Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
89/14.5TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CASO JULGADO
ÂMBITO
DEDUÇÃO
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 580°, 581º, 619º E 620º DO NCPC
Sumário: I – Porque subjazem ao caso julgado os valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado, esse instituto «cobre o deduzido e o dedutível», fazendo precludir todas as possíveis razões que o autor poderia ter aduzido e não o fez na acção anterior.

II - E porque também não pode ser esquecida, por outro lado, a realização da justiça, deve ser bem precisado o sentido e alcance dessa máxima: a inclusão do “dedutível” no caso julgado refere-se necessariamente, apenas, a factos instrumentais ou a outras razões ou a factos que, integráveis embora na causa de pedir complexa invocada pelo autor, não foram indevidamente materializados ou concretizados no processo anterior, não podendo, pois, estender-se a uma causa de pedir ou a um elemento duma causa de pedir que o autor, pura e simplesmente, não indicou, sem o poder ter feito, nem a uma reparação de danos ainda não contemplada no anterior pedido.

III - Na situação assim configurada, a primeira decisão transitada em julgado não é susceptível de ser ofendida pela decisão que vier a ser eventualmente proferida nesta acção, sem prejuízo de dever ser acatado o efeito processual positivo também associado ao caso julgado material, com a vinculação do Tribunal ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada na acção anterior, ou seja, ao conteúdo da decisão nela proferida.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       1) A... intentou a presente acção contra M..., SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe as quantias de € 35.000 e de € 140.342,26 para reparação de danos posteriores a 28/11/2006, não patrimoniais e patrimoniais (decorrentes da IPP), respectivamente, que, segundo alegou, sofreu e sofrerá em consequência de um acidente de viação ocorrido em 18/2/2006, nas condições que descreveu. Para tanto, alegou, além do mais, que em 5/7/2006 propôs uma outra acção (nº...) contra a R, em cujo âmbito foi esta condenada, na sequência do pedido que formulou, a reparar os danos que sofreu por via do mesmo acidente e até então verificados, bem como os que se viessem a apurar em liquidação de sentença relativos aos patrimoniais decorrentes da incapacidade temporária para o trabalho após 12.07.2006 e aos não patrimoniais por ele suportados após 6/7/2006 e até à consolidação do seu estado clínico.

Alegou ainda o A que, não obstante os danos posteriores a 28/11/2006 (não patrimoniais e patrimoniais) não terem sido apreciados em tal acção, procedeu também à respectiva indicação quando requereu a liquidação dos contemplados naquela sentença condenatória, sendo que apenas em 13/2/2009 conheceu a extensão integral de tais danos, cuja reparação pede também na presente acção.

2) A R contestou, defendendo que na presente acção ambas as partes estão vinculadas ao caso julgado formado na sobredita acção (nº ...) e que se verifica a «litispendência entre a presente acção e a anterior, vertida a designação de um incidente de liquidação em execução de sentença», existindo identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

3) O A respondeu invocando que, embora tenha liquidado em execução de sentença os danos patrimoniais e não patrimoniais cuja reparação pede também na presente acção, entendeu o Tribunal que a sentença, como título executivo que era, não comportava a apreciação desses danos.

4) No despacho saneador, o Sr. Juiz, considerando não ter sido ainda decidido um recurso de agravo intentado pelo A da decisão proferida na fase de liquidação daquela outra acção nº ..., no sentido de que os danos patrimoniais e não patrimoniais futuros não estavam nela contemplados, julgou procedente a excepção da litispendência e absolveu a R da instância, por haver identidade quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir no que concerne às pretensões formuladas naquele agravo e nesta acção.

5) Inconformado, o A apelou, suscitando apenas a questão de saber se inexiste a excepção da litispendência, porquanto, neste processo 89/14 não se pede a revogação de qualquer despacho proferido no processo ..., mas que seja arbitrada ao A uma quantia com base nos factos cuja apreciação ora pretende.

6) A R contra-alegou sustentando que numa e noutra acção o A pretende fazer valer o mesmo direito indemnizatório, em relação aos mesmos danos que teria sofrido no mesmo acidente.

7) Depois de admitido o recurso, o A veio juntar aos autos, em 3/3/2015, uma certidão extraída do processo ..., comprovando não terem esses autos sido movimentados no sentido da subida do recurso de agravo neles interposto, que deixou de estar pendente, pelo que o presente recurso se tornou inútil por superveniência. Em requerimento de 19/3, o A veio reiterar que existe inutilidade superveniente do recurso, pedindo a este Tribunal que os autos baixem à 1ª Instância para apreciação do que for devido, nomeadamente as excepções do caso julgado e da prescrição.

8) Em despacho de 24/4, o Sr. Juiz manifestou entender que não existe inutilidade superveniente do recurso, porque importará conhecer do seu objecto para se verificar da referida tríplice identidade, já não para a excepção de litispendência, mas, sim, do caso julgado, atenta a circunstância de haver decisão final transitada no processo ...

Para além dos que se extraem do antecedentemente relatado, são os seguintes os factos a considerar na decisão:

a) Na PI que deu início à aludida acção nº ..., apresentada em 5/7/2006, o A alegou que continuava em tratamento e a sua situação não se consolidara (em termos de dores e necessidades operatórias), ainda estava de baixa e desconhecia se ficaria ou não afectado de IPP, pelo que o montante pedido a título de danos não patrimoniais era provisório e relegava para momento oportuno saber da existência de alguma incapacidade.

b) No despacho saneador proferido na fase de liquidação de sentença (intentada em 8/5/2012) desse processo ..., o Sr. Juiz decidiu que os danos patrimoniais e não patrimoniais posteriores a 28/11/2006 (data da cura clínica) não estavam contemplados na sentença liquidanda, cabendo apreciar apenas a liquidação de danos que ocorreram até então, tanto os não patrimoniais como os decorrentes da incapacidade temporária para o trabalho.

c) Entretanto, já depois de intentado o presente recurso, essa decisão transitou em julgado porque, não obstante ter sido dela interposto o recurso de agravo supra mencionado em 4) e 7), este, como aí referido, não chegou a ser remetido à Relação.

d) No âmbito dos termos de tal recurso de agravo, o Sr. Juiz proferira a 10/12/2013 o despacho de sustentação, esclarecendo: [os factos invocados na fase da referida liquidação e coincidentes com os desta acção 89/14] «não correspondem a danos oportunamente alegados e cuja extensão tenha sido relegada para execução de sentença, mas sim a danos agora introduzidos. São prejuízos novos e não prejuízos já verificados cuja extensão fosse desconhecida à data da sentença. (…) (salientando-se, todavia, que sobre a matéria que a sentença não aprecia (na fase da liquidação) não se formou caso julgado, ficando aberta a porta ao lesado para propositura de nova acção, sem prejuízo, claro está, do regime da prescrição)».

Importa apreciar a questão enunciada e decidir.

Dispõem os artigos 580° e 581º do CPC:

«As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.

Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (…).

Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico…».

O Sr. Juiz, no despacho ora recorrido, considerou que a presente acção 89/14 poderia redundar numa repetição (de causa), caso obtivesse provimento o agravo interposto naquela acção nº ..., porque, se tal sucedesse, ocorreria, entre ambas as acções, a tríplice identidade visada pelos preceitos citados.

Ora, não estando já em curso o agravo (nem a acção de que este emergiu) relativamente a cuja instância o Sr. Juiz divisou a apontada excepção, não se suscita mais essa questão, a única que constituía o objecto do presente recurso, pelo que este, com esse conteúdo que lhe foi oferecido, se tornou supervenientemente inútil, não cabendo averiguar, sem mais, se tal questão, na altura, foi bem decidida, como aventou o Sr. Juiz.

Ainda assim, teremos de defrontar o problema de saber se, uma vez transitada a decisão final do processo ..., caberá verificar da referida tríplice identidade entre esta acção (nº 89/14) ainda em curso e aquela ([1]) e se, por isso, há lugar à excepção do caso julgado, por se repetir a causa, nos citados termos, como sugeriu o Sr. Juiz.

É certo que, como é sabido e é entendimento uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, os recursos são meios de obter a reponderação das questões já anteriormente colocadas e a eventual reforma de decisões dos tribunais inferiores, e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso ([2]).

Contudo, sendo certo que a questão do caso julgado não foi apreciada nem sobre ela recaiu qualquer decisão em 1ª Instância ([3]), também é verdade que, como acima se viu, os pressupostos da repetição de uma causa para o preenchimento de uma ou outra de tais excepções são exactamente os mesmos, com a ressalva da pendência ou não de ambas as causas, podendo por isso considerar-se que, nessa vertente, a questão da existência da tríplice identidade foi submetida à apreciação deste Tribunal e que, nessa medida, a imediata concretização dessa apreciação, mesmo sendo apenas agora defrontada no recurso, não suprime um grau de jurisdição no seu conhecimento.

Por outro lado, a mesma questão (caso julgado) integra uma das indicadas ressalvas por estar sujeita a conhecimento oficioso (arts 577º e 578º do CPC).

A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis.

Com efeito, a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.

Diferentemente do caso julgado formal – que tem uma eficácia estritamente intraprocessual ([4]) – o caso julgado material é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão ou em processos distintos (cf. arts. 619º e 620º do CPC).

A eficácia do caso julgado material – único que releva para a apreciação da questão cuja apreciação ora se suscita – varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior.

Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.e., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC]. Verificando-se a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão.

Ainda assim, não ocorrendo completa identidade daquele âmbito na relação entre a acção em que foi proferida a decisão transitada e a acção subsequente, nem por isso, o caso julgado deixa de ser relevante: a decisão proferida sobre o mesmo objecto vale entre as mesmas partes de ambas as acções como autoridade de caso julgado e, quando tal suceda, o tribunal da acção posterior está vinculado à decisão proferida na causa anterior, mesmo sem a tríplice homotropia de sujeitos, pedido e de causa de pedir. O que significa que, mesmo sem essa completa identidade, o tribunal está vinculado na acção subsequente a tudo o que esteja coberto pela autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na causa anterior.

Na presente situação, verificando-se a identidade de sujeitos em ambas as mencionadas acções, é discutível a existência de identidade quanto ao pedido e à causa de pedir. Vejamos.

Na PI da acção nº ... o A alegou que continuava na data em tratamento e a sua situação não se consolidara (em termos de dores e necessidades operatórias), que ainda estava de baixa e que desconhecia se ficaria ou não afectado de IPP, pelo que o montante pedido a título de danos não patrimoniais era provisório e relegava para momento oportuno saber da existência de alguma incapacidade permanente. Ora, não podendo olvidar-se que, num caso como o do (mesmo) acidente que subjaz a ambas as acções, deparamos com uma causa de pedir complexa, parece perfeitamente compreensível a razão invocada pelo A para não dispor, aquando da enunciação da primeira petição, menos de cinco meses decorridos após o acidente, de elementos que lhe permitissem alcançar os segmentos de tal causa de pedir, na sua complexidade, relacionados com a consolidação da lesão corporal e também, por consequência, do correspondente petitório, pelo que, mesmo a sua indicação em termos genéricos seria, então, descabida.

Por isso, na presente acção, o A veio a pedir, precisamente, a condenação da R na reparação dos danos que naquela primeira acção dizia ainda desconhecer, ou seja, os subsequentes à cura clínica (ocorrida em 28/11/2006), tanto não patrimoniais como os patrimoniais (decorrentes da IPP), embora todos eles alegadamente sofridos em consequência do mesmo acidente de viação de 18/2/2006, que integrara igualmente a causa de pedir complexa invocada na dita acção anterior.

  Daí que a sentença proferida na primeira acção não tenha apreciado os factos que fundamentam a reparação agora pedida nem se tenha pronunciado quanto à pretensão conducente à reparação dos correspondentes danos, como é natural.

E daí que, coerentemente, também tenha sido decidido, aquando da liquidação da parte genérica da condenação ínsita em tal sentença, que a liquidação se destinava, tão-só, à concretização ou quantificação do objecto da condenação, não podendo, por isso, estender-se a danos cuja reparação não fora (ainda) pedida. Nem outra poderia ser a decisão a esperar, à luz das mais elementares regras de processo, ainda que a mesma tivesse estado pendente de impugnação (recurso) durante algum tempo. Razão pela qual não pode adquirir-se como tendo tido a idoneidade para alterar o objecto (pedido e causa de pedir) da acção a introdução, pela via forçada e inepta da liquidação, da pretensão e respectiva fundamentação ora em apreço, não deduzida na PI de tal acção.

E, por fim, também se recebe com toda a naturalidade o despacho de sustentação acima aludido na al. d), completamente esclarecedor quanto à “novidade” dos prejuízos ora em questão e, por consequência, à inviabilidade da sua pretendida (pelo A) liquidação na primeira acção, bem como quanto ao modo como aí se mostrou a “porta ao lesado para propositura de nova acção”, não podendo esquecer-se que o sistema, dentro do possível e permitido pela interpretação da lei, não deve fechar portas que foram entreabertas por um juiz, por respeito ao princípio da confiança.

Ora, a causa de pedir não é o facto abstracto configurado na lei, mera categoria legal, mas sim os factos con­cretos invocados pelo autor a que a lei atribui determinados efeitos jurídicos. Ao contrário do que se poderia pensar, a causa de pedir (em ambas as acções) não é a constituição da obrigação de indemnizar advinda do acidente de viação, é o conjunto de factos concretos e idóneos, nos termos da lei, a produzir o efeito jurídico almejado, como sucede com os reveladores dos danos cuja reparação o aqui A pretende alcançar nesta acção. É o que o Prof: Manuel de Andrade ensinou ([5]): ­«A causa de pedir é o acto ou o facto jurídico, simples ou complexo mas sempre concreto, donde emerge o direito que o autor invoca. Esse direito não pode ter existência sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir».

Se alguém pretende o reconhecimento do direito a uma indemnização, para daí extrair consequências jurídicas e práticas do seu interesse precisa de invocar em juízo todos os factos concretos que, uma vez provados, autorizem a concluir que se mostram preenchidos todos os pressupostos desse direito que quer ver reconhecido e tutelado. E são esses factos que, no seu conjunto, integram a causa de pedir, não, p. ex., um conceito jurídico, abstractamente considerado e desligado dos factos materiais que o corporizam. Donde, para se aferir da identidade da causa de pedir, para efeitos de caso julgado, não se possa recorrer exclusivamente a conceitos jurídicos abstractos, mas sim aos factos concretos susceptíveis de os integrarem.

Ainda assim, nas situações de causas de pedir complexas, como aqui sucede, não tendo sido atendida na acção precedente a pretensão a uma determinada e concreta reparação, também emergente de tal causa de pedir complexa, porque o autor não alegou naquela acção factos integrantes de um ou vários dos elementos que compõem essa causa de pedir, não se verificará o caso julgado ao propor nova acção onde invoca os factos que naquela faltaram, por não haver identidade de causa de pedir?

A resposta não é pacífica nem evidente.

Na Jurisprudência, por exemplo, os Ac.s da RP de 31/3/98, in BMJ 475º-767, e de 18/02/82, in CJ, 1º-299 apontam para uma resposta negativa, considerando este: ­«Embora a causa de pedir enunciada no normativo abstracto da lei se possa ver denunciada ou descoberta através da pretensão da demanda, se nesta, porém, ela se apresenta vertida numa concretização material que não preenche a sua figura legal, parece legitimar-se negar-se a identidade entre semelhante materialidade deficiente ou insuficiente e a materialidade que, suprindo tal falha, se apresenta como tudo aquilo que torna perfeita a realidade da causa petendi. Esta não é a mesma, consoante contém, ou não, todos os factos materiais da sua consubstanciação no tipo legal respectivo. Diversidade essa a que corresponde uma não identidade de demanda, quanto à causa de pedir (concreta)». Ou o Ac. desta Relação de 29/1/2002 ([6])O caso julgado cobre o deduzido e o dedutível, referindo-se esta expressão aos factos que, integrados embora na causa de pedir invocada pelo autor, por qualquer razão não foram trazidos à colação no processo; não cobre, porém, a causa ou causas de pedir que o autor não indicou nem quis indicar. A coincidência do efeito jurídico visado em duas acções não conduz necessariamente à conclusão de que os pedidos também coincidem. Não existindo identificação entre o objecto das duas acções porque são diversas as respectivas causas de pedir, não há caso julgado».

Já os Ac.s do STJ de 25/7/85 e de 7/2/1991 ([7]) apontam para que a identidade de causa de pedir possa resultar de uma alegação potencial de factos em acção anterior, operando a preclusão relativamente a todos os factos que a parte podia ter alegado na acção anterior. Ou os Acs. de 31/5/2001 («O caso julgado abrange o deduzido e o dedutível, precludindo ao autor a invocação, noutra acção, de factos integradores da causa de pedir da acção anteriormente julgada e que aí foram omitidos» ([8])) e de 21/9/2000 («Não é a alteração de um qualquer elemento de facto que afecta a identificação dos direitos heterodeterminados, mantendo-se a identidade da causa de pedir na acção de indemnização quando varia o modo em que se verificou o respectivo acidente de viação. O caso julgado abrange o deduzido e o dedutível, precludindo ao autor a invocação, noutra acção, de factos integradores da causa de pedir da acção anteriormente julgada e que ai foram omitidos» ([9])).

O já citado Prof. Manuel de Andrade ([10]) proferiu ensinamento segundo o qual o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível», ficando, por isso, precludida a possibilidade de o autor, «em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões (argumentos) de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior».

Também Miguel Teixeira de Sousa ([11]) defende que o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível», ficando, por isso, precludida a invocação pelo autor de factos que visem completar o objecto de acção anteriormente apreciada, mesmo que com uma decisão de improcedência. Daí que, segundo tal entendimento, a sentença que julga improcedente a acção preclude ao autor a possibilidade de, em novo processo, invocar outros argumentos, de facto ou de direito, não produzidos no processo anterior ([12]).

Por sua vez, o Prof. Castro Mendes ([13]), a propósito do efeito preclusivo do caso julgado, revelou: «Fora da hipótese de factos objectivamente supervenientes – e esta hipótese reconduz-se à ideia dos limites temporais do caso julgado: a sentença só é válida “rebus sic stantibus” – cremos que os “contradireitos” que o réu podia fazer valer são ininvocáveis contra o caso julgado. O fundamento essencial do caso julgado não é de natureza lógica, mas de natureza prática; não há que sobrevalorizar o momento lógico do instituto, por muito que recorramos a ele na técnica e construção da figura. O que se converte em definitivo com o caso julgado não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou não reconhecimento de um bem».

Realmente, não podemos deixar de entender que o caso julgado «cobre o deduzido e o dedutível», fazendo precludir todas as possíveis razões que o autor poderia ter aduzido e não o fez, porque subjazem ao instituto os valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado. Por isso, em tese geral, concordamos com o entendimento acerca do efeito preclusivo inerente ao caso julgado, expresso nessa máxima. A cobertura do “dedutível” pelo caso julgado apenas não pode abranger o adicionamento fáctico que o autor venha aduzir e correspondente ao preenchimento, posterior à acção precedente de qualquer condição, à verificação de qualquer prazo ou de qualquer facto (art. 621º do CPC) ou a uma causa ou causas de pedir que o autor, pura e simplesmente, não indicou nem quis indicar anteriormente.

     No entanto, também pensamos que não podem ser esquecidos todos os valores em presença: por um lado, as referidas segurança das decisões e autoridade do Estado, por outro, a realização da justiça. Razão pela qual, deve ser bem precisado o sentido e alcance dessa máxima: a inclusão do “dedutível” no caso julgado refere-se necessariamente, apenas, a factos instrumentais ou outras razões (argumentos) de direito ou a factos que, integráveis embora na causa de pedir complexa invocada pelo autor, não foram indevidamente materializados ou concretizados e, portanto, trazidos à colação no processo anterior. E só relativamente a esses é admissível a extensão dos efeitos do caso julgado, sob pena de completa subversão de vários outros princípios estruturantes do processo civil, a começar, desde logo, pelo dispositivo, continuando pelo contraditório e terminando no da igualdade das partes, não podendo, pois, estender-se a uma causa de pedir ou a um elemento duma causa de pedir que o autor, pura e simplesmente, não indicou, sem o poder ter feito ([14]), nem a uma reparação de danos ainda não contemplada no anterior pedido.

Ora, neste caso, o Sr. Juiz, para resolver a questão da litispendência que lhe fora suscitada, tendeu a concluir que esta acção é a mera repetição da outra causa, a entretanto já decidida, porque, nela, o A interpelaria o Tribunal a debruçar-se sobre a mesma realidade em apreciação no primeiro processo, caso o agravo interposto pelo A viesse a obter provimento. Portanto, a questão foi enfrentada, não perante o objecto já definido de ambas as acções, mas perante o que poderia advir dessa eventualidade, quando, o certo era que, segundo o que já estava decidido, ainda que pendente de impugnação, a liquidação se destinava, tão-só, à concretização ou quantificação do objecto da condenação, não podendo, por isso, estender-se a danos cuja reparação não fora (ainda) pedida.

A identidade dos pedidos é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado. A identidade de pedidos ocorrerá «se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objecto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a acção, se pretende obter» ([15]).

É certo que, relativamente à identidade de pedidos, há que considerar, também, como suficiente uma identidade meramente relativa, dado que fica abrangido não só o efeito jurídico obtido no primeiro processo, como qualquer outro efeito jurídico que houvesse estado implícita mas necessariamente em causa ([16]).

Porém, parece-nos evidente que a pretensão à reparação dos danos que é formulada nesta acção não foi apresentada, explícita ou implicitamente, na acção anterior, como, aliás, foi aí reconhecido e ficou processualmente adquirido entre as partes desta acção, uma vez que a respectiva decisão está, agora, definitivamente transitada.

E esta constatação arreda a aludida identidade substancial, não só quanto ao pedido mas também quanto aos elementos da causa de pedir complexa em que aquele assenta, ou seja, os danos (e os factos que os geraram) decorrentes da alegada incapacidade permanente que afecta o A após a consolidação clínica das lesões corporais sofridas no acidente e os danos não patrimoniais conexos com aquela incapacidade.

       Segundo pensamos, mesmo que se configurasse como processualmente legítima a dedução, na primeira acção, dum pedido genérico fundado na futura e, então, meramente hipotética incapacidade permanente do A – para já não falar do respectivo grau, bem como da extensão dos danos não patrimoniais dela advindos – temos de convir, à luz do que já expendemos, que tal não lhe era imposto. Com efeito, a uma distância de quase meio ano da data da cura clínica das lesões não seria de exigir ao A essa previsão e que deduzisse uma tal pretensão, aliás, meramente eventual: não dispondo, aquando da formulação do primeiro petitório, elementos que lhe permitissem uma cabal enunciação de toda a causa de pedir complexa agora aqui em causa, não lhe pode ser oposta tal excepção porque o caso julgado, compreendendo aquilo que foi objecto de controvérsia e ainda o que a parte tinha o ónus de invocar, não se estende para além disto, como se disse.

Realmente, do que se trataria era saber se a primeira decisão transitada em julgado é ou não susceptível de ser ofendida pela decisão que vier a ser proferida nesta acção ([17]).Ora, não é legítimo concluir que a propositura da presente acção choca com o disposto nos citados preceitos do CPC porque o A não se limitou a suprir uma qualquer deficiência da anterior, alegando agora factos que naquela, por motivos que lhe são imputáveis, faltaram. Sem a cobertura do “dedutível”, no sentido exposto, não se preenche a completa identidade da causa de pedir nem, por maioria de razão, de pedido, pelo que o Tribunal não seria aqui colocado na alternativa de reproduzir ou contradizer uma decisão anterior ([18]), sem prejuízo, como é obvio, do efeito processual positivo também associado ao caso julgado material: a vinculação do Tribunal ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada na acção anterior, ou seja, ao conteúdo da decisão nela proferida.

Assim, a acção nº ... e a presente não têm a mesma causa de pedir nem nelas foi formulado o mesmo pedido, pelo que a decisão transitada proferida naquela não vale nesta como excepção do caso julgado.

Síntese conclusiva:

1ª - Porque subjazem ao caso julgado os valores da segurança das decisões e da autoridade do Estado, esse instituto «cobre o deduzido e o dedutível», fazendo precludir todas as possíveis razões que o autor poderia ter aduzido e não o fez na acção anterior.

2ª - E porque também não pode ser esquecida, por outro lado, a realização da justiça, deve ser bem precisado o sentido e alcance dessa máxima: a inclusão do “dedutível” no caso julgado refere-se necessariamente, apenas, a factos instrumentais ou a outras razões ou a factos que, integráveis embora na causa de pedir complexa invocada pelo autor, não foram indevidamente materializados ou concretizados no processo anterior, não podendo, pois, estender-se a uma causa de pedir ou a um elemento duma causa de pedir que o autor, pura e simplesmente, não indicou, sem o poder ter feito, nem a uma reparação de danos ainda não contemplada no anterior pedido.

3ª - Na situação assim configurada, a primeira decisão transitada em julgado não é susceptível de ser ofendida pela decisão que vier a ser eventualmente proferida nesta acção, sem prejuízo de dever ser acatado o efeito processual positivo também associado ao caso julgado material, com a vinculação do Tribunal ao resultado da aplicação do direito ao caso concreto que foi realizada na acção anterior, ou seja, ao conteúdo da decisão nela proferida.

Decisão.

Pelo exposto,  julgando ser supervenientemente inútil a apreciação da questão da litispendência e não valer como excepção do caso julgado nos presentes autos a decisão transitada proferida na acção nº ..., decide-se revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra determinando o prosseguimento da acção.

Custas pela apelada.

Coimbra, 30/06/2015

Alexandre Reis (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] Já não, propriamente, da instância gerada pelo dito agravo, tal como a questão nos vinha colocada.

[2] Diferentemente, estar-se-ia a julgar ex-novo e não a reponderar ou reapreciar o julgamento feito na 1ª instância, o que estaria vedado face ao modelo do recurso que o direito português consagra: o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal superior que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância. A função do recurso ordinário é, no nosso direito, por princípio, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa (cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, p. 81.).

[3] Como é evidente a já mencionada sugestão do Sr. Juiz para que sobre tal questão recaísse pronúncia e decisão não substitui a iniciativa que só às partes compete de delimitar o objecto dos recursos com as questões que suscitam em 1ª instância.

[4] Só vincula no próprio processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida.

[5] “Noções Elementares de Processo Civil”, ed. 1976, p. 111 e 321.

[6] P. 3028/01-Nuno Cameira.

[7] In BMJ 249º-421 e 404º-351, respectivamente.

[8] Revista nº 1153/01 - Garcia Marques.

[9] Agravo 2173/00 – Afonso de Melo.

[10] Ibidem, pp 323 e 324.

[11] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 585.

[12] V. Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 176.

[13]  “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pp. 178 e ss.

[14] Segundo cremos, o que o Prof. Manuel de Andrade escreve a pág. 324 da ob. cit. (“Noções Elementares de Processo Civil”) insere-se plenamente nesta linha de pensamento.

[15] Cf. Ac. do STJ de 8/3/2007, CJSTJ, 1º-98.

[16] Cf. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processual Civil, cit., p. 350.

[17] Cf. Ac. do STJ de 8/3/2007 (P. 07B595-Salvador da Costa).

[18] O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer tribunal – mesmo por aquele que proferiu a decisão – o que aqui não poderia suceder.