Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1998/08.6TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
ACÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 905º E SEGS.; 913º E SEGS. DO CC; 2º E 5º DO DL Nº 57/2003, DE 8/04.
Sumário: I – As normas que regulam o cumprimento defeituoso na compra e venda (artºs 905º e segs. e 913º e segs. do CC) são especiais em relação às regras gerais da responsabilidade contratual (artºs 798º e segs. do CC).

II – Se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial, existe inadimplemento ou cumprimento defeituoso do contrato, pelo que o regime da venda de coisas defeituosas constitui uma hipótese de incumprimento ou cumprimento defeituoso.

III – Se determinadas qualidades da coisa vendida, muito embora tenham motivado o comprador a adquiri-la, não entraram no conteúdo do contrato, o problema é de erro (sobre a base negocial) não de incumprimento.

IV – Tratando-se de compra e venda defeituosa de bens de consumo, o defeito reconduz-se à desconformidade com o contrato, conferindo a lei ao consumidor o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, direitos que estão sujeitos a prazos de caducidade (artºs 2º e 5º do DL nº 57/2003, de 8/04).

V – Tanto a acção de anulação, rectius, resolução, como de indemnização, estão sujeitas ao prazo de caducidade de seis meses, a contar da denúncia do defeito, previsto no artº 917º do CC.

VI – O DL nº 67/2003, de 8/04, interpretado em conformidade com a Directiva nº 1999/44/CE (artº 8º), assume natureza de protecção mínima, significando que o consumidor pode prevalecer-se do direito comum (artºs 913º e segs. do CC), desde que lhe seja mais favorável.

VII – Muito embora a lei (artº 4º do DL nº 63/2007) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, exigindo uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé.

VIII – Sendo suficiente o mero reconhecimento do direito para o impedimento da caducidade, deve, no entanto, ser claro e inequívoco, de forma a não se suscitarem dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

         1.1. - O Autor - A... – instaurou ( 12/06/2008 ) na Comarca de Baixo Vouga ( Aveiro ) a presente acção declarativa, com forma de processo comum sumário, contra a Ré - B..., L.da.

         Alegou, em resumo:

         Em Junho de 2007, comprou à Ré um veículo automóvel de marca Mazda 3, pelo preço de € 25.000,00, a que foi aposta a matrícula de ..., tendo aquando das negociações acordado que o veículo seria de matrícula desse mesmo mês, por causa do aniversário do filho.

         Passados alguns dias, o Autor verificou que o referido veículo fora matriculado em Abril de 2007, o que era do conhecimento da Ré, muito embora a chapa da matrícula constasse o mês 6 (Junho).

Ao entregar-lhe um veículo matriculado em Abril, a Ré teve como intuito enganar o Autor, pois o Mazda 3 com a matrícula ... era uma viatura de serviço, com valor nunca superior a € 20.000.00.

O Autor, por carta de 5/9/2007, rescindiu o contrato e disponibilizou-se a entregar o veículo contra a devolução do preço.

Em consequência disso, o Autor sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

         Pediu:

a) O contrato de compra e venda celebrado entre o Autor e a Ré, respeitante ao veiculo marca Mazda 3, matricula ..., deve ser considerado resolvido e a Ré condenada a restituir ao A. o preço pago de € 25.000,00;

b) Caso assim se não entenda, o contrato de compra e venda celebrado entre o Autor e a Ré, respeitante ao veículo marca Mazda 3, matrícula ..., seja anulado e a Ré condenada a restituir ao A. o preço pago de € 25.000,00;

c) Caso o contrato não seja resolvido e/ou anulado, que o preço do veiculo seja reduzido ao valor comercial de € 20.000,00 e a Ré condenada a restituir ao Autor o valor recebido em excesso, no montante de € 5.000,00;

d) Em qualquer das situações, a condenação da Ré a pagar ao Autor uma indemnização pelos danos sofridos em montante nunca inferior a € 4.000,00;

e) A condenação da Ré a pagar ao Autor uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, respeitante aos encargos que o Autor venha a ter com o seu advogado para tratar deste assunto;

f) A condenação da Ré no pagamento dos juros legais desde a citação e ate integral pagamento.

         Contestou a Ré, defendendo-se por excepção, ao arguir a caducidade do direito, por haverem decorrido os prazos legais dos arts.916 e 917 CC, e o abuso de direito. Por impugnação motivada, contradiz a versão do Autor, negando que tivesse agido de má fé e com o intuito de enganar o Autor, estando este a atentar contra o bom nome da Ré.

Concluiu pela procedência das excepções, a improcedência da acção e, em reconvenção, pediu a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de € 1.000,00, a título de danos não patrimoniais, bem como a condenação por litigante de má fé.

Respondeu o Autor, contraditando a defesa por excepção e requereu a condenação da Ré como litigante de má fé.

No saneador relegou-se para final o conhecimento das excepções de caducidade e do abuso de direito.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, seguiu-se sentença ( cf. fls.172 a 186) que decidiu:

a) - Julgar procedente a excepção da caducidade e absolver a Ré dos pedidos;

b) - Julgar improcedente a reconvenção e absolver o Autor do pedido reconvencional.

1.3. - Inconformado, o Autor recorreu de apelação ( fls.190 e segs. ) com as seguintes conclusões:

[…]

Contra-alegou a Ré ( fls.215 e segs), preconizando a improcedência do recurso.

1.4. - O Apelante requereu a junção de cópia da acusação proferida no processo de inquérito nº 2430/07.8TAAVR ( fls.238 a 244 ).


II – FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – A junção do documento:

         Já depois das alegações de recurso, o apelante requereu a junção aos autos de cópia da acusação pública, proferida no processo de inquérito nº .... contra C..., D... e E... ( fls. 241 a 244 ), sobre factos conexos com os da presente acção,  alegando tratar-se de “um documento essencial para a boa decisão do recurso”.

         A junção de documentos, na fase de recurso, reveste natureza excepcional, só devendo ser admitida nos casos especiais previsto na lei ( art.693-B CPC).

         Nenhuma das situações se verifica, desde logo porque a acusação, dada a sua natureza, não vale sequer como meio de prova, e muito menos com força probatória plena.

         Note-se que só a condenação definitiva proferida em processo penal constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção ( art.674-A CPC).

         Daqui resulta a contrario que qualquer acusação criminal ou mesmo condenação penal, não transitada, nem sequer constitui presunção ( ainda que ilidível ) da prática dos factos.

         Porque o documento é irrelevante, no plano probatório, impõe-se o indeferimento da junção.

         2.2. – O objecto do recurso:

         Impugnação de facto ( quesitos 17º, 18º e 21º);

         A excepção da caducidade.


2.3. – Os factos provados ( descritos na sentença ):
[…]

2.4. - 1ª QUESTÃO

[…]

2.5. - 2ª QUESTÃO

A sentença recorrida, situando o problema no âmbito da venda de coisa defeituosa ( art.913 e segs. do CC), julgou procedente a excepção de caducidade dos direitos exercitados pelo Autor ( art.917 CC), por haver decorrido o prazo de seis meses para ao exercício da acção e não se provar o dolo da Ré ( vendedora ).

Objecta o apelante dizendo que o regime aplicável é o do cumprimento defeituoso da prestação ( arts.762 e 798 CC) e não o da venda de coisa defeituosa, não estando o direito sujeito aos prazos de caducidade do art.917 do CC, e mesmo que assim seja, a Ré agiu com dolo, sendo o prazo de caducidade de um ano, para além de haver reconhecido o direito do Autor.
A impostação do problema situa-se aqui em sede de responsabilidade civil contratual, concretamente quanto ao incumprimento do contrato de compra e venda do veículo automóvel e as implicações decorrentes. Nesta medida, são chamadas à colação, para além das normas específicas do regime legal do contrato de compra e venda, as regras gerais do cumprimento das obrigações, bem como a legislação do consumidor ( Lei nº 4/96 de 31/7, alterada pelo DL nº 67/03 de 6/4 ), o regime legal da venda de bens de consumo ( DL nº 67/2003 de 8/4 ), cuja aplicação, porém, não se compadece, segundo a moderna metodologia, com uma actividade lógico-subsuntiva, pelo que o critério de resolução há-de encontrar-se antes no chamado “círculo hermenêutico” entre o “caso” e a “norma”, dada a unidade de resolução do direito e a natureza constituinte da decisão.

         Há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art.913 do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado. O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa.

         As normas que regulam o cumprimento defeituoso na compra e venda ( arts.905 e segs. e 913 e segs. do CC ) e na empreitada (art.1221 e segs. do CC ), são especiais em relação às regras gerais da responsabilidade contratual ( art.798 e segs. do Código Civil ), embora não impliquem uma total exclusão dos princípios gerais, funcionando ambas em regime de complementaridade, tanto assim que, por exemplo, o direito de exigir a eliminação dos defeitos é um misto de restauração in natura ( art.562 CC ) e de execução específica ( art.827 e segs. do CC ) ( cf. neste sentido, PEDRO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso, 1994, pág.302 e segs., ANTUNES VARELA, parecer de 23/9/85, C.J. ano XII, tomo IV, pág.23 a 35, RLJ ano 126, pág.286 e segs.,, MENEZES CORDEIRO, ROA, ano 41, pág.128 e segs. ).

         Quanto ao regime jurídico do cumprimento inexacto na compra e venda, debatem-se duas teorias – “ a teoria da garantia “ e a “ teoria do cumprimento “ ( sobre o seu posicionamento, cf. CALVÃO DA SILVA, Responsabilidade Civil do Produtor, 1990, pág.214 e segs., PEDRO MARTINEZ, loc.cit., pág. 163 e segs. ).

         Segundo determinado entendimento, o nosso direito consagra o compromisso entre ambas as teorias, já que, por um lado, nos termos dos arts.905 e 913 CC, o comprador tem o direito a anular o contrato por erro ou dolo, verificados os requisitos legais da anulabilidade, e, por outro, a regulamentação da venda de coisa defeituosa prevê o direito do comprador à reparação ou substituição da coisa, segundo o disposto no art.914 CC, ou seja, a acção de cumprimento.

         Nos termos dos arts.913 nº1 e 905 e segs. do Código Civil, a lei confere ao comprador os seguintes direitos:
         a) - O direito de “anulação” do contrato, entendido como de resolução ( arts.905 e 913 do CC );

         b) - O direito à redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior ( art.911 CC ).

         c) - O direito à indemnização do interesse contratual negativo ( prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato ), cumulável com a anulação do contrato e com a redução ou minoração do preço ( arts.908 e 911, ex vi art.913 CC ).

         d) - O direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição ( art.914 nº1, 1ª parte, CC ), independentemente de culpa do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa por convenção ou por força dos usos ( art.921 nº1 CC ).

         Como são diferentes os pressupostos destes direitos, decorrentes do erro ou de cumprimento inexacto, em termos de não permitir a sua concorrência, coloca-se a questão de saber qual a pretensão que o comprador deve adoptar face a determinado circunstancialismo concreto.

         Esta questão postula, antes de mais, um problema de interpretação e integração do negócio jurídico concreto, designadamente, se as qualidades da coisa vendida ingressaram ou não no conteúdo do contrato.

         Se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial, o problema é de inadimplemento ou cumprimento defeituoso do contrato. Em contrapartida, se determinadas qualidades da coisa vendida, muito embora tenham motivado o comprador a adquiri-la, não entraram no conteúdo do contrato, o problema só pode ser de erro ( sobre a base negocial ) que não de incumprimento, porque a qualidade determinante não constitui efeito negocial ( neste sentido, cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, Responsabilidade Civil do Produtor, 1990, pág.256 e segs., CARNEIRO DA FRADA, “ Erro e incumprimento na não conformidade da coisa com o interesse do comprador “, Revista “ O Direito “, ano 121, III, pág.463 e segs.; Ac STJ de 2/3/95, BMJ 445, pág.445 e de 3/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.107).

         No caso concreto, como era essencial que o veículo tivesse a matrícula do mês de Junho e fosse entregue dia 15 do mesmo mês, por causa do aniversário do filho do Autor, tal como foi convencionado, o problema não é de erro, mas de incumprimento.

Muito embora a obrigação de conformidade com o contrato decorra já dos princípios gerais e do regime legal do contrato de compra e venda no Código Civil ( arts.406, 763, 879, 882 ) e da própria Lei de Defesa do Consumidor ( art.4º ), ela é expressamente imposta no art.2º nº1 do DL nº67/2003, pois “ o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.

Por sua vez, o nº2 do art.2º do DL 67/2003 consagra determinados “factos-índices” de não conformidade, de tal forma que se comprovados presume-se a desconformidade ( presunção juris tantum ).

Segundo a “ teoria da norma”, e porque facto constitutivo do direito, compete ao autor o ónus de alegar e provar o defeito, ou seja, a falta de conformidade ( art.342 nº1 do CC ), tanto para o direito civil comum, como para a legislação específica da tutela do consumidor ( cf., por ex., PEDRO MARTINEZ, loc. cit., pág.273 e segs., CALVÃO DA SILVA Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., pág.74, Ac STJ de 21/5/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.85 ).

         Existe defeito (concepção subjectiva), dada desconformidade com uma das qualidades específicas do contrato – o mês da matrícula – que implica cumprimento defeituoso ( cf., neste sentido, ao exemplificar a desconformidade com o ano de fabrico do veículo, CALVÃO DA SILVA, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág.43 ).

O negócio jurídico celebrado entre as partes reconduz-se a um contrato de compra e venda de consumo, aplicando-se o regime do DL nº67/2003 de 8/4 ( venda de bens de consumo) e a Lei nº24/96 de 31/7 ( lei de defesa do consumidor ).

Diz o art.4º nº1 do DL nº67/2003 – “Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.

Acresce o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, nos termos do art.12 nº1 da Lei nº24/96 de 31/7.

Perante o defeito da coisa, o consumidor tem o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, também previstos no Código Civil ( arts. 913 nº1 e 905 e segs. ).

Contudo, estes direitos estão sujeitos a prazos de caducidade ( art.5º do DL nº67/2003 ). Desde logo ao prazo de garantia legal ( 2 anos ou 5 anos, consoante se trate de coisa móvel ou imóvel) ( cf. art.5º nº1 ) ao prazo de denúncia dos defeitos ( 2 meses ou 1 ano, consoante a natureza móvel ou imóvel, a contar da data em que tenha detectado a desconformidade ) ( cf. art. 5º nº3 ) e ainda o prazo de caducidade da acção ( 6 meses sobre a data da denúncia ) ( art.5º nº4 ).

Tanto a acção de anulação, rectius, resolução, como de indemnização, estão sujeitas ao prazo de caducidade de seis meses, previsto no art.917 do CC. Com efeito, é hoje pacífico que o prazo de caducidade ( seis meses) aplica-se, por interpretação extensiva, também à acção indemnizatória ( cf., por ex., P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.II, 3ª ed., pág.218, PEDRO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso, pág.413, Ac do STJ de 6/11/2007, de 2/11/2010, em www dgsi.pt ).

Por seu turno, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais tem lugar em sede de responsabilidade contratual. A este propósito, elucida CALVÃO DA SILVA ( Compra e venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág.73 ) “ (…) Na fase executiva da venda de coisas defeituosas, o comprador, juntamente com a reparação ou substituição da coisa ( art.914 ), pode pedir o ressarcimento do prejuízo que lhe tenha sido causado pela entrega da coisa viciada imputável ao vendedor (…) “. E neste dever de indemnização se incluem os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (art.496 do CC), por consubstanciarem danos relacionados com violação na execução do contrato, assumindo natureza contratual.

Contudo, também aqui o direito está submetido aos prazos da caducidade, dado que os prejuízos indemnizáveis estão estritamente conexos com o vício da coisa, motivando a prestação defeituosa, em que o genérico dever neminem laedere é absorvido, por estarem em causa comportamentos ligados ao fim contratual, mais especificamente deveres laterais de protecção e cuidado para com a pessoa da outra parte. Como reforço argumentativo, a unidade do sistema jurídico, pois também a Lei de Defesa do Consumidor ( Lei nº24/96, alterada pelo DL nº67/03, de 8/4 ), ao conferir o direito de indemnização pelos danos não patrimoniais resultante do fornecimento de bens ou prestação de serviços defeituosos ( art.12 nº1 ), sujeita-o ao ónus da denúncia e a prazos de caducidade. A caducidade dos direitos, prevista no nº4 do art.5 do DL 67/2003, vale também para o direito de indemnização reconhecido no nº1 do art.12 da Lei 24/96.

Podemos concluir que, tanto pela lei específica da venda de bens de consumo ( art.5º nº4 do DL nº 67/2003 ), como pelo regime do Código Civil ( art.917 ), o prazo de caducidade do direito de acção, relativo aos direitos exercidos pelo Autor, é de 6 meses, a contar da denúncia do defeito.

         Mas como o DL nº67/2003, interpretado em conformidade com a Directiva nº 1999/44/CE (art.8º), assume natureza de protecção mínima, significa que o consumidor pode prevalecer-se do direito comum, desde que lhe seja mais favorável.

Ora, no âmbito do direito comum, discute-se, em caso de dolo, qual o prazo para o exercício da acção:

a) - Segundo P.LIMA/A.VARELA ( Código Civil Anotado, II, pág.217 ), não prevendo a lei qualquer prazo para o dolo, estaria sujeito às regras gerais da prescrição ( art.298 nº1 CC);

b) - Para PEDRO MARTINEZ ( Direito das Obrigações, Contratos, 2ª ed., pág.145, nota 1), o prazo de caducidade dos arts.916 e 917 do CC vale ainda que o vendedor tenha agido dolosamente, pois o dolo só torna desnecessária a denúncia, mas não altera os prazos.

c) - Para a tese predominante, o comprador, para além de não ter sequer o ónus de denunciar o defeito ( art.916 nº1, in fine CC), pode intentar acção de garantia dentro de um ano subsequente à cessação do vício, ou seja, no prazo de um ano a partir do momento em que teve conhecimento do dolo, por aplicação analógica do  art.287 nº1 CC, não sendo aceitável a tese de que, não prevendo a lei qualquer prazo para o dolo, estaria sujeito às regras gerais da prescrição ( art.298 nº1 CC )( cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., pág.80, NUNO OLIVEIRA, Contrato de Compra e Venda, pág.313, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, III, pág.126).

Seja como for, para se prevalecer do prazo mais longo de um ano, competia ao Autor a prova do dolo da Ré, o que não logrou, face à resposta negativa aos quesito 21º, demonstrando-se antes ter agido por lapso ( cf. respostas aos quesitos 63º a 70º).

         Não se provando o dolo e como a denúncia do defeito foi feita em 27 de Julho de 2007, dispunha o Autor do prazo de 6 meses para instaurar a acção, mas só o fez em 12 de Junho de 2008, já decorrido o prazo e daí a caducidade.

         Vejamos, no entanto, se houve lugar ao impedimento da caducidade, por reconhecimento do direito pela Ré.

         Para o apelante, a Ré reconheceu o direito do Autor, configurando impedimento da caducidade, nos termos do art.331 nº2 do CC - “Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido”.

O reconhecimento impeditivo da caducidade não tem como efeito o início de um novo prazo, mas o seu afastamento definitivo, a não ser que a lei sujeite o exercício do direito a novo prazo de caducidade.

Como é sabido, há duas posições sobre a interpretação do nº2 do art.331 do CC:

a) - Uma interpretação restritiva no sentido de que o reconhecimento só releva se assumir o mesmo valor do acto que deveria ser praticado em seu lugar, pelo que no caso de prazo da acção judicial a caducidade só é impedida se o reconhecimento tiver o mesmo efeito da sentença (cf., por ex., VAZ SERRA, BMJ 107, pág.332, P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, pág.296).

b) - Outra posição, menos exigente, para quem basta o mero reconhecimento, sem necessidade de que a confirmação revista o mesmo acto que deveria ser praticado em seu lugar ( cf., por ex., PEDRO MARTINEZ, Cumprimento Defeituoso, pág.427, CURA MARIANO, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro, pág.160).

Sendo suficiente o mero reconhecimento do direito, deve, no entanto, ser claro e inequívoco, de forma a não se suscitarem dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor ( cf., Ac STJ de 25/1/98, BMJ 481, pág. 430 e de 13/12/07, em www dgsi.pt ).

         Competia ao Autor o ónus da prova do facto impeditivo da excepção da caducidade, mas que não logrou demonstrar.

         Está provado que, perante a denúncia, a Ré, em 2/8/2007, reuniu-se com o Autor, propondo-se a solucionar o caso através de duas vias alternativas – corrigir a chapa de matrícula ou receber a viatura dele, entregando-lhe um automóvel novo, igual, a matricular nesses mês de Agosto ( r.q.52º ), pretendendo demonstrar a sua boa fé e sinceridade ( r.q.53º), posição que reiterou em Setembro ( r.q.57º), mas o Autor não aceitou qualquer destas soluções ( r.q.56 ).

         Perante isso, através da carta de 25 de Setembro de 2007 ( doc. de fls.67 ) a Ré comunicou ao Autor que, dada não aceitação da proposta e o facto de continuar a usar a viatura, não aceita a resolução contratual ( “ (…) sendo certo que não se verifica, no caso, qualquer fundamento para a resolução contratual, que não aceitamos” ).

         Daqui resulta que a Ré reconheceu o direito do Autor à substituição da coisa, tanto assim que se disponibilizou a fazê-lo, por mais de uma vez, mas não os direitos agora exercitados, maxime de resolução.

Refira-se que, embora a lei ( art.5º do DL nº 63/2007 ) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, há quem defenda, numa interpretação conforme a Directiva, a prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “ redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé ( cf., por ex., CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, 3ª ed., págs. 82 e 86),  sendo que o art.4º nº5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito.

         Não havendo reconhecimento inequívoco dos direitos exercitados pelo Autor, não há impedimento da caducidade.

         Improcede a apelação, confirmando-se a bem elaborada sentença recorrida.

         2.6. - Síntese conclusiva:

1. - As normas que regulam o cumprimento defeituoso na compra e venda ( arts.905 e segs. e 913 e segs. do CC ) são especiais em relação às regras gerais da responsabilidade contratual ( art.798 e segs. do CC ).

2. - Se as qualidades da coisa vendida fazem parte integrante do conteúdo negocial, existe inadimplemento ou cumprimento defeituoso do contrato, pelo que o regime da venda de coisas defeituosas constitui uma hipótese de incumprimento ou cumprimento defeituoso.

3. – Se determinadas qualidades da coisa vendida, muito embora tenham motivado o comprador a adquiri-la, não entraram no conteúdo do contrato, o problema é de erro ( sobre a base negocial ) que não de incumprimento.

4. – Tratando-se de compra e venda defeituosa de bens de consumo, o defeito reconduz-se à desconformidade com o contrato, conferindo a lei ao consumidor o direito à reparação, à substituição, à redução do preço, à resolução, e à indemnização, direitos que estão sujeitos a prazos de caducidade ( arts.2º, 5º do DL nº 57/2003 de 8/4 )

5. - O DL nº67/2003, interpretado em conformidade com a Directiva nº 1999/44/CE (art.8º), assume natureza de protecção mínima, significando que o consumidor pode prevalecer-se do direito comum ( arts. 913 e segs. do CC), desde que lhe seja mais favorável.

6. - Muito embora a lei (art.4º do DL nº 63/2007 ) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, exigindo uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé.

7. – Sendo suficiente o mero reconhecimento do direito para o impedimento da caducidade, deve, no entanto, ser claro e inequívoco, de forma a não se suscitarem dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor.

        


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:


1)

Indeferir a junção do documento requerida pelo apelante.

2)

         Julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.

3)

         Condenar o Autor/apelante nas custas.


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JORGE ARCANJO (RELATOR)
ISAÍAS PÁDUA
TELES PEREIRA