Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
913/10.1TBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
DANOS
CULPA DO TRANSPORTADOR
Data do Acordão: 02/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17.º E 18.º DO DEC. LEI 239/2003, DE 04/10; ARTIGO 792.º, N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A culpa do transportador, porque este é um devedor contratual, presume-se – art.º 799, nº 2, do Código Civil. E tratando-se de acidente de viação, ela ficará obstada se se provar culpa (necessariamente total) de terceiro na eclosão do acidente.

2. Encontrando-se demonstrado que os danos sofridos por viaturas transportadas advieram do embate de um terceiro veículo e das respectivas consequências – saída da via e colisão com o ramo de sobreiro – dev considerar-se que inexistiu culpa do transportador, não podendo este ser responsabilizada pelos danos causados nas ditas viaturas.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A.....intentou no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede uma acção declarativa sob a forma de processo sumário contra B....., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 9.273,36, acrescida dos juros de mora legais a contar da citação.

Em síntese, alegou que celebrou com a R. um contrato de prestação de serviços, mediante o qual esta se obrigou a proceder ao transporte de dois veículos automóveis de Mem Martins para o stand da A.; porque tais viaturas vieram a sofrer danos no decurso do transporte, cuja reparação a A. teve de custear, é a Ré devedora dessa quantia e dos atinentes juros de mora.

Contestando, requereu a Ré a intervenção acessória de (….) Seguros, S.A., aduzindo ter transferido para esta companhia a responsabilidade civil pelos danos causados em acidente de viação aos veículos por si transportados. Mais alegou que a viatura transportada de marca Renault, modelo Trafic, já apresentava danos quando foi entregue à R., e que os danos efectivamente causados durante o transporte se deveram ao facto de um veículo ter colidido com a galera na qual seguiam as duas viaturas, forçando esta a sair da via e a embater na ramagem de um sobreiro.

Tendo sido admitida a intervenção acessória provocada de (…), S.A., apresentou a mesma contestação, na qual alegou estarem excluídos do âmbito da apólice os danos nas mercadorias, as quais, no momento do transporte, já se encontravam avariadas ou sinistradas, como era o caso do veículo de marca Renault, modelo Trafic; que, para além disso, os danos efectivamente sofridos não se ficaram a dever a um acidente de viação, mas sim ao facto de o veículo seguro circular na berma e ter passado por uma árvore cuja ramagem se estendia até à estrada e ocupava parte da mesma, o que levou a que os veículos transportados colidissem com essa ramagem.

A final foi proferida sentença que, julgando a acção procedente por provada, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 9.273,36, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento à taxa supletiva legal para as operações comerciais.

Inconformada, desta sentença interpôs a interveniente (….) recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                                  *

Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos, que não foram objecto de qualquer impugnação:

1 – A A. é comerciante e dedica-se ao comércio de automóveis.

2 – A R. dedica-se à actividade de pronto-socorro e de transporte de veículos automóveis.

3 – No exercício da sua actividade, a A. solicitou à R., que aceitou, efectuar, no dia 17/06/2010, o transporte do veículo automóvel de marca Opel, modelo Combo, com a matrícula ...EB , e do veículo automóvel de marca Renault, modelo Trafic, com a matrícula ...FO , de Mem Martins, Lisboa, para o stand da Autora, sito na ... , Cantanhede.

4 – Tais veículos foram transportados na galera L- ...x... , rebocada pelo tractor com a matrícula ...BZ .

5 – Aquando da sua carga, em Mem Martins, Lisboa, o referido veículo da marca Opel Combo não apresentava quaisquer danos.

6 – Nessa mesma ocasião, o veículo Renault Trafic, de matrícula ...FO , apresentava os seguintes danos: grelha do radiador riscada, revestimento do pára-choques da frente riscado, suporte do retrovisor exterior esquerdo deformado, painel lateral esquerdo amolgado com dano na pintura, porta de batente lateral direita amolgada e riscada, tejadilho amolgado com dano na pintura, vedante rasgado, porta lateral de correr direita amolgada, painel divisório amolgado e guarda-lamas direito amolgado.

7 – Em 17/06/2010, a R. tinha transferida a sua responsabilidade civil pelos danos resultantes de acidente de viação causados nos veículos por si transportados para a Companhia de Seguros (….), S.A., através de contrato titulado pela apólice n.º y... .

8 – Quando o veículo referido em 4) circulava no IC-2, sentido Sul-Norte, no lugar de Ataíja, concelho de Alcobaça, ao quilómetro 97,9, sofreu um embate.

9 – Por parte de um veículo não identificado, que, ao ultrapassar o tractor e a galera, colidiu na lateral esquerda destes.

10 – Aquando do embate, o tractor e a galera identificados em 4) circulavam na hemi-faixa direita, atento o seu sentido de marcha.

11 – Encostados à berma do seu lado direito.

12 – E a velocidade não superior a 70 Km/h.

13 – Mercê de tal embate, o veículo identificado em 4) guinou para a direita.

14 – E saiu da estrada.

15 – Tendo passado junto dos ramos de um sobreiro existente na berma da estrada.

16 – O que motivou a colisão dos veículos identificados em 3), transportados pela R., num desses ramos.

17 – No decurso do transporte efectuado pela R., o veículo marca Renault, referido em 3), danificou o tejadilho, cuja reparação importou 734,82€.

18 – E os respectivos rebordos, travessa, suporte e barra, cuja reparação orçou € 402,18.

19 – E a porta traseira direita, cuja reparação importou 567,90€.

20 – Bem como a porta traseira esquerda, cuja reparação importou 692,65€.

21 – E respectivas dobradiças, que importaram em 232,56€.

22 – E ainda o forro da porta, no valor de 134,01€.

23 – Bem como a fechadura, na quantia de 55,14€.

24 – E o puxador da mesma, no valor de 38,96€.

25 – Bem como o resguardo, no valor de 26,68€.

26 – E as molas do friso, cuja reparação importou 9,48€.

27 – E ainda o friso do pilar, no valor de 27,75€.

28 – Bem como a legenda, no que a A. gastou 49,06€.

29 – E o monograma, cuja reparação importou 31,92€.

30 – E ainda a consola 3 positio, tendo a A. gasto 25,10€.

31 – Bem como o element av garnit, no valor de 11,06€.

32 – E o conjunto colflix portear, no valor de 69,42€.

33 – Bem como o obturador, cuja reparação importou 3,14€.

34 – E a luz da placa de matrícula, na importância de 13,92€.

35 – A A. substituiu os painéis laterais, nisso despendendo 1.063,00€.

36 – E o friso do farolim, no valor de 26,68€.

37 – Bem como um jogo de molas do friso, na importância de 9,48€.

38 – A A. despendeu 416,00€ em material de pintura.

39 – E 984,00€ na respectiva mão-de-obra.

40 – Tendo tido de recorrer a bate-chapas.

41 – No que despendeu 1.440,00€.

42 – No decurso do transporte efectuado pela R., o veículo Opel Combo, de matrícula ...EB danificou o capot.

43 – Tendo a A. gasto 252,00€ na sua reparação.

44 – E a chapa de matrícula.

45 – No que a A. despendeu 10,00€.

46 – E ainda o emblema, no valor de 10,45€.

47 – Bem como a pintura.

48 – Tendo a A. despendido 128,00€ em material de pintura.

49 – E 72,00€ em mão-de-obra.

50 – Antes da descarga, o gerente da R. informou a A. que os veículos identificados em 3) estavam danificados.

51 – Tendo a A. dado instruções à R. no sentido de descarregar os veículos na oficina C... , Lda., sita na EN n.º 109, em ... , Quiaios.

52 – Com vista à sua reparação.

 

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A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação, a recorrente enuncia um conjunto de conclusões em que levanta as duas questões seguintes:

1º - A de saber se a responsabilidade da Ré pela avaria dos veículos transportadas está afastada por se dever a facto (acidente de viação) exclusivamente imputável a terceiro;

2º - A de saber se ocorre nulidade da sentença por esta ter condenado em montante superior aos danos comprovadamente sofridos pela A..

A A. contra-alegou.

Quanto à ausência da responsabilidade da Ré pelos danos nas viaturas transportadas.

Com acerto se escreveu na decisão recorrida que o contrato ajuizado é um contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias - cuja disciplina é a do DL 239/2003 de 4 de Outubro - e se define como aquele pelo qual o transportador se obriga a deslocar mercadorias por meio de veículos rodoviários entre locais situados no território nacional, e a entregá-las a um destinatário, designando-se por transportador a empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias, e por expedidor o proprietário, possuidor ou mero detentor das mercadorias.

Também nenhuma censura importa fazer ao segmento em que aí se considerou como suficientemente provado que os danos em causa provieram do embate de uma terceira viatura no tractor e galera que procediam ao dito transporte de dois veículos da A., o que determinou que aqueles saíssem da estrada, e que os veículos transportados colidissem com os ramos de um sobreiro existente nessa berma.

Já não subscrevemos, porém, a asserção de que, verificando-se que aqueles danos “não foram provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário, forçoso é concluir que pela responsabilidade da transportadora Ré pelos referidos danos.”

Arrimou-se, para tanto, a sentença no disposto nos art.ºs 17 e 18 do aludido DL nº 239/2003 e no sumário do Ac. da Relação de Évora de 18/01/2007 disponível em www.dgsi.pt.

Todavia, só a partir duma análise aligeirada – para não dizer precipitada – da base factual do aludido aresto – que, à parte o episódio da colisão com os ramos da árvore, em nada é sobreponível à dos presentes autos – é que se pode afirmar que aí não se evidencia uma diferente situação, essa sim susceptível de exclusão de responsabilidade do transportador.

Na verdade, surge relatada nesse Acórdão uma colisão com ramos de uma árvore existente na berma mas por virtude de uma condução atenta e descuidada do veículo transportador, o que reflecte sempre culpa do respectivo condutor[1].

Ora o que Ré alegou e provou nos presente autos é que houve um despiste do veículo transportador (culposamente) provocado por embate de um outro, ainda que não identificado, sendo na sequência desse despiste que se dá a colisão com o ramo de um sobreiro que originou os danos nas viaturas transportadas. Estamos perante um facto imputável a terceiro, que está na causa dos danos e exclui a culpa do transportador. E não se nos afigura que a responsabilidade do transportador não deva ser arredada quando este prove que a perda ou avaria da mercadoria tenha sido ocasionada sem culpa sua, designadamente quando tenha existido furto – não culposo, isto é, inevitável apesar das precauções tomadas pelo transportador – ou acidente unicamente imputável a terceiro[2].

É certo que o art.º 18, nº 1, do DL 239/2003 de 4/10 apenas identifica como causas liberatórias ou impeditivas da responsabilidade do transportador o vício próprio da mercadoria, a culpa do expedidor ou destinatário, o caso fortuito e a força maior[3]. Mas esta descrição não é taxativa, sendo toda ela patentemente comandada pela ideia de ausência de culpa do transportador, ideia que perpassa com idêntica nitidez pelo nº 3, em que se afirma a responsabilidade do transportador mesmo no caso de invocação de deficiência do veículo utilizado no transporte.

A culpa do transportador, porque este é um devedor contratual, presume-se – art.º 799, nº 2, do CC.

E tratando-se de acidente de viação, ela ficará obstada se se provar culpa (necessariamente total) de terceiro na eclosão do acidente[4].

É inquestionável que o embate de um terceiro veículo no tractor e galera, durante uma ultrapassagem dos mesmos, circulando estes pela respectiva hemi-faixa direita, encostados à berma, a não mais de 70 Km/hora (factos provados de 8 a12), sem outra conotação fáctica, faz incidir a culpa do acidente sobre quem conduzia aquele terceiro veículo (art.º 487, nº 2 do CC).

Donde que, encontrando-se demonstrado que os danos sofridos pelas viaturas transportadas advieram do embate de um terceiro veículo e das respectivas consequências – saída da via e colisão com o ramo de sobreiro – se deva considerar que inexistiu culpa da Ré B...... Assim sendo, em face da interpretação extensiva que se propugna do art.º 18, nº 1, do DL 239/2003 de 4/10, a Ré não pode ser responsabilizada pelos danos apresentados pelas viaturas transportadas.

Decorrendo da procedência desta questão que não pode ser mantida a condenação da Ré, fica prejudicada a questão atinente à nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a sentença, julgando a acção não provada e improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

Custas pela A. e apelada.     

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins


[1] Pois que a situação aí versada é substancialmente diversa daquela que é objecto da vertente acção, como, aliás, se depreende da passagem que a seguir se transcreve:
“No caso dos autos, os danos verificados na embarcação transportada pela viatura da ré “C” resultaram da colisão da embarcação com ramos de árvores existentes na berma da estrada e que pendiam (os ramos) sobre esta, o que não configura situação de força maior ou de caso fortuito, pois não estamos perante ocorrência imprevisível (os ramos não caíram, inopinadamente, sobre a carga), nem se mostra provada, nem alegada, a impossibilidade ou dificuldade de o condutor ter avistado os ramos, tanto mais que não ficou provado, nem vem alegado, que os factos ocorreram já de noite. Acresce que o condutor não podia desconhecer as dimensões da embarcação que transportava (…)”.
[2] Alfredo Proença e J. Espanha Proença, em Transporte de Mercadorias, parecem posicionar o “assalto imprevisto e irresistível” e o “acidente de viação imputável a terceiro” como causas de irresponsabilidade do transportador, por suporem a ausência de culpa, embora sugiram a sua integração no conceito de caso fortuito. Aceitando que aquelas duas hipóteses integram um quadro de não culpa do transportador – mas não já a noção clássica do caso fortuito - concordamos que com as mesmas há que elaborar extensivamente sobre o elenco das causas excludentes da responsabilidade do transportador, de modo a aí incluir todas as outras em que se demonstre que a perda, avaria ou demora não resultou de culpa desse devedor.
[3] Distingue aqui a doutrina entre causas liberatórias e factos liberatórios (faits liberátoires), sendo as primeiras objecto do nº 1 e as segundas do nº 2 do art.º 18 do diploma em questão (Nuno Manuel Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, 2004, p. 93 e seguintes). A diferença de regime estaria em que a prova das primeiras levaria a ilidir definitivamente a presunção de responsabilidade do transportador decorrente da constatação dos danos, enquanto a prova dos segundos importaria para este o benefício de uma mera presunção de causalidade, que o interessado na carga tanto poderia contrariar nos termos gerais, como tornar simplesmente ineficaz, agora mediante a mera demonstração de “concorrência da negligência do transportador”.  
[4] Isto mesmo foi entendido no Ac. desta Relação de 10.12.2002, relatado por Távora Vítor, disponível em www.dgsi.pt., em cujo sumário igualmente se escreveu que estando na origem da perda da mercadoria uma colisão com o veículo da transportadora por parte da viatura segurada na Ré e por culpa desta, o ressarcimento dos prejuízos com a destinatária e dona da carga deverá ser encontrado entre esta última e a seguradora em sede de responsabilidade extra-contratual”.