Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4240/12.1TBLRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITOS
MÚTUO
HIPOTECA
PROVA
DOCUMENTO AUTENTICADO
TERCEIRO
Data do Acordão: 01/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - 1ª SEC.COMÉRCIO - J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 131 CIRE, 347, 350, 358, 371, 376, 1142 CC, 607 CPC
Sumário: 1. Impugnado um crédito reclamado na insolvência, e ainda que reconhecido pelo A.I., é sobre o credor reclamante que recai o ónus da prova dos seus elementos constitutivos.

2. Emergindo tal crédito de um contrato de mútuo com hipoteca, formalizado por documento autenticado, este faz prova plena das declarações emitidas pelas partes e nele atestadas, bem como dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, prova esta que se impõe quer aos outorgantes quer a terceiros.

3. O terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros.

4. A declaração confessória proferida pelo insolvente e constante de tal documento, de que, na sequência do empréstimo, se considera devedor da quantia mutuada, é oponível aos demais credores do insolvente, dispensando o credor reclamante de apresentar qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas, pelo menos enquanto não for posta em causa a eficácia de tal confissão.

5. Encontrando-se o credor reclamante munido de um documento autêntico a formalizar o mútuo com hipoteca, o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu crédito fica satisfeito com a simples apresentação de tal documento, sendo ao credor impugnante que incumbe a alegação e prova de que não houve entrega efetiva da quantia mutuada.

Decisão Texto Integral:                                            
                                                    

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

Por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência de A (…), aberto concurso de credores foi pelo Administrador de Insolvência apresentada a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos.

A credora R (…) veio impugnar tal lista, na parte em que reconheceu o crédito de C (…), alegando que, sendo este proveniente de um contrato denominado “mútuo com hipoteca”, o reclamante não cuida de provar a entrega do dinheiro ao insolvente, pelo que, até prova em contrário, tal mútuo inexiste.

O credor reclamante C (…) veio responder alegando em síntese que, encontrando-se o mutuo devidamente formalizado, através de um “documento autenticado”, tal mútuo tem-se por validamente celebrado com efeitos erga omnes, fazendo prova plena do facto jurídico exarado pelas partes – o mútuo –, não tendo de fazer qualquer outra prova quanto ao mesmo facto. Não invocando a impugnante a falsidade do documento ou a simulação das partes, tem-se o facto jurídico por subsistente face ao comércio jurídico.

Realizada tentativa de conciliação que se mostrou infrutífera, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que não reconheceu o crédito de C (…), reconhecendo os demais créditos constantes da lista de credores elaborada pelo Administrador de insolvência, procedendo à respetiva graduação relativamente ao único imóvel apreendido para a massa.

Não se conformando com a mesma, o credor reclamante C (…) dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

  A) Em 21/03/2011, por documento particular autenticado, foi celebrado entre o insolvente e o ora recorrente contrato de mútuo, pelo valor de € 75.000,00 e, para garantia do mesmo, foi dado em hipoteca prédio urbano, a qual se encontra devidamente registada.

B) No respetivo processo de insolvência, o mutuante/ recorrente veio reclamar crédito em dívida, relativo àquele mútuo, cujo saldo se cifrava, à data, no valor de € 72.500,00.

C) Em processo de insolvência, o reclamante que invoca um crédito resultante de contrato de mútuo formalmente válido goza da presunção resultante do carácter probatório pleno do documento.

D) Até prova em contrário, o mútuo considera-se provado nos exatos termos constantes do documento em que o mútuo é válido e legalmente formalizado.

E) Os documentos autênticos e autenticados fazem prova plena dos factos neles atestados – art. 371º C. Civil.

F) O mútuo e hipoteca celebrado entre o insolvente e o reclamante do crédito foi-o através do documento idóneo – documento particular autenticado – fazendo prova plena do respetivo conteúdo.

G) Tal documento é considerado “autenticado” tendo a mesma força probatória dos documentos autênticos – artº 377º C. Civil.

H) A reclamação de crédito, consubstanciado em mútuo validamente celebrado, goza da presunção legal inerente à plenitude probatória inerente ao documento.

I) Assim, para prova do mútuo basta a apresentação do documento válido que o titula, encontrando-se preenchido o requisito de indicação da “proveniência do crédito”, exigida no artº 128º, nº 1-al. a) do CIRE.

J) Terceiro que invoque a invalidade do negócio, nomeadamente por vício de vontade ou divergência entre a vontade e a declaração, tem de alegar e provar os factos consubstanciadores do vício ou divergência.

K) Ou seja, a impugnante do crédito fundamentado naquele documento teria de invocar e provar factos fundamentadores da invalidade do negócio jurídico titulado.

L) Devido à força probatória plena do documento, o reclamante goza da presunção legal do seu direito (art. 350º, nº 1 C. Civil), podendo ser ilididas mediante prova em contrário (nº 2).

M) Prova em contrário que a impugnante não fez, nem podia fazer, pois nenhum facto alegou nesse sentido, sendo que a prova dos factos impeditivos do direito compete àquele contra quem a invocação é feita (artº 342º, nº 2 C. Civil).

N) Não tendo a impugnante posto em crise a validade do mútuo formalizado pelo documento autenticado consubstanciador do mesmo, tem-se o mesmo como provado, e igualmente por provada a entrega pelo mutuante ao mutuário do valor em causa.

O) Consequentemente, tem de se alterar a matéria dada como provada em conformidade com o referido desiderato – de que o mutuante fez a entrega do valor constante do contrato [€ 75.000,00].

P) Ao decidir como decidiu, a douta sentença violou, entre outras, as disposições contidas no artº 128º, nº 1-al.a) do CIRE; e artºs 377º; 371º; 385º, 342º, nº 2 e 350º, nº 1, todos do C. Civil.

Termina no sentido de a sentença em apreço ser substituída por outra que reconheça o crédito reclamado pelo recorrente, nos exatos termos vertidos no seu requerimento de “reclamação de créditos”, apresentado em 17/05/2011.


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Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 658º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo[1] –, a questão a decidir é uma só:
1. Se é de reconhecer o crédito do apelante, encontrando-se o mesmo formalizado por documento autenticado pelo qual as partes declararam celebrar um contrato de mútuo com hipoteca e o insolvente se confessa devedor da quantia mutuada.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de facto

São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida, que aqui se reproduzem, na parte que interessa à decisão em apreço:

1. A (…) e C (…) subscreveram o escrito constante a fls. 45-46, no dia 13 de Outubro de 2010, com o seguinte teor:

MÚTUO COM HIPOTECA

ENTRE:

PRIMEIRO- A (…), casado com M (…), na comunhão de adquiridos, (…), doravante designado por Primeiro Contratante.

SEGUNDO- C (…), divorciado, contribuinte fiscal (…), doravante designado por Segundo Contratante.

É celebrado o presente contrato de mútuo com hipoteca, que se rege pelas cláusulas seguintes:

Primeira (Mútuo)

1.O Segundo contratante concede ao Primeiro um empréstimo no montante de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), de que o Primeiro contratante se confessa devedor.

2. O empréstimo é efetuado pelo prazo de 120 (cento e vinte) meses, a contar da data da assinatura do presente contrato.

3. O empréstimo vence juros à taxa anual de 4% (quatro por cento), sendo pagável em cento e vinte prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira prestação no dia trinta e um de Outubro de dois mil e dez, no valor de setecentos e cinquenta euros cada (€ 750,00) e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes.

Segunda (Hipoteca)

Para garantia do capital mutuado, e dos juros à taxa anual de 4% por cento, o Primeiro Contratante constituiu a favor do segundo, que a aceita, hipoteca sobre o seguinte prédio:

- Prédio urbano, composto por casa de rés-do-chão, primeiro andar, garagem e terraço, para habitação, e logradouro, sito em (...) , 391, lugar e freguesia da (...) e concelho de Leiria, (…), com o valor patrimonial de €57.790,00 (cinquenta e sete mil, setecentos e noventa euros), a que as partes atribuem o valor de € 75,000,00 (setenta e cinco mil euros).

As despesas judiciais e extrajudiciais emergentes deste contrato, para efeitos de registo, são fixadas em quatro mil e quinhentos euros (€ 4.500,00).

2. Aquele escrito foi retificado, conforme fls. 48-49, retificação subscrita por A (…) e C (…), com o seguinte teor:

“RECTIFICAÇAO de CONTRATO DE MÚTUO e HIPOTECA”

(…)

3. Os escritos referidos em 1) e 2) têm “Termo de Autenticação” do Dr. (…), Advogado.

4. A hipoteca referida em A) encontra-se registada através da Ap. 2107, de 2010/10/20.


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O juiz a quo veio a julgar improcedente a reclamação de créditos deduzida pelo credor/Apelante com fundamento em que, sendo o mútuo um contrato real “quoad constitutionem”, que só se completa com a entrega da coisa mutuada, e que a declaração confessória, aposta no documento que formaliza o mútuo, não faz prova plena contra terceiros, era ao credor que tinha de provar ter entregado a quantia constante do contrato, face à impugnação deduzida pela credora M (…)prova que não efetuou.

Insurge-se o Apelante contra o entendimento assumido pelo juiz a quo, alegando que o reclamante que invoca um crédito resultante de um contrato de mútuo formalmente válido goza da presunção resultante do carater probatório pleno do documento, pelo que, será o terceiro que invoque a invalidade do negócio, nomeadamente por vício de vontade ou divergência entre a vontade e a declaração, que tem de alegar e provar os factos consubstanciadores do vício ou divergência.

A questão posta à decisão deste tribunal consiste em determinar se, emergindo o seu crédito de um “contrato de mútuo com hipoteca” formalizado através de um documento particular autenticado, no qual as partes declararam que “o segundo outorgante concede ao Primeiro um empréstimo no montante de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), de que o primeiro se confessa devedor”, o credor reclamante terá (ou não) de produzir prova complementar de que as quantias mutuadas foram efetivamente entregues ao insolvente.

A reclamação de créditos em processo de insolvência deve ser acompanhada de todos os documentos probatórios disponíveis e deve indicar a proveniência (isto é, o fundamento) do crédito, a data de vencimento, montante de capital e juros, bem como a natureza do crédito – comum, privilegiada, garantida ou subordinada (artigo 128º, nº1, do CIRE).

Independentemente das especificidades do processo de insolvência que atribui ao administrador de insolvência a possibilidade de reconhecer créditos não reclamados (nº1 do artigo 129º CIRE), ao credor que pretenda ver reconhecido o seu crédito incumbe não só apresentar a respetiva reclamação, como ainda, efetuar a prova do mesmo[2].

Quanto ao âmbito da impugnação, a lei não impõe qualquer restrição, limitando-se o artigo 131º do CIRE a prever que qualquer interessado pode impugnar a lista de créditos reconhecidos com fundamento na “indevida inclusão ou exclusão de créditos ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos”.

A impugnação pode respeitar ao fundamento, à natureza e ao montante do crédito reclamado[3]. Se o crédito não se encontrar reconhecido por sentença, pode ser invocado, por qualquer credor reclamante ou pelo insolvente, qualquer fundamento de impugnação do crédito, qualquer exceção a ele oponível ou qualquer circunstância relativa às condições de reclamação do crédito[4].

Não haverá dúvidas de que, de acordo com a regra geral contida no nº1 do artigo 342º do Código Civil (CC), impugnado um crédito com fundamento na sua inexistência, é sobre o credor reclamante que recai o ónus da prova de que o crédito existe[5].

Questão bem mais complexa será determinar qual o tipo de prova exigida ao titular do crédito impugnado, nomeadamente, quando o negócio de onde emerge o crédito reclamado se encontre formalizado através de um documento autêntico ou autenticado – tal documento fará prova plena do negócio e das declarações nele apostas, de modo a que é sobre o credor impugnante, que queira destruir os efeitos de tal negócio, que pende o ónus de alegação e prova de que tal negócio se não verificou ou que o mesmo se encontra ferido de algum vício? Ou, antes pelo contrário, as declarações nele apostas, face a um terceiro, encontram-se sujeitas à livre apreciação do julgador, pelo que, a simples impugnação do teor de tal documento, é suficiente para tornar controvertidos os factos ou atos nele evidenciados?

O credor reclamante faz emergir o seu crédito de um contrato de mútuo com hipoteca, pelo qual teria emprestado ao insolvente a quantia de 75.000,00 €.

Segundo a noção legal que nos é dada pelo artigo 1142º do Código Civil (CC), o mútuo é “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade”.

A doutrina vem considerando o mútuo típico como um contrato real quoad constitutionem[6], no sentido de que só se completa pela entrega da coisa, ou seja, o efeito real do contrato tem lugar apenas aquando da entrega da coisa, independentemente do momento do acordo de vontade das partes.

Em consonância com tal entendimento, para que o contrato de mútuo se tenha por validamente constituído não seria suficiente a prova do acerto de vontades entre as partes, exigindo-se, ainda, a prova da tradição ou entrega das quantias mutuadas[7].

De qualquer modo e ainda que se aceite que as partes, dentro do principio da liberdade de conformação dos contratos, possam celebrar mútuos consensuais, sempre, em ambos os casos, a constituição da obrigação de reembolso se encontraria condicionada à entrega do capital[8].

Assim sendo, para que ao credor seja reconhecido o direito ao reembolso do capital mutuado, terá de provar, em princípio, não só acordo de vontades tendente à realização do mútuo, mas ainda que o capital mutuado foi efetivamente entregue ou transferido para o mutuário.

Vejamos, então, se esta prova se mostra efetuada.

Consagrando o nº5 do artigo 607º do Código de Processo Civil o princípio da livre apreciação das provas – em regra, o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório a atribuir a cada um dos meios de prova produzidos –, tal princípio cede por vezes perante situações de prova legal – aquela cujo valor, força ou extensão é determinado por lei e que o juiz tem de respeitar para decidir –, como é o caso de prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e de prova por presunção legal (artigos 350º, nº1, 358º, 371º e 376º, todos do Código Civil).

Dentro do quadro da prova legal, poderemos ainda assinalar as seguintes gradações[9]:

a) Prova pleníssima: a prova legal não admite sequer a prova do contrário (ex., presunção iuris et iure e, para alguns, a confissão judicial);

b) Prova plena: a prova legal cede mediante prova do contrário (artigo 347º CC) (ex., presunção iuris tantum, documento autêntico).

c) Prova bastante: a prova cede mediante contraprova.

Para distinguir a prova bastante da prova plena[10], haverá que esclarecer a distinção entre a contraprova e prova do contrário – a contraprova destina-se a tornar incerto o facto respetivo (artigo 346º CC)[11]; a prova do contrário torna certo não ser verdadeiro um facto já demonstrado formalmente, por prova legal plena.

Como comprovativo do respetivo crédito, o credor reclamante juntou um escrito denominado de “mútuo com hipoteca”, no qual as partes declararam que “o Segundo Outorgante concede ao Primeiro um empréstimo no montante de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), de que o Primeiro se confessa devedor”.

Tratando-se de um documento particular autenticado, o artigo 376º do CC atribui-lhe a força probatória dos documentos autênticos[12] (prevista nos artigos 371º e 372º, do CC).

O artigo 371º, que define a força probatória material dos documentos autênticos, distingue três categorias de factos[13]:

a) A primeira é a dos factos que o documento refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo. Estes factos não só se têm por verdadeiros, como se encontram cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário (não lhe aproveitando a simples contraprova), o que só lhe será permitido arguindo a falsidade do documento (artigo 372º, nº1, do CC).

b) A segunda é a dos factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora. Embora cobertos pela força probatória plena, esta só vai até onde alcançam as perceções daquela entidade. Na parte em que gozam de tal força probatória, hão de ter-se por plenamente provados, até prova do contrário, feita mediante o incidente de falsidade.

O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes.

Estes factos – do foro interno dos outorgantes ou exteriores, por não ocorridos no ato da escritura, não sendo objeto de perceção por parte do funcionário documentador – podem ser impugnados por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estarem cobertos pela força probatória plena deste.

José Lebre de Freitas[14] dá, entre outros, os seguintes exemplos, do âmbito da força probatória plena de um documento autêntico:

- Quando um notário atesta, em escritura publica que em certa data se deslocaram ao seu cartório os senhores A e B, de cuja identidade se certificou pelos bilhetes de identidade que exibiram, que o senhor A declarou, perante ele, ter entregue determinada quantia ao senhor B, que este declarou ter recebido tal quantia, e comprometer-se a restituí-la dentro de um ano, ficam provadas a presença dos outorgantes, a data em que o fizeram, a produção das declarações que lhe são imputadas; mas já não fica provada, pelo documento enquanto tal, a entrega da quantia nela referida nem que o nome e os demais elementos de identificação dos outorgantes sejam efetivamente os que constam dos bilhetes de identidade apresentados.

- Pago o preço de uma compra e venda perante um notário, que o faz constar em escritura pública por ele celebrada, este facto é abrangido pela força probatória do documento, mas, se as partes se limitaram a declarar que o preço foi pago, apenas as declarações se consideram provadas.

c) A terceira categoria de factos é a dos meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador – ex., no testamento, o notário declara que o testador se encontra na posse das suas faculdades mentais –, que não se encontram apoiadas pela força probatória plena do documento porque transcendem a área das perceções do documentador. Tais declarações encontram-se sujeitas à livre apreciação do julgador.

E é esta força probatória plena, nos exatos limites acima referidos quanto aos factos referidos nas alíneas a) e b), que se impõe, quer aos sujeitos do ato jurídico, quer aos seus herdeiros ou representantes, quer a terceiros[15].

O Código Civil limita-se a definir a força probatória dos documentos autênticos, na parte em que têm força de prova plena, sendo omisso quanto ao seu valor na parte restante.

Assim, a doutrina vem entendendo que, na parte não abrangida pela força probatória plena, a força probatória dos documentos autênticos não poderá ficar aquém da atribuída pelos ns. 1 e 2, do artigo 376º, do CC, aos documentos particulares cuja autoria se mostre reconhecida:

- de prova plena quanto às declarações (de ciência ou de vontade) atribuídas ao seu autor;

- de prova plena dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão.

Na parte em que contenham uma declaração confessória – enquanto reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária (artigo 352º CC) –, esta considera-se provada nos termos aplicáveis aos documentos autênticos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (nº2 do artigo 358º)[16].


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No caso em apreço, face à junção aos autos do documento particular autenticado, denominado pelas partes de “mútuo com hipoteca”, hão de ter-se como plenamente provadas as declarações nele apostas, nomeadamente, que o aqui credor reclamante declarou conceder ao insolvente um empréstimo no montante de 75.000,00 (facto dado como provado na sentença recorrida, sob o ponto 1).

Mas já não se tem por plenamente provado que o credor reclamante quis efetivamente emprestar e, muito menos, que a quantia aí referida tenha sido entregue ao insolvente, até porque tal declaração nem sequer foi aposta em tal documento.

Tal documento não faz prova direta da entrega efetiva das quantias aí referidas – tal entrega, não só não é certificada pela entidade autenticadora (não é por esta atestado no documento que alguma quantia haja sido entregue na sua presença), como, nas declarações apostas em tal documento as partes não fazem qualquer referência à eventual entrega das quantias mutuadas (nomeadamente, se houve entregas e, em caso afirmativo, se o foram em data anterior, simultânea ou posterior à emissão do documento).

Assim sendo, será de indeferir a pretensão do apelante deduzida na O), das conclusões das suas alegações de recurso, no sentido de que se deveria alterar a matéria de facto dada como provada, aditando-se o facto de que o mutuante fez a entrega do valor constante do contrato (atentar-se-á em que tal facto nem sequer se mostra alegado).

Contudo, de tal documento consta ainda uma declaração confessória do aqui insolvente – que, na sequência do empréstimo declarado, se confessou devedor ao aqui credor da quantia de 75.000,00 € – declaração esta que, tendo sido efetuada perante a parte contrária, se encontra dotada de força probatória plena contra o confitente (nº2 do artigo 358º CC).

E que tal confissão ocorreu – no sentido de que a declaração confessória foi proferida pelo insolvente – tem de ter-se por plenamente provado, por constar de documento autenticado (facto este que consta igualmente do ponto 1 dos factos dados como provados na sentença recorrida).

Mas a força probatória da confissão vai ainda mais além: não podendo o confitente em princípio invalidar a confissão, o adversário não carece de fazer outra prova do facto confessado e, ficando o juiz vinculado à confissão, tem de considerar verdadeiro o facto confessado[17].

José Alberto dos Reis atribui o seguinte significado ao princípio de que a confissão constituiu prova plena contra o confitente: “O facto sobre que versa a confissão considera-se provado plenamente; passa à categoria de facto sobre o qual não é admissível qualquer dúvida, isto é, de facto indestrutivelmente adquirido. Daí derivam os seguintes efeitos: a) quanto ao confitente – que ele não pode ser admitido, em princípio, a combater e destruir a sua própria confissão; b) quanto à parte contrária – que ela não precisa de produzir qualquer outra prova em relação ao facto confessado; c) quanto ao juiz – que tem necessariamente de admitir na sentença, como verdadeiro, o facto referido”[18].

Ora, a declaração confessória proferida pelo insolvente, de que, na sequência do empréstimo, se considera devedor da quantia mutuada, trás implícito o reconhecimento de recebimento da quantia mutuada, pelo que se entende que, na situação em apreço, não é de exigir ao credor reclamante qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas[19], como explicitaremos de seguida.


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Face a tais considerações, do documento autenticado junto aos autos – por força da declaração negocial e da declaração confessória nele apostas –, teremos de extrair a prova plena, entre outros, dos seguintes factos:
1. Que o credor reclamante declarou conceder ao insolvente um empréstimo de 75.000,00 €;
2. Que na sequência de tal empréstimo, o insolvente lhe ficou a dever a quantia de 75.000,00 €[20].
3. Que se obrigou a proceder ao pagamento de tal quantia em 120 prestações mensais, a contar da data da assinatura do documento.

Aqui chegados, e como salienta José Alberto dos Reis, há que distinguir entre a força probatória do documento (ou das declarações nele apostas) e a eficácia jurídica do ato nele contido.

Vejamos, então, qual a eficácia de tais factos, atendendo à circunstância de, no caso em apreço, a impugnação do crédito ser efetuada por um terceiro, e não por qualquer um dos outorgantes de tal documento.

A força plena decorrente do facto de se encontrarem exaradas num documento particular autenticado, implica a demonstração de que as pessoas a quem é atribuído o documento emitiram as declarações nele apostas, fazendo prova da celebração do negócio jurídico correspondente a tais declarações de vontade, quer quanto aos intervenientes quer quanto a terceiros.

Ou seja, fazendo o documento junto pelo credor reclamante prova plena das declarações nele apostas, o mesmo faz prova plena da celebração do contrato de mútuo e de hipoteca entre o credor reclamante e o insolvente.

Segundo José Alberto dos Reis[21], se o documento é dispositivo (isto é, se contêm uma declaração de vontade), faz prova plena do negócio jurídico realizado – de que as partes emitiram perante o notário as declarações de vontade que ele lhes atribuiu –, mas a prova plena não se estende nem à sinceridade, nem à eficácia jurídica das declarações. Podem, pois, os interessados, sem necessidade de arguir a falsidade do documento alegar a simulação do ato ou deduzir quaisquer vícios de consentimento (erro, dolo, coação). Se o documento é informativo ou narrativo (contém uma declaração de ciência), a sua força probatória refere-se à existência da narração, não à sua eficácia. O documento fará prova tão só da existência da declaração e não do facto declarado.

José Lebre de Freitas[22] defende que, feita ou atestada num documento (autentico ou particular, neste caso desde que certificada a sua autenticidade) uma declaração negocial, a vontade através dela expressa será presumida até que se prove a divergência relevante entre a vontade e a declaração ou um vício relevante da vontade.

Ou seja, atestando o documento uma vontade negocial, a mesma apenas poderá ser posta em causa mediante a invocação de alguma das causas que invalidam as declarações de vontade (simulação ou vícios de vontade – erro, dolo ou coação).

Reportando-nos ao caso em apreço, encontrando-se plenamente provado o acordo de vontades com vista à celebração de um contrato de mútuo com hipoteca, este contrato tem eficácia e é oponível também a terceiros, independentemente de o mesmo poder vir a ser impugnado por terceiros, mediante a invocação de simulação ou por via de impugnação pauliana[23].

E se é certo que no documento não se refere que alguma quantia tenha sido entregue ao mutuário (o que levaria à ausência de prova da entrega de tais quantias, necessária à constituição da obrigação de restituição), haverá que analisar os efeitos da declaração nele aposta por parte do insolvente no sentido de que “se considera devedor” do empréstimo de 75.000,00 €.

Tal declaração confessória, porque inserta num documento autêntico só poderá ser impugnada pelo confitente por via da falsidade (questionando-se o facto de a mesma ter sido proferida) ou pela prova da falta ou vícios de vontade (questionando-se a sua veracidade) nº1 do artigo 359º[24].

A lei não permite ao confitente impugnar a confissão mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado, tendo, pelo contrário, que alegar a falta ou vícios de vontade, nomeadamente qualquer erro essencial[25].

Esta impugnação não se pode basear na simples desconformidade entre o que é afirmado e a realidade: caso o comprador tenha declarado ter recebido o preço, não bastará provar que tal pagamento não teve lugar, sendo também necessária a prova de que o confitente estava em erro quanto à verificação desse facto ou que emitiu tal declaração sob coação[26].

Não haverá dúvida de que tais asserções são verdadeiras relativamente aos outorgantes do documento autêntico ou autenticado.

E relativamente a um terceiro, não interveniente no negócio formalizado pelo documento autentico ou autenticado? Caso queira impugnar algum facto objeto de declaração de ciência atestada pelo documento, o terceiro encontrar-se-á igualmente sujeito às referidas regras? Terá de alegar e provar que tal declaração se encontra inquinada de falta ou vício de vontade? Ou, poderá tão-somente alegar a provar que tal facto não é verdadeiro, ou, numa última hipótese, bastar-lhe-á impugnar tal facto, para que o mesmo se tenha por controvertido, incumbindo à parte contrária a prova da sua veracidade[27]?

Se a impugnação visar uma declaração negocial, tendemos a considerar que, ainda que o impugnante seja um terceiro, tal declaração só poderá ser abalada pela via da prova de que tal declaração não correspondeu à vontade real do declarante e se, não correspondendo, entre este e o declaratário foi feito um acordo no sentido de a declaração ser feita em prejuízo de terceiro (simulação) – sendo permitido ao terceiro o recurso à prova testemunhal para demonstração da simulação (nº2 do artigo 394º CC).

Já no caso de se tratar de uma declaração de ciência não negocial – por ex., em que se declara ter recebido o preço ou a quantia mutuada –, para o terceiro impugnante será suficiente a prova do contrário[28], ou seja, por ex., de que tal quantia não foi paga ou a quantia mutuada não foi entregue.

Com efeito, se, relativamente ao confitente, a veracidade destas declarações só pode ser posta em causa por meio da invocação de falta ou vício na vontade, tal não se deve à força que lhe possa ser atribuída enquanto documento autêntico, mas, tão só, e na medida em que, encontrando-se provado plenamente que as partes fizeram determinadas declarações, estas possam constituir confissões.

Segundo Vaz Serra[29], a eficácia probatória dos documentos (autênticos ou particulares, quando reconhecida a sua autenticidade) diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que estas declarações ou factos possam produzir.

Quanto ao conteúdo de tal declaração, segundo Vaz Serra, não se trata de uma questão de prova mas de eficácia, sendo aqui que entra em campo a distinção quanto aos efeitos entre as partes e relativamente a terceiros. Dispor que os factos se consideram exatos na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, conforme dispõe o nº 2 do artigo 376º, não é estatuir sobre a força probatória do documento, mas acerca da eficácia dos factos nela mencionados.

No que respeita à eficácia do ato jurídico comprovado pelo documento autêntico (ou particular cuja autenticidade haja sido reconhecida), é que os terceiros se encontram em posição diferente da das partes, seus herdeiros ou representantes[30].

A confissão de um ato jurídico (como, por ex., a declaração de que recebeu o preço ou que lhe foi entregue ou transferida a quantia mutuada) é eficaz face a terceiros, nomeadamente face aos credores do confitente.

José lebre de Freitas[31] refere ser a confissão eficaz em face de terceiros com interesse subordinado ao do confitente, seja essa subordinação jurídica (é o caso da fiança, ou da hipoteca constituída por um terceiro, ou de um sub-adquirente) ou prática (é o caso dos terceiros juridicamente indiferentes, como sejam os credores do confitente). Já será ineficaz em face de terceiros com um interesse que seja paralelo ao confitente (relações com multiplicidade de interessados e de conteúdos semelhantes), assim como em face de terceiros titulares dum interesse concorrente com o dele (relações com multiplicidade de interessados com conteúdo único). Reconhece ser seguro que os terceiros com interesse independente e incompatível[32] não devem ser prejudicados pelos efeitos da confissão.

A confissão de dívida constante do documento autêntico junto pelo credor reclamante faz prova plena contra o confitente, dispensando o beneficiado de se socorrer de qualquer outra prova.

Contudo, e embora tal confissão seja eficaz perante um terceiro, a este é-lhe permitida a impugnação da sua veracidade mediante a mera prova do contrário[33], nos termos do artigo 347º do Código Civil.

Com efeito, o artigo 347º do CC, determina que, “a prova legal só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela foi objeto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei”.

Quanto à necessidade da prova do contrário, afirma Vaz Serra:

“Quando o onerado tenha feito prova bastante só por si, tem a parte contrária de fazer prova que crie no espírito do tribunal dúvida ou incerteza acerca do facto questionado (ónus da contraprova), sendo isso suficiente, não tendo de provar que tal facto não é verdadeiro. Diferentemente da contraprova, a prova do contrário tem por fim a demonstração de que certo facto, já provado, não é verdadeiro. A contraprova é suficiente para invalidar as provas livres ou as provas legais não plenas, ao passo que a prova do contrário é precisa para contrabalançar a prova plena de um facto.[34]

E, para prova de que o facto confessado não é verdadeiro, o terceiro poderá valer-se, inclusivamente de prova testemunhal, tal como é expressamente consagrado pelo nº3 do artigo 394º do CC, quanto à prova de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou do acordo simulatório.

Concluindo, ao credor que pretenda impugnar um crédito emergente de um negócio formalizado através de um documento autêntico ou autenticado, caso pretenda impugnar alguma declaração nele aposta (negocial ou de ciência) não lhe bastará, nunca, limitar-se a impugnar a veracidade de tal declaração, tendo de alegar e provar, pelo menos, que a mesma não é verdadeira (como já referimos, em nosso entender, caso a impugnação incida sobre uma declaração negocial, esta só poderá ser abalada ou destruída mediante a invocação de um vício na formação da vontade ou de simulação).

Assim sendo, no caso em apreço, a simples alegação, por parte do credor impugnante, de que o credor reclamante “não cuida provar a entrega do dinheiro ao insolvente, mostra-se inócua face à força probatória plena do documento que titula o crédito em causa, do qual se pode dar por plenamente provado que as partes celebraram determinado negócio jurídico (contrato de mútuo e de hipoteca) e de que o insolvente declarou confessar-se devedor da quantia objeto do empréstimo[35].

Sendo tal negócio e declaração confessória eficazes relativamente à credora impugnante, para destruir os respetivos efeitos era a impugnante que teria de alegar e provar que, apesar e ao contrário das declarações emitidas pelos outorgantes, nenhuma quantia foi entregue ao insolvente.

A apelação é de proceder, impondo-se o reconhecimento do crédito reclamado e a reformulação da sentença de verificação e graduação de créditos, de acordo com a garantia real que assiste ao crédito do Apelante.

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida, relativamente ao reconhecimento do crédito do Apelante e reformulando a graduação de créditos, respeitante ao único imóvel apreendido para a massa, nos seguintes termos:

1. Reconhecem-se os créditos constantes da lista de créditos elaborada pelo Sr. Administrador de Insolvência de fls. 2, incluindo o crédito reclamado pelo credor hipotecário C (…)

2. Graduando-se os créditos pela seguinte forma:

A. As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda do bem apreendido.

B. Do remanescente do produto da venda do prédio urbano, dar-se-á pagamento:
1. Crédito da autoridade Tributária e Aduaneira relativo a IMI, no montante de 85,21 €.
2. Crédito hipotecário reclamado pelo credor/Apelante C (…),
3. Crédito relativo a IRS, no montante de 1.014,78 €;
4. Os restantes créditos (onde se inclui o crédito reconhecido no apenso F), como comuns, em paridade e sujeitos a rateio, na proporção devida, caso não seja possível a plena satisfação.

Sem custas.       

Coimbra, 26 de janeiro o de 2016

Maria João Areias ( Relatora )

Fernanda Ventura

Fernando Monteiro

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

1. Impugnado um crédito reclamado na insolvência, e ainda que reconhecido pelo A.I., é sobre o credor reclamante que recai o ónus da prova dos seus elementos constitutivos.

2. Emergindo tal crédito de um contrato de mútuo com hipoteca, formalizado por documento autenticado, este faz prova plena das declarações emitidas pelas partes e nele atestadas, bem como dos factos compreendidos na declaração na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, prova esta que se impõe quer aos outorgantes quer a terceiros.

3. O terceiro que pretenda ver destruídos os efeitos do negócio e da declaração confessória nele exarado terá, pelo menos, de alegar e provar que os factos por si impugnados, e que se mostram plenamente provados pelo documento autêntico ou pela confissão nele exarada, não são verdadeiros.

4. A declaração confessória proferida pelo insolvente e constante de tal documento, de que, na sequência do empréstimo, se considera devedor da quantia mutuada, é oponível aos demais credores do insolvente, dispensando o credor reclamante de apresentar qualquer prova complementar da entrega das quantias mutuadas, pelo menos enquanto não for posta em causa a eficácia de tal confissão.

5. Encontrando-se o credor reclamante munido de um documento autêntico a formalizar o mútuo com hipoteca, o ónus da prova dos elementos constitutivos do seu crédito fica satisfeito com a simples apresentação de tal documento, sendo ao credor impugnante que incumbe a alegação e prova de que não houve entrega efetiva da quantia mutuada.


[1] Tratando-se de decisão proferida após a entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos constante do novo código, de acordo com o art. 5º, nº1 do citado diploma – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 16.
[2] Como salienta Salvador da Costa, com o requerimento de reclamação devem ser apresentados os documentos destinados a provar o fundamento, a natureza ou o montante do crédito reclamado, dos quais o reclamante tem o ónus da prova - “O Concurso de Credores”, 3ª ed., pág. 332.
[3] Como previa o artigo 1227º do CPC de 1939, “as contestações, tanto dos credores e do falido como do administrador, podem versar sobre as diversas causas que afetem a existência, validade ou exigibilidade das obrigações atribuídas ao falido”.
[4] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “A Verificação do Passivo no Processo de Falência”, in Revista da FDUL, Vol. XXXVI, LEX, pág. 366.
[5] Em igual sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014, relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.03.2015, disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido, entre outros, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. II, pág. 681. No sentido de que a tradição das coisas mutuadas é exigida para a constituição do mútuo, se pronuncia igualmente Luís Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 3ª ed., Almedina, págs. 393 e 394. Miguel Brito Bastos, debruçando-se sobre a natureza do contrato de mútuo no Código Civil, defende que, sendo o mútuo típico, regulado nos arts. 1142º e ss., um contrato real quoad constitutionem, as partes podem, nos termos gerais e no exercício da sua autonomia privada, celebrar contratos de mútuo consensualmente – “O Mútuo Bancário, Ensaio sobre a estrutura sinalagmática do contrato de mútuo”, Coimbra Editora, págs. 18 a 50, em especial, 43 e 44.
[7] Segundo Manuel de Andrade, nos negócios reais, cujo exemplo típico nos é dado pelo contrato de empréstimo nas suas várias formas, além do acordo entre o mutuante e o mutuário, é preciso, para que o negócio esteja completo, e apto, como tal, a produzir os seus efeitos jurídicos próprios, a entrega da coisa ou da quantia emprestada: “Antes disso pode haver promessa de empréstimo mas não um verdadeiro empréstimo. E este elemento real faz também parte do contrato em causa” – “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Coimbra 1987, pág. 26.
[8] Neste sentido, Miguel Brito Bastos, obra citada, págs. 94 a 97.
[9]Cfr., entre outros, Adriano Vaz Serra, “Provas (Direito Probatório Material)”, in BMJ nº 110, págs. 77 e 78.
[10] Cfr., quanto a tais conceitos, José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, III Vol., págs. 246 e 247, J. M. Gonçalves Sampaio, “A prova por documentos particulares”, págs. 49 a 51.
[11] No sistema da prova livre, quando um determinado meio de prova permita criar no espírito do juiz a convicção acerca da realidade do facto, pode afirmar-se que foi feita prova bastante. Para destruir esta força probatória basta à parte contrária efetuar contraprova, ou seja, destruir essa convicção no espírito do julgador acerca da criação da dúvida da ocorrência do facto – Rita Lynce de Faria, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Portuguesa, coordenadores Luís carvalho Fernandes e Brandão Proença, pág. 820, nota II ao artigo 346º.
[12] Como refere José Alberto dos Reis, o documento autenticado, embora particular em atenção à sua origem, tem a mesma força que o documento autentico – Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora – 1985, pág. 356.
[13] Cfr., neste sentido, Antunes Varela, que aqui seguimos de perto, “Manual de processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 520 a 523.
[14] “A Falsidade no direito probatório”, Almedina 1984, págs. 36 e 37.
[15] Neste sentido, José Alberto dos Reis, segundo o qual a razão de ser da força probatória vale igualmente para as partes e para terceiros, não podendo os terceiros, do mesmo modo que as partes, contestar a veracidade dos factos atestados pelo oficial público, enquanto não arguirem de falso o documento – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 382 e 383.
 [16] Dispõe o nº2 do artigo 358º, do CC, “a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
[17] Neste sentido, Adriano Vaz Serra, BMJ nº 111, pág. 17.
[18] “Código de Processo Civil Anotado” IV Vol., Coimbra Editora, pág. 96.
[19] Situação diferente será o caso, por ex., de um contrato de abertura de crédito em conta corrente, em que o mutuante se obriga a disponibilizar as quantias mutuadas e em que será de exigir a junção de documento comprovativo da disponibilização efetiva de tais quantias ao mutuário, nomeadamente para efeitos de o mesmo constituir título executivo.
[20] Como referimos, a confissão extrajudicial inserta em documento autêntico ou autenticado faz prova plena não só da confissão, mas do próprio facto confessado.
[21] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, Coimbra Editora – 1985, pág. 371.
[22] “A Falsidade no direito probatório”, pág. 40.
[23] Em regra, os actos jurídicos válidos e eficazes entre as partes outorgantes, são oponíveis a terceiros – neste sentido, João Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, Almedina, pág. 92.
[24] Segundo José Lebre de Freitas, a confissão constitui um meio de prova pleníssima no sentido de não admitir prova em contrário e de a sua impugnação só pode ser efetuada pela invocação da falta ou vícios de vontade – “A Confissão no direito probatório”, págs. 249 e 744 e 745.
[25] Fernando Pereira Rodrigues, “A prova em Direito Civil”, Coimbra Editora, pág. 43.
[26] Neste sentido, José Lebre de Freitas, “A Falsidade no direito probatório”, pág. 40, nota 70.
[27] A questão semelhante tenta responder o Acórdão do TRC de 24-02-2015, relatado por Barateiro Martins, disponível in www.dgsi.pt.: “Não sendo a impugnante/apelada parte/outorgante no mútuo, temos como seguro que tem de ser admitida a fazer prova do contrário (de tal declaração de recebimento) por qualquer meio de prova (cfr., identicamente, art. 394º, nº3 do CC); mas – é a questão – será que nem tal prova em contrário (por qualquer meio) necessita de fazer, uma vez que ao contrariar/impugnar o conteúdo de documentos autênticos ou autenticados (outorgados por terceiros) toda a sua força probatória (nos estritos e limitados termos supra referidos) fica destruída/abalada, passando a ser aquele que se quer valer de tais documentos (v.g., um dos outorgantes) que tem que demonstrar a realidade/sinceridade que dos mesmos consta?”
[28] Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 12.01.2012, relatado por Lopes do Rego, in www.dgsi.pt., embora se discorde do respetivo teor na parte em que afirma que no confronto de terceiros não pode invocar-se a confissão extrajudicial por esta não constituir prova plena relativamente a terceiros, com fundamento em que o artigo 358º, nº2 do CC, apenas confere prova plena à confissão que for feita à parte contrária. Ora, não há dúvida de que a confissão para ter o valor de prova plena tem de ser efetuada, dirigida à parte contrária. Contudo, constando de documento e tendo neste sido dirigida à parte contrária, o que lhe confere o valor previsto no artigo 358º, nº2, a mesma goza de eficácia quer perante a parte contrária quer perante terceiros.
[29] “Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 112, Janeiro 1962, pág. 69.
[30] José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, pág. 383.
[31] “A Confissão (…), págs. 332 a 335.
[32] Dando como ex. de terceiro com interesse independente e incompatível, o caso de A que confesse ter feito a a venda a B de um certo bem pertencente a C. A situação de C é incompatível com a do confitente.
[33] No sentido de que a confissão extrajudicial, quando exarada em documento com força probatória plena embora faça prova plena, talvez se possa entender que pode ser impugnada com mais amplitude do que a confissão judicial, se pronuncia Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 248.
[34] “Direito Probatório (…)”, BMJ Ano 110, pág. 168.
[35] Seria diferente