Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/10.0TBMDA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PROVA PERICIAL
EXAME SANGUÍNEO
REQUERIMENTO
RÉU
Data do Acordão: 11/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 517º E 522º DO CPC.
Sumário: I – O relatório da perícia médica realizada no âmbito da acção de averiguação oficiosa da paternidade não retira pertinência à perícia, com a mesma finalidade, que seja requerida na acção judicial de investigação da paternidade, na medida em que aquela foi produzida em processo sem o contraditório do demandado, previsto no artº 517º do CPC.

II – O artº 522º do CPC exige que a parte contra quem a prova é invocada tenha sido também parte no primeiro processo e nele tenha sido respeitado o princípio da “audiência contraditória”, nos termos caracterizados pelo artº 517º do CPC.

III – Não se verificando os dois referidos pressupostos, a eficácia extraprocessual da prova está excluída.

IV - Assim sendo, é inequívoco que assiste a qualquer das partes da acção de investigação da paternidade o direito a requerer o exame hematológico, mesmo que semelhante exame já tenha sido realizado em antecedente acção de investigação oficiosa da paternidade, nomeadamente quando nesta interveio, como parte, o pretenso pai.

V – Assistindo a qualquer das partes da acção de investigação da paternidade o direito a requerer o exame hematológico, não pode esse direito ser coarctado ao réu, com o fundamento de idêntico exame ter tido lugar na acção de averiguação oficiosa da paternidade, nomeadamente quando nesta não interveio, como parte, o pretenso pai.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No Tribunal Judicial da Meda em acção de investigação da paternidade que o Ministério Público move contra A..., residente em .... – ...., o réu, ora recorrente, notificado nos termos e para os feitos do disposto no art. 512 do CPC apresentou rol de testemunhas e requereu “a realização de perícia de investigação da paternidade a realizar pelo organismo considerado competente”.

O Tribunal, através de despacho de fls. 56 decidiu então indeferir a realização dessa perícia afirmando que “ Veio o réu requerer uma perícia a versar sobre a matéria constante dos artigos e factos constantes da base instrutória, a saber de aferir da paternidade em causa. num organismo competente.

Ora, a determinação da pertinência de uma diligência probatória deve partir dos factos que se pretendem ou podem provar com a sua realização. que têm de ser colhidos na base instrutória, sob pena de ser reputada de impertinente (artigo 578.°, nº 1, do Código do Processo Civil).

Acontece, porém, que se encontra junto aos autos um relatório pericial de fls. 13 a 15 realizado pelo Instituto de Medicina Legal, Gabinete Médico-Legal da Guarda, sendo este o organismo competente. Com efeito, ponderando a necessidade da sua realização, existindo tal relatório nos autos constata-se que apenas não é viável a sua prossecução, apenas se contribuindo para protelar o normal andamento do processo, assim desvirtuando a sua própria natureza urgente tendo pois a realização da perícia perdido a sua actualidade e efeito útil, considerando-se a mesma desnecessária ao apuramento da verdade (artigo 578°, nº 2, in fine, do Código de Processo Civil).”

Inconformado com esta decisão dela interpôs recurso o réu concluindo que:

[…]

Nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências. Venerandos Senhores Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve o presente recurso, depois de ser admitido, ser considerado procedente e em consequência, ser revogado o despacho recorrido, sendo admitida a realização de perícia de investigação da paternidade.”

O Ministério Publico contra alegou sustentando a decisão recorrida.

Colhidos os vistosa cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os constantes do relatório e o objecto do recurso, delimitado pelas conclusões do recorrente, é o de saber se a realização da perícia médica realizada no âmbito da averiguação oficiosa da paternidade impede a realização de perícia com a mesma finalidade na acção judicial de investigação da paternidade quando o recorrente se limite a requerê-la sem alegar quaisquer razões para o fazer.


Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do CPCivil); que neles se apreciam questões e não razões e que não visam criar decisões sobre matéria nova, a questão suscitada na Apelação é a de saber se tendo sido realizada uma perícia médica para averiguação da paternidade, no processo tutelar cível, é inadmissível por inutilidade a realização de uma nova perícia com a mesma finalidade na acção de estado e se, a ser aquela admissível, o requerente da perícia, na acção tem de indicar a matéria de facto a que se destina o exame sob pena de rejeição.
São duas e distintas as questões que se colocam no âmbito do recurso.
Abordando a que lógica e cronologicamente prefere, e que remete para o saber se existindo uma perícia médica realizada no processo tutelar fica vedada a possibilidade de realização de um exame com igual finalidade na acção de investigação da paternidade, temos de ter presente que o processo tutelar cível de averiguação oficiosa regulado pelos arts. 202 e ss do OTM , representa uma instância diversa da acção de estado subsequente, proposta pelo Ministério Público, se naquele for proferido despacho de viabilidade.
Atendendo à natureza e processado do processo tutelar conclui-se que “o princípio do contraditório se mostra seriamente diminuído porque ele não está constituído como um verdadeiro processo de partes sendo conduzido inquisitoriamente pelo curador, com efectiva diminuição das garantias de defesa do pretenso pai, inexistindo um audiência contraditória de produção e discussão das provas (art. 202 OTM) impossibilidade de intervenção dos mandatários judiciais (art. 203 OTM) limitação da faculdade de recurso (art. 206 OTM)[1]  .
É esta limitação do contraditório que permite compreender o art. 1811 do CCivil ao estabelecer que as declarações prestadas durante a averiguação oficiosa não constituem sequer princípio de prova e isto porque se reconhece uma tal diferença de natureza ao processo tutelar e à acção de estado, que se consagrou expressamente o valor (rectius, a falta dele) à prova ali realizada.
Avançando neste sentido e com estas razões, a circunstância de ter sido junto com a petição inicial, o relatório da perícia realizada, com o mesmo objecto, no âmbito da precedente acção de averiguação oficiosa da paternidade, não retira pertinência à perícia requerida, na medida em que aquela foi produzida em processo sem o contraditório do demandado, previsto no art.º 517.º do CPC, pois que, o ora recorrente não foi parte naquele procedimento. Não sendo parte, não teve também oportunidade de intervir na preparação e produção daquela prova, nomeadamente nos termos permitidos pelos art.º s 587.º a 589.º do CPC, não obstando ao exercício dessa faculdade o facto da perícia ter sido requisitada a um serviço oficial[2].
Ainda que queiramos questionar esta solução remetendo para a circunstância de a perícia ter sido realizada no IML e, portanto, sujeita à específica disciplina processual do art. 580 nº2 do CPC, com exclusão da possibilidade de outrem indicar perito, e protestar uma valor probatório especial para essas perícias realizadas em estabelecimento oficial a questão é que as garantias processuais concedidas a quem agora é réu na acção judicial de investigação são ali, mais que reduzidas, suprimidas, valendo por definitivo que o exame médico referido é uma prova constituenda pelo que a inexistência de uma audiência contraditória no processo tutelar cível condiciona a sua invocabilidade noutro processo nos termos do ar. 522 do CPC.
Esta disposição legal exige, com efeito, que a parte contra quem a prova é invocada tenha sido também parte no primeiro processo e nele tenha sido respeitado o princípio da “audiência contraditória”, nos termos caracterizados pelo art.º 517.º do CPC.
Não se verificando os dois pressupostos especificados, a eficácia extraprocessual da prova está excluída (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, pág. 418).
Como é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Junho de 1998, que versara sobre um caso com evidente paralelismo ao destes autos (exames realizados na acção de averiguação oficiosa da paternidade), “não está em causa o rigor científico ou o formalismo desses exames, mas apenas o valor extraprocessual das provas, consignado no citado art.º 522.º ” [Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano VI, t. 2, pág. 143].
Assim, sendo inequívoco que assiste a qualquer das partes da acção de investigação da paternidade o direito a requerer o exame hematológico, não pode esse direito ser coarctado ao réu, com o fundamento de idêntico exame ter tido lugar na acção de averiguação de paternidade, nomeadamente quando nesta não interveio, como parte, o pretenso pai.
Um tal constrangimento, mormente numa matéria tão sensível como a da verdade da procriação biológica, poderia até ser susceptível de constituir uma violação do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, como se aludiu em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 9 de Novembro de 1999, que, igualmente tratou de caso semelhante (Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIV, t. 5, pág.21).

Mesmo que atribuindo valor meramente documental ao relatório da perícia realizada, “a avaliar livremente pelo tribunal, ou até mesmo de “princípio de prova” (parte final do n.º 1, do citado art. 522)” como se sustentou no ac. da RP de 6-1-2005 no proc. 0436221, in dgsi.pt, tal entendimento em nada altera aquele outro que defende a admissibilidade do exame pericial na acção de estado mesmo que realizado um outro no processo tutelar, porquanto do que se trata decidir é da admissibilidade desse exame e não do valor probatório do relatório de um outro, junto aos autos.
Com esta mesma definição fazemos presente o decidido no ac. da RL de 17-09-2009  no processo 486/2002.L1-2, in dgsi.pt e no qual se afirma que “Extrai-se do artigo 1801º do Código Civil o princípio da liberdade de prova, pelo que, no âmbito do processo de investigação da filiação é, não só admissível, como até, sempre que possível, exigível, a realização de testes de ADN, podendo o juiz, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 265º do CPC, ordenar, oficiosamente, a realização de testes de ADN, por virtude dos amplos poderes instrutórios do julgador, o que pode ser determinado até ao encerramento da produção de prova.
Assistindo a qualquer das partes da acção de investigação da paternidade o direito a requerer o exame hematológico, não pode esse direito ser coarctado ao réu, com o fundamento de idêntico exame ter tido lugar na acção de averiguação da paternidade, nomeadamente quando nesta não interveio, como parte, o pretenso pai.”
Uma solução defendida por Lopes do Rego no âmbito do ordenamento jurídico processual anterior ao DL 329-A/95 de 12 de Dezembro (que revogou as disposições legais dos arts. 592 a 611) era a de que, junto à acção de estado o relatório realizado no processo tutelar de averiguação oficiosa, se afigurava “perfeitamente viável ao réu suscitar ainda qualquer das questões aí referidas. Ou seja: o contraditório que realmente não existiu na acção tutelar, poderia ter integralmente lugar no âmbito da acção de estado subsequente”[3].
Para tanto “incumbiria ao MP requerer logo ao juntar o relatório do IML que o réu fosse notificado expressamente para em relação às conclusões periciais exercer o contraditório (nos termos permitidos no art. 601 do CPC)”, suprimindo-se assim a desrespeito pelo princípio da audiência contraditória.
Ora, esse art. 601 era o que permitia a reclamação dos relatórios dos exames médicos, com os fundamentos nele previstos, sendo que não era permitida a realização de uma segunda perícia.
Ora, depois da entrada em vigor do DL 329-A/95, sendo permitida a realização de um segundo exame a tese defendida por Lopes do Rego traduzir-se-ia, afinal, na admissão do requerimento de uma nova perícia na acção de estado que, assim, seria a segunda sem que nos autos tivesse sido realizada uma primeira.
Cremos em conclusão que a perícia requerida pelo réu em acção de investigação da paternidade não corresponde ao pedido de realização de segunda perícia, prevista no art.º 589 do CPC, com pressupostos distintos dos da primeira perícia. Aquela pressupõe a realização, no âmbito do mesmo processo, de uma primeira perícia, o que, efectivamente, não sucedeu no caso vertente.
Embora do ponto de vista material a perícia requerida possa ser vista como uma segunda perícia, processualmente não pode assim ser perspectivada, sendo certo ainda que, pelas razões anteriormente aduzidas, também não se afigura que, nos termos da lei vigente, justifique um tratamento jurídico idêntico ao previsto para a segunda perícia.

Decidida a primeira questão colocada no recurso no sentido de não se considerar a perícia médica realizada no processo tutelar cível como fazendo parte da acção de estado subsequente, não sendo por isso argumentável que o exame médico solicitado nesta acção possa ser indeferido com fundamento na sua desnecessidade ou inutilidade por uma outra perícia semelhante/igual ter sido realizada na averiguação oficiosa, importa abordar a segunda questão que é a de saber se, solicitada a perícia médica na acção judicial, esta pode/deve ser rejeitada por o requerente não ter indicado o seu objecto, maxime, não ter indicado a que matéria de facto quesitada tal exame visa responder.

Estabelece o art. 577 nº1 do CPC que “ao requerer a perícia a parte indicará logo, sob pena de rejeição, o respectivo objecto enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência”.   

Numa interpretação meramente literal poderíamos considerar que a circunstância de a parte requerer o exame médico no seu requerimento de prova sem indicar a matéria a que ele se destina determinaria de imediato a sua rejeição. Porém, cremos que tudo aconselha que a leitura deste preceito tenha presente por um lado os poderes de concedidos ao juiz, nomeadamente de direcção do processo a que alude o art. 265 nº1 e 3 e que lhe atribui, sem prejuízo do ónus especialmente imposto ás partes, a faculdade de providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente asa diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, nomeadamente realizando ou ordenando todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litigio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

Sabendo-se então que o juiz na acção de estado de investigação da paternidade pode ordenar oficiosamente o exame respectivo, e que esse exame é uma prova determinante no contexto do pedido que aí se formula, somos conduzidos a considerar que este interesse na descoberta da verdade e o facto inequívoco de a especificidade do exame tornar evidente a matéria de facto que se destina provar, mesmo que não tenha sido expressamente indicada, quase que obriga o juiz a determinar o exame oficiosamente ou, quando muito, a convidar o requerente a indicar qual a matéria que o exame visa provar, sem prejuízo de entendermos que esse convite é desnecessário porquanto se sabe que a perícia pedida tem aquela limitada e indiscutível finalidade de saber qual o grau de probabilidade de o requerente ser o pai daquele relativamente ao qual se reclama essa paternidade.

Dizer-se que o requerente da perícia deve desde logo indicar a matéria de facto objecto da mesma sob pena de rejeição não significa, em nosso entender, porque a lei o não diz, que a rejeição seja imediata e automática devendo articular-se essa obrigação imposta à parte com o os poderes de direcção do processo por parte do juiz e o tipo de exame solicitado, sendo que se este for daqueles que pela sua especificidade se destina a uma matéria limitada e inequívoca, que não precisa de esclarecimento algum para se compreender, cremos que deve ser ordenado sem sequer recorrer ao convite à parte a que esclareça esse objecto sob pena de rejeição.

Assim, pelo exposto, procede o recurso interposto, devendo o exame solicitado ser mandado realizar.

… …

 Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a Apelação e, em consequência, revogando a decisão recorrida, determina-se que seja ordenada a realização do exame requerido e que o tribunal a quo rejeitou.

Custas pelo vencido a final.


Manuel Capelo (Relator)
Jacinto Meca
Falcão de Magalhães


[1] Lopes do rego , RMP ano 12, nº45 p. 124/125
[2] Veja-se neste sentido o ac. RL de 8-3-2007 proferido no proc. 1355/2007-6, publicado no dgsi.pt.

[3] Op. cit. p.125/126