Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
679/08.5TBALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCESSIONÁRIO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 12º/1 DA LEI 24/2007 DE 18/07
Sumário: 1- A responsabilidade da concessionária de uma auto-estrada pelos danos decorrentes de acidente causado pela presença, na mesma, de um animal, é de cariz extracontratual, fundando-se no disposto no Artº 483º/1 do CC.
2- Cabe ao lesado a prova dos factos constitutivos desta fonte de responsabilidade, com excepção da culpa que, nos termos do disposto no Artº 12º/1 da Lei 24/2007 de 18/07, se aplicável, se presume.

3- Verificado o circunstancialismo aqui enunciado, cabe à concessionária o ónus de provar que cumpriu com as suas obrigações de segurança, o mesmo é dizer, que não actuou com culpa.

4- A aplicação do disposto no nº 1 do Artº 12º daquela lei, tem como pressuposto a confirmação das causas do acidente por autoridade policial competente.

5- Não fica afastada a aplicabilidade do disposto no Artº 12º/2 daquela lei se a entidade policial atesta que a presença de animal na auto-estrada foi verificada pelo operador de assistência e vigilância da concessionária e que foi este vigilante que o retirou do local.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

 A...– COMPANHIA DE SEGUROS, SA., R. na acção, sedeada na ..., interpôs recurso da sentença, peticionando a respectiva revogação com consequente absolvição do pedido.

   Formula as seguintes conclusões, que se resumem:

   1 – A Lei 24/2007 de 17/07 determina no nº 2 do seu Artº 12º que, para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente.

   2 – Tal lei, todavia, é inaplicável aos autos, pois falece, de todo, a prova de um dos requisitos de aplicação, a saber, a verificação obrigatória, no local, pela entidade policial competente, da confirmação das causas do acidente.

   3 – Com efeito, o Tribunal deu como provado que nesse dia a Brigada de Trânsito da GNR que procedeu ao patrulhamento da A25 também não detectou a presença de qualquer animal nas imediações do local do embate, sendo habitual, quando assim sucede, que alerte a central de comunicações da R..

   4 – Sucede que uma coisa é a entidade policial tomar conta de uma ocorrência, consistente num acidente de viação, outra, bem diferente, é a confirmação obrigatória, no local, das causas do acidente.

   5 – Do auto policial de ocorrência em causa apenas consta a versão que o condutor do veículo deu ao agente participante, o qual, nem nesse auto, nem em julgamento, fez constar ou afirmou ter confirmado a existência de animais no local.

   6 – No dito auto policial nem existe o campo referente a vestígios, mas um simples aditamento á participação em que o agente declara que o operador de vigilância declarou ter verificado a existência de um animal de raça canina.

   7 – Ora, além de tal facto nem ter sido dado como provado, por nem sequer ter sido elencado na base instrutória, a verdade é que ele não cumpre um dos pressupostos de que o nº 2 do Artº 12º da citada lei faz depender a aplicação do regime nele previsto: a confirmação obrigatória pela entidade policial competente, no local, das causas do acidente.

   8 – Assim, ao decidir como decidiu, violou o Tribunal o regime constante do nº 2 do Artº 12º da Lei 24/07, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que absolva as RR. do pedido.

   9 – Mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, sempre se dirá que, a recair sobre a B...o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, nos termos do disposto no nº 1 do Artº 12º da citada lei, a prova produzida foi clara no sentido de que esse ónus foi cumprido.

   10 – Não operando o mecanismo do nº 1 da Lei 24/07, e sendo certo que o ónus da prova de todos os factos pressupostos da efectivação da responsabilidade da Recrte e sua segurada e do consequente dever de indemnizar cabiam ao Recrdº, e que este o não fez, a responsabilidade da segurada da Recrte. pela conservação das vias que explora para com os utentes que as venham a utilizar, não é contratual, mas sim extracontratual conforme jurisprudência e doutrina pacíficas.

   11 – Designadamente não provou o Recrdº qual o defeito concreto da instalação ou qual a violação do dever de diligência e conservação da B...enquanto concessionária que terá permitido o alegado atravessamento da via pelo dito canídeo, assim como não provou o ora Recrdº que a rede que ali se encontrava colocada estivesse esburacada ou porque não estivesse bem implementada, em termos de obviar a que através de si passassem facilmente animais.

   12 – Ao invés a ora Recrte. e a sua segurada provaram os factos 17 a 22 e 24.

   13 – É pacífico que o dever de segurança que recai sobre a concessionária deve ser entendido em termos de dever médio, não implicando a característica da omnipresença.

   14 – O Artº 12º da Lei 24/07 de 17/07 em parte alguma alude a uma presunção de culpa que impenda sobre a concessionária, mas tão só se reporta ao ónus da prova do cumprimento de obrigações de segurança rodoviária, designadamente em matéria de acidente causado por atravessamento de animais.

   15 – Termos em que a sentença deve ser revogada, porque ilegal, por infracção ao disposto nos Artº 12º, 13º, 483º e 487º do CC, e ainda ao disposto nas Bases, VIII, XXX4-a), XLV e LXXIII da concessão aprovada pelo DL 142ª72001 de 24/04, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que absolva as RR. e ora Recrtes. do pedido.

   16 – A B...não violou os normativos das Bases XXVII e XXX4-a) do referido DL.

   17 – Assim, ao decidir como decidiu, a entender-se aplicável aos autos a Lei nº 24/07, violou o Tribunal o regime constante do nº 1-b) do seu Artº 12º, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por uma outra que absolva as RR. do pedido.

  B..., SA., R. na acção, sedeada na ..., interpôs recurso da mesma sentença.

   Pede a respectiva revogação, com reapreciação da matéria de facto e consequente absolvição do pedido.

   Assenta o seu recurso nas seguintes conclusões que se resumem.

   1 – Falha a douta sentença do Tribunal a quo na apreciação da matéria de facto, o que, aliás, é visível da resposta que deu aos Artº. 9º, 11º, 12º, 13º, 15º e 18º da base instrutória, dado ser manifesto que os cinco primeiros deviam ter sido considerados como não provados (e foram, pelo contrário, considerados genericamente provados) e o último como provado (e também não o foi na sua totalidade como se impunha).

   2 – A douta sentença violou o disposto no Artº 342º/1 do CC.

   3 – Á data dos factos relatados pelo A., estava em vigor a Lei nº 24/2007 de 18/07, lei que veio de uma vez por todas clarificar que os acidentes ocorridos em auto-estrada devem ser analisados e enquadrados (como já sucedia, ou, pelo menos, devia suceder, antes dela) no âmbito da responsabilidade extracontratual – é, de resto, essa a conclusão que se pode/deve tirar do disposto na Base LXIII do DL nº 142-A/2001 de 24/04.

   4 – E, nessa medida, valia neste âmbito o princípio basilar da responsabilidade civil constante do Artº 483º/1 do CC, bem como o disposto no Artº 487º/1 do mesmo Código, de forma que os acidentes em auto-estrada não eram (não deviam ser) tratados de forma diferente dos outros acidentes de viação ocorridos em outras vias.

   5 – Com o advento da Lei fez-se incidir sobre as concessionárias de auto-estradas uma presunção (Artº 12º/1), assim se criando um regime especial e inovador para este tipo de acidentes, embora filiado em responsabilidade extracontratual.

   6 – Resulta claro que a douta sentença se apoiou nesta lei e na presunção contida naquele citado artigo para condenar a aqui apelante. Todavia, fê-lo mal, uma vez que parece ter esquecido que aquele Artº 12º é composto por 3 números.

   7 – A douta sentença apenas podia ter-se socorrido da dita presunção (nº 1 do Artº 12º) se a autoridade policial tivesse (obrigatoriamente) verificado no local as causas do acidente (nº 2), acrescentando-se que só estava esta autoridade dispensada de o fazer em caso de força maior (nº 3) – registe-se que o tempo estava bom, e que não consta do documento elaborado pela autoridade policial que esta se tenha deslocado ao local ou, principalmente, que tenha verificado as causas do acidente no local em que este terá ocorrido (a autoridade policial quedou-se a cerca de 12Km do local do sinistro).

   8 – Assim, está irremediavelmente afastada a hipótese de aplicação da presunção contida no Artº 12º/1 da Lei 24/2007 de 18/07, devendo, por isso, e tal como resulta expressa e inequivocamente da Base LXXIII do DL 142-A/2001 de 24/04, ser este sinistro enquadrado no único âmbito possível da responsabilidade extracontratual.

   9 – Desta sorte, incumbia ao A., aqui apelado, fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito e, bem assim, a prova da eventual culpa da R..

   10 – É patente que o A. não logrou provar (nem sequer alegou, aliás) nada disso, não cumpriu, portanto, o disposto no Artº 342º/1 e 487º/1 do CC, de modo que a R. apelante sempre teria que ser absolvida.

   11 – Mesmo que se entenda que a Lei 24/2007 de 18/07 (e a presunção do Artº 12º/1) é aplicável a esta situação, nem assim, salvo o devido respeito, decidiu bem a douta sentença.

   12 – É que a presunção pode ser afastada por prova indiciária e a formulação do Artº 12º faz apenas recair sobre as concessionárias o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança.

   13 – A apelante fez bem mais do que a prova indiciária, como, aliás, se conclui dos factos provados correspondentes aos quesitos 19º a 26º da base instrutória, mas também, e pelas razões que constam da primeira parte destas alegações, do Artº 18º da mesma base.

   14 – A douta sentença violou, salvo o devido respeito, o Artº 12º/1 da Lei 24/2007 de 18/07, os Artº 342º, 483º e 487 do CC e a Base LXXIII do DL 142A/2001 de 24/04, devendo, por isso, ser revogada em conformidade com o expendido nestas linhas.

  C..., A. na acção, residente na ..., contra-alegou, pugnando, em ambos os casos, pela manutenção da sentença.

   Afirmou, em síntese, o seguinte:

   A) Quanto ao primeiro recurso:

   1 – O requerimento de interposição de recurso de apelação devia ter sido acompanhado de alegações e conclusões, sob pena de indeferimento, tal como expressamente se estatui no Artº 685ºC/2-b) do CPC.

   2 – Contudo, a Recrte. A... interpôs recurso de apelação por requerimento apresentado a juízo no dia 30/07/2009, mas não juntou alegações, nem conclusões, em manifesto contrário ao regime imperativo previsto nas normas dos Artº 684ºB/2 e 685ºA/1 do CPC, então em vigor e aplicáveis á acção em curso.

   3 – Com tal acto, a Recrte, esgotou o direito a interpor recurso de apelação da douta sentença.

   4 – Tendo vindo juntar as alegações e conclusões do recurso apenas em 11/09/2009, mediante novo requerimento de recurso, tais alegações são manifestamente extemporâneas, pelo que o recurso deve ser liminarmente indeferido.

   5 – A douta sentença encontra-se devidamente fundamentada de facto e de direito, não merecendo crítica.

   6 – Cabia á segurada da Recrte. a vedação da auto-estrada concessionada em toda a sua extensão, assim como a manutenção e conservação da via onde ocorreu o sinistro e o cumprimento do dever de vigilância das condições de circulação.

   7 – Ora, a auto-estrada não era vedada na largura dos seus acessos e permitia a entrada livre de pessoas e animais vindos dos caminhos adjacentes, a presença do canídeo na via de trânsito constituiu objectivamente uma violação grave das condições de segurança da auto-estrada, esta constitui bem imóvel á guarda, vigilância e cuidado da segurada da Recrte., e o sinistro deveu-se ao embate da viatura do A. com um canídeo que invadiu a faixa de rodagem, atravessando-se à frente da viatura.

   8 – A culpa da segurada da Recrte. presume-se por força do disposto no Artº 493º/1 do CC.

   9 – Mais decorre tal presunção da inversão do ónus da prova no cumprimento, em concreto, das condições de segurança, nos termos do Artº 12º/1 da Lei 24/2007, que as RR. não conseguiram afastar.

   10 – Deve-se ter por cumprida a exigência da norma do Artº 12º/2 da Lei 24/2007 quando, como foi o caso, a autoridade policial competente se deslocou ao local de imobilização da viatura sinistrada, recolheu elementos de prova, tomou conta da ocorrência e recebeu do funcionário da concessionária que prestou assistência ao sinistro, a informação da presença de um cão atropelado no local indicado como sendo o do embate, que tal funcionário removeu do local por iniciativa sua antes de comunicar com aquela autoridade.

   11 – Constituiria um claro abuso de direito aceitar a falta de cumprimento desta norma, quando invocada pela Recrte., se foi o próprio funcionário da sua segurada que, removendo o cão atropelado, do local, impossibilitou que a autoridade policial pudesse confirmar as declarações que o mesmo prestou na data do sinistro.

   B) Quanto ao segundo recurso:

   1 – Para além do acima exposto, também que a resposta dada pelo Tribunal recorrido á matéria dos quesitos 9º, 11º a 13º, 15º e 18º da base instrutória foi a correcta e a que se impunha pela prova produzida, encontrando-se devidamente fundamentada e não merecendo qualquer alteração.


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   O processo resume-se pela forma seguinte.

   C... veio intentar acção declarativa de condenação sob a forma sumária contra B... SA..

   Pede a sua condenação no pagamento da quantia de 9271,43€, a título de danos patrimoniais, e 500,00€ por danos não patrimoniais, tudo acrescido dos juros de mora à taxa legal para juros civis, a contar da citação até integral pagamento.

   Alegou, em síntese, que no dia 07 de Maio de 2008 circulava com a sua uma viatura na A25, no sentido Viseu/Aveiro, quando embateu num cão que se atravessou na via; que dois dos acessos à mesma não estavam vedados; como consequência desse embate a viatura sofreu diversos danos e o autor diversos prejuízos e que a R., concessionária, não adoptou as medidas necessárias à vedação, o que permitiu o acesso do cão.

   A Ré veio contestar, concluindo pela improcedência.

   Alegou, em resumo, que impugna a matéria vertida na petição no que se refere à forma como ocorreu o acidente; que aquela via é uma auto-estrada sem portagens; que os acessos à A25 não podem ser vedados em toda a sua

largura como pretende o Autor; que as vedações são aprovadas pelo Estado Português; que não foi detectada qualquer anomalia nas vedações que foram verificadas na altura, sendo vistoriadas periodicamente; que procede a patrulhamentos constantes de A25 no que é coadjuvada pela GNR, sendo que no dia em apreço não foi detectado qualquer cão; que transferiu a sua responsabilidade civil decorrente de sinistros desta natureza para a A... SA – Sucursal em Portugal, com uma franquia de 5000,00€.

   A R. pediu a intervenção principal provocada desta seguradora, intervenção essa que foi admitida.

   A... SA veio impugnar a matéria vertida na petição inicial, alegando ainda que a responsabilidade da B...é extracontratual.

   Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo vindo a julgar-se a acção parcialmente procedente, com condenação das RR. no pagamento, a 1ª, da franquia de 5.000,00€ e juros, e ambas, solidariamente, no pagamento da quantia de 4.271,43€ e juros.


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  Das conclusões supra exaradas, extraem-se as seguintes questões a decidir:

   1 – O Artº 12º da Lei 24/07 de 18/07 tem como pressuposto de aplicação, a confirmação, pela autoridade policial, da causa do acidente?

   2 – A responsabilidade da R. é extracontratual? Neste caso, funda-se no disposto no Artº 483º/1 do CC, ou no Artº 493º/1 do CC?

   3 - Da prova produzida, resulta ter a Ré cumprido com as suas obrigações de segurança, pelo que não actuou com culpa?

   4 – Existe erro de julgamento da matéria de facto?

   5 – O recurso apresentado pela A... é inadmissível?

   6 – Existe abuso de direito na invocação da ausência de pressupostos de aplicação do Artº 12º, decorrente do facto de a entidade policial não poder confirmar a presença do animal em virtude de um funcionário da R. o ter removido do local?


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   Por razões de lógica processual, precede na análise, a questão enunciada em 5º lugar.

   Nas suas contra-alegações, o Recrdº invocou a inadmissibilidade do recurso apresentado pela A..., assente na circunstância de a mesma ter apresentado requerimento com vista à interposição de recurso em 30/07/2009, desacompanhado de alegações e, só mais tarde, em 11/09/2009, ter vindo apresentar esta peça.

   A Recrdª, notificada para o efeito, não se pronunciou sobre esta questão.

   Cumpre decidir.

   Conforme decorre do que dispõe o Artº 684ºB/2 do CPC, o requerimento no qual se interpõe o recurso, deve incluir a alegação do recorrente.

   Esta é uma solução introduzida pela reforma processual de 2007, em vigor à data de propositura da presente acção.

   Da análise dos autos resulta que a Recrte. A... interpôs, logo após a prolacção da sentença, recurso de apelação, sem que tivesse junto as alegações. No dia seguinte a este acto, tendo-se apercebido do lapso, veio invocá-lo, requerendo que o mesmo lhe fosse relevado, atendendo a que estava em tempo para apresentar a sua motivação, o que se propunha. E, efectivamente, em 11/09/2009, veio motivar o recurso.

   Sobre este circunstancialismo incidiu despacho, proferido em 28/10/2009, que admitiu o recurso, fundando-se no facto de a motivação ter sido apresentada no decurso do prazo para recorrer.

   Ora, por um lado, o Artº 685ºC/5 do CPC dispõe que a decisão que admita o recurso não pode ser impugnada pelas partes. Por outro, tendo a Recrte. apresentado a motivação dentro do prazo de que dispunha para recorrer, não deve ver postergado o seu direito se, como é caso dos autos, actuou em virtude de lapso do qual atempadamente deu conhecimento e requereu fosse relevado.

   Deve, pois, manter-se o despacho que admitiu o recurso.


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   Podemos, deste modo, e também por razões de lógica processual, partir para a análise da questão que enunciámos em 4º lugar, ou seja, o erro na apreciação da matéria de facto.

   Esta é uma questão suscitada pela Recrte. LUSOSCUT, que no cumprimento do ónus decorrente do disposto no Artº 685-B/1 do CPC, indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão.

   Trata-se de avaliar as respostas dadas aos quesitos 9º, 11º, 12º, 13º, 15º e 18º, que pretende ser de não provados, os primeiros, e provado o último.

   Funda-se, para tanto, na circunstância de, quanto ao quesito 15º, o mesmo ter sido considerado provado com base num argumento de bom senso, quanto aos quesitos 9º, 11º a 13º, os mesmos não resultarem dos depoimentos das testemunhas D..., E...ou F... , que não presenciaram o acidente e se limitarem a extrair conclusões sem interesse e, por último, quanto ao quesito 18º, funda-se na circunstância de o depoimento de G... ter sido ignorado.

   Contrapôs o Recrdº com a manutenção da decisão, invocando os depoimentos de D..., H... , I... eF....

   Nos quesitos em referência indagava-se:

   9º - No dia 7/05/2008, pelas 22h10m, o A. circulava pela A25 no sentido Viseu-Aveiro, ao volante do veículo de matrícula DX...?

   11º - Quando o DX... se encontrava junto ao Km 26,5 da A25 surgiu um animal canídeo que, vindo da zona do separador central, invadiu a faixa de rodagem atravessando-se á frente daquele veículo sem possibilidade de qualquer manobra de desvio?

   12º - Em consequência do descrito em 11º, o DX embateu com a respectiva parte frontal naquele animal?

   13º - Daquele embate resultou para o DX:

a) avaria dos sistemas eléctrico e electrónico,

b) pára-choques frontal partido,

c) danificação do intercooler que deixou de funcionar,

d) farol de nevoeiro frontal do lado esquerdo partido,

e) quebra dos suportes internos dos faróis frontais,

f) radiador partido,

g) protecções inferiores do veículo partidas,

h) empeno da direcção,

i) empeno da jante frontal do lado esquerdo do veículo,

j) ruptura de depósitos e fuga de líquidos de refrigeração e lubrificação?

   15º - Por causa do descrito em 11º e 13º, o A. viu atrasado o seu regresso a casa, perdeu tempo em contactos com a R. e em deslocação á oficina reparadora para levantamento do DX?

   18º - Aquando do descrito em 11º, as vedações de ambos os sentidos de trânsito da A25, nas imediações do KM 26,5, estavam em bom estado de conservação?

   Os quesitos 9º, 12º, 13º e 15º obtiveram resposta de provado. O quesito 11º mereceu resposta de provado que quando o DX se encontrava junto ao Km 26,5 da A25, surgiu um animal canídeo, que invadiu a faixa de rodagem, atravessando-se à frente daquele veículo. E ao quesito 18º, respondeu-se provado que aquando do descrito em 11, a vedação no sentido Viseu-Aveiro, e no espaço de cerca de 400m para oeste e cerca de 400m para este, a contar do Km 26,5 estava em bom estado de conservação.

   Ouvidos os depoimentos referidos por ambas as partes, constatamos que:

a) no que concerne à testemunha D..., irmão do A., a mesma recebeu deste um telefonema à data do acidente, pelo que o veio buscar ao local, visto o carro não circular, conhece bem os acessos em causa nos autos – da zona industrial de Albergaria à A25, a saída para a A1, os sentidos inversos que dão acesso ao Sobreiro –, bem como as zonas circundantes, que são de mato. Declarou que não há controle humano no acesso á A25, nem barreiras nas portas respectivas, pensando, contudo, que na lateral, as barreiras existem, viu os sinais do impacto no pára-choques, tendo-se apercebido que o radiador estava afectado e que o veículo não podia circular; o irmão disse-lhe que lhe apareceu um cão pela frente; constatou o aparecimento da carrinha da concessionária e que quem a conduzia foi fazer a verificação, tendo-lhes referido que na altura estava lá um animal;

b) relativamente à testemunha E..., agente da GNR e autor do auto de ocorrência de trânsito junto a fls. 16 e do aditamento que se lhe segue, a mesma confirmou o respectivo teor; recorda-se que o acidente aconteceu durante a noite e que, na conversa que manteve com o A., este lhe explicou que embateu num cão e que tinha danificado o carro; não verificou os danos, mas recorda-se que eles existiam na frente do veículo; sobre os acessos á A25, confirmou que na lateral existe terreno com mato, vedação, mas que na entrada do nó pela estrada nacional não existe qualquer vedação, o mesmo ocorrendo na largura da faixa de rodagem, onde não existe nada que impeça a entrada de um cão; desde a A25 até á EN16 há vedação apenas parcial, na lateral, pois uma parte, que não conseguiu concretizar em comprimento, não está vedada; também confirmou a inexistência de barreiras á largura da porta de acesso; recorda-se de a viatura ficar parada no sentido Viseu-Aveiro;

c) a testemunha F..., oficial de assistência e vigilância, declarou que foi chamado pela central para retirar um cão da via, o que fez sensivelmente ao Km 25/26; apercebeu-se que o cão tinha morrido há pouco tempo; conhece o acesso da zona industrial de Albergaria á A25, no qual não há vigilância, nem barreiras físicas na largura do mesmo, o que também ocorre em sentido inverso, esclareceu que a maioria dos animais, entra pelo nó das proximidades – o do Sobreiro; constatou que a viatura acidentada estava parada no sentido Viseu-Aveiro e apresentava danos na frente. Mais declarou que verificou as vedações existentes na lateral da faixa de rodagem do veículo, numa extensão de 400m para cada lado, e que estava tudo ok.

d) A testemunha G..., chefe do centro de assistência e manutenção, sabe que o acidente aconteceu por causa de um animal, declarou que foi efectuada a verificação da vedação no nó de Albergaria e no da A1, e que a mesma estava “OK” numa extensão de 5KM; esclareceu que nestas situações, de ocorrência de acidente, há uma primeira verificação (correspondente à realizada pela testemunha anterior) e, após, outra, mais exaustiva; verificou o registo na folha de trabalho e não houve notícia de qualquer anomalia nas vedações; o seu conhecimento advém-lhe dos relatórios elaborados pelo pessoal que chefia.

e) A testemunha H..., que trabalha na M..., confrontado com os documentos nº 4, 9 e 10, esclareceu que os mesmos foram elaborados pelo serviço L... de Aveiro, reportam-se à viatura do A., recordando-se que a mesma entrou de reboque e que o cliente informou que sofrera acidente na auto-estrada; confirmou a veracidade dos documentos e que um embate na frente do veículo era compatível com os trabalhos efectuados e com as peças aplicadas, manifestando algumas dúvidas apenas quanto à parte eléctrica, por não possuir o relatório, mas não excluiu a hipótese de compatibilidade;

f) A testemunha I...confirmou a ida do A., algumas vezes, á oficina, por causa da reparação do veículo; recorda-se que o carro entrou de reboque e que apenas foi entregue a 30/05, sendo que até esta data esteve ali para reparação.

   Para além dos depoimentos, cumpre assinalar que os autos contém ainda alguns documentos de relevo, a saber, o auto de ocorrência do qual consta a data e a hora do sinistro, bem como a localização e a identificação da viatura, seguido de um aditamento no qual consta que “foi verificado pelo operador de assistência e vigilância da concessionária da auto estrada J..., a presença do animal de raça canina atropelado na A25, Km 26,5 e que foi este vigilante que o retirou do local”; um conjunto de documentos da autoria de L..., SA., contendo orçamento para peças e mão-de-obra e as facturas respectivas; cópia do certificado de matrícula; e, por último, uma missiva dirigida pelo A. à empresa J... e as respostas (2) desta acerca da assunção de responsabilidade que aquele reclamava.

   Aqui chegados, cumpre desde já efectuar uma primeira observação – é que não só os factos presencialmente verificados, podem provar-se. A prova adquire-se através de um conjunto de meios, incluindo depoimentos indirectos e ilações. Mister é que no seu conjunto, possa convencer.

   Do conjunto de provas que expusemos, não vemos como possam suscitar-se dúvidas acerca das respostas do Tribunal recorrido á matéria dos quesitos 9º e 11º a 15º.

   Nenhuma censura nos merecem essas respostas, mostrando-se cabalmente avaliadas as provas. E, se é certo que na decisão recorrida consta, como fundamento para a resposta ao quesito 15º, o senso comum, também é certo que dos depoimentos acima resumidos, resulta claro que a resposta não poderia ser outra. Efectivamente, tendo ficado parado na A25 á espera quer de transporte para si, quer do reboque para o veículo, é óbvio que o A, viu atrasado o seu regresso a casa; por outro lado, tendo-se deslocado á oficina, perdeu tempo com tal deslocação; e, constando dos autos carta dirigida pelo A. á R. e as respostas desta, o mesmo teve que gastar tempo a elaborá-la e a tomar conhecimento destas. Do mesmo modo, tendo o animal morto sido retirado das imediações pelo assistente de vigilância, apresentando-se o veículo com danos na frente e tendo este ficado imobilizado na A25, as respostas aos quesitos 11º e 12º são acertadíssimas; acresce que tendo os técnicos da M... confirmado o teor da documentação junta e a compatibilidade entre a reparação e os danos sofridos, também nenhuma censura merece quanto se decidiu a esse propósito.

   No que concerne à resposta ao quesito 18º, que se fundou, conforme consta da decisão recorrida, apenas no depoimento da testemunhaF..., não parece que a mesma deva manter-se. Na verdade, este é o único depoimento que relata a inspecção efectuada aquando do acidente, sendo a resposta do Tribunal coincidente com o que o mesmo relata. Porém, do depoimento da Sr.ª Eng.ª G..., resulta que das inspecções realizadas na sequência do acidente aos diversos nós, não resultou nenhuma anomalia. Trata-se aqui da inspecção mais exaustiva, realizada no dia seguinte. Conjugando ambos os depoimentos, pode, efectivamente responder-se provado ao quesito, já que, se não havia anomalia a registar no dia subsequente, também ela não existiria á data do acidente.

   Termos em que se altera a resposta ao quesito 18º para uma de provado.


***

   A matéria de facto cuja prova se obteve é a seguinte:

   1 - A estrada denominada A25, composta por duas faixas de rodagem para cada sentido, com cerca de 16 metros de largura e separadas por separador central, é uma auto-estrada sem portagens (SCUT) concessionada à ré.

   2 - Através de contrato de seguro titulado pela apólice nº AO3060122 e em vigor no dia 07.05.2008, a interveniente obrigou-se ao pagamento de indemnizações de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros e pelos quais a ré seja civil e extracontratualmente responsável em consequência de factos resultantes da sua actividade de exploração, entre outros, da A25, com fixação de franquia a cargo da ré no valor de € 5.000,00 por sinistro em danos materiais, e sem franquia para sinistros de danos corporais.

   3 - A cerca de 1,5 quilómetros do Km 26,5 da A25 e no sentido de marcha Viseu-Aveiro existe uma estrada que permite o acesso à A25 para quem venha da Zona Industrial de Albergaria-a-Velha e da localidade do Sobreiro.

   4 - Ao Km 24,5 da A25 localiza-se o nó de acesso desta via à A1.

   5 - Ao Km 24,7 da A25, sentido Aveiro-Viseu, localiza-se o nó de acesso à localidade do Sobreiro que termina junto a uma rotunda que confronta em parte com terrenos agrícolas.

   6 - O acesso à A25 aludido em 1º é ladeado na sua estrema esquerda por eucaliptal e mato, com caminhos de acesso em terra batida e, na sua estrema direita, por zona de mato e acesso a unidade industrial.

   7 - Aquele acesso não se encontrava vedado na sua faixa de rodagem, nem na largura das bermas, nem para além do limite da concessão, ao comprimento das suas delimitações laterais.

   8 - A faixa de rodagem e bermas do nó de acesso aludido em 5 não se encontravam vedadas nas respectivas larguras.

   9 - Os acessos aludidos em 1º e 3º permitem o livre acesso e passagem de pessoas e animais das estradas e caminhos públicos adjacentes para a A25.

   10 - No dia 07.05.2008, pelas 22h10, o autor circulava pela A25 no sentido Viseu-Aveiro, ao volante do veículo de matrícula DX....

   11 - Quando o DX se encontrava junto ao Km 26,5 da A25 surgiu um animal canídeo que invadiu a faixa de rodagem atravessando-se à frente daquele veículo.

   12 - Em consequência do descrito em 11º, o DX embateu com a respectiva parte frontal naquele animal.

   13 - Daquele embate resultou para o DX:

   a) avaria dos sistemas eléctrico e electrónico,

   b) pára choques frontal partido,

   c) danificação do intercooler que deixou de funcionar,

   d) farol de nevoeiro frontal do lado esquerdo partido,

   e) quebra dos suportes internos dos faróis frontais,

   f) radiador partido,

   g) protecções inferiores do veículo partidas,

   h) empeno da direcção,

   i) empeno da jante frontal do lado esquerdo do veículo,

   j) ruptura de depósitos e fuga de líquidos de refrigeração e lubrificação.

   14 - A reparação dos estragos descritos em 13 orçou o valor de € 8.671,43 que o autor pagou.

   15 - Por causa do descrito em 11º e 13º o autor viu atrasado o seu regresso a casa, perdeu tempo em contactos com a ré e em deslocação à oficina reparadora para levantamento do DX.

   16 - Ficando impedido de utilizar o DX de 07.05.2008 a 04.06.2008.

   17 - Aquando do descrito em 11º as vedações de ambos os sentidos de trânsito da A25, nas imediações do KM 26,5, estavam em bom estado de conservação.

   18 - A vedação da A25 é periodicamente vistoriada em toda a sua extensão e em ambos os sentidos de trânsito, a pé e com recurso a veículos, por equipas da obra civil ao serviço da ré.

   19 - No dia da ocorrência do embate, os oficiais de assistência e vigilância da ré efectuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da concessão, passaram por diversas vezes no local onde aquele ocorreu e não detectaram a presença de qualquer animal.

   20 - Tais patrulhamentos foram e são efectuados pelos funcionários da ré em regime de turnos durante as 24 horas de cada dia de todos os dias de cada ano, com passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 3 horas.

   21 - Sempre que os funcionários da ré detectam qualquer deficiência na vedação, ou quando tal é comunicado à ré, esta diligencia pela rápida reparação da mesma.

   22 - Os oficiais de assistência e vigilância da ré passaram no local do embate cerca de 2h20m antes de o mesmo ocorrer e ali não detectaram qualquer animal.

   23 - Nesse dia a Brigada de Trânsito da GNR que procedeu ao patrulhamento da A25 também não detectou a presença de qualquer animal nas imediações do local do embate, sendo habitual quando assim sucede que alerte a central de comunicações da ré.

   24 - Sempre que a ré tem conhecimento da presença de quaisquer animais na A25 actua de forma a expulsá-los rapidamente da via.


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   Passemos, agora, à análise das demais questões suscitadas nestes autos, todas elas comuns a ambos os recursos.

   Com a primeira das mencionadas questões pretende saber-se se o Artº 12º da Lei 24/2007 de 18/07 tem como pressuposto de aplicação, a confirmação, pela autoridade policial, da causa do acidente.

   Na sentença recorrida, que partiu do pressuposto de que a responsabilidade civil aplicável ao caso sub-júdice é de cariz extracontratual, considerou-se que a culpa se presume por força do que dispõe o Artº 12º da Lei 24/2007, tendo-se vindo a concluir que a R. não cumpriu com as obrigações de segurança que lhe estão cometidas por força do DL 142-A/2001 de 24/04 porquanto “ficou por demonstrar que, no sentido inverso ao do seguido pelo autor, a vedação estivesse em boas condições pois que a Ré não logrou provar tê-las verificado..., que no sentido seguido pelo autor só se provou que na distância de 400 metros para ambos os lados a vedação se encontrava em boas condições; ficou por demonstrar porque razão o cão se encontrava na auto-estrada, isto é que essa sua permanência não poderia nunca ser imputada à conduta da Ré”. Mais se concluiu que “a partir da entrada em vigor da Lei 24/2007, tem sido entendimento da jurisprudência... que é à concessionária que cabe fazer essa prova”.

   O Artº 12º da Lei 24/2007 veio estabelecer uma presunção de culpa que onera a concessionária da auto-estrada, desde que, entre outros, o acidente rodoviário com consequências danosas para pessoas ou bens diga respeito, no que para aqui releva, a atravessamento de animais.

   Dispõe-se aqui que nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a, entre outros, atravessamento de animais.

   Com esta norma o legislador quis esclarecer “que se verifica, nestes casos, inversão do ónus da prova da culpa da concessionária”, sem que tenha vindo dirimir a polémica doutrinal e jurisprudencial acerca da qualificação do título de responsabilidade civil aplicável (Ac. STJ de 1/10/2009, in www.dgsi.pt). Ou seja, pretendeu-se dar resposta á questão da culpa da concessionária das auto-estradas pelos acidentes causados por algum dos agentes ali mencionados, sem que se tenha definido a que título responde a concessionária.

   Assim, tratando-se de avaliar a culpa, a aplicação da Lei 24/2007 é questão que apenas se coloca, resolvidas que sejam as que a precedem – se a concessionária responde e a que título responde.

   Donde, abordaremos desde já, e previamente, a questão que enunciámos em segundo lugar.


*

   Concentremo-nos, então, na questão que enunciámos em 2º lugar – a natureza da responsabilidade civil da R. LUSOSCUT.

   Ambas as Recrtes. defendem que a responsabilidade da B...(concessionária) é de cariz extracontratual, alegando esta que não só uma tal conclusão resulta do que dispõe a Base LXXII do DL 142-A/2001 de 24/04, como com a Lei 24/2007 de 18/07 se inova apenas no que tange ao ónus da prova e concluindo que o A. não logrou provar que as vedações apresentavam deficiências ou que a R. sabia da existência do animal e nada fez para o remover. Já a Recrte. A... alega que o apelado não provou a culpa daquela e que o Artº 12º da Lei 24/2007 não contém qualquer presunção de culpa, mas sim matéria atinente ao ónus da prova, concluindo pela falta de prova da violação do dever de diligência da primeira.

   O Recrdº defende, por seu turno, que a responsabilidade se funda no disposto no Artº 493º/1 do CC.

   A sentença, conforme mencionámos, enquadrou a responsabilidade no disposto no Artº 483º do CC, mas veio a concluir que à R., que, em abstracto, exerceu o seu dever de vigilância sobre a auto-estrada, era exigível que tivesse um sistema de vigilância que, permanentemente, vigiasse cada entrada e que ficou por demonstrar que no sentido inverso ao seguido pelo A., a vedação estava em boas condições e a razão pela qual o cão ali se encontrava. Após, estribando-se no Ac. do STJ datado de 9/09/2008, proferido no procº com a Refª 08P1856, concluiu que a concessionária não provou que cumpriu as obrigações de segurança que sobre ela impendiam, sendo, por isso, a sua conduta, ilícita.

   Como decidir?

   Conforme já deixámos antever, não respondendo o Artº 12º da Lei 24/2007 á questão da natureza da responsabilidade, ele veio consagrar uma presunção de culpa, assim facilitando a vida dos lesados que, sem uma tal disposição viam muito dificultada a prova desta.

   Donde, continua a ser premente que definamos a que título respondem as concessionárias de auto-estradas.

   Sobre o título de responsabilidade inerente aos acidentes em auto-estrada produziu-se já abundante jurisprudência nos Tribunais Superiores, nem sempre coincidente.

   Delinearam-se, ao longo dos anos, diversas correntes, umas de pendor extracontratual, outras, pelo contrário, defendendo a natureza contratual da responsabilidade.

   Uma dessas correntes, maioritária, situa a questão no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, extraindo das leis que estabelecem as bases da concessão rodoviária a ideia de que estas não criam qualquer específico regime a este propósito, antes remetem para as regras e princípios gerais aplicáveis naquela sede. É o que sucederia, também no caso concreto, com a Base LXXIII, que dispõe que a concessionária responde, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco. Nesta corrente, delinearam-se duas vertentes – uma que parte da aplicabilidade pura e simples do instituto da responsabilidade civil extracontratual previsto no Artº 483º do CC, outra que parte da aplicabilidade do regime atinente á guarda de imóveis consignado no Artº 493º do CC. A estas variantes não será alheia a questão da culpa, que ali se impõe seja provada pelo lesado, e aqui se presume (Artº 487º/1 e 493º71 do CC, respectivamente).

   Outra corrente, parte da ideia de que se estabelece entre os utentes e a concessionária uma relação contratual de facto, com limitação das prestações devidas, pelo que situa a reparação de eventuais danos ao abrigo do regime da responsabilidade civil contratual.

   Outra ainda, vê no contrato de concessão, celebrado entre o Estado e a concessionária, uma eficácia tão ampla que se estende aos próprios utentes, de forma que se cataloga o regime como de contrato com eficácia de protecção de terceiros ou, noutra formulação, como de contrato a favor de terceiro.

   Menezes Cordeiro, equacionando todas estas figuras, afasta as teses de base contratual, com o argumento, ao qual aderimos, de que falham os pressupostos inerentes á disciplina dos contratos. Assim, conforme assinala, não existe liberdade de celebração, nem de estipulação do conteúdo do contrato, não só porque a concessionária não pode excluir da circulação em auto-estrada algum condutor, como também porque “à circulação em auto-estrada aplicam-se as leis gerais do país e o contrato de concessão”, sem que a concessionária ou o particular possam propor ou aceitar algo diverso, assim como não se pode ver no pagamento da portagem, o pagamento de um preço. Antes este traduz uma taxa, com todas as consequências que daí decorrem relativamente á falta de pagamento. Conclui, por isso, “pela total inadequação” do Direito positivo á teoria contratual. Do mesmo passo, considera inaplicável o regime do contrato a favor de terceiro por não vislumbrar no contrato de concessão a ideia da atribuição de alguma prestação a quem não seja parte, considerando ainda que, porque o “o contrato de concessão não tem a ver com o uso rodoviário pelo Estado”, “a transposição feita para o Direito português” da disciplina do contrato com efeito protector de terceiro é meramente vocabular” (Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas, 2004, Almedina, 46 e ss.).

   No que concerne ás teses que defendem a aplicabilidade do disposto no Artº 493º/1 do CC, também não se vê como perfilhá-las.

   Dispõe-se aqui que quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar... responde pelos danos que a coisa causar.

   Ora, esta disposição reporta-se a danos causados pela coisa -a auto-estrada –, e não a danos causados por elementos exteriores a esta ou na coisa, como é o caso da presença de animais. Deste modo, sempre que a coisa não teve papel activo na produção do dano, está excluída a aplicação do Artº 493º do CC. Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, segundo os quais “a lei fala, no nº 1, dos danos que a coisa ou os animais causaram e não dos danos causados com a coisa ou com os animais” (Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª Ed., revista e actualizada, Coimbra Editora, 470).

   Afigura-se-nos, assim, como mais adequada, como já deixámos antever, a aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual consignado no Artº 483º/1 do CC de acordo com o qual aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

   Neste pressuposto, cabe ao lesado a prova dos factos integradores dos conceitos que preenchem esta realidade, agora, e nos casos contemplados pela Lei 24/2007, com a nuance criada pela mesma.

   São vários os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber, o facto voluntário do lesante, seja ele cometido por via de acção, ou por via de omissão, a ilicitude, que se revela ou através da violação de um direito de outrém, ou da violação de alguma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano e a culpa.

   E é ao nível da prova da culpa que aquela lei veio inovar. Porém, antes ainda de nos determos sobre a culpa, importa que, passo a passo, concluamos pelo preenchimento dos demais conceitos.

   Constatando nós, pela análise da matéria fáctica cuja prova se obteve, a existência do facto – o embate entre o veículo e o cão –, bem como do dano e do nexo de causalidade entre um e outro, importa que centremos, antes de mais, a nossa atenção sobre a ilicitude e decidamos se foi violada alguma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, segmento legal que, nesta sede, assume particular relevo.

   A resposta há-de encontrar-se na lei que estabelece as bases da concessão, cujas normas visam “assegurar que as auto-estradas satisfaçam cabal e permanentemente, o fim a que se destinam, permitindo aos que as usam (aos utentes) a circulação em boas condições de segurança e de comodidade” (Ac. do STJ de 1/10/2009, supra citado). Na verdade, muito embora a exploração da auto-estrada seja concessionada por via contratual, algumas das bases em que assenta produzem efeitos também na pessoa dos utentes.

   Vejamos, então qual a concreta disposição violada.

   Os termos da concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas outorgada à B...foram fixados pelo DL 142-A/2001 de 24 de Abril, do qual destacamos as seguintes normas com eficácia externa:

   Por auto-estrada entende-se a secção corrente, os nós de ligação e conjuntos viários associados que integram o objecto da concessão (Base I 1-h)).

   Este objecto vem definido na Base II e V/3, incluindo os nós de ligação.

   A Base VIII estabelece que a concessionária é obrigada a manter em bom estado de funcionamento, conservação e segurança, os bens que integram a concessão, efectuando em devido tempo as reparações, renovações e adaptações necessárias.

   A Base XXX 4-a) estabelece que a auto-estrada será vedada em toda a sua extensão, sendo que as passagens superiores em que o tráfego de peões seja exclusivo ou importante serão também vedadas lateralmente em toda a sua extensão.

   A Base XLV estabelece que a concessionária deverá manter a Auto-Estrada em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando os trabalhos necessários para que a mesma satisfaça cabal e permanentemente o fim a que se destina.

   A Base LIV estabelece a obrigação de assistência aos utentes, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação.

   É, pois, da violação de algum destes deveres, que havemos de concluir pela possibilidade de responsabilização da R..

   Ora, no âmbito da tese que perfilhamos, cabe, por força do disposto nos Artº 342º/1 e 487º/1 do CC, ao lesado a prova dos factos constitutivos da responsabilidade e, desde logo, a da ilicitude decorrente da violação de alguma disposição legal que proteja interesses alheios.

   Concatenemos, então, a matéria fáctica cuja prova se obteve com relevo para esta questão, com estes dispositivos para, após, aquilatarmos da violação de algum deles.

   A estrada denominada A25, composta por duas faixas de rodagem para cada sentido, com cerca de 16 metros de largura e separadas por separador central, é uma auto-estrada sem portagens (SCUT) concessionada à ré. A cerca de 1,5 quilómetros do Km 26,5 da A25 e no sentido de marcha Viseu-Aveiro existe uma estrada que permite o acesso à A25 para quem venha da Zona Industrial de Albergaria-a-Velha e da localidade do Sobreiro. Ao Km 24,5 da A25 localiza-se o nó de acesso desta via à A1. Ao Km 24,7 da A25, sentido Aveiro-Viseu, localiza-se o nó de acesso à localidade do Sobreiro que termina junto a uma rotunda que confronta em parte com terrenos agrícolas.

   O acesso à A25 da Zona Industrial para aquela é ladeado na sua estrema esquerda por eucaliptal e mato, com caminhos de acesso em terra batida e, na sua estrema direita, por zona de mato e acesso a unidade industrial. Aquele acesso não se encontrava vedado na sua faixa de rodagem, nem na largura das bermas, nem para além do limite da concessão, ao comprimento das suas delimitações laterais.

   A faixa de rodagem e bermas do nó de acesso à localidade de Sobreiro não se encontravam vedadas nas respectivas larguras.

   Os acessos aludidos acima permitem o livre acesso e passagem de pessoas e animais das estradas e caminhos públicos adjacentes para a A25.

   Por outro lado, e a propósito da vigilância, provou-se que no dia da ocorrência do embate, os oficiais de assistência e vigilância da ré efectuaram diversos patrulhamentos a toda a extensão da concessão, passaram por diversas vezes no local onde aquele ocorreu e não detectaram a presença de qualquer animal. Tais patrulhamentos foram efectuados pelos funcionários da ré em regime de turnos durante as 24 horas, com passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 3 horas. Os oficiais de assistência e vigilância da ré passaram no local do embate cerca de 2h20m antes de o mesmo ocorrer e ali não detectaram qualquer animal.

   Estarão violadas as obrigações de vedação e vigilância, únicas que descortinamos poderem estar em causa?

   A vedação na faixa de rodagem a que se alude na resposta aos quesitos 5º e 7º (números 7 e 8 da matéria de facto acima exarada) só pode significar a existência de algum sistema de controle do tipo portagem, pois, caso contrário não se entende em que poderá traduzir-se. Ora, sendo a A25 uma auto-estrada sem portagens, não se vê como exigir a colocação de um tal sistema. Por outro lado, a vedação da largura das bermas, não constitui exigência legal. E, a vedação para além dos limites da concessão, também não. Assim, nenhum ilícito resulta do que se constatou quanto ao nó Zona Industrial – A5.

    No que concerne ao nó de Sobreiro, cuja faixa de rodagem e bermas não estavam vedadas nas respectivas larguras, conclui-se do mesmo modo.

   Prevendo a lei de bases a necessidade de vedação da auto-estrada em toda a sua extensão, não podendo isto significar na largura, por razões óbvias de impedimento do trânsito, não se vê que algum dever de vedação tenha sido violado pela R..

   Mas, para além do dever de vedação, incumbe sobre ela o dever de vigilância das condições de circulação.

   Quanto a este, tendo o animal penetrado na via e embatido no veículo do A., já se conclui que, e conforme decorre da matéria de facto supra mencionada, muito embora tendo vigiado, o cumprimento deste dever ocorreu de forma imperfeita, pois o animal acedeu á via e não foi detectado de forma a evitar o embate.

   Desta forma, a conduta da R. é ilícita.

   Tal violação do dever de vigilância resulta de culpa sua?

   A aplicar-se o Artº 12º/1 da Lei 24/2007, vale a presunção, pelo que cabia á R. o ónus de provar que cumpriu com todas as condições de segurança, o mesmo é dizer, que cumpriu de forma cabal ou de modo a evitar o dano, ou, noutra formulação, de que não actuou com culpa. Na falta desta prova, tem que concluir-se pela culpa.

   A não se aplicar aquela disposição, cabe ao A. a prova de que a R. actuou com culpa (Artº 487º/1 do CC).

   É, assim, chegado o momento de decidir acerca da aplicabilidade ao caso sub-júdice da dita lei.


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   Voltamos, deste modo, à primeira das enunciadas questões.

   Para efeitos do que dispõe o Artº 12º/1, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente (nº 2 do Artº 12º).

   Parece, assim, que, querendo alguém fazer-se valer da presunção contida no número 1, não deve haver dúvidas sobre a verificação deste pressuposto.

   Da matéria fáctica cuja prova se obteve, resulta que no dia do acidente a Brigada de Trânsito da GNR que procedeu ao patrulhamento da A25, não detectou a presença de qualquer animal nas imediações do local do embate, sendo habitual quando assim sucede que alerte a central de comunicações da ré.

   Daqui não resulta, porém, que a constatação pela autoridade policial, no momento do acidente, não tivesse sido efectuada.

   Deste facto apenas resulta que a brigada que patrulhava a A25 não detectou qualquer animal.

   Do auto de ocorrência junto aos autos, também não consta a menção a uma tal verificação. Consta, todavia, do aditamento a esse auto, já mencionado nesta decisão a propósito da discussão acerca do erro de julgamento da matéria de facto, que “foi verificado pelo operador de assistência e vigilância da concessionária da auto-estrada... a presença do animal de raça canina atropelado na A25, Km 26,5, e que foi este vigilante que o retirou do local”.

   A questão que ora nos ocupa nunca foi suscitada ao longo do processo. Apenas em sede de recurso a mesma se aborda. Deste modo, não foi tratada na sentença.

   Sendo certo que do mencionado Artº 12º/2 decorre que, pressuposto de aplicação do nº 1, é a confirmação das causas do acidente por autoridade policial competente, a falta de uma tal confirmação afasta as possibilidades de aplicação do que se dispõe no nº 1, ou seja, o lesado não beneficia da presunção de culpa ali vertida.

   Contudo, já assim não ocorre, se a entidade policial atesta, como no caso concreto, que a presença do animal foi verificada pelo operador de vigilância da concessionária, tendo este actuado no sentido de o remover.

   As razões de segurança na prova que estão na base do Artº 12º/2, encontram correspondência no concreto circunstancialismo dos autos.

   Donde, o Artº 12º/1 tem plena aplicação.


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   Do que expusemos, resulta negativa a resposta a dar à questão enunciada em 3º lugar, a saber, se da prova produzida, resulta ter a Ré cumprido com as suas obrigações de segurança, pelo que não actuou com culpa.

   Era dever da R. manter a auto-estrada livre de qualquer obstáculo, para o que lhe incumbia um especial dever de vigilância.

   Este dever não foi cabalmente cumprido, sem que a R. tivesse logrado provar que tal falta de cumprimento não resultou de culpa sua.

   Donde, preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, ambas as RR. devem indemnizar o A..


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   Fica, assim, prejudicada a discussão da questão que enunciámos em último lugar.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

1) julgar improcedente a apelação interposta pela A... e, em consequência, manter a sentença recorrida e

2) julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela B...e, em consequência, alterar a resposta ao quesito 18º, mantendo, no mais, a sentença recorrida.

   Custas do 1º recurso pela Recrte. e do 2º recurso por Recrte. e Recrdº, na proporção de 9/10 para a 1ª e 1/10 para o 2º.

   Notifique.


MANUELA BENTO FIALHO
PAULO TÁVORA VÍTOR
FERNANDO NUNES RIBEIRO