Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
230/11.0TMCBR-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CRIANÇA
PROTECÇÃO
PERIGO
SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA
MEDIDA PROVISÓRIA
MEDIDA DE APOIO JUNTO DOS PAIS
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 1, 3, 4, 5, 35, 37, 39, 92, 100 LPCJP ( LEI Nº 147/99 DE 1/9), DL Nº 12/2008 DE 17/1, ARTS. 1885, 1906, 1918 CC, 36, 69 CRP
Sumário: 1. A intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo (art.º 3º, n.º 1 da LPCJP, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01.9).

2. Considera-se situação de emergência para efeitos de aplicação das medidas provisórias previstas no art.º 37º da LPCJP toda a situação que requeira uma intervenção imediata, ainda que a título precário e provisório, de modo a remover tempestivamente o perigo detectado a que está sujeito o menor.

3. Na ponderação de qualquer medida provisória deverão ter-se em conta, para além do interesse superior do menor enunciado na alínea a) do art.º 4º da LPCJP, todos os restantes princípios consagrados nas várias alíneas do mesmo art.º 4º, nomeadamente: o da intervenção precoce, traduzida no imperativo da intervenção do tribunal logo que a situação de perigo seja conhecida [alínea c)]; o da proporcionalidade e actualidade - a medida só deve interferir na vida do menor e da sua família, na medida do que for estritamente necessário à finalidade pretendida [alínea d)]; o da responsabilidade parental, traduzido na imposição aos pais do respeito pelos deveres parentais [alínea f)]; e o da prevalência da família - optando por soluções que promovam e aprofundem a integração dos jovens na família [alínea h)].

4. A execução da medida de apoio junto dos pais deve ser orientada no sentido do reforço ou aquisição por parte destes das competências para o exercício da função parental adequadas à superação da situação de perigo e suas consequências e à conveniente satisfação das necessidades de protecção e promoção da criança (art.º 16º, n.º 2 do DL n.º 12/2008, de 17.01).

Decisão Texto Integral:  

           

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Juízo de Família e Menores de Coimbra requereu, em 11.02.2019, a intervenção judicial nos presentes autos de promoção e protecção relativamente à criança F (…), nascido em 26.01.2011, filho de G (…) e R (…) requerendo a aplicação, a título provisório e urgente, da medida de apoio junto da mãe, suspendendo-se de imediato os convívios com o pai.

Por despacho de 12.02.2019, invocando-se o disposto nos art.ºs 36º, n.º 6 e 69º da Constituição da República Portuguesa e 1º a 4º, 35º, n.º 1, alínea a), 37º e 92º, n.º 1, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo/LPCJP (aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01.9[1]), foi aplicada, a título provisório[2], a medida de apoio junto dos pais, concretizada junto da mãe, ao menor F(…), com a duração máxima de seis meses e a ser revista no prazo máximo de três meses (nos termos do art.º 37º da LPCJP), determinando-se, ainda, que “enquanto se mantiver esta medida provisória, o pai poderá estar com o F (…) em período não inferior a duas horas por semana, de preferência concentradas num dia, sendo este convívio supervisionado pela Segurança Social, de preferência nas suas próprias instalações, a quem competirá também a definição concreta deste período de convívio, devendo, para o efeito, articular o horário com os pais do F (…)”.

No mesmo despacho foi declarada aberta a instrução (art.º 106º, n.º 2, da LPCJP), determinada a elaboração de relatório social com proposta de intervenção sobre a situação do menor e do respectivo agregado familiar, com vista à aplicação de medida de promoção e protecção (art.º 108º, n.ºs 1 e 2 da LPCJP), designada data (21.3.2019) para audição dos pais do F (…) e do Técnico da Segurança Social coordenador de caso (art.º 107º, n.ºs 1 e 2 da LPCJP) e eventual celebração de acordo de promoção e protecção (art.º 112º da LPCJP), ordenando-se, ainda, a notificação dos progenitores para, querendo, requererem as diligências instrutórias ou juntarem meios de prova (art.º 107º, n.º 3 da LPCJP) e a pesquisa e junção aos autos de certificado do registo criminal (art.º 7º, al. a) da Lei n.º 57/98, de 18.8).

Inconformado, o requerido interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…)

            A requerida e o Exmo. Magistrado do M.º Público responderam à alegação de recurso, concluindo pela sua improcedência.

Atento o referido acervo conclusivo, importa apreciar e decidir, principalmente, da legalidade e adequação da medida provisória aplicada.


*

            II. 1. A 1ª instância elencou a seguinte factualidade[3]:

a) F (…) está registado como filho de G (…) e de R (…) e nasceu a 26.01.2011.

b) O F (…) reside com a mãe, em x (...) .

c) O F (…) é acompanhado mensalmente na consulta de psicologia no Hospital Pediátrico de x (...) (HPC).

d) O pai promoveu acompanhamento psicoterapêutico regular do F (…) sem articulação com a consulta de psicologia no HPC.

e) Na consulta de psicologia no HPC foi observado que o F (…) se tem tornado progressivamente mais instável, evidenciando grande angústia e sofrimento no relato das vivências com o pai, pela pressão que sente por parte do pai.

f) No âmbito dessa consulta o F (…) relatou que o pai insiste constantemente para que ele verbalize e aja de forma totalmente discordante com a sua vontade, designadamente querer passar mais tempo com o pai, não querer regressar a casa da mãe, não gostar da família materna, os desenhos que fizer na consulta têm de ser com ele e com o pai de mãos dadas, não poder falar na consulta sobre o que o preocupa e ter de estar muito atento na consulta para depois contar ao pai.

g) No âmbito dessa consulta o F (…) relatou simular um estado de contentamento quando está com o pai por temer magoá-lo e/ou irritá-lo e por se sentir desprotegido em relação à zanga que possa nele provocar.

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Estamos perante um processo de jurisdição voluntária (art.º 100º da LPCJP), pelo que o tribunal não está vinculado à observância rigorosa do direito aplicável à espécie vertente/não está sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo a liberdade de se subtrair a esse enquadramento rígido e de proferir a decisão que lhe pareça mais equitativa (mais conveniente e oportuna) (art.º 987º do Código de Processo Civil/CPC), a que melhor serve os interesses em causa[4]; salvaguardados os efeitos já produzidos, será sempre possível a alteração de tais resoluções com fundamento em circunstâncias supervenientes[5] (cf. os art.ºs 986º, n.º 2; 987º; 988º, n.º 1, 1ª parte e 989º, do CPC).

            Daí que releve, sobretudo, a preocupação de respeitar a verdade material e a finalidade prosseguida no processo (in casu, de promoção e protecção), pelo que a actuação processual dos interessados no desfecho da lide e os princípios e as regras do Processo Civil poderão ser secundarizados se e quando colidam ou inviabilizem a possibilidade de proferir a decisão tida como mais equitativa, conveniente e oportuna.

            3. Segundo o art.º 1906°, n.° 5 do CC (na redacção conferida pela Lei n.° 61/2008, de 31.10), o tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro. E nos termos do n.º 7, do mesmo art.º, o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles. [6] 

4. A lei não define o que deva entender-se por interesse do menor, cabendo ao juiz em toda a amplitude que resulta daqueles preceitos legais identificar e definir, em cada caso, esse interesse superior da criança, por alguns já definido como “o direito do menor ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”[7] ou como tratando-se de uma “noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem estar material e moral”.[8]

            5. As “responsabilidades parentais” não são “um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas um conjunto de faculdades de conteúdo altruísta que tem de ser exercido de forma vinculada, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu desenvolvimento integral”.[9]

            Estão pois em causa o exercício de poderes-deveres visando a promoção do interesse da criança, a que se reportam diversos normativos da lei ordinária (cf. ainda, v. g., os art.ºs 1885º, n.º 1 e 1918º, n.º 1, do CC, que estabelecem o dever dos pais de promoverem o desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos e de não colocarem em perigo a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor) e da Lei Fundamental (cf., v. g., os art.ºs 36º, n.º 5 e 69º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa/CRP, consagrando, o primeiro, o direito fundamental da criança à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral e, o segundo, o poder-dever dos pais de educação e manutenção dos filhos).

6. A intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo (art.º 3º, n.º 1 da LPCJP). Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, sofre maus-tratos físicos ou psíquicos; não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional (n.º 2, alíneas b), c) e f)).

A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece ao princípio do interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto (art.º 4º, alínea a) da LPCJP).

São ainda princípios orientadores da intervenção, designadamente, a intervenção precoce - a intervenção deve ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida; proporcionalidade e actualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; responsabilidade parental - a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; prevalência da família - na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adopção ou outra forma de integração familiar estável; audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de protecção (alíneas c), e), f), g), h) e j) do mesmo art.º).

7. A situação de emergência traduz-se na situação de perigo actual ou iminente para a vida ou a situação de perigo actual ou iminente de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, que exija protecção imediata nos termos do art.º 91º, ou que determine a necessidade imediata de aplicação de medidas de promoção (dos direitos) e protecção (cautelar), enquanto providências adoptadas pelas comissões de protecção de crianças e jovens ou pelos tribunais, nos termos do presente diploma, para proteger a criança e o jovem em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral (art.º 1º e 5º, alíneas c) e e) da LPCJP).

A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35º - entre as quais, a medida de promoção e protecção de
apoio junto dos pais
, a executar no meio natural de vida (art.º 35º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 3 da LPCJP) -, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente (art.º 37º, n.º 1 da LPCJP), medidas essas com a duração máxima de seis meses e a rever no prazo máximo de três meses (n.º 3).

A medida de apoio junto dos pais consiste em proporcionar à criança ou jovem apoio de natureza psicopedagógica e social e, quando necessário, ajuda económica (art.º 39º).

8. O DL n.º 12/2008, de 17.01, estabelece o regime de execução das medidas de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo em meio natural de vida (art.º 1º), constituindo medidas a executar em meio natural de vida o apoio junto dos pais, o apoio junto de outro familiar, a confiança a pessoa idónea e o apoio para a autonomia de vida, adiante designadas por medidas (art.º 2º).

As medidas visam manter a criança ou o jovem no seu meio natural, proporcionando condições adequadas ao seu desenvolvimento integral, através de apoio psicopedagógico e social e, quando necessário, de apoio económico (art.º 3º).

A execução das medidas decididas em processo judicial é dirigida e controlada pelo tribunal, cabendo os actos materiais da sua execução e respectivo acompanhamento às entidades que forem legalmente competentes e designadas na decisão (art.º 5º, n.º 2).

A execução da medida de apoio junto dos pais, de apoio junto de outro familiar ou de confiança a pessoa idónea deve ter em conta a situação de perigo que determinou a sua aplicação e o nível das competências parentais ou da capacidade protectora do outro familiar ou da pessoa idónea, reveladas quando da aplicação da medida, consoante os casos (art.º 16º, n.º 1). A execução da medida de apoio junto dos pais deve ser orientada no sentido do reforço ou aquisição por parte destes das competências para o exercício da função parental adequadas à superação da situação de perigo e suas consequências e à conveniente satisfação das necessidades de protecção e promoção da criança (n.º 2). Tendo presentes os objectivos referidos no n.º 2 devem ser considerados na operacionalização do plano de intervenção, entre outros, os seguintes elementos: a) Capacidade dos pais para remover qualquer situação de perigo; b) Ausência de comportamentos que afectem a segurança ou o equilíbrio emocional da criança ou do jovem; c) Disponibilidade dos pais para colaborar nas acções constantes do plano de intervenção (n.º 4).
            9. Descritos os traços essenciais do regime jurídico que releva para a situação dos autos, vejamos a demais fundamentação apresentada pela M.m.ª Juíza
a quo; depois, sobretudo, o que decorre dos elementos colhidos após a aplicação da medida provisória; por último, se os elementos disponíveis permitem a pretendida alteração, bem como o que se antolha adequado à salvaguarda do princípio fundamental da protecção e promoção do superior interesse da criança (critério fundamental para a decisão).

Como vimos, para além do “interesse superior da criança e do jovem”, o art.º 4º da LPCJP elege, entre outros, os critérios da intervenção precoce, traduzida no imperativo de que a intervenção deve ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida [alínea c)]; o da proporcionalidade e actualidade [alínea d)]; o da responsabilidade parental - a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem [alínea f)]; e o da prevalência da família - na promoção de direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adopção [alínea g)].

10. A “situação de emergência” não se confunde com a “situação de urgência” que constitui pressuposto dos procedimentos urgentes a que se referem os art.ºs 91º e 92º da LPCJP: “Será de emergência toda a situação que requer uma intervenção imediata, ainda que a título precário e provisório, de modo a remover tempestivamente o perigo detectado”.[10]

11. A Mm.ª Juíza a quo alicerçou assim o decidido: «(…) as medidas provisórias podem ser aplicadas quando o menor esteja numa situação de emergência, de perigo, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação e à definição do seu encaminhamento subsequente./ (…) o F (…) está a viver uma situação de perigo actual para a sua integridade física, uma vez que o relacionamento com o pai está a afectar negativamente a sua saúde mental e, consequentemente, o seu desenvolvimento./ Impõe-se, no imediato, afastar o F (...) desta situação de perigo./ Pese embora uma das soluções possíveis passe pela cessação imediato do convívio do F (...) com o pai, entendo que ainda é possível manter este convívio, ainda que tenha de ser supervisionado, de forma a assegurar que o menino não está sozinho com o pai e, dessa forma, não está sujeito à pressão do pai, acima evidenciada nos factos elencados./ Esta supervisão deverá ser feita pela Segurança Social, de preferência nas suas próprias instalações, e o convívio não deverá ser inferior a duas horas por semana, de preferência concentradas num dia./ Assim, entendo que estão verificados os requisitos de que a lei faz depender a aplicação de uma medida provisória, sendo certo que, atendendo à factualidade referida, a medida mais adequada é o apoio junto dos pais, concretizado junto da mãe.»

12. A factualidade dada como provada em II. 1., supra, tem subjacente, principalmente, a informação do Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovens em Risco do Hospital Pediátrico de x (...) datada de 19.01.2019.

Importa ainda salientar, por um lado, que os progenitores já se deram conta da inconveniência na dualização e, porventura até, multiplicação dos técnicos que têm vindo a consultar/examinar o menor F (…) no decurso dos últimos anos (é o que decorre das declarações prestadas na conferência de pais de 21.3.2019)[11] e, por outro lado, que alguns dos profissionais em causa têm uma idêntica perspectiva quando mencionam, por último - ainda que aparentando divergir na identificação da sua causa -, que o menor tem vindo o a dar acrescidos sinais de instabilidade e mal-estar emocional; “gosta do pai, o pai faz-lhe falta”; “valoriza a figura paterna, existindo um forte vínculo afectivo” e “procura e sente como desejável a proximidade do pai” (cf., designadamente, o relatório de 15.10.2018 subscrito pela Psicóloga Clínica Dr.ª (…) o relatório da mesma Psicóloga datado de 19.7.2018 e a informação de acompanhamento psicológico elaborada pela Psicóloga Clínica (…), de 12.7.2018 - cf. fls. 33, 80 e 90 dos autos de recurso, respectivamente, e a acta da conferência de 26.7.2018).

            13. a) Foi junto aos autos o Relatório Social de Avalização Diagnóstica de 20.3.2019, elaborado pelos técnicos do ISS, onde se refere (fls. 127/173):

            - Paralelamente à intervenção judicial a criança tem sido alvo de intervenção dos serviços de saúde – públicos e privados – e dos serviços de educação;

            - Os conflitos, quer entre o casal parental, quer entre o progenitor e os ascendentes da mãe, têm sido centrados nos aspectos da parentalidade e decorrem desde o nascimento do F (…);

            - Os requeridos desde sempre dependeram da intervenção judicial para a definição dos seus papéis parentais;

            - A persistência dos conflitos parentais já foram transferidos e interiorizados pelo menor e já condiciona a postura que adopta com cada um dos pais, pois já estará “ajustado” a esta dinâmica densamente conflituosa da comunicação parental, adoptando uma duplicidade de posturas, em conformidade com o que cada um dos pais espera dele;

            - Neste contexto de denso conflito, a certa altura cada uma das partes (requeridos) descentrou-se do conflito directo existente entre elas, para o protagonizar através do discurso que supostamente a criança terá tido com cada um deles a propósito do relacionamento com o outro, donde cada um dos requeridos conclui que o filho se encontra em perigo junto do outro;

            - Da observação da interacção que o F (…) estabelece individual e isoladamente com cada um dos pais verificou-se a fluência de interacções amistosas e afectuosas, mormente o bom contacto e relação entre pai e filho, apesar de o mesmo nunca ter vivido permanentemente com o pai;

            - O menor revela ambivalência e sentimentos contraditórios atribuíveis à exposição prolongada ao conflito existente entre as figuras parentais, sendo perceptível o esforço que o mesmo faz para agradar aos requeridos, chegando a afirmar “…eu gostava que o meu pai e a minha (mãe) vivessem juntos…” e admitindo voltar a conviver com o pai, na casa deste, na presença da avó materna;

            - A incapacidade dos pais em aceitarem o lugar e o papel do outro na vida do filho e de entenderam o prejuízo que isso representa para o filho (e as necessidades do menor);

            - Total ausência de vivência por parte do F (...) , em família, com ambos os pais em conjunto.

            b) Emitindo-se, depois,  a seguinte “síntese/parecer”:

            - Face ao denso conflito familiar que deixou de ser directamente protagonizado pelos adultos envolvidos, para ser protagonizado pela criança, a medida protectiva por si só dificilmente poderá proteger esta criança, se os pais e a família alargada não mudarem as suas posturas e atitudes entre eles e para com a criança.

            - A conveniência em que os pais acordem na escolha de um único médico de cada especialidade médica, assim como um único psicólogo de acompanhamento, sob pena de ser o Tribunal a indicar o profissional em questão.

            - Cumprimento estrito, por parte dos pais, do calendário de convívios que vier a ser estabelecido pelo Tribunal, ficando os pais proibidos de proferirem comentários depreciativos junto da criança.

            - Frequência de Terapia Familiar pelos pais, com vista à tentativa de aquisição de estratégias que lhes permitam comunicar de modo minimamente cordial.

            - No caso de incumprimento por parte dos pais, estes deverão ser responsabilizados e eventualmente penalizados, sendo revista a medida protectiva, podendo ser aplicada outra que melhor acautele o bem-estar do F (...) , uma vez que para este já está comprometido o seu desenvolvimento psico-emocional, devido ao conflito parental.

            - Termina com a proposta da medida de apoio junto dos pais, no caso junto da mãe com reavaliação pelo período de três meses.

            c) Na conferência de 21.3.2019, os técnicos gestores do processo mantiveram o que consta daquele relatório social e expressaram a sua perplexidade e a dificuldade na resolução do caso.[12]

O F (…) foi ouvido durante mais de uma hora. Sem quebra do devido respeito por opinião em contrário - e apesar das dificuldades na audição por parte desta Relação, dadas as inúmeras interferências produzidas pelo material lúdico à disposição do menor… -, afigura-se que apenas se terá corroborado o que decorria do relatório social (da véspera) e que talvez mais, ou muito mais, se pudesse colher das “vivências” de uma criança, então, com cerca de oito anos e dois meses…[13]

14. Por despacho de 10.4.2019, a Mm.ª Juíza a quo declarou encerrada a instrução do processo por considerar “realizadas as audições obrigatórias e junto relatório social”; determinou o prosseguimento do processo para debate judicial porquanto “comprovado que o menor F (…) está numa situação de perigo [reconhecida, inclusive, pelos requeridos, que também consideram “que o menino está numa situação de perigo”, ainda que indiquem causas diversas…- cf., sobretudo, as “conclusões 20ª, 22ª, 26º e 32ª”, ponto I., supra] e sendo manifestamente improvável uma solução negociada, ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 110º da LPCJP”; consignou que, “por ora, se mantém a medida provisoria oportunamente aplicada”.

15. Ante o descrito enquadramento fáctico - e foram juntos aos autos todos os elementos indicados pelo recorrente e pela progenitora nas alegações e na resposta, cuidando, ambos, que não eram necessários quaisquer outros relativos ao processo de regulação das responsabilidades parentais e eventuais alterações…[14] - e normativo,  torna-se evidente a falta de bom senso e o permanente litígio, que se repercutiu, e continua a repercutir, negativamente na vida do F(…), a ponto de ter sido considerado pelo sistema legal e judicial (e, até, pelos próprios progenitores!) como criança em risco, pois os progenitores não lograram obter plataformas de entendimento básicas que lhes permita pelo menos reduzir a conflituosidade e falta de bom senso instalada!

16. Em face da matéria descrita em II. 1. e, sobretudo, em II. 13., supra (elementos obtidos em data posterior à da aplicação da medida), e não obstante o insuficiente contributo dos intervenientes processuais para uma melhor configuração da realidade (por exemplo, pouco ou nada se esclarece sobre a capacidade do pai, e da mãe, em conviver positivamente com o filho…), entende esta Relação que será de afastar a medida limitativa decretada em 1ª instância (restringindo o convívio entre o menor e o pai a duas horas por semana e sob vigilância da Segurança Social) e que os progenitores devem ser submetidos à medida de apoio junto dos pais prevista nos art.ºs 39º do RGCJP e 16º do DL n.º 12/2008, de 17.01.

Os elementos dos autos apontam para uma situação de conflito grave entre a família materna alargada e o pai do menor, com reflexos negativos no descrito relacionamento entre o menor e o seu progenitor, pondo por em risco o seu desenvolvimento saudável.

De tais elementos sobressai a existência de fortes laços afectivos entre o menor e o pai, apesar de os progenitores se terem separado cerca de um mês após o seu nascimento.

Assim sendo, a solução de “sacrificar” um dos progenitores - restrição dos contactos com o pai a um período não inferior a duas horas por semana, de preferência concentradas num dia, convívio supervisionado pela Segurança Social, de preferência nas suas próprias instalações -, não se afigura uma via razoável de ultrapassar os conflitos existentes.

Daí que a intervenção do tribunal deva recair junto do pai e da mãe, através de terapia familiar, com vista à aquisição de estratégias de comunicação - tal como, aliás, é preconizado pelo Relatório elaborado pelo ISS, datado de 21.03.2019.

17. Importa tecer mais alguns considerandos.

Encontrando-se configurada nos autos uma situação de perigo, na medida em que o menor tenderá a tomar este tipo de relações entre as pessoas como padrão e que como padrão é altamente negativo, “teoricamente”, haverá que providenciar pela criação de condições que diminuam o conflito entre os pais e um modo de vida para o menor que o exponha o menos possível ao conflito.

O caso em análise configura uma “situação de emergência” a que se refere o art.º 37º da LPCJP, traduzindo-se numa violência psicológica para quem se encontra num processo de formação da sua personalidade, susceptível de provocar danos irreversíveis, e de constituir sério obstáculo ao desenvolvimento integral harmonioso a que todas as crianças têm direito.

E se os que nos autos tomaram uma posição mais cautelosa e avisada não deixaram de evidenciar as efectivas e potenciais dificuldades na implementação e execução de uma qualquer medida de promoção e protecção[15], cremos que importará alargar o mais possível o convívio do F (…) com o pai (salvo se houver algo em contrário, o que, por ora, não se evidencia…), naturalmente, com o contributo activo dos demais envolvidos, desde logo, a própria mãe.

Se toda a intervenção “deve ser efectuada com o contributo dos vários saberes e instituições que concorrem na acção protectiva, em conjugação de esforços e de forma articulada[16], antolha-se complementarmente necessária uma avaliação imparcial e exaustiva da situação dos progenitores/requeridos (levando em conta os elementos juntos aos autos e os que possam ainda de algum modo contribuir para o melhor esclarecimento da realidade - v. g., eventuais perícias à personalidade) e, como já sugerido no relatório social de 20.3.2019 e na salvaguarda do interesse da criança, também será fundamental que os progenitores façam o necessário (v. g., frequência de terapia familiar pelos pais) com vista à tentativa de aquisição de estratégias que lhes permitam comunicar de modo minimamente cordial, porquanto os pais devem saber pôr os filhos em primeiro lugar, mostrar civismo em prol dos filhos, pela simples razão de que “os filhos precisam de ambos”, cabendo ao tribunal “ajudar os pais a trabalhar em conjunto tendo em vista o bem-estar dos seus filhos” e o futuro do qual são ambos colaboradores e responsáveis.[17]

18. O presente caso reclama melhor reflexão e estudo (uma melhor avaliação da situação), desde logo, no sentido de criar as condições para uma adequada interacção entre o menor e o seu progenitor; simultaneamente, na defesa do superior interesse do menor, será desejável que os progenitores (e demais familiares envolvidos) possam e devam estabelecer entre si os contactos necessários[18], num relacionamento pautado pela normalidade (possível) das relações e vivências em comunidade, o que certamente beneficiará o seu filho, libertando-o dos efeitos de um relacionamento incompreensível e, além do mais, que lhe causou (e causa) perplexidade, constrangimento e dor.

Contudo, a resposta não poderá ser dada por qualquer dos progenitores, que se digladiam entre eles, aparentemente mais preocupados com o que os separa do que com a criança, que deveria uni-los numa única preocupação, que é também um dever, tantas vezes esquecido: protegê-lo![19]

19. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.

Importa pois revogar a decisão recorrida na parte em que restringe a convivência com o pai (a uma visita semanal, nas instalações e na presença de técnicos da Segurança Social), e determinar a medida de apoio junto dos pais.


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III. Pelo exposto, acorda-se em revogar a decisão recorrida na parte em que restringe a convivência com o pai (a uma visita semanal, nas instalações e na presença de técnicos da Segurança Social), e determina-se, agora, a medida de apoio junto dos pais, na forma apontada em II. 8., 16. e 17., supra.

            Sem custas (art.º 4º, nº 1, alínea i), do Regulamento das Custas Processuais).


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25.6.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Relevando para a situação dos autos a redacção conferida pela Lei n.º 23/2017, de 23.5.
[2] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[3] Refere-se na decisão recorrida: “De acordo com os elementos que constam dos autos, seja deste processo seja do apenso B, de alteração da regulação das responsabilidades parentais”.
[4] Vide Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, 1982, págs. 400 e 401.
[5] Isto é, no dizer da lei, tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso (art.º 988º, n.º 1, 2ª parte, do CPC).

[6] Estatuição que faz lembrar os Princípios 2 e 8 da Recomendação n.º R (84) sobre as responsabilidades parentais, adoptada pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 28.02.1984, na 367ª reunião dos Delegados Ministeriais, e que havia sido preparada pelo Comité de Peritos sobre o Direito da Família instituído sob os auspícios do Comité Europeu de Cooperação Jurídica - Qualquer decisão da autoridade competente relativa à atribuição das responsabilidades parentais ou ao modo como essas são exercidas, deve basear-se, antes de mais, nos interesses dos filhos. O progenitor com quem a criança não reside deve, pelo menos, ter a possibilidade de manter relações pessoais com o filho, excepto quando essas relações prejudiquem seriamente os interesses deste.

[7] Vide Almiro Rodrigues, Interesse do Menor – Contributo para uma Definição, Revista de Infância e Juventude, n.º 1, 1985, págs. 18 e seguinte.
[8] Vide Rui Epifânio e António Farinha, Organização Tutelar de Menores – Contributo para uma visão interdisciplinar do direito de menores e de família, Almedina, 1987, pág. 326.
[9] Vide Armando Leandro, Poder Paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária, Temas do Direito da Família – Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Almedina, pág. 119.
[10] Vide Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família, Coimbra Editora, 2009, pág. 73
[11] Refere-se a págs. 5 do relatório social de 20.3.2019 que “desde os primeiros meses de vida do F (…) que os seus pais não alcançam consenso sobre a escolha das especialidades médicas, nem dos médicos, excepto no que concerne à médica de família (…) que ao logo dos anos tem sido a única escolha comum dos pais.”
[12] Assim, por exemplo, o Sr. Dr. (…) afirmou: “O F (…) cresceu no meio deste conflito”; “Como podemos estar presentes a toda a hora?”; “É uma criança que desde meses que é sujeita a este conflito; tem crescido com este conflito (…). Como se resolve? Não sei!”.

[13] E impor-se-á efectuar um isento/distanciado e cuidado trabalho para compreender e esclarecer algumas das expressões proferidas pelo menor, designadamente: “…não gosto de estar sozinho com o pai porque ele está sempre a mandar vir…”; “…para ele não me chatear tanto…”; o pai e a avó materna “…estão sempre a mandar vir um com o outro…”; “…elas [mãe e avó materna] não aguentavam o meu pai…, acho que ela fez bem…”; “…não gosto muito das coisas que ele às vezes faz…”; “…o pai já me deu uma estalada…”, etc.

[14] No entanto, consta da fundamentação da alegação de recurso que “nos termos da (…) sentença o menor pode estar com o pai às quartas-feiras depois das actividades escolares ou extracurriculares até às 21:00h, e aos fins-de-semana, de quinze em quinze dias, devendo para o efeito ir buscá-lo à sexta-feira depois das actividades escolares e extracurriculares e entregá-lo na escola na segunda-feira”.

[15] Veja-se, por exemplo, a posição do técnico da Segurança Social a que se alude na “nota 13”, supra.
[16] Vide Helena Bolieiro e Paulo Guerra, ob. cit., pág. 40.
[17] Vide, a propósito, T. Berry Brazelton e Syanley I. Greenspan, A Criança e o Seu Mundo – Requisitos Essenciais para o Crescimento e Aprendizagem, Editorial Presença, 5ª edição, 2006, págs. 52 a 54.
[18] Já que, por causa do filho, “eles estão ligados para sempre” - cf., a propósito, T. Berry Brazelton e Syanley I. Greenspan, ob. cit., pág. 53 - ou, seguindo de perto o acórdão da RE de 27.10.2011-processo 2373/10.8TMLSB-A.L1-2, publicado no “site” da dgsi, não podem deixar de ter presente que, se tudo o que de afeição recíproca o destino levou, existe algo de comum, que jamais alguém lhes poderá tirar, o próprio filho!
[19] Cf., a propósito, o acórdão da RP de 20.5.2013-processo 824/10.0TMPRT-C.P1, publicado no “site” da dgsi (subscrito pelo aqui relator como 1º adjunto).