Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
144/13.9TAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA DOLOSA
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE PORTO DE MÓS)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 185.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS; ART. 227.º DO CP
Sumário: I – Perante a redacção do artigo 185.º do CIRE, ao prever que a qualificação da insolvência “não é vinculativa para efeitos de decisão de causas penais”, é patentemente claro o desígnio do legislador no sentido de não ser vinculativa a decisão do incidente regulado no título VIII do referido compêndio legislativo para efeito de instauração e prosseguimento do atinente processo criminal.

II – Deste modo, não é necessário que a insolvência haja sido qualificada como culposa para que o procedimento criminal, relativamente ao crime previsto no artigo 227.º do CP, possa ser tramitado. De igual forma, ainda que a insolvência tenha sido qualificada como culposa, nada obsta à prolação, pelo MP, no fim do inquérito, de despacho de arquivamento; por fim, a designação da insolvência de fortuita não impede a dedução de acusação.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

A encerrar o inquérito que, sob o 144/13.9TAACB, correu termos pela 1ª Secção do DIAP das Caldas da Rainha, Comarca de Leiria, o MP deduziu acusação contra o arguido V... , imputando-lhe a prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p.p. pelo artº 227º, 1, a) e b) do CP.

O denunciante A... foi entretanto admitido a intervir nos autos como assistente.

Remetidos os autos a juízo, viria a ser proferido despacho, rejeitando a acusação, com a seguinte argumentação (transcrição integral):

«Autue como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.


*

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal.


***

De harmonia com o disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, a acusação pode ser rejeita, se for considerada manifestamente infundada, o que, nos termos do nº 3 do referido artigo, acontecerá quando:

            a)         Não contenha a identificação do arguido;

            b)         Não contenha a narração dos factos;

            c)         Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

            d)         Os factos não constituam crime;

            Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação pública contra V... [melhor id. a fls. 506 dos autos] imputando-lhe factos susceptíveis de integrar a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal.

            Relevantemente, extrai-se da acusação pública [e do cômputo dos autos], além do mais, que:

            - A empresa U...., Lda., era uma sociedade por quotas, constituída em 24 de Julho de 1990;

            - A U... , Lda., teve, desde a sua constituição, como sócios: o arguido V... e os respectivos filhos, X... e Z... ;

            - A gerência pertencia a todos os sócios, obrigando-se a sociedade com a assinatura de dois deles, um dos quais, necessariamente, o arguido;

            - Não obstante, a gerência de facto sempre foi levada a cabo pelo arguido;

            - No decurso dos anos de 2011 e 2012, em datas não concretamente apuradas, a U... , Lda. após decisão tomada pelo arguido, transmitiu parte do seu património, nomeadamente, equipamentos, camiões e galeras a terceiros,

BensAdquirenteValor (em €)Mais/Menos-valia contabilística (em €)
Veículo DX AA...500,00500,00
Veículo OZ

Galera L-162224

BB..., Lda.10.000,00 + IVA5.000,00
Veículo DC

Galera Narko

53M...

B... Lda.12.500,00 + IVA9.500,00
Veículos:

-SA

DC

OQ

Galeras:

L-15...

C-59...

L-14...

L-17...

CC...34.500,00 + IVA29.500,00
Veículos:

CZ...

TI...

JB...

-VR

Galeras:

C-62...

L-15...

L-17...

C-59...

L-14...

L-16...

T... , Lda.42.500,00- 12.906,29
Material de escritório, equipamento informático, ferramentas, veículo ...BJ X... 2.500,00- 375,35

            - X... é filho do arguido e igualmente sócio da U... , Lda.

            - Os bens vendidos a X... não chegaram a sair das instalações da U... , Lda. e não houve entrada do respectivo dinheiro nesta sociedade.

            - A 13-07-2011 os sócios X... e Z... transmitiram as respectivas quotas ao arguido, seu pai.

            - Em 06-03-2012, o arguido adquiriu a totalidade das quotas da empresa de transportes de mercadorias, a sociedade T... , Lda., ficando desde então como seu gerente único.

            - E encetou a mudança da sede desta sociedade para o mesmo local onde antes funcionava a " U... , Lda.", na Avenida (...) , Marinha Grande.

            - No decurso do ano de 2012, o arguido registou, contabilisticamente, uma eliminação total do património da insolvente U... , Lda, tendo o produto da venda revertido a favor do arguido, por subtração ao saldo contabilístico, credor, que ele mantinha em relação àquela sociedade insolvente.

            - A 08-07-2012, vendeu uma viatura ligeira de passageiros, da marca e modelo VW a favor da sua mulher - MM...s – cuja propriedade já se encontrava registada em nome desta desde 22-11-2000 e cujo seguro sempre foi pago pela U... , Lda.

            - Em Junho de 2012, o arguido determinou que a U... , Lda. cedesse a sua posição contratual à T... , Lda., relativamente ao contrato de locação financeira com o Millennium.

            - Da totalidade dos camiões e semi-reboques acima referidos, pelo menos, dez (10) foram vendidos diretamente da U... , Lda à T... , Lda., nomeadamente, as viaturas com as matrículas: CZ..., TI..., JB..., -VR, L-15..., C-59..., L-14...., C-62381, L-17... e L-16....

            - Outras três (3) viaturas foram transmitidas primeiramente a sócios da U... , Lda e depois vendidos à T... , Lda..

            - Alguns dos trabalhadores da " U... , Lda.", sobretudo os de nacionalidade estrangeira, entre 2011 e 2012, foram formalmente despedidos, mas continuaram a exercer as mesmas funções, no mesmo local e sob orientação da mesma pessoa, o arguido.

            - Passaram a trabalhar para a T... , Lda., nos seguintes termos:
a) I... cessou contrato com a U... , Lda a 01/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 10/09/2012;
b) OO... cessou contrato com a U... , Lda em data que se desconhece e iniciou contrato com a T... , Lda. a 13/06/2013;
c) H... cessou contrato com a U... , Lda a 01/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 10/09/2012;
d) G... cessou contrato com a U... , Lda a 31/08/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 10/09/2012;
e) F... cessou contrato com a U... , Lda a 25/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 26/09/2012;
f) E... cessou contrato com a U... , Lda a 11/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 14/10/2013;
g) LL... cessou contrato com a U... , Lda a 25/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 26/09/2012;
h) NN... cessou contrato com a U... , Lda a 01/09/2012 e iniciou contrato com a T... , Lda. a 10/09/2012.

            - Em 29-08-2012, para pagamento de salários em atraso a II..., trabalhador da U... , Lda., o arguido utilizou um cheque titulado pela T... , Lda..

            - Por sentença proferida no âmbito do Processo n.º 1060/12.7TBPMS, do extinto Tribunal Judicial da comarca de Porto de Mós, com data de 02/10/2012 e transitada em julgado em 24/10/2012, foi declarada a insolvência da U... , Lda.

            - Em Junho de 2012, a U... , Lda. abandonou a actividade por via da completa liquidação dos bens e despedimento dos seus trabalhadores que lhe permitiam continuar activa.

            - Tendo o produto da venda do imobilizado revertido a favor do arguido e os trabalhadores passado a trabalhar para a T... , Lda..

            - Como dívidas da insolvente U... , Lda. foi reconhecido o montante global de € 571.088,00, valores devidos à Fazenda Nacional, à Segurança Social, à DD..., SA, a EE..., a FF..., a GG..., a HH..., a II..., à JJ..., SA, a LL..., a B... , à C... , SA, a D... , a E... , a F... , a G... , a H... , a I... , à J... , Lda, à L... , Lda , à M... , Lda, à N... , Lda, à O... , Lda, à P... , SA, à Q... , Lda, à R... , Lda e à S... .

            - A actividade comercial antes pela U... , Lda. continuou a ser desenvolvida pela T... , Lda., nas mesmas instalações - Avenida (...) , Marinha Grande - com alguns dos mesmos veículos pesados de mercadorias, alguns dos mesmos trabalhadores e clientes e com a contabilidade organizada pelo mesmo TOC.

            - Toda a conduta do arguido contribuiu de forma directa para a insolvência da U... , Lda.

            - As acções supra descritas levadas a cabo pelo arguido V... na dissipação e dissimulação do património da sociedade U... , Lda., de que era sócio e, também, gerente, foram causa directa e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência desta sociedade.

            - Destarte, o arguido agiu de forma livre e voluntária, em obediência a plano previamente elaborado e no intuito, alcançado, de fazer desaparecer e dissimular o património da sociedade U... , Lda., e de, desse modo, obstar a que os credores da sociedade conseguissem obter a cobrança coerciva do seu legítimo crédito à custa dos bens respectivos, o que representou.

            - Agindo do referido modo livre e voluntário, o arguido representou que as condutas por si assumidas lesavam os legítimos interesses dos credores da sociedade U... , Lda., e lhes causaria, como causou, graves prejuízos, impedidas que ficaram de cobrar os seus créditos.

            - O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

            - Por sentença proferida no âmbito do Incidente de qualificação da Insolvência da U... , Lda., - Processo n.º 1060/12.7TBPMS -C, do extinto Tribunal Judicial da comarca de Porto de Mós, com data de 04.11.2013 e transitada em julgado, mediante Parecer do Administrador da Insolvência e do Ministério Público em sentido concordante, foi qualificada a insolvência da U... , Transportes Internacionais, Lda., como fortuita - [cfr. fls. 94 a 118 dos autos].

            Isto posto, e independentemente da – a nosso ver – errónea qualificação jurídica dos factos imputados pela acusação pública [susceptíveis, em abstracto, de integrar a agravação prevista no artigo 229.º-A do Código Penal], somos do entendimento que a acusação é manifestamente infundada, impondo, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.ºs 1, 2, al. a), e 3, al. d), do Código de Processo Penal, a sua rejeição.

            Vejamos porquê:

            Descurou o Ministério Público, na descrição que faz dos factos em sede acusatória – cremos que, certamente, por lapso –, embora para tal remeta na indicação da prova que efectua em idêntica sede – e, como tal, dela se considerando parte integrante –, a circunstância de a insolvência da U... , Transportes Internacionais, Lda., ter sido qualificada, por Decisão transitada em julgado, como fortuita, nela sendo visado o aqui arguido V... .

            Tal factualidade, como infra se demonstrará, não é de somenos importância, desde logo porque, à data da prolação e tal Decisão já se encontrarem vigentes as alterações ao C.I.R.E. decorrentes da Lei nº 16/2012. Com efeito, na anterior redacção do nº 4 do 188º do CIRE, o juiz estava vinculado a qualificar a insolvência como fortuita face aos pareceres do administrador de insolvência e do Ministério Público nesse sentido. Com a alteração ao C.I.R.E. pela Lei nº 16/2012, a adopção dos pareceres do Ministério Público e do Administrador de Insolvência passou a ser uma opção do juiz. Nas palavras de CARVALHO FERNANDES [A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, in Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 90], a anterior redacção da lei pressupunha que os pareceres não mereciam reparo, solução que pecava “por excessiva”. Sublinhava o Autor que não podia “excluir-se a hipótese de aqueles pareceres não terem atribuído a devida relevância a factos constantes do processo de insolvência, alegados pelos interessados para qualificarem a insolvência como culposa”, designadamente factos que “por força da presunção inilidível do nº 2 do art. 186º” impusessem a qualificação da lei como culposa.

            Na nova redacção, se tanto o Administrador da Insolvência como o Ministério Público se pronunciarem no sentido de que a insolvência deve ser qualificada como fortuita, o juiz pode proferir decisão nesse sentido – esse o caso dos autos: a significar que a apreciação que é feita pelo julgador em sede de incidente de qualificação de insolvência não é uma mera apreciação tabelar, de “homologação” dos pareceres emitidos quer pelo Administrador da Insolvência, quer pelo Ministério Público, antes pressupondo uma apreciação crítica da causa.

            Com o que acaba de se expor, não pretendemos significar que estamos perante uma Decisão que faz caso julgado. O processo de insolvência e o processo penal são dois processos autónomos [cfr. artigo 185.º do CIRE]. Estamos perante uma autonomia processual, mas também substancial, já que um dos processos trata da responsabilidade penal, o outro da responsabilidade falimentar. As realidades são substancialmente diversas.

            Mas sendo diversas, tal também não significa que sejam completamente alheias entre si.

            No caso, importa aquilatar dos efeitos da qualificação da insolvência como fortuita, no âmbito do processo de insolvência, no plano da causa penal.

            O Código Penal dedica um dos seus capítulos aos crimes contra direitos patrimoniais. No âmbito desta categoria de crimes encontramos aqueles que comummente são designados por “crimes insolvenciais”, neles cabendo o crime de insolvência dolosa, previsto no artigo 227º, o crime de frustração de créditos, previsto no artigo 227º-A, o crime de insolvência negligente, previsto no artigo 228º, e o crime de favorecimento de credores, previsto no artigo 229º. Todos estes crimes partilham a característica de estarem, directa ou indirectamente, relacionados com uma situação de insolvência de determinado devedor. Isto é: em todos os mencionados ilícitos se verifica a subordinação da punibilidade das condutas ao reconhecimento judicial de uma situação de impotência económica de um devedor.

            Mas não basta que o devedor esteja insolvente. Para que possa haver punição pelas condutas descritas nas normas incriminadoras referidas é necessário o reconhecimento judicial da situação de insolvência – sendo esta uma condição de punibilidade e, simultaneamente, procedibilidade deste tipo de crimes.

            No que ao caso respeita, o crime de insolvência dolosa, sumariando o que acabamos de explanar, sem declaração judicial de insolvência – proferida por tribunal não penal - não pode ser instaurado procedimento criminal contra o agente nem pode este ser acusado do crime referido.

            No âmbito do processo de insolvência podem chegar aos autos indícios da prática de vários crimes, designadamente, dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º-A do Código Penal. Quando assim aconteça, o juiz é obrigado a dar conhecimento dos mesmos ao Ministério Público para efeitos do exercício da acção penal – cfr. artigo 297º n.º 1 do C.I.R.E..

            Mas e se no âmbito do processo de insolvência não forem colhidos tais indícios, antes pelo contrário, se a insolvência for qualificada como fortuita, mostrar-se-á preenchida, de igual forma, a condição de punibilidade/procedibilidade do crime de insolvência dolosa com a mera declaração de insolvência?

            Entendemos que não.

            Neste segmento, acompanhamos o entendimento perfilhado por [entre outros] Paulo Pinto de Albuquerque, no sentido de que não basta uma qualquer declaração de insolvência, é preciso que no âmbito do processo de insolvência não tenha esta sido qualificada de fortuita, para que se tenha por preenchida a sobredita condição. Por outras palavras, só será relevante para efeitos do disposto no artigo 227º do Código Penal, a declaração de insolvência em que se apurou, exclusivamente, a prática pelo agente dos actos típicos do n.º 2 do art. 186º do C.I.R.E..

            É que, pese embora a autonomia das causas penais relativamente às decisões proferidas no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, não estamos em presença de uma autonomia absoluta [como já fizemos referência supra a propósito das consequências da qualificação da insolvência como culposa].

            Em que medida se cruzam, é matéria que acha cristalinamente explanada no Mestrado Forense de Luísa Teixeira da Mota, sob a orientação do Professor Doutor Germano Marques da Silva, Março de 2013, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, intitulado “A insolvência culposa no C.I.R.E. e a insolvência dolosa no Código Penal”: “Não há, de facto, dúvidas de que os processos correm separados, mas vejamos em que medida se cruzam e de que forma estão ligados. Para uma melhor compreensão da intercepção das figuras, ― confrontámos‖ os dois institutos com quatro questões – Quem? Como? O quê? E com que consequências?.

            Vejamos, em primeiro lugar, quem pode ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa. Temos como resposta, o devedor, os administradores, de direito ou de facto, e, ainda, os Técnicos Oficiais de Contas e os Revisores Oficiais de Contas. Ora, cabe agora perguntar quem pode praticar o crime de insolvência dolosa. A resposta é-nos dada pelo artigo 227º do Código Penal – o devedor, terceiros com conhecimento do devedor ou em benefício dele, ou, ainda, sendo o devedor uma pessoa colectiva, uma sociedade ou uma mera associação de facto, quem tenha exercido de facto a gestão e a direcção. Parece-nos que não será impossível que os Técnicos Oficiais de Contas, bem como os Revisores Oficiais de Contas, casuisticamente, se possam considerar terceiros que ajam em benefício ou, pelo menos, com conhecimento do devedor, pelo que teremos aqui uma correspondência perfeita entre aqueles que podem ser os agentes do crime de insolvência dolosa e as pessoas que podem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa. No que toca ao ―como‖, interessa-nos aqui um elemento subjectivo que se traduz na vontade daquele que pratica os actos que configuram tanto o crime de insolvência dolosa, como a insolvência culposa. Relativamente à insolvência culposa, o afectado pela qualificação terá que ter tido uma ―actuação dolosa ou com culpa grave‖, excluindo-se apenas do conceito de insolvência culposa a culpa leve e a levíssima, sendo que a culpa levíssima se verifica quando o agente omita deveres de cuidado que só alguém excepcionalmente diligente e prudente teria observado e a leve verifica-se quando o agente não observa deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; no que toca ao crime de insolvência dolosa, o autor age ―com intenção de prejudicar os credores‖, ou seja com dolo. Verifica-se, assim, que a exigência do legislador não é a mesma em relação às duas figuras – enquanto para a consumação do crime de insolvência dolosa é necessário que o agente tenha actuado com dolo, a insolvência culposa basta-se com culpa grave. A figura criminal é, naturalmente, mais rígida do que a figura prevista no C.I.R.E. Podemos dizer que as duas figuras se tocam relativamente ao dolo, já quanto à culpa grave a mesma só é relevante no âmbito da figura da insolvência culposa. Convém também referir que no âmbito do crime de insolvência dolosa, se ressalva a figura do dolo eventual, porquanto aquele não se coaduna com uma conduta de simulação de situação patrimonial.

            Confrontemos agora os actos cuja prática leva à qualificação da insolvência como culposa, com os actos que consubstanciam o crime de insolvência dolosa. Procuraremos estabelecer uma correspondência entre as condutas a que a lei atribui relevância penal e os actos que o C.I.R.E. elenca como presunções cuja verificação leva à qualificação da insolvência como culposa. Um dos actos que se integra na previsão do crime de insolvência dolosa, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 227º do CP, é a destruição, danificação, inutilização ou a ocultação do património. No C.I.R.E encontramos precisamente esta conduta elencada como uma das presunções de insolvência culposa do artigo 186º - “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”. Temos aqui a mesma conduta qualificada no Código Penal como crime, e no C.I.R.E. como presunção de insolvência culposa. A alínea b) do artigo 227º do Código Penal qualifica também de conduta criminosa aquela que se traduz na diminuição fictícia do activo, invocação de dívidas supostas, reconhecimento de créditos fictícios com incitação de terceiros a apresentá-los, ou a simulação, por qualquer outra forma, de uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organização da contabilidade apesar de devida. É na alínea h) do nº 2 do art. 186º do C.I.R.E. que encontramos uma parcial correspondência com a actuação acima descrita. Nesta alínea, o legislador refere-se ao incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, a manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade, ou a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Na norma penal aquilo que releva é, no fundo, a simulação de uma situação patrimonial inferior à realidade cuja forma de levar a cabo é exemplificada pelo legislador: através de contabilidade inexacta, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organização da contabilidade apesar de devida. Parece-nos que não podemos equiparar totalmente as duas previsões, no entanto, podemos integrar as condutas da alínea h) na previsão da alínea b) do 227º do C.P. – assim se, por exemplo, for mantida uma contabilidade fictícia (expressão do C.I.R.E.) que se traduz numa simulação de situação patrimonial inferior à realidade (expressão do CP), a conduta integra o crime de insolvência dolosa.

            Prevê também o artigo 227º do Código Penal como conduta criminosa, a criação ou o agravamento artificial de prejuízos ou de redução de lucros. Encontramos correspondência literal desta previsão na alínea b) do nº 2 do artigo 186º do C.I.R.E., que considera culposa a insolvência do devedor que não seja pessoa singular, quando os seus administradores tenham criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas. Por último, determina o artigo 227º do CP na sua alínea d) que será punido o devedor que, para retardar falência, compre mercadorias a crédito com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente. Mais uma vez, encontramos uma correspondência quase literal desta conduta no C.I.R.E. Dispõe a alínea c) do nº 2 do 186º que a insolvência será culposa quando os administradores tenham ―comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação‖. Face ao exposto podemos dizer que relativamente às condutas incriminadas pelo legislador no âmbito da insolvência dolosa encontramos correspondência no C.I.R.E. Por outro lado, temos no Código da Insolvência condutas que levam, inexoravelmente, à qualificação da insolvência como culposa, porém, e ao contrário das que acima referimos, não integram o crime de insolvência dolosa.

            Assim, a disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – prevista na alínea d) do nº 2 do 186º; o exercício, a coberto da personalidade colectiva da empresa se for o caso, de uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa – prevista na alínea e); o uso contrário ao interesse do devedor do seu crédito ou dos seus bens, em proveito pessoal ou de terceiros designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto – prevista na alínea f); o prosseguimento, no seu interesse pessoal ou de terceiro, de uma exploração deficitária, não obstante saberem que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência – prevista na alínea g); e o incumprimento de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração até à data de elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º - previsto na alínea i); não constituem crime sendo, todavia, condutas cuja verificação leva automaticamente, à qualificação da insolvência como culposa. Estas condutas são notória e compreensivelmente menos graves do que as referidas antes, pelo que se compreende que não encontrem correspondência no Código Penal, o que só aconteceria se o legislador tivesse feito um integral decalcamento do regime da insolvência culposa do C.I.R.E e não uma selecção de condutas criminosas. Compreende-se também que as condutas do nº 3 do artigo 186º, que no Capítulo I classificamos como presunções relativas, não sejam relevantes para efeitos penais. Pois se a verificação daquelas presunções permite ao devedor provar que não interferiu com a criação ou agravamento da situação de insolvência, não faria sentido que as mesmas constituíssem crime. Falta-nos, por último, distinguir as consequências em que incorre o afectado pela qualificação da insolvência como culposa e a pena prevista para aquele que pratica o crime de insolvência dolosa. Vimos no Capítulo II que o legislador cominou verdadeiras sanções para as pessoas afectadas pela qualificação culposa da insolvência – inibição para administrar patrimónios de terceiros; inibição para o exercício do comércio, bem como a ocupação de certos cargos; a perda de créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente; condenação na indemnização aos credores do devedor no montante dos créditos não satisfeitos. Estas sanções, pela sua severidade, são verdadeiras penas civis, sendo que algumas podem ter uma duração, máxima, de dez anos. No crime de insolvência dolosa, a pena, como também referimos acima, pode ir até aos cinco anos de prisão ou aos 600 dias de multa. Naturalmente, não encontramos correspondência entre a pena penal e a pena civil, já que a pena criminal não pode ser comparada com a sanção falimentar, apontando-se apenas como semelhança o facto de a cominação legislativa para o afectado pela qualificação da insolvência como culposa ser, como a pena do foro criminal, balizada por um mínimo e um máximo.

            Aqui chegados podemos concluir que a figura da insolvência culposa prevista no C.I.R.E., encontra-se, em grande parte, espelhada no crime de insolvência dolosa. ESTRELA DE OLIVEIRA fala de uma “relação de interconexão” entra as normas penal e mercantil, que se verifica tanto em relação ao incidente como ao próprio processo de insolvência. Não há, no entanto, um reflexo total do instituto civil no instituto penal, sendo que a figura da insolvência culposa é forçosamente mais ampla, abarcando mais comportamentos do que o crime de insolvência dolosa”.

            Conclui, no que ora releva:

            “Da análise individual de cada uma das figuras, partimos para uma análise comparada e concluímos que estão intimamente ligadas, podendo dizer-se que o crime é um espelho do instituto civil, embora não reflicta toda a imagem. Na verdade, há actos susceptíveis de qualificar a insolvência como culposa que não encontram correspondência nas condutas criminosas previstas pelo preceito penal. Por outro lado, todos os actos que constituem crime são presunções de insolvência culposa no âmbito do C.I.R.E., ou melhor, todos os comportamentos tipificados no artigo 227º do Código Penal encontram guarida na definição geral de insolvência culposa acolhida no 186º nº 1 do C.I.R.E..

            Cremos, assim, que não é possível desligar uma figura da outra.

            Na realidade, se várias das condutas que integram as presunções do artigo 186º nº 2 constituem, quando praticadas com dolo, condutas criminosas, e se o juiz, por via do artigo 297º do C.I.R.E., está obrigado a dar conhecimento ao Ministério Público de factos que indiciem a prática dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal, sempre que a qualificação da insolvência como culposa acontecesse por via das alíneas a) a c) e h), o Ministério Público deveria ser informado para efeitos do exercício penal. Indo mais longe, podemos dizer, genericamente, que nos casos apontados – ou seja, nos casos em que a insolvência seja considerada culposa por verificação das alíneas do nº 2 do 186º referidas – e verificando-se que houve dolo por parte do agente, e não culpa grave, deveria ter início, quase de forma reflexa, um processo-crime, a culminar, ou não, com uma condenação.

            Por esta razão parece-nos que a afirmação de que “a qualificação da insolvência no processo de insolvência não releva para efeitos penais” deve ser tida com cautela já que, como patenteámos, a verificação de determinados factos que levam à qualificação da insolvência como culposa preenche, juntamente com a declaração judicial de insolvência, e, naturalmente, a intenção dolosa do agente, os pressupostos do crime. Por outro lado temos de ser peremptórios ao afirmar que independentemente de existir crime, poderá sempre haver uma insolvência culposa, na medida em que várias das condutas previstas no nº 2 do artigo 186º não encontram correspondência no crime de insolvência dolosa. Pelo exposto parece-nos difícil dizer que a qualificação da insolvência como culposa não releva para efeitos penais. Acresce que também não concordamos com a ideia, dominante na doutrina e na jurisprudência, de que a qualificação da insolvência como fortuita seja irrelevante para o processo penal. Na senda de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE pensamos que a declaração judicial de insolvência, não preencherá a condição objectiva de punibilidade do crime de insolvência dolosa quando a insolvência tenha sido criada por causas fortuitas, e, por isso mesmo, quando tenha sido qualificada como fortuita […]”.

            Face ao expendido, e nos termos do disposto no artigo 311º, n.º 2, al. a) e nº. 3 al. d) do Código de Processo Penal, urge rejeitar a acusação pública, julgando, consequentemente extinto, o procedimento criminal contra o arguido V... .

            Sem custas criminais.


***

Mais rejeito liminarmente os pedidos de indemnização civil deduzidos a fls. 526 e ss., desde logo, por impossibilidade superveniente da lide [cfr. artigo 71.º do Cód. Proc. Penal e artigo 277.º, al. e), do Cod. Proc. Civil, aqui aplicável ex vi do artigo 4.ºdo Cód. Proc. Penal].

Sem custas cíveis.

Registe e notifique.

Após trânsito, arquive.»

            Inconformado, o assistente A... interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1. Não é condição de punibilidade a existência de qualificação da insolvência como culposa, como refere a Mm. Juiz na douta decisão.
2. O facto de existir qualificação de insolvência como fortuita não impede que possa ser feita apreciação penal dos factos que possam ser descobertos nem impede que o agente possa vir a ser julgado por esses mesmos factos.
3. “As consequências da declaração de insolvência caracterizam-se pela patrimonialidade”, nada tendo a ver com os efeitos penais que podem ter por base os mesmos ou outros factos.
4. Os factos apurados em sede de incidente de qualificação não têm que ser os mesmos que se poderão apurar em sede de investigação penal, não podendo a segunda ficar limitada pelo que na primeira se possa descobrir.
5. A acusação contém todos os elementos que permitem à Mm. Juiz receber a acusação e dar despacho que determine o prosseguimento dos autos.
6. A decisão da Mm. Juiz viola o disposto no artigo 227º do CP e 311º do CPP.
7. Deverá ser assim a douta decisão revogada e ser substituída por uma que determine o recebimento da acusação e o prosseguimento dos autos, só assim se fazendo Justiça.

           

            Respondeu o MP, acompanhando a motivação do recorrente e concluindo no mesmo sentido.

            A M.ma Juiza que proferiu o despacho recorrido, sustentou-o.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu douto parecer no sentido de que:

- a decisão recorrida se mostra incorrecta, em termos de apreciação do seu mérito; acrescendo que

- a rejeição da acusação não se enquadra na previsão do artº 311º, 3, d), do CPP, pois que este «não dá poderes ao Juiz, de forma a que colida com o acusatório, pois, o Tribunal é sempre livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento de recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la por manifestamente infundada, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da existência de factos que sustentam a imputação efectuada».

                                              

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:


Analisadas as conclusões que formula o assistente/recorrente, logo se vislumbra que, através delas, são essencialmente duas as questões que coloca à nossa apreciação, ainda que interligadas: em primeiro lugar, sob uma perspectiva adjectiva, está em causa o preenchimento do conceito normativo-processual de «acusação manifestamente infundada»; sob uma perspectiva substantiva, de mérito, está em causa a não verificação de uma pretensa condição de punibilidade, v.g. a inexistência de qualificação da insolvência como culposa, no incidente respectivo, que correu por apenso ao processo onde foi declarada a insolvência.

            Da conjugação do nº 2, a), com o nº 3, d), ambos do artº 311º, do CPP, resulta inequivocamente que recebidos os autos em juízo, ao juiz presidente é lícito rejeitar a acusação, por manifestamente infundada se, entre o mais, os factos nela descritos não constituírem crime. Foi essa a argumentação invocada no despacho impugnado para rejeitar a acusação pública. Aliás, essa afirmação feita nesse despacho nem sequer é correcta, pois o que verdadeiramente foi aí afirmado não foi que os factos em si não constituem crime mas, antes, que não se verifica uma pretensa condição de punibilidade/procedibilidade.

            O que está invocado no despacho recorrido não é, assim, a circunstância de os factos não constituírem crime mas, antes, a de esse crime não ser punível pela inverificação de uma pretensa condição de punibilidade – a referida circunstância de a insolvência não ter sido qualificada de culposa.

           

            Como muito bem acentua o Ex.mo PGA no douto parecer que elaborou, se a lei permite que o juiz rejeite a acusação nos casos tipificados no seu nº 2 (o que se compreende pela necessidade de evitar levar a julgamento um acusado por factos que, manifestamente, não têm qualquer virtualidade criminal), não é menos certo que a matiz acusatória do nosso processo penal impede que o juiz, em despacho prévio ao julgamento, se intrometa na actividade jurisdicional do MP, procedendo a uma antecipação intolerável do julgamento do mérito da própria acusação.

           

            A conclusão a que atrás chegámos, resulta até da circunstância de a rejeição da acusação apenas poder ocorrer, quando ela seja “manifestamente” infundada. O uso de tal advérbio logo inculca a ideia de que só poderá ser rejeitada a acusação que se mostre elaborada de tal modo que, face à extensão das suas deficiências ou ao teor da sua descrição factual, torne evidente que não pode ela conduzir a uma condenação, se provada, seja porque não descreve elementos essenciais, necessários ao preenchimento da previsão típica objectiva ou subjectiva, seja porque os factos descritos, por si, não integram uma qualquer previsão típica.

            A constatação a fazer é a seguinte: os factos descritos na acusação constituem crime (a questão da pretensa não verificação da referida condição de procedibilidade não se prende com a verificação do crime mas com a sua punibilidade), razão pela qual não deveria ter sido proferido o despacho recorrido.

            Acresce que a norma do artº 9º, 2 do CC, o intérprete não pode considerar, na reconstituição do pensamento legislativo, qualquer circunstância «que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso»; por outro lado, na fixação do sentido e alcance da lei, presumirá ele que o legislador é inteligente e sensato e que, assim, «consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº 3, do referido artº 9º).

            Não pode o intérprete, de forma voluntarista, dar à lei um sentido que contrarie a sua própria redacção expressa ou, pelo menos, que não seja compatível com o seu texto.

           

            Da análise do texto do artº 227º, 1, do CP, ressalta a certeza do afirmado pelo recorrente, nas suas conclusões: a única condição de procedibilidade prevista na norma incriminatória é a ocorrência da situação de insolvência, em virtude da actividade intencional do devedor, e que essa situação seja reconhecida judicialmente. E essa declaração de insolvência foi alegada no texto acusatório (v. o seu artº 21º).

           

            Por outro lado, a norma do artº 185º do CIRE é expressa na afirmação de que a qualificação da insolvência, a que se procederá em apenso próprio, «não é vinculativa para efeitos de decisão de causas penais».

            Face a tal peremptória afirmação, operada por aquela norma, que restringe os efeitos da qualificação da insolvência às consequências previstas nesse código, afigura-se-nos insustentável a posição assumida no despacho recorrido, ainda que apoiada em doutrina que cita mas que, na nossa perspectiva, e do mesmo modo, se funda numa interpretação voluntarista e sem qualquer apoio na previsão legal feita em cada uma daquelas duas normas.

            A previsão típica criminal é expressa na afirmação de que a única condição de procedibilidade é a declaração judicial da insolvência; e o referido artº 185º, é claro na afirmação de que não é vinculativa a decisão do incidente para efeitos de prosseguimento do processo criminal. Não é necessário que a insolvência haja sido qualificada como culposa para que o procedimento criminal, relativamente ao crime em causa, possa ser iniciado e prosseguir; do mesmo modo, e ainda que haja ocorrido a qualificação da insolvência como culposa, nada impede que o MP, no final do inquérito, profira despacho de arquivamento. Finalmente, a qualificação da insolvência como fortuita não impede que essa acusação seja proferida.

            Face a tão claro texto das normas legais, afigura-se-nos abusiva qualquer interpretação que conclua em sentido contrário.

            O incidente de qualificação da insolvência e o processo criminal tem procedimentos e finalidades próprios e distintos, têm tempos e rituais característicos e diversos e a natureza perfunctória do incidente de qualificação da insolvência não é compaginável com as exigências de segurança indiciária requerida pelo inquérito e pela acusação com que pode culminar.

            Assim sendo, não deveria ter sido proferido despacho a rejeitar a acusação, que não é manifestamente infundada.

           

Termos em que se acorda nesta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que - inexistindo outra causa de rejeição da acusação - designe data para o julgamento.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 24 de Maio de 2017

(Jorge França – relator)

(Elisa Sales – adjunta)