.

Sofreram ainda danos não patrimoniais, ao recusar o réu a devolução do capital investido, poupança de uma vida de trabalho.

Contestou o réu, em síntese:

A prescrição por decurso do prazo de dois anos desde a conclusão da operação em discussão.

A ter existido qualquer deficiência de informação por parte dos seus funcionários, estar em causa uma negligência leve.

O produto financeiro em causa era um produto seguro à data da sua subscrição, pelo que o seu incumprimento resultou de circunstâncias imprevisíveis e anormais, relacionadas com a própria nacionalização do banco.

Os autores foram esclarecidos sobre as condições do produto financeiro em questão, tendo realizado outros investimentos similares.

O Banco não garantiu o pagamento do produto em questão.

Responderam os autores, considerando que o direito não se encontra prescrito, por não estar decorrido o prazo de dois anos invocado pelo réu, uma vez que até aos meses de abril e maio de 2015 sempre lhes foram pagas as remunerações das aplicações acordadas. Consequentemente, até essa data, não poderiam os autores invocar qualquer incumprimento que determinasse o início do prazo de prescrição.

A culpa do banco deve ser qualificada como grave, o que constitui uma exceção ao curto prazo de prescrição previsto no artigo 324º, nº 2, do CVM.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a ação, condenado o réu B (…), SA, a pagar aos autores:

A quantia de € 50.000 (cinquenta mil euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde o dia 28 de abril de 2015 até efetivo e integral pagamento, computando-se os já vencidos no dia 30 de agosto de 2016 em € 2.684,93 (dois mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e noventa e três cêntimos);

A quantia de € 50.000 (cinquenta mil euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde o dia 28 de abril de 2015 até efetivo e integral pagamento, computando-se os já vencidos no dia 30 de agosto de 2016 em € 2.684,93 (dois mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e noventa e três cêntimos);

A quantia de € 250.000 (duzentos e cinquenta mil euros), acrescida dos respetivos juros remuneratórios vencidos desde 8 de maio de 2015 até 9 de maio de 2016, à taxa legal de 1,5 % ao ano, no valor de € 3.750 (três mil, setecentos e cinquenta euros), e dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde o dia 09 de maio de 2015 e até efetivo e integral pagamento, computando-se os já vencidos em 30/8/2016 em € 2.684,93 (dois mil, seiscentos e oitenta e quatro euros e noventa e três cêntimos);

A quantia de € 5.000 (cinco mil euros), a título de compensação por danos não patrimoniais.


*

            Inconformado, o réu recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

(…)


*

            Os autores contra-alegaram, defendendo a correção do decidido.

*

As questões a decidir são as seguintes:

A reapreciação da matéria de facto;

A responsabilidade civil do réu;

A prescrição;

O abuso de direito pelos autores;

A culpa destes;

A garantia do réu suportada noutras figuras contratuais.


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            Os factos considerados provados pelo tribunal recorrido são os seguintes (mantendo a numeração original):

5.1 – O “B (…), SA”, instituição de crédito autorizada a exercer a sua atividade pelo Banco de Portugal, foi nacionalizado pela Lei 62-A/2008 de 11 de novembro, sendo que, até à sua nacionalização, estava registado na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, exercendo funções de intermediário financeiro;

5.2 – Após tal nacionalização e na sequência de operação de fusão o BPN passou a ter a denominação de “B (…), SA”;

5.3 - O autor foi, desde 8 de agosto de 2002, cliente do B (…) SA (atualmente B (…), SA) em agência de Viseu, com a conta à ordem nº (…)

5.4 – A autora foi, desde 8 de agosto de 2002, cliente do B (…) SA (atualmente B (…), SA) em agência de Viseu, com a conta à ordem nº (…).

5.5 – Enquanto clientes do B (…) e atualmente B (…) os autores sempre tiveram confiança nos seus trabalhadores e colaboradores, bem como em tal instituição bancária, tomando como boa, fiável e credível toda a informação que por eles lhes era dada, razão pela qual sempre mantiveram e continuam a manter nas suas contas valores, aplicações e ativos financeiros superiores a quantia que em concreto não foi possível apurar;

5.6 – Em outubro de 2004, o autor marido foi contactado pelo seu gestor de conta na instituição bancária supra referida que o aconselhou a adquirir um produto financeiro denominado SLN Rendimento Mais 2004 pelo montante de € 50.000,00, correspondente a uma obrigação;

5.7 – Em maio de 2006, o autor marido foi contactado pelo seu gestor de conta na instituição bancária supra referida que o aconselhou a adquirir cinco produtos financeiros denominados SLN 2006 pelo montante de € 250.000,00, correspondente a cinco obrigações;

5.8 – Em outubro de 2007, o autor marido foi contactado pelo seu gestor de conta na instituição bancária supra referida que o aconselhou a adquirir, em nome da sua mulher e aqui autora, um produto financeiro denominado SLN Rendimento Mais 2004, pelo montante de € 50.000,00, correspondente a uma obrigação;

5.9 – Por força de tais subscrições, que se vieram a concretizar, o autor marido tem depositadas no banco réu cinco obrigações de € 50.000,00 cada denominadas SLNRM2-SLN 2006 e uma obrigação de € 50.000,00SLNR Mais – SLN Rendimento Mais 2004 e a autora tem depositada no banco réu uma obrigação de € 50.000,00 denominada SLNR Mais – SLN Rendimento Mais 2004;

5.10 – O autor marido tem como habilitações literárias a 4ª classe e a autora mulher tem como habilitações literárias a 1ª classe, sempre tendo sido do conhecimento do banco réu a baixa escolaridade de que ambos eram portadores;

5.11 – Os autores nunca tiveram curiosidade em conhecer os produtos financeiros supra referidos, não tendo nunca pretendido nos mesmos investir, tendo confiado no seu gestor de conta que lhes afiançou tratarem-se de produtos financeiros seguros, com capital garantido, sem risco associado, com uma taxa de juro favorável, equivalente em termos de risco a um depósito a prazo, tendo correspondido a escolha de tais produtos a sugestão do banco réu;

5.12 – O autor transmitiu aos funcionários do réu, incluindo ao seu gestor de conta apenas pretender que o dinheiro fosse aplicado em produtos com capital garantido e com uma taxa de juro favorável, tendo-lhe sido afiançado pelo seu gestor que aquelas aplicações financeiras garantiam não só o capital aplicado, como uma taxa anual efetiva superior a 3,5 %;

5.13 – Perante tal informação, na qual os autores confiaram, convictos de que estavam a contratar com um banco credível, e a subscrever produtos desse banco, assinaram, depois de previamente preenchidos pelo funcionário do banco réu os documentos denominados “comunicação de cliente” cujas cópias constam de fls. 35 e 37 e o “boletim de subscrição” de fls. 35 v, por meio dos quais efetuaram a subscrição de tais produtos financeiros;

5.14 – O documento de fls. 35 v (“Boletim de subscrição”) encontrava-se previamente elaborado pelo banco réu e foi previamente preenchido por um funcionário da agência, limitando-se o autor a assiná-lo;

5.15 – Os documentos de fls. 35 e 36 (“comunicação de cliente”) foram previamente preenchidos por um funcionário da agência, limitando-se o autor a assiná-los;

5.16 - A informação mencionada em 5.12 foi a única que foi transmitida aos autores, não lhes tendo sido entregue qualquer nota informativa e explicativa acerca da natureza e funcionamento de tais produtos financeiros;

5.17 – Tais obrigações foram emitidas pela SLN (S (…)), do mesmo grupo empresarial em que o banco se encontrava integrado, constando de “nota interna” distribuída à sua rede comercial que o “capital garantido” correspondia a “100% do capital investido”;

5.18 – As orientações do B (…) que este transmitia internamente e de forma reiterada aos seus funcionários, consistiam em afirmar a segurança, solidez e rentabilidade dos produtos em causa e ainda que, sendo a sua emitente uma empresa pertencente ao grupo empresarial do banco (“dona” do banco), este cobriria sempre a solvabilidade daqueles produtos financeiros;

5.19 – Desde as datas de subscrição e até 27/4/2015, no que se refere às aplicações SLN Rendimento Mais 2004 e desde a data de subscrição e até 8/5/2015 no

que se refere às aplicações SLN 2006, sempre foram pagos aos autores os juros, o que reforçou a respetiva confiança de que tinham aplicado o dinheiro num produto credível, seguro e isento de risco, e que não iam perder o capital investido e os respetivos juros;

5.20 – O prazo de tais aplicações era de 10 anos, sendo o pagamento de juros efetuado semestral e postecipadamente, pelo que as obrigações SLN Rendimento Mais 2004 venceram-se e deveriam ter sido pagas de uma só vez em 27 de outubro de 2014, acrescidas de juros vencidos no semestre anterior ao vencimento à taxa em vigor de 1,75 % mais Euribor a seis meses e as obrigações SLN 2006 venceram-se e deveriam ter sido pagas de uma só vez em 9 de maio de 2016, acrescidas de juros vencidos do semestre atualmente de 1,50 % mais Euribor a seis meses;

5.21 – Surpreendido com a falta de reembolso do capital após o vencimento das aplicações, o autor marido procurou explicações na agência do banco réu tendo-lhe sido transmitido que a situação se iria resolver e que o reembolso seria efetuado;

5.22 – Porém, como o tempo decorria sem que tal reembolso fosse efetuado os autores deixaram de confiar em tais explicações e solicitaram ao autor o reembolso do capital e juros, reembolso esse que ainda não ocorreu;

5.23 – A atuação do réu gerou nos autores a perspetiva de ficarem desapossados de uma parte das suas poupanças de uma vida de trabalho, tendo alterado os respetivos estados anímicos, tornando-os deprimidos, nervosos e irrequietos, sentindo dificuldades em adormecer dado o receio de não conseguirem recuperar o dinheiro investido:

5.24 – Os negócios mencionados em 5.6, 5.7 e 5.8 constituíram atos em que o réu intermediou a aquisição dos produtos financeiros em causa, cumprindo ordens dadas pelos seus clientes (os autores), na sequência de sugestão do respetivo gestor, no sentido da subscrição de Obrigações SLN Rendimento 2004 e 2006;

5.25 – Os autores recebiam avisos de débito e extratos mensais periódicos, onde apareciam discriminadas e separadas de acordo com a sua natureza as suas aplicações financeiras;

5.26 – Antes e depois da subscrição das obrigações em causa nestes autos, os autores subscreveram outros títulos e valores mobiliários, designadamente Unidades de Participação de Fundos de Investimento;

5.27 – As obrigações SLN 2004 e 2006 foram emitidas pela “S(…), SGPS, SA”, sociedade titular de 100 % do capital social do banco réu, até novembro de 2008, altura em que foi nacionalizada;

5.28 – À data, a garantia proveniente do Fundo de Garantia de Depósitos era de € 25.000,00;

5.29 – Os autores liquidaram em 21 de outubro de 2004 Unidades de Participação em Fundos de Investimento para virem a subscrever a primeira Obrigação (mencionada no facto nº 5.6);

5.30 – Os autores em 5 de maio de 2006 ordenaram a transferência entre contas, no valor de € 250.000,00, para que o autor subscrevesse cinco Obrigações SLN 2006;

5.31 – A autora resgatou Unidades de Participação em Fundos de Investimento a fim de poder comprar uma Obrigação SLN;

5.32 – Tais movimentos e operações foram refletidos nos extratos mensais remetidos aos autores, onde se distinguem produtos financeiros;

5.33 – A presente ação foi instaurada no dia 2 de setembro de 2016;

5.34 – O réu foi citado para a presente ação no dia 6 de setembro de 2016.


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A reapreciação da matéria de facto.

O recorrente questiona parte dos factos assentes em 5.13 e 5.18 e pede o aditamento de um outro, relativo a certa afirmação do autor (“tu é que sabes”).

O recorrente invoca, em especial, o depoimento do autor e o testemunho de (…) o funcionário que foi do réu e que tratou diretamente com o autor.

Na reapreciação dos factos, o Tribunal da Relação altera a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida, reapreciada a pedido dos interessados, impuser decisão diversa (art.662, nº1, do Código de Processo Civil).

Este tribunal forma a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos impugnados. (Abrantes Geraldes, Recursos, 3ªedição, 2010, Almedina, pág.320.)

É pertinente ter em mente, como assinala o acórdão de 3.12.2013, desta Relação, no processo 194/09.0TBPBL.C1, em www.dgsi.pt, “quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.”

Reapreciadas as declarações do autor e a prova testemunhal, a nossa convicção manifesta-se no mesmo sentido do decidido, não encontrando razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, julgando assim improcedente a impugnação feita pelo réu. Vejamos:

As declarações do autor são também compreendidas no confronto com o testemunho de (…)e vice-versa.

O depoimento do autor revela muitas fragilidades de entendimento e compreensão da situação, naturais de acordo com a sua formação, permitindo retirar a ideia de que nunca aceitaria um produto financeiro que colocasse em causa a sua esforçada poupança, não querendo assumir riscos que não compreendia, caraterísticas suas que os funcionários do réu conheciam bem. Parece seguro, em idêntica convicção à firmada pela julgadora em 1ª instância, que o autor julgava estar a lidar apenas com o seu banco (desconhecendo mesmo a intermediação), no qual confiava porque sempre confiou no funcionário (…) mas sempre no pressuposto do respeito pela sua natureza de cliente “conservador” que não queria assumir riscos.

O testemunho de (…) parece revelar que nem ele próprio conhecia completamente o produto apresentado, tendo agido no pressuposto de, conforme comunicação interna, se tratar de produto garantido pelo próprio banco, podendo ser apresentado como um depósito a prazo, sem qualquer risco.

Este testemunho confirma que a expressão de confiança do autor para consigo (“tu é que sabes”) deve ser entendida não como uma “carta branca”, mas no pressuposto do referido respeito pela natureza do cliente “conservador” e que não queria assumir riscos.

 No confronto desta prova, sendo certo que a demais não a infirma, retiramos as seguintes conclusões:

Os autores estavam convictos de estar a contratar com o Banco e a subscrever produto desse Banco;

Pelas orientações internas do Banco, e porque a SLN era a sua dona, o funcionário do réu convenceu-se, e assim o transmitiu, que este “cobriria sempre a solvabilidade daquele produto financeiro”;

Sendo verdadeira a expressão “tu é que sabes”, ela tem de ser compreendida no conjunto das afirmações do autor, corroboradas pelo funcionário, e já assinaladas quanto ao limite do conferido a este técnico e ao Banco.

Pelo exposto, decide-se manter a matéria de facto como fixada.


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A responsabilidade civil do réu.

Comecemos por dizer, como o próprio réu o defende, considerando as datas das subscrições do produto financeiro, a análise da sua conduta há-de ser aferida à luz da lei em vigor ao tempo, ou seja, o CVM aprovado pelo DL 486/99, de 13 de Novembro, na versão anterior ao DL 357-A/2007, de 31.10.

Todos concordam que a apreciação da causa passa pela qualificação jurídica, da relação contratual, já realizada em 1ª instância.

Conforme os factos provados, os autores fizeram um investimento de 350.000,00 euros, em papel comercial emitido pela “SLN”, adquirindo este junto do réu, a quem deram ordem de compra do mesmo, o que o Banco fez por conta do Autor.

Do facto referido resulta que a qualificação jurídica da intervenção do réu não pode deixar de ser considerada como um serviço e uma atividade de intermediação financeira e o contrato celebrado entre os autores e o réu um contrato de intermediação financeira.

E nesta qualidade, um dos cruciais deveres que a lei impõe ao intermediário é o de prestar informação ao comprador, a qual “deve ser completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita”, abrangendo “os valores mobiliários, as ofertas públicas, os mercados de valores mobiliários, as actividades de intermediação e os emitentes”.

Um dos objetivos essenciais da actividade de intermediação é o de propiciar decisões de investimento informadas, em ordem a prevenir a lesão dos interesses dos clientes (art.º 304º do referido CVM).

Esta lei estabelece que “a extensão e a profundidade da informação devem ser tanto maiores quanto menor for o grau de conhecimentos e de experiência do cliente” (art.º 312º, nº 2).

Se a lei em vigor ao tempo não impunha a categorização dos clientes nos termos e segundo os critérios hoje definidos, ela não deixava de distinguir entre clientes qualificados e não qualificados, impondo que o intermediário colhesse informação “sobre a situação financeira dos clientes, a sua experiência em matéria de investimentos e os objectivos que prosseguem através dos serviços a prestar”.

Conforme as citadas normas, o dever de informação em análise inclui um dever de recolha de informação (sobre a experiência e o conhecimento do cliente em matéria de investimento), um dever de avaliação da adequação do investimento proposto ao cliente e o dever de advertir este sobre a inadequação.

No que respeita à responsabilidade civil do intermediário financeiro, dispunha o artigo 314º:

“1 - Os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação de deveres respeitantes ao exercício da sua atividade, que lhes sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública.

“2 - A culpa do intermediário financeiro presume-se quando o dano seja causado no âmbito de relações contratuais ou pré-contratuais e, em qualquer caso, quando seja originado pela violação de deveres de informação”.

A sua responsabilidade pressupõe a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil previstos no artigo 483º do Código Civil: o facto ilícito; a culpa; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

            Neste contexto, os autores circunscrevem a responsabilidade do Banco à sua atividade de intermediação financeira, “impondo” um produto para aqueles, em violação do realmente adequado ao seu perfil ou em violação do pretendido e dos deveres de informação, lealdade e boa fé.

É indiscutível que os autores são investidores não qualificados e de perfil conservador, que repudiam o risco.

O Banco apresenta-se ao destinatário como tendo qualidades específicas que o habilitam a fornecer tais informações e que induzem este investidor a confiar.

O Banco assegurou aos clientes que o produto financeiro proposto era sem risco, com reembolso do capital e juros garantidos. (Mesmo depois da reclamação dos autores, conforme o facto 5.21, o réu voltou a afirmar que o reembolso seria efetuado.)

Esta declaração, para com estes autores, interpretada à luz dos critérios interpretativos das declarações negociais (art. 236º do Código Civil), só pode significar que o Banco assume um compromisso perante o cliente, o do reembolso do capital.

A confiança deste cliente, não qualificado, na afirmação do Banco, deve ser protegida pela ordem jurídica, sob pena de se minar aquela de que vive o sistema bancário e a segurança jurídica.

Quer no plano da responsabilidade civil pré contratual (art. 227º do Código Civil), porque na preparação do contrato o Banco informou os autores que estava

garantido o retorno do capital, quer no plano da responsabilidade civil contratual, porque o banco não cumpriu o compromisso assumido, este réu não procedeu com boa fé (art. 762º do referido código).

(Neste sentido, ver os acórdãos do Supremo Tribunal, de 10.1.2013 (proc. 89/10) e de 17.3.2016 (proc. 70/13), em www.dgsi.pt.)

Por isso, no caso concreto, a ilicitude da conduta verifica-se, na violação do dever de informação e do compromisso de reembolso do capital.

            Quanto à culpa, o nº 2 do referido art. 314º do CVM consagra uma presunção da mesma.

Esta presunção não foi ilidida.

            Entendemos até que a culpa do Banco é grave porque a violação dos deveres referidos é grosseira. O Banco desconsidera o perfil do cliente que conhece há vários anos.

            Ao contrário do defendido pelo réu recorrente, não se pode afirmar que não se verifica o nexo de causalidade entre a violação do dever de informação e o dano.

Este nexo (art. 563º do Código Civil) deve ser encontrado na demonstração, que decorre da matéria de facto e da motivação da decisão desta, de que se o Banco tivesse informado completamente os autores, estes não teriam investido naquela aplicação, mas sim noutra que lhes garantisse o capital, condição de investidores conhecida do banco.

O valor do dano é o equivalente ao capital investido e perdido, acrescido dos juros remuneratórios durante o período de tempo em que durou a aplicação, aqueles que estejam por pagar.


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A prescrição.

Invoca o recorrente o art. 324.º, n.º 2, do Código dos Valores Mobiliários, para contar o prazo a partir da data em que o cliente tem conhecimento da conclusão do negócio.

Afirma a citada norma: “Salvo dolo ou culpa grave, a responsabilidade do intermediário financeiro por negócio em que haja intervindo nessa qualidade prescreve decorridos dois anos a partir da data em que o cliente tenha conhecimento da conclusão do negócio e dos respetivos termos”.

No caso, como vimos, havendo culpa grave do réu, aquele prazo não se aplica.

De qualquer maneira, importará considerar:

Como se sabe, o prazo de prescrição tem por fundamento a segurança jurídica do devedor e a penalização da negligência do credor.

            Sendo assim, aquela norma não pode ser dissociada da responsabilidade civil em causa e do 498º, nº1, do Código Civil, de que a prescrição não se iniciará antes do conhecimento do direito pelo lesado.

Ora, a expressão da lei, para este efeito, só pode apontar para a data em que o autor percebe os termos do negócio, no caso ainda expresso pela violação do dever de informação do Banco.

No caso, só quando o autor constata a falta de pagamento dos juros e do capital é que ele é confrontado com os exatos termos do negócio, tomando conhecimento da possibilidade da perda de capital.

(Neste sentido, ver o acórdão do Supremo Tribunal, já citado, de 17.3.2016 (proc. 70/13), em www.dgsi.pt.)

Mais, conforme o facto provado em 5.21, quando surpreendido com a falta de reembolso do capital após o vencimento das aplicações, o autor marido procurou explicações na agência do Banco réu, tendo-lhe sido transmitido que a situação se iria resolver e que o reembolso seria efetuado.

Este facto deve ser interpretado como um reconhecimento pelo réu do direito que o autor pretende fazer valer, interrompendo a prescrição, no âmbito do art.325º, nº 1, do Código Civil.

A interpelação do autor e o referido reconhecimento do réu ocorreram depois de 27.10.2014, não tendo decorrido 2 anos quando o réu é citado (06.09.2016).

Em consequência, não se pode ter por verificado o prazo de prescrição.


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O abuso de direito pelos autores.

Entende o recorrente que foi o autor quem deu carta branca ao funcionário do réu, para que este aplicasse o dinheiro como bem entendesse, assim prescindindo do seu direito a ser previamente informado e de conduzir o seu investimento.

Entende que uma tal conduta potencia a inobservância do dever de informação que o funcionário do réu venha a incorrer, pois conforta-o nesse incumprimento, contribuindo para que ele próprio não cumpra com o seu dever, até convencido que o credor da informação não pretende ter a maçada de a receber, pois dela prescindiu.

Não concordamos com este entendimento.

No abuso do direito estamos perante posições jurídicas contrárias aos valores estruturantes do sistema jurídico.

            É um limite indeterminado ao comportamento jurídico, que passa pelos conceitos de fim, de bons costumes e de boa fé (art.334º do Código Civil).

            Trata-se de um conceito indeterminado, que carece de um processo de concretização para melhor aplicar a justiça ao caso concreto.

Há, assim, necessidade de surpreender grupos típicos de comportamentos abusivos frente a "um universo informe de comportamentos inadmissíveis" - M. Cordeiro, Boa Fé, 1997, página 719.

            Têm sido considerados grupos típicos: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegalidades formais, a suppressio e a surrectio, o tu quoque e finalmente o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

A locução venire contra factum proprium exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios.

Parte-se de uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objetivamente considerada, é de molde a criar noutrem uma situação objetiva de confiança, ou seja, a convicção de que aquele sujeito jurídico se comportará, no futuro, coerentemente com aquela conduta. É necessário que, com base na situação de confiança criada, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe resultarão danos se a sua confiança legítima vier a sair frustrada.
Como refere Menezes Cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil”, Teses, Almedina, 2007, página 745), o abuso de direito nesta modalidade postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si mas diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda – o venire. Só se considera como “venire contra factum proprium” a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento da mesma pessoa.

Mas a contradição a atender está limitada à proteção da confiança: um comportamento não pode ser contraditado quando tenha suscitado a confiança dos sujeitos envolvidos.

O princípio da confiança exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura.

No caso em apreço, como já assinalámos na reapreciação da matéria de facto, a expressão de confiança do autor para o Banco (“tu é que sabes”) deve ser entendida não como uma “carta branca”, mas no pressuposto do referido respeito pela natureza do cliente “conservador” e que não queria assumir riscos.

Em face deste pressuposto, é o Banco quem viola a confiança dada pelos autores. O Banco deveria considerar que, quando os autores tomassem conhecimento dos termos exatos do produto aplicado, a sua atitude mudaria por completo.

Não encontramos qualquer abuso de direito na conduta dos autores.


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A culpa dos lesados.

Insiste o Banco no sentido de que aquela conduta dos autores é também reconduzível à figura da culpa do lesado. (“o autor deu carta branca ao funcionário do réu, para que este aplicasse o dinheiro como bem entendesse, assim prescindindo do seu direito a ser previamente informado e de conduzir o seu investimento”; tal conduta potencia a inobservância do dever de informação que o funcionário do réu venha a incorrer, pois conforta-o nesse incumprimento, contribuindo para que ele próprio não cumpra com o seu dever.”)

Conforme o art. 570º do Código Civil, sem prejuízo do que já dissémos, porque os autores, na sua condição, confiam no Banco no pressuposto do referido respeito pela natureza de cliente “conservador” e que não queria assumir riscos e porque os mesmos não contribuíram em nada para a produção dos danos ou para o seu agravamento, não encontramos qualquer culpa dos lesados.

Por fim, fica prejudicada a questão da garantia do réu suportada noutras figuras contratuais, pois que a responsabilidade deste foi encontrada pela via supra descrita.

Decisão.

Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente, vencido (art.527º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Coimbra, 2018-01-23

Fernando Monteiro ( Relator )

Carvalho Martins

Carlos Moreira