Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
875/11.8TATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDA VENTURA
Descritores: CRIME DOLOSO
REQUERIMENTO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
LEI DE PROCESSO
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 286.º, N.º 1, 283.º, N.º 3, ALS. B) E C), E 287.º, N.º 3, DO CPP
Sumário: I - Não é legalmente admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de um ilícito penal.

II - Assim, o dolo, enquanto elemento (subjectivo) constitutivo de um tipo legal de crime, deve constar da acusação, e, consequentemente, também do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, nos termos do disposto nos artigos 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, ambos do CPP.

III - Sendo o requerimento para abertura da instrução omisso em relação aos factos consubstanciadores do tipo objectivo e subjectivo de um determinado crime, tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório:

1. Nos presentes autos que correm seus termos no Tribunal Judicial de Torres Novas, 1º juízo, o assistente A..., veio requerer a ABERTURA DA INSTRUÇÃO, por considerar que deveria ter sido deduzida acusação contra B....

 Foi proferido despacho sobre a admissibilidade da instrução requerida concluindo-se:

(...) Por todo o exposto, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente B..., o que decido, (cfr. artigo 287.º, n.º3, parte final do C.P.P.).

(Sendo que a referência a C... se deve a mero lapso de escrita já que, como veio sendo identificado o assistente se chama A...)

2. Inconformado, o assistente interpôs recurso da decisão, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1- O presente recurso tem como objecto o despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

2- O Tribunal “ a quo” considera a fols., no seu despacho de rejeição que o requerimento do assistente para abertura de instrução não contém os requisitos de uma acusação, com indicação do agente, a narração dos factos que integram o crime, bem como as normas jurídicas aplicáveis não pode haver legalmente pronúncia do arguido.

3- Considerando ainda o Tribunal “a quo”, “ constata-se da sua leitura que a assistente não refere absolutamente nada relativamente ao elemento subjectivo”.

4- Tanto o Tribunal “a quo”, refere que “falta o elemento subjectivo, e que não descreve a factualidade”.

5- A verdade é que o assistente imputa ao arguido no seu Requerimento de abertura de instrução e identifica o mesmo no seu artigo 26° ( B...), narra os factos, a conduta, a acção que levou à prática de um crime de abuso de confiança, pelo o arguido, toda a acção foi narrada, bem como quem foi o seu autor. A factualidade está lá.

6- Portanto não estamos perante insuficiente factualidade, sabendo através de tal requerimento de abertura de instrução quem, quando e onde é que foram praticados e que esses factos constituem crime, no caso em apreço um crime de abuso de confiança.

7- Requerendo ainda para o efeito diligências de prova, que não foram tidas em conta e que deveriam ter sido consideradas, nomeadamente o depoimento da companhia de seguros de assistência em viagem, bem como o depoimento de D..., E..., F.. e G... , m. i. nos autos.

8- Obviamente o recorrente não concorda com a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

9- O tribunal “a quo” não observou os requisitos exigidos no artigo 287° para o requerimento de abertura de instrução, já que este era legalmente admissível.

10- Já que correspondia aos factos infracção criminal, ou seja, não há falta de tipicidade, não havendo obstáculo à abertura de instrução.

11- A par dos requisitos do artigo 287° em que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente a não acusação, a indicação dos actos de instrução que pretenda levar a cabo, os meios de prova não considerados, bem como a remissão para o seu artigo 283° alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.

12- Ora no caso concreto não podemos deixar de alegar que os mesmos foram observados.

13- O assistente relatou os mesmos, incluindo o lugar e o momento da prática dos factos, e a motivação da sua prática, bem como o grau de participação do denunciado, identificando-o, e ainda as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada, obedecendo assim aos requisitos do 283° do C.P.P.

14-Indicando ainda de forma expressa e inequívoca as disposições aplicáveis, os requisitos do crime de abuso de confiança, previsto e punido nos termos do artigo 205° n. ° 1 e n.° 4 do Código Penal.

15- O assistente relata sem qualquer dúvida a acção, que entregou o seu veículo automóvel, marca Land Rover, com a matrícula x..., ao B..., para o reparar, que o mesmo não obteve mais notícias sobre o seu veículo, nem nunca mais o viu, que o arguido se apoderou dele, e que após ter sido solicitado para o entregar não o entregou, tendo ficado com ele.

16- Se o fez seu, por título não translativo da propriedade, dando-lhe um destino diferente para que foi confiado, dispondo dela como se fosse sua, com o propósito de não a restituir, então há falta de tipicidade?

17- Na verdade o assistente não deixou de cumprir com os formalismos legais exigidos pelo disposto no artigo 287° do código de Processo Penal.

18- Sem prescindir sempre se dirá que o requerimento a pedir a instrução não tem que obedecer a formalidades especiais, não se exigindo sequer que seja articulado.

19- Contudo não se deixou de observar algumas exigências, como as indicações à matéria de facto e de direito, que pela sua subsistência, possam infirmar acusação ou arquivamento.

20- Tratando-se de uma fase judicial, a sua estrutura eminentemente acusatória deverá apresentar-se integrada pelo principio da investigação e por isso o juiz de instrução não está limitado ao material probatório apresentado pela acusação, mas deve instruir autonomamente o facto em apreciação, Prof. Figueiredo Dias, in Para uma reforma global do processo penal português.

21- Se do próprio requerimento de abertura de instrução resultar falta de tipicidade da conduta, ausência de queixa, entende-se que ainda assim a instrução não deverá ser logo recusada por inadmissibilidade.

22- O legislador não quis um âmbito tão largo de denegação da instrução, como O Tribunal “a quo” denegou.

23- A este respeito o Ac. RL de 12 de Julho de 1995; CJ, XX, Tomo 4, 140; refere que “ a insuficiência dos factos, suas consequências e seus autores não integra o conceito de inadmissibilidade legal, a que se refere o n. ° 2 do artigo 287° do C.P.P. e por isso a sua reapreciação está vedada para justificar a recusa da instrução.

24- Pelo que neste caso o Tribunal “a quo” deveria proceder do seguinte modo quanto ao assistente, notificá-lo para que complete o requerimento com os elementos que omitiu e que não deveriam ter sido omitidos.

25- E se então o assistente, no caso em apreço, não completasse o requerimento, o juiz não procederia à instrução.

26- E tal não foi observado pelo Tribunal “a quo”, que perante tal não considerou tais formalismos, rejeitando liminarmente o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, por parte do assistente, A....

27- Pelo o exposto, o Tribunal a quo, violou os artigos 287° n.° 2 do código de Processo Penal, com remissão para o 283° alínea b) e C), do Código de Processo Penal.

3- O Ministério Público apresentou resposta onde, expressando a sua concordância na íntegra com a decisão proferida e seus fundamentos entende que o despacho recorrido deve manter-se e, consequentemente, deve ser negado o provimento ao recurso.

4- Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público, com vista nos autos, emitiu parecer onde concluiu que deve manter-se a decisão recorrida (parecer de fols.151 a 152).

5- Colhidos os vistos e remetidos os autos a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal da quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).

Assim, no caso sub judicie:
Determinar se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal; neste âmbito se apreciará a admissibilidade do convite ao aperfeiçoamento.

2. Dos factos:

A..., veio requerer a ABERTURA DA INSTRUÇÃO, por considerar que deveria ter sido deduzida acusação contra B....

Alega, para tanto, que o arguido incorreu na prática de um crime de abuso de confiança, previsto e punível pelo artigo 205°, n.ºs 1 e 4, alínea a) do Código Penal.

Dado que... 5º O denunciante deslocou-se com o seu filho, E... ao “Stand I...”, sito em Santarém, tendo o denunciado vendido ao aqui denunciante um veículo automóvel, de marca Land Rover, com a matrícula x..., no valor de € 7500, com o qual celebrou de imediato um contrato de crédito ao consumo, para a aquisição do veículo automóvel com reserva a favor da instituição financeira “J... SA”.

6º Acontece que em Maio/Junho de 2010, o carro sofreu uma nova avaria no motor, quando o seu filho, E...se dirigia para Vila Nova de Mil Fontes, local onde residia a sua namorada, G.... Em virtude desta avaria o carro foi rebocado para o stand do denunciado pelo reboque do seguro do denunciante.

7° Tendo o denunciante se deslocado para Santarém para o Stand para trazer o seu filho de volta para casa, uma vez que lá deixado o veículo pelo pronto-socorro o mesmo necessitaria de regressar a casa.

8° Quando ambos chegaram ao stand a Santarém com o carro rebocado o referido Stand ainda estava fechado, pelo que tiveram de aguardar a chegada do denunciado.

9° Assim que este chegou reclamaram a avaria no motor do carro e pediram que o mesmo resolvesse o problema, já que era a segunda avaria no motor no espaço de dois meses, já que a primeira avaria e a sua reparação tinha sido em Março de 2010. Perante nova avaria o denunciante solicitou que o mesmo fosse reparado ou substituído por outro em melhores condições, a que o mesmo acedeu tendo ficado com o carro e as chaves do mesmo nas suas instalações, tendo o denunciante e o seu filho abandonado o local, e regressado a casa.

10° Não obtiveram mais nenhum esclarecimento.

11° Dias mais tarde a esposa do ofendido recebeu uma chamada telefónica do stand a dizer que o carro tinha desaparecido.

12°Devido a esta situação o ofendido e o seu filho tentaram por diversas vezes entrar em contacto com o denunciado que nunca lhe atendeu o telefone, tendo inclusive ambos se deslocado ao stand em questão, e o mesmo encontrar-se sempre fechado.

13º O ofendido não teve mais notícias do carro, pelo que apresentou queixa na

GNR.

14° Ora as declarações do ofendido e do seu filho, salvo o devido respeito por douta opinião em contrário, não foram valoradas pelo digníssimo Ministério Público.

15° Ora efectivamente o veículo automóvel foi entregue no stand do denunciado pelo denunciante e pelo seu filho, não tendo até ao momento lhe sido entregue.

16° O verdade é que o veículo foi-lhe entregue pelo denunciante, tendo o denunciado alegado posteriormente que o mesmo lhe havia sido subtraído, não tendo para apresentado qualquer denúncia para o efeito, e apresentado nos autos outra versão relativa à primeira reparação, à reparação de Março de 2010 e não de Maio de 2010, data da nova avaria no motor, o que é certo é que até hoje o referido veículo ainda não foi recuperado.

DO PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA

17° Os elementos do crime de abuso de confiança, previstos no artigo 205° no 1 e n.° 4 ai. a) do Código Penal,” quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade.

18° São requisitos do crime de abuso de confiança: a apropriação ilegítima; de coisa móvel; entregue por título não translativo de propriedade.

19° Quer isto dizer que outrem pelo agente poder validamente, contudo um destino como se fosse sua, dar o destino a que no crime de abuso de confiança a coisa não é subtraída a do crime, como sucede no caso do furto, mas entra no seu por titulo não translativo de propriedade, dando-lhe diferente daquele para que lhe foi confiada, dispondo dela ou seja com o propósito de não a restituir, ou de não lhe estava ligada, passando a agir com animo domini.

20° Assim no crime de abuso de confiança o agente viola a confiança em si depositada, dando a um determinado bem uma utilização ou um destino diverso daquele para que o recebera..

21º Ora no caso em apreço o denunciado recebeu o carro no seu stand deixado pelo pronto-socorro para ser reparado e devolvê-lo, havendo aqui uma apropriação indevida, a intenção de apropriação está preenchida.

22° Importa realçar que o denunciado recebeu o carro, e não o devolveu, apropriando-se do mesmo.

23° Aliás, importa realçar que até à presente data não sabe o denunciante do paradeiro do veículo automóvel que adquiriu.

24° Ora, como se poderá considerar não se encontrarem verificados indícios suficientes da prática do crime de abuso de confiança?

25° Dúvidas não restam que foi desvalorizada a situação do ofendido, constando dos presentes autos prova do mesmo, tanto nas declarações prestadas pelo ofendido como do seu filho.

26° Pelo que deveria o digníssimo Ministério Público, ter proferido despacho de Acusação quanto ao arguido B....

27° São estas as razões de facto e de Direito da nossa discordância relativamente ao arquivamento do digníssimo Ministério Público.

28° Encontrando-se nos autos e na prova a produzir em sede de debate instrutório verificada a recolha de indícios suficientes de que foram cometidos os factos que a lei penal qualifica como crime e quem foi o seu agente.

29° Em suma, não resta dúvida que o arguido apropriou-se ilegitimamente da viatura automóvel do ofendido.

30° Pelo que o arguido deve ser pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança, nos termos do artigo 205° n.° 1 e n.° 4 ai. a) do Código Penal.

Na sequência, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que o requerimento de abertura de instrução não contém uma narração dos factos legalmente relevantes que obedeça ao disposto no artigo 283°, n. ° 3, alínea b), do Código de Processo Penal designadamente no que concerne ao tipo subjectivo

Após foi proferida a seguinte decisão:

Não concordando com o despacho de arquivamento - fls. 46 e ss- veio o assistente A... requerer abertura de instrução (fls. 74 e ss), pugnando pela pronuncia do arguido B..., pela prática de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artigo 205.º, nº 1 e n.º 4, al. a) do Código Penal.

Cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 2 do C.P.P., "o requerimento - para abertura de instrução - não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º."

Daqui resulta que o requerimento de abertura de instrução, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público - como in casu acontece - equivale a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar ao arguido, que deve igualmente estar devidamente identificado.

Para além da enumeração de factos que o requerimento de abertura da instrução deve conter, susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, impõe-se, concomitantemente, que o mesmo contenha, a data e o lugar da ocorrência dos factos, o grau de participação que o arguido neles teve, sendo o caso, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos narrados cuja autoria é imputada ao arguido.

Mas não só, importa também que dele constem os elementos respeitantes ao elemento subjectivo.

Neste concernente, pela clara exposição e total pertinência face ao caso em concreto, citamos o Ac. da RC de 12.05.2010, acessível in www.dgsi.pt, que preconiza o seguinte:

“A recorrente, como vimos, entende que há elementos factuais suficientes para pronunciar os arguidos pela prática dos aludidos crimes.

Mas não tem claramente razão!

E isto é assim mesmo sem termos necessidade de entrar na apreciação da questão directamente levantada pela recorrente.

Basta atentarmos no conteúdo do requerimento de abertura de instrução que esta apresentou, para facilmente chegarmos a essa conclusão.

Na verdade esse conteúdo traçou-lhe irremediavelmente o destino – o naufrágio total! Vejamos então, porquê.

Como é por demais sabido, a abertura da instrução pode ser requerida apenas pelo arguido ou pelo assistente (artº 287º nº 1 CPP).

Este último pode requerê-la “, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”, visando-se assim a comprovação judicial da decisão assumida pelo M P de não deduzir acusação por aqueles factos (artº 286º nº 1 CPP).

Significa isto que o objectivo do assistente neste caso é o de levar a julgamento factos, pelos quais o M P considerou não dever acusar, como é o caso em análise.

Daí que o requerimento do assistente, porque não tem atrás de si uma acusação que delimite o âmbito da pronúncia, tenha de ser estruturado, como se fosse uma acusação.

Exige-se que tal requerimento contenha (artº 287º nº 2 CPP):

- em súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação ou não acusação.

- sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo.

- os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.

- dos factos que, através de uns e de outros, espera provar.

Exige-se ainda ao assistente que no seu requerimento indique, sob pena de nulidade:

- a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

- a indicação das disposições legais aplicáveis.

Do exposto resulta que, como refere Germano Marques da Silva :\147- INSTRUCÃO -REQUERIMENTO[1].doc - _ftn2, o requerimento do assistente para abertura da instrução, tenha de conter, substancialmente uma verdadeira acusação.

E compreende-se que assim seja, como já referimos anteriormente, já que tal requerimento, no caso de arquivamento dos autos de inquérito por parte do MP, como foi o caso vertente, equivale à acusação, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, ficando o objecto do processo delimitado pelo conteúdo daquele requerimento.

É que, conforme se alcança dos artºs 303º e 309º CPP, a narração dos factos, no requerimento para abertura da instrução assume particular relevo, na medida em que é por tais factos que a pronúncia se tem necessariamente de pautar, já que o artº 309º nº 1 CPP estabelece que “a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução” ( o sublinhado é nosso).

Impõe-se por isso no requerimento de abertura de instrução, por parte do assistente, a delimitação do “thema decidendum”, já que o juiz está limitado pelos factos aí alegados pelo assistente (artº 308º nº 1 CPP), sob pena de proferir uma decisão nula se não tiverem sido alegados os factos que vierem a recair no despacho de pronúncia.

Por outro lado o artº 287º nº 3 CPP estabelece taxativamente os casos em que o requerimento pode ser rejeitado.

A saber:

- quando for extemporâneo.

- por incompetência do juiz.

- por inadmissibilidade legal da instrução.

Ora se no que concerne à rejeição por extemporaneidade e incompetência do juiz não se suscitam quaisquer dúvidas, já o mesmo não sucede relativamente à rejeição por inadmissibilidade legal.

A este propósito escreve Maia GonçalvesA:\147- INSTRUÇÃO - REQUERIMENTO[1].doc - _ftn3 “ A rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução (v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais).”

Também Germano Marques da SilvaA:\147- INSTRUÇÃO - REQUERIMENTO[1].doc - _ftn4, a este propósito refere “O requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta de pressupostos de objecto, de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do artº 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficiosos, tem de ser arguida”.

Significa isto que, quando o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contenha os requisitos de uma acusação, com indicação do agente, a narração dos factos que integrem o crime, bem como as normas jurídicas aplicáveis, não pode haver legalmente a pronúncia do arguido.

Ora o que acontece no caso vertente é que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente não obedece a tais requisitos.

Com efeito, constata-se da sua leitura que a assistente não refere absolutamente nada relativamente ao elemento subjectivo (cfr. requerimento de fls. 73 e ss).

Conforme decorre dos artºs 287º nº 2 e 283º nº 3 b) CPP, o requerimento para a abertura da instrução deve conter “ a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Omitindo-se completamente a descrição da facticidade integradora do elemento subjectivo quer relativamente ao crime de ameaça, quer no que concerne ao crime de coacção, que, como é sabido, são crimes que exigem o dolo, jamais poderiam os arguidos ser pronunciados, ainda que se indiciasse toda a restante factualidade, designadamente a referida pela assistente no recurso que interpôs.

É que no requerimento há “ narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena”.

Assim os factos integradores do elemento subjectivo tinham que constar de tal requerimento apresentado pela assistente, já que é este que limita a instrução (artº 309º nº 1 CPP), pelo que a instrução era inadmissível, e por isso jamais poderia dar corpo ao despacho de pronúncia.”

Ora, no caso que nos ocupa, basta atentar no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente para se alcançar que o mesmo não se apresenta como uma estrutura de acusação.

Na verdade, o assistente limita-se a verter no requerimento de abertura da instrução considerações sobre o tipo legal de crime e afirmar a discordância com o desfecho dos autos, por entender dever ser feita uma valoração diferente. Ora, no caso que nos ocupa, basta atentar no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente para se alcançar que o mesmo não descreve, desde logo, factualidade suficiente, que, a apurar-se suficientemente indiciada, permitisse afirmar o cometimento do imputado crime de abuso de confiança por quem quer que seja.

Na verdade, limita-se a descrever a sua versão dos factos, e a tecer considerações doutrinárias sobre os elementos objectivos e subjectivos do tipo.

Ou seja, não se vê que o assistente impute ao arguido - que não identifica – a prática de qualquer conduta/factos/acção que levasse à prática de um crime de abuso de confiança, ou qualquer outro.

Perante tal insuficiente factualidade, fica o tribunal sem saber quem, quando, onde, e como é que os factos foram praticados, e se esses factos constituem crime.

Além do mais, no caso que nos ocupa, para além de se afirmar que o requerimento apresentado não reúne os requisitos necessários para o preenchimento do elemento objectivo do tipo de crime, o certo é que o requerimento é, igualmente, completamente omisso relativamente ao elemento subjectivo do crime.

Como se refere no Ac. do TRG in CJ-II-291 “Não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.

Assim, salvo devido respeito por diversa opinião, o requerimento apresentado pelo assistente padece de vícios que o fulminam irremediavelmente.

Destinando-se a instrução requerida pelo assistente à comprovação judicial da decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público, ela não visa, directamente, a fiscalização da actividade daquele, mas sim averiguar da existência de fundamento para submeter um arguido, devidamente identificado, a julgamento.

 É que, como se disse, o requerimento formulado pelo assistente, como acusação alternativa à do Ministério Público, com a função de delimitar o objecto do processo, deva conter a descrição dos factos concretos imputados ao arguido (cf. artigo 283.º, n.º 3, alínea b) ex vi do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), e demais elementos aí referidos.

A acusação e a pronúncia fixam o objecto do processo que é imodificável até ao julgamento, (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 17/03/1999, Col. Jur., Tomo II, pág. 43).

Como refere o Tribunal Constitucional, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público, apresenta-se «materialmente, uma acusação, na medida em que, por via dele, é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal», daí que «o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do artigo 283.º do Código Penal. Tal exigência decorre, (…), de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória» - cfr. Ac. TC n.º 358/2004, de 19 de Maio.

Sem a imputação de factos concretos – que preencham objectiva (e subjectivamente) o tipo legal de crime – e demais elementos necessários, o arguido só poderia ser pronunciado pelo crime abuso de confiança se à pronúncia fossem levados factos que representariam uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento de instrução, o que está vedado e torna a instrução legalmente inadmissível.

É, assim, de rejeitar por inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este omite a alegação da pertinente factualidade que permita o preenchimento do elemento objectivo do tipo, tanto mais que era possível.

E também não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução (cf. Ac. do STJ para fixação de jurisprudência, n.º 7/2005, publicado no DR I série A, n.º 212, de 04-11-2005).

Por todo o exposto, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente C..., o que decido, (cfr. artigo 287.º, n.º3, parte final do C.P.P.).


3. Mérito do recurso:

Como referido, nos autos cumpre apreciar se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal; e neste âmbito se apreciará também a admissibilidade do convite ao aperfeiçoamento.

Considerações gerais:

No âmbito do processo penal e perante o despacho proferido pelo Ministério Público, determinando o arquivamento do inquérito, o assistente tem ao seu alcance diferentes procedimentos, alternativos.

Assim, pode requerer a abertura de instrução, se o procedimento não depender de acusação particular (portanto, no caso de crimes de natureza pública e semi-pública), relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação [artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal]; se optar por não requerer a abertura de instrução, pode suscitar a intervenção hierárquica (artigo 278.º, n.º 2, do mesmo diploma legal).

Releva aqui a primeira opção.

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

Ao requerimento do assistente e sempre de acordo com a norma antes citada, é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) – isto é, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.

Importa realçar que, abstendo-se o Ministério Público de acusar (é este um pressuposto essencial para legitimar a intervenção do assistente), o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, para possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório, bem como a elaboração da decisão instrutória.

Não satisfaz essa exigência o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e do qual não constem expressamente os elementos mencionados nessas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

A necessidade da suficiência do requerimento de abertura de instrução e a sua relevância expressam-se, nomeadamente, nos termos dos artigos 303.º, n.º 1, e 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Na primeira das normas, estabelece-se o procedimento perante a alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução; tais procedimentos – diferentes, consoante se trate de uma alteração não substancial ou de uma alteração substancial dos factos – exigem e pressupõem a descrição precisa de factos, o que mais se acentua quando estamos perante a abstenção de acusação pelo Ministério Público. Na segunda das normas citadas estabelece-se que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.

O n.º 3 do citado artigo 287.º do Código de Processo Penal estabelece que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Insere-se na inadmissibilidade legal da instrução, nomeadamente, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, perante a não dedução de acusação pública, que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que imputa ao arguido e pelos quais pretende que este venha a ser pronunciado.

A conclusão não se altera perante a remissão para o auto de notícia ou para a denúncia que tenham dado origem ao processo.

Chamado a apreciar a norma do artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser exigível, sob pena de rejeição, que constem expressamente do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente os elementos mencionados nessas alíneas, o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004, publicado no Diário da República, II Série, n.º 150, de 28 de Junho de 2004, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma em apreciação, expressando o seguinte entendimento:

«Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe (…) uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287.º, n.º 2, remeta para o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.

(…) [A] exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

Suscita-se a questão de saber se, perante esta omissão, é admissível o convite ao aperfeiçoamento. A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência nos seguintes termos:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» – Acórdão n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de Novembro de 2005.

Nos termos deste acórdão, «o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil, ao princípio da cooperação, conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4.º do CPP.

(…) A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP.

A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada – o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.

(…) O convite à correcção encerraria, isso sim, uma injustificada e desmedida, por desproporcionada, compressão dos seus direitos fundamentais, em ofensa ao estatuído no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, que importa não sancionar.

Sem acusação formal o juiz está impedido, escreve o Professor Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 175, de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objecto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objectivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado, consequenciando, como, com proficiência, salienta a ilustre procuradora-geral-adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça, «uma necessária e desproporcionada diminuição das garantias de defesa do arguido», importando violação das regras dos artigos 18.º e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusado do arguido, deferindo-se-lhe, contra legem, a titularidade do exercício da acção penal.

(…) O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra».

Este entendimento é secundado, entre muitos outros, pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2006 (processo 06P3526) e de 20 de Junho de 2012 (processo 8/11.0YGLSB.S2), e deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 6 de Junho de 2012 (processo 135/10.1TALSA.C1) e de 26 de Outubro de 2011 (processo 30/10.4TAFVN-A.C1), todos disponíveis na base de dados do ITIJ (www.dgsi.pt). No mesmo sentido se pronuncia Maia Gonçalves (“Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 17.º edição, página 692, em anotação ao artigo 287.º).

Igualmente chamado a apreciar a constitucionalidade do artigo 287.º do Código de Processo Penal perante este entendimento, o Tribunal Constitucional em 20 de Dezembro de 2011 (Diário da República, 2.ª série — N.º 19 — 26 de Janeiro de 2012) decidiu:

«Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas)».

Neste acórdão afirma-se, em sede de fundamentação:

«Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à [...] não acusação”, o n.º 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do acto praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo n.º 2 do mesmo preceito.

Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do n.º 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a protecção das garantias de defesa), não é jurídico-constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.

A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afectar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspectos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima».

Mas mais, como mencionam Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação (…). (o sublinhado é nosso)
Assim sendo, o requerimento para a abertura da instrução há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.

É que não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, tendo em conta a indicação constante do requerimento de instrução, como se depreende do disposto no art.º288.º, n.º4, do C.P.P.

Ou seja, o requerimento de instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução.

No caso dos autos:

No caso concreto, o que se verifica é que o assistente dá nota de um quadro factual completo no que diz respeito aos elementos objectivos dos crime em causa, o mesmo já não ocorrendo quanto ao elemento subjectivo desse crime (o volitivo - como muito bem se refere no despacho recorrido – que nos escusamos de transcrever) quer ainda quanto à consciência da ilicitude da sua conduta.

Ora são precisamente os elementos subjectivos do crime, com referência ao momento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) e ao momento volitivo (vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) que permitem estabelecer o tipo subjectivo de ilícito imputável ao agente através do enquadramento da respectiva conduta como dolosa ou negligente e dentro destas categorias, nas vertentes do dolo directo, necessário ou eventual e da negligência simples ou grosseira. Como refere Figueiredo Dias, em Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., pág. 379 “…também estes elementos cumprem a função de individualizar uma espécie de delito, de tal forma que, quando eles faltam, o tipo de ilícito daquela espécie de delito não se encontra verificado”.
Assim, os elementos objectivos, que constituem a materialidade do crime, traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos e os elementos subjectivos traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material.
Num crime doloso – só esse está aqui em causa – da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
 A tipicidade objectiva do crime imputado traduz-se na acção de ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.
Se assim é, o dolo exige que o agente actue querendo praticar um acto que sabe ser típico ou seja ofender a saúde ou o corpo de outrem, tendo consciência da ilicitude dessa conduta independentemente de poderem coexistir outras motivações, sendo no entanto esta que ao nível subjectivo perfectibiliza a imputação criminal.
Ora, por muito que o recorrente esgrima em sentido contrário, é incontornável que não contemplou na narração dos factos a totalidade destes elementos. Quanto ao elemento volitivo não se basta com a alegação isolada de uma actuação deliberada, mas antes com a descrição do que efectivamente foi querido pelo agente e que coincida com os elementos objectivos do crime imputado.
Sem essa indicação não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa e, sendo assim, jamais poderia ser proferido despacho de recebimento do requerimento de instrução.
O dolo como elemento subjectivo – enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal impõe que seja incluído na acusação (por consequência também no requerimento de instrução do assistente).
E se fosse ultrapassada a fase processual em que o requerimento de instrução/acusação podia ter sido rejeitado por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de instrução restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos do artigo 303º do mesmo diploma. Mas um obstáculo intransponível logo se ergueria a possível comunicação da alteração dos factos.
É que o regime de alteração, seja substancial ou não, sempre pressupõe que os factos que inicialmente constam da acusação/requerimento de instrução ou pronúncia constituam crime. Não constituindo esses factos crime por falta de descrição de algum dos seus elementos constitutivos, jamais a mesma pode ser suprida.
Entendemos, pois, como se refere no despacho recorrido que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção.
Mantendo-se assim a decisão recorrida.

III – Dispositivo:
Em face do exposto, acordam na 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que o mesmo beneficia, fixando-se em 3 (três) UC o valor da taxa de justiça.

 
(Fernanda Ventura - Relator)

 (Luís Coimbra)