Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
873/19.3T8CLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE MANUEL LOUREIRO
Descritores: I.P.A.T.H.
JUNTA MÉDICA
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
ESTUDO DO POSTO DE TRABALHO
PARECER TÉCNICO DO I.E.F.P.
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE CALDAS DA RAINHA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: INSTRUÇÕES GERAIS 5.ª/A, 6.ª/B, 8.ª, 13.ª/B DA TABELA NACIONAL DE INCAPACIDADES
ARTIGOS 21.º, N.º 1, 159.º, N.º 1, DA LAT/2009
ARTIGO 662.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: Mostrando-se controvertida a questão da I.P.A.T.H. do sinistrado de um acidente de trabalho deve ordenar-se a realização de exames ou pareceres complementares ou requisitar-se pareceres técnicos tidos por úteis, designadamente parecer técnico do I.E.F.P. sobre o posto de trabalho do sinistrado, seu conteúdo funcional e (in)capacidade para o sinistrado o desempenhar com as sequelas que apresenta, por forma a que os resultados desses exames ou pareceres sejam ponderados por ocasião da junta médica que se pronuncie sobre a incapacidade do sinistrado.
Decisão Texto Integral:






Acordam na 6.ª secção social do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório


Nos presentes autos de acidente de trabalho em que figura como sinistrado o autor, este foi submetido a exame médico singular no qual o perito médico considerou que o sinistrado padecia de uma IPP de 16,5%, com IPATH.
A tentativa de conciliação frustrou-se, designadamente, porque a seguradora considerou que “… o sinistrado está curado sem desvalorização …”, o sinistrado não concordou “… com o coeficiente de desvalorização … e com a data da alta …”, e a empregadora sustentou que estava integralmente transferida para a seguradora a responsabilidade infortunística emergente do acidente a que os autos se reportam.
O autor impulsionou a fase contenciosa do processo mediante apresentação da petição inicial que posteriormente corrigiu, sustentando, designadamente, estar afectado por IPP de 16,5%, com IPATH.
Na sequência da tramitação subsequente, foi aberto o apenso para fixação de incapacidade, sendo que os peritos intervenientes na junta médica consideraram, por unanimidade, que o sinistrado padecia de uma IPP de 7,5%, sem IPATH.
Na decisão desse apenso, o tribunal recorrido decidiu fixar em 7,5% a IPP de que o sinistrado padecia, tendo relegado para a sentença final a decisão da questão de saber se o sinistrado padecia ou não de IPATH.
O processo prosseguiu os seus regulares termos, acabando por ser proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte: “Pelo exposto:
1. Fixo ao A., AA, a incapacidade permanente parcial de 7,5% (5% x 1,5), desde 9/2/2019.
2. Condeno a R. “G..., S.A.” a pagar ao A.:
a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 477,12 (quatrocentos e setenta e sete Euros e doze cêntimos), desde 9/2/2019;
b) a quantia de € 23,74 (vinte e três Euros e setenta e quatro cêntimos) a título de diferença de indemnização por incapacidade temporária;
c) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;
3. Absolvo a R. G...,SA do mais peticionado pelo A..
4. Absolvo a R. “B..., Lda.” dos pedidos contra ela formulados pelo A.
5. Mais julgo improcedente, por não provado, o pedido de reembolso formulado pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.” e, em consequência, dele absolvo as RR., "G..., S.A." e “B..., Lda.”.”.
Não se conformando com o assim decidido, apelou o sinistrado, rematando as suas alegações com as conclusões seguidamente transcritas:

(…)

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II - Principais questões a decidir

Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013, de 26/6 – NCPC – aplicável “ex-vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho – CPT), integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
) se a decisão recorrida padece de algum vício que determine a sua anulação;
) se a matéria de facto se encontra incorrectamente julgada, devendo ser alterada;
) se o tribunal recorrido deveria ter decidido no sentido de que o sinistrado padece de IPATH.
*

III – Fundamentação

A) De facto

Factos provados

O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:

1. À data de 19 de Setembro de 2018, o A. era trabalhador da R. “B...,Lda”, com a categoria profissional de jardineiro – alínea A) dos factos assentes;
2. O A. auferia a retribuição anual de € 9.088,00 [(€ 580,00 x 14) + (€ 4,00 x 22 x 11 – subsídio de alimentação)] – alínea B) dos factos assentes;
3. A R. “B...,Lda” celebrou com a R. [actualmente] “G...,SA” um contrato de seguro de acidentes de trabalho mediante o qual transferiu para esta a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, no que ao A. diz respeito, através da apólice n.º ..., na modalidade de prémio variável, pela retribuição anual acima referida – alínea C) dos factos assentes e resposta ao ponto 6 dos temas de prova;
4. Na data referida em A) dos factos assentes, em ..., enquanto se encontrava ao serviço da R. “B...,Lda”, o A., ao subir uma árvore, caiu de cerca de 2,5 metros de altura – alínea D) dos factos assentes;
5. Em consequência directa e necessária do descrito em D) dos factos assentes, o A. sofreu fractura da coluna dorsal (D8) com fragmentação, afundamento e deformação cuneiforme com redução da altura somática em cerca de 80% – alínea E) dos factos assentes;
6. O A. esteve em situação de incapacidade temporária absoluta de 20/9/2018 a 8/2/219 (142 dias) – alínea F) dos factos assentes;
7. A R. “G...,SA” pagou ao A. a quantia de € 2.451,18, a título de indemnização por incapacidade temporária – alínea G) dos factos assentes;
8. O “I..., IP” pagou ao A. a quantia de € 513,99, correspondente a concessão provisória de subsídio de doença no período de 12/2/2019 a 21/4/2019 – alínea H) dos factos assentes;
9. O A. nasceu em .../.../1960 - alínea I) dos factos assentes;
Mais ficou provado:
10. As sequelas que o A. apresenta são causa de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 7,5% - Apenso A;
11. Em consequência directa e necessária do descrito em D) dos factos assentes, o A. apresenta deformação do corpo vertebral de D8, com tradução apenas radiológica, enquadrável no Capítulo I, 1.1.2.a) da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.”.

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B) De Direito


Primeira questão: se a decisão recorrida padece de algum vício que determine a sua anulação.


Entre as questões que o tribunal recorrido abordou e decidiu encontra-se a de saber se o sinistrado estava ou não afectado de IPATH, concluindo pela negativa.
Trata-se de uma questão sobre a qual se divisa controvérsia desde o início deste processo, pois que: i) a ré conferiu alta ao autor, curado sem desvalorização (documento nº 5 junto com a participação do acidente), o que o autor não aceitou (participação de acidente de trabalho); ii) o perito médico singular opinou no sentido de que o sinistrado padecia de IPATH, o que a seguradora não aceitou na tentativa de conciliação; iii) a junta médica decidiu de forma unânime no sentido de que não ocorria IPATH, o que o sinistrado não aceita.
Logo por aqui se pode constatar que a questão da atribuição ou não da IPTAH mostra-se controvertida, existindo dúvidas fundadas quanto à sua existência ou não existência.
Ora, no que à questão da IPATH respeita, a resposta da junta médica limitou-se a “Não: permite o desempenho da sua actividade com as limitações inerentes à “ipp” proposta.”, sem especificação das razões concretas que levaram os peritos nela intervenientes a opinar da forma como o fizeram, com a consequente violação do estatuído na instrução geral nº 8 da Tabela Nacional de Incapacidades da qual resulta que a junta médica deve fundamentar devidamente as suas respostas, de modo explícito e claro por forma a que o julgador possa captar totalmente as razões e o processo lógico que conduziu à resposta.
Como se escreveu no acórdão desta Relação de 9/1/2017, proferido no processo 720/14.2TTCBR.C1, de que foi relator o aqui segundo adjunto, “De acordo com o nº 8 da Tabela Nacional de Incapacidades (Instruções Gerais), aprovada pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, a junta médica deve fundamentar devidamente as suas respostas, de modo explícito e claro por forma a que o julgador possa de todo captar as razões e o processo lógico que conduziu à resposta.
Essa insuficiência de fundamentação do laudo da junta médica provoca igual insuficiência da decisão de facto que naquele se alicerçou e que suporta a sentença proferida relativamente ao grau de incapacidade, com a consequente necessidade do tribunal recorrido ampliar a sua fundamentação relativamente a esse facto essencial nos termos do art. 662º/2/c do CPC.
Por outro lado, findo o exame por junta médica e juntos os exames e/ou pareceres complementares e técnicos que considere necessários (art. 139º/5 do CPT), o juiz decide a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização do sinistrado (art. 140º/1 do CPT).
Ora, um dos elementos que a junta médica deverá necessariamente ponderar ao fixar a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização reporta-se ao conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e às condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado.
Assim o impõem, por exemplo e entre outros dispositivos que não interessa citar exaustivamente, as instruções gerais 5º/a, 6º/b, 13º/b da Tabela Nacional de Incapacidades (DL 352/07, de 23/10), bem como o art. 21º/1 da LAT/09.
De tudo flui, pois, que com vista à atribuição ou não da IPATH, importava, antes de mais, saber quais as tarefas concretas que fazem parte do conteúdo funcional do aqui autor, para daí se poder extrair a conclusão sobre se as sequelas apresentadas são susceptíveis de incapacitar absolutamente o sinistrado para o desempenho do seu trabalho habitual.
O juiz deve controlar, designadamente, se o exame por junta médica respeitou as instruções (gerais e específicas) enunciadas na Tabela Nacional de Incapacidades (DL 352/07, de 23/10).
A significar, com relevo para o caso em apreço, que o juiz deve garantir, por exemplo, que o exame por junta médica e o laudo pericial emitido pelos peritos respeitaram a exigência legal de ter sido determinado e ponderado o real conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e as condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado.

No caso em apreço não é possível garantir que foi satisfeita a exigência enunciada no antecedente parágrafo, pois que tanto quanto resulta do auto de junta médica não resulta explícito que aquele conteúdo e condições foram realmente ponderados, tanto mais que nenhuma referência concreta lhes é feita naquele auto.

Acresce que dos autos não consta, como já não constava à data da realização da junta médica, qualquer estudo fundamentado e imparcial sobre o conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e as condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado, sendo que “ Quando for considerado necessário o esclarecimento de dúvidas sobre as incapacidades referidas no artigo 154.º[1] ou sobre o emprego do trabalhador incapacitado em funções compatíveis com o seu estado, pode ser solicitado o parecer de peritos do serviço público competente na área do emprego e formação profissional.” – art. 159º/1 da LAT/09.
Assim sendo, em face do teor do laudo da junta médica e na ausência de qualquer estudo fundamentado e imparcial sobre o conteúdo funcional do concreto posto de trabalho ocupado pelo sinistrado e sobre as condições em que esse conteúdo funcional deve ser desempenhado, entendemos que o processo não contém todos os elementos necessários a uma criteriosa decisão sobre a questão da incapacidade, com a consequente deficiência da decisão fáctica que determina a anulação da decisão recorrida (art. 662º/2/c do NCPC).

Como se escreveu no acórdão desta Relação de 6/12/2019, proferido no processo 1136/17.4T8LRA.C1, “Entendemos que para se atribuir uma IPATH é necessário saber quais as funções concretas que o sinistrado desempenhava de forma a poder estabelecer-se um nexo que permita concluir que, com as lesões apresentadas, o sinistrado se encontra absolutamente incapacitado para desempenhar as funções inerentes à sua actividade ou profissão.

É que a incapacidade para o exercício das funções inerentes às tarefas típicas de condutor de empilhador são as que decorrem da sua incapacidade parcial. Poderá exercê-las com as dificuldades resultantes e inerentes às disfuncionalidades que é portador.

Por isso, afigura-se-nos que havia a necessidade de apurar quais são concretamente essas funções através do estudo ou análise do posto de trabalho, aliás de acordo com a alínea b) da instrução geral nº 13 da TNI, na medida em que saber, por exemplo, a disposição, o funcionamento e a função dos pedais num concreto empilhador se revela necessário para aferir sobre a dificuldade ou a absoluta incapacidade para o desempenho do trabalho habitual do sinistrado.

Com efeito, haverá designadamente que saber se o pé direito é só utilizado para acelerar ou/e para travar, dado que a pressão do pé é diferente nas duas situações ou noutras que sejam necessárias na condução e utilização do empilhador.

Em face do teor do laudo da junta médica, entendemos que o processo não contém todos os elementos necessários a uma criteriosa decisão sobre a questão da incapacidade.

Por isso, a apontada insuficiência de fundamentação do laudo da junta médica leva a decisão de facto que suporta a sentença proferida relativamente ao grau de incapacidade se revele insuficiente, o que acarreta ou determina a anulação da sentença nos termos do art. 662º nº 2 alínea c) do CPC” (negrito nosso).” – a este respeito e em sentidos idênticos, podem consultar-se os acórdãos desta Relação de 27/9/2019, no processo 1625/17.0T8CLD.C1, e de 2/4/2020, no processo 1873/15.8T8CTB.2.C1, relatados pela qui primeira adjunta.
Em face do exposto, deve anular-se a decisão recorrida, por forma a que: i) seja ordenada a realização de exames ou pareceres complementares ou requisitar-se pareceres técnicos tidos por úteis, designadamente parecer técnico do IEFP sobre o posto de trabalho do autor, seu conteúdo funcional e (in)capacidade para o autor o desempenhar com as sequelas que apresenta; ii) de seguida, se ordene a repetição da junta médica em que deve dar-se resposta fundamentada sobre a questão da IPATH do sinistrado; iii) finalmente, seja proferida nova sentença em que se decida fundamentadamente a questão da IPATH do sinistrado.

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Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na apelação.
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IV - Decisão

Acordam os juízes que integram esta sexta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra no sentido de julgar procedente a apelação, anulando-se a decisão recorrida, por forma a que: i) seja ordenada a realização de exames ou pareceres complementares ou requisitar-se pareceres técnicos tidos por úteis, designadamente parecer técnico do IEFP sobre o posto de trabalho do autor, seu conteúdo funcional e (in)capacidade para o autor o desempenhar com as sequelas que apresenta; ii) de seguida, se ordene a repetição da junta médica em que deve dar-se resposta fundamentada sobre a questão da IPATH do sinistrado; iii) finalmente, seja proferida nova sentença em que se decida fundamentadamente a questão da IPATH do sinistrado.
Sem custas.
Coimbra, 15/2/2022
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(Jorge Manuel Loureiro)

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(Paula Maria Roberto)

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(Joaquim José Felizardo Paiva)


[1] Entre elas inclui-se a incapacidade permanente para o trabalho habitual.