Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3884/16.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: TESTAMENTO – DEIXA DE LEGADO.
PATRIMÓNIO COMUM
Data do Acordão: 05/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JC CÍVEL DE VISEU – J3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1685º, 2179º, Nº 1, E 2252º, TODOS DO C. CIVIL
Sumário: I – A noção de testamento é-nos dada pelo artº. 2179º, nº. 1, do CC, ao estipular que “diz-se testamento o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles”.
II - É entendimento pacífico na nossa doutrina que o mesmo constitui um negócio jurídico – unilateral e pessoal - (por excelência porque é nele que a vontade do seu autor, o testador, atinge o máximo possível de relevância), o qual se rege e está subordinado a regras próprias e específicas (vg. do direito sucessório), e ao qual só subsidiariamente são aplicáveis as regras da teoria geral do negócio jurídico.
III - Ressalta do nº. 2 do artº 2252º do C. Civil que estando em causa um legado de coisa, certa e determinada, que se integre no património comum do casal ao mesmo é aplicável o regime fixado no transcrito artº. 1685º do CC. Regime especial esse que se aplica às disposições efetuadas não só na constância do matrimónio, mas também àquelas que ocorreram após a sua dissolução (por divórcio ou por morte do cônjuge).
IV - Na verdade, vem constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a ratio legis do preceito não se restringe a atos de disposição feitos na constância do matrimónio, abrangendo ainda o direito de o cônjuge sobrevivo dispor dos bens comuns, ainda indivisos, do seu dissolvido casal.
V - Assim, à luz do que resulta do disposto no citado artº. 1685º, nº. 2 ex vi artº. 2252º, ambos do CC, a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão do património comum (efetuada quer na pendência do matrimónio, quer depois da sua dissolução e enquanto esse património comum se mantiver indiviso) é sempre válida quanto ao valor e, em princípio, nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor).
V - Desse modo, não ocorrendo nenhuma das exceções previstas no nº. 3 do artigo 1685º (que a ocorrerem, e não ocorrem caso sub júdice, conferiam ao comtemplado o direito de exigir a coisa em substância) a disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum, embora se reconduza a faculdade legal, apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor da deixa.
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. O autor, A..., instaurou (em 19/07/2016) contra os réus, M... e seu marido A... (1ºs. RR) e M... (2ª. R), todos com os demais sinais dos autos, a presente ação declarativa de processo comum.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
Em 24/2/2014 faleceu Á..., casado em regime de separação de bens com a 2ª. R., em segundas núpcias dele e em primeiras dela.
Em 21/03/2011 aquele falecido outorgou testamento, pelo qual legou à 1ª. e 2ª. Rés o direito que lhe pertencia em dois prédios urbanos e um rústico. Contudo, o testador, à data da outorga desse testamento e à data de sua morte, não era o dono de tais bens, dado que os mesmos pertencerem à Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de M..., que fora casada com o testador, primeiras núpcias então de ambos, e que deixou como herdeiros, para além do marido, os filhos do casal. Herança essa que permanece ilíquida e indivisa.
Conclui, assim, o autor que o testador não podia dispor dos referidos bens, pelo que terminou pedindo a declaração de nulidade de tal testamento e a condenação das rés a restituírem às heranças abertas por óbito de M... e do referido Á,,, os prédios identificados no referido testamento.
2. Na sua contestação, o autor defendeu a validade do aludido testamento e daquelas disposições testamentárias nele inseridas em termos de legado feitas às rés, pelo que pediram a improcedência da ação e sua absolvição do pedido.
3. Após ter tido lugar a audiência prévia, foi proferido despacho saneador/sentença – após se considerar que o estado dos autos o permitia fazer e depois das partes já se terem pronunciado a esse propósito naquela audiência –, no qual, conhecendo-se do mérito da causa, se julgou a ação improcedente e se absolveu os réus do pedido.
4. Inconformados com tal despacho saneador/sentença, dele apelou o autor, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
...
5. Os réus contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado.
6. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
II- Fundamentação
A) De facto.
Pelo tribunal da 1ª. instância foram dados como provados os seguintes factos (colhidos dos articulados e da prova documental junta aos autos):
1 - No dia 24/2/2014 faleceu Á..., casado no regime da separação imperativa de bens com a ré M..., em primeiras núpcias dela e segundas núpcias dele (artigo 1º da petição inicial);
2 - O falecido deixou como únicos e universais herdeiros a mulher e aqui ré, M..., e os filhos F..., casada no regime da comunhão de adquiridos com A..., A... e M..., casada no regime da comunhão de adquiridos com A..., C..., casado no regime da comunhão de adquiridos com M..., e A... (artigo 2º da petição inicial);
3 - No dia 21 de Março de 2011, no Cartório Notarial da Drª. ..., o falecido Á... outorgou um testamento em que institui legatárias as aqui rés, M... e M..., nos termos do qual declarou que “lega a M... o direito que lhe pertence na casa de habitação de rés-do-chão, andar e logradouro, sita no lugar de ...., inscrito na matriz sob o artigo ,,,”, assim como declarou que “lega, por conta da quota disponível, à sua filha, M..., casada com ..., o direito que lhe pertence na casa de andar, lojas e logradouro, sita no lugar de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...;” e ainda que “ Lega, em comum e partes iguais, às identificadas M... e M..., esta por conta da quota disponível, o direito que lhe pertence no prédio rústico, composto de pinhal e mato, sito à...;
4 – M... faleceu no dia 9/7/2004, no estado de casada no regime da comunhão geral de bens com o testador, em primeiras núpcias dela e dele.
5 – A referida M... deixou como únicos e universais herdeiros, o marido Á..., entretanto falecido, e os filhos do casal, F..., A..., M..., C..., permanecendo essa Herança ilíquida e Indivisa, pois que os seus herdeiros nunca procederam à partilha da mesma;
6 - Isso não obstante ter sido instaurado judicialmente o Proc. de Inventário nº ..., que correu termos pelo 4º Juízo Cível deste Tribunal, que veio a ser julgado extinto, pela desistência da instância do requerente A..., homologada por sentença de 28/2/2011, transitada em julgado no dia 28 de Março de 2011;
7 - Do acervo daquela herança fazem parte os bens imóveis identificados no testamento outorgado pelo falecido Á..., adquiridos pelo casal.
B) De direito.
Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, do CPC).

Ora, calcorreando as suas conclusões das alegações do recurso, verifica-se que a única questão que se impõe aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se o testamento, com as suas disposições testamentárias, a que se refere o ponto 3. dos factos provados é ou não nulo e, em caso afirmativo, em que medida e das suas consequências/efeitos.
O tribunal a quo (no que é secundado pelas rés/apeladas) concluiu que não, por entender que o testador muito embora tendo disposto sobre o indiviso património comum do casal que formou com a sua falecida mulher M..., todavia essa disposição não incidiu sobre coisa certa e determinada desse património – isto é, sobre bens certos e determinado desse património - mas somente sobre o direito da sua participação nesse património comum.
Nulidade essa que é defendida pelo A./apelante, quer com o fundamento de o testador ao ter legado/deixado às legatárias não os bens/prédios identificados no testamento mas sim o seu direito que lhe pertencia sobre os mesmos não especificou, todavia, esse tipo de direito, quer com o fundamento de ter legado direitos sobre bens certos e determinados que não lhe pertenciam.
Apreciemos então.
A noção de testamento é-nos dada pelo artº. 2179º, nº. 1, do CC, ao estipular que “diz-se testamento o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou parte deles”.
É entendimento pacífico na nossa doutrina que o mesmo constitui um negócio jurídico – unilateral e pessoal - (por excelência porque é nele que a vontade do seu autor, o testador, atinge o máximo possível de relevância), o qual se rege e está subordinado a regras próprias e específicas (vg. do direito sucessório), e ao qual só subsidiariamente são aplicáveis as regras da teoria geral do negócio jurídico (Cfr., por todos, o prof. Oliveira Ascensão, in “Teoria Geral do Negócio Jurídico e o Negócio do Testamentário”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, Vol. I, Coimbra Editora, págs. 873/876”).
A questão acima colocada tem a ver com o saber se o testador podia dispor nos termos em que o fez no referido testamento.
É inolvidável que os bens imóveis mencionados na referida deixa testamentária integram o património comum do casal que o testador formou com a sua 1ª. falecida mulher M... (com quem foi casado em regime de comum geral de bens), já falecida à data dessa disposição, e que atualmente compõem o acervo da herança ainda indivisa aberta com o falecimento da referida predefunta, à qual concorriam então, como seus universais herdeiros, o testador (entretanto já falecido, e cuja herança aberta se mostra também indivisa), como seu marido, e os filhos do casal (cfr. pontos 4.1 a 4.7 do factos provados, e artºs. 1732º, 2131º, 2132º, 2133º e 2139º do CC).
Estando em causa uma deixa testamentária referente ao património comum indiviso do aludido casal (que o testador formou com aquela sua predefunta mulher), importa, desde já, convocar os seguintes normativos que se transcrevem:
Sob a epígrafe “Disposições para depois da morte”, dispõe o artigo 1685º do C. Civil:
1. Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.
2. A disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.
3. Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie:
a) Se esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte;
b) Se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento;
c) Se a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro.” (sublinhado nosso)
Por sua vez, sob a epígrafe “Legado de coisa pertencente só em parte ao testador”, preceitua o artº. 2252º do mesmo diploma que:
1. Se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, observar-se-á, quanto ao restante, o preceituado no artigo anterior.
2. As regras do número anterior não prejudicam o disposto no artigo 1685º quanto à deixa de coisa certa e determinada no património comum dos cônjuges.” (sublinhado nosso)
Ressalta do nº. 2 do último preceito legal que estando em causa um legado de coisa, certa e determinada, que se integre no património comum do casal ao mesmo é aplicável o regime fixado no transcrito artº. 1685º do CC. Regime especial esse que se aplica às disposições efetuadas não só na constância do matrimónio, mas também àquelas que ocorreram após a sua dissolução (por divórcio ou por morte do cônjuge). Na verdade, vem constituindo entendimento prevalecente na nossa jurisprudência que a ratio legis do preceito não se restringe a atos de disposição feitos na constância do matrimónio, abrangendo ainda o direito de o cônjuge sobrevivo dispor dos bens comuns, ainda indivisos, do seu dissolvido casal. (Cfr., por todos, Acs. do STJ de 29/05/1979 e de 14/04/1999, respetivamente, in “BMJ nº. 287 – 332” e in “CJ, Acs. do STJ, Ano VII, T2 – 43”; Ac. da RC de 26/04/2006, proc. 549/06, disponível em dgsi.pt, e ainda “Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, Almedina 2018, págs. 371/372, Coord. Cristina Araújo”).
Sendo o património comum um património coletivo (também designado por “comunhão de mão comum”), o mesmo pertence a ambos os cônjuges em bloco/em conjunto mas sem que possam afirmar, antes da sua divisão/partilha, dispor de um direito próprio e específico sobre os bens que integram o seu acervo. Devido a essa sua natureza, esse património não “confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas. O facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa, por outras palavras, que qualquer deles se possa intitular do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio”, que só acontecerá, repete-se, após a sua partilha. (Cfr. os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Código Civil anotado, Vol. IV, 2ª. edição revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 312/313”, o prof. Manuel. Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, pág. 40” e Ac. do STJ de 17/02/1998, in “VJ, 21º- 61”).
E daí que o legislador do atual C. Civil perante tais situações de disposição sobre bens certos e determinados que integrem o património comum indiviso tenha enveredado “pelo caminho menos inconveniente e mais seguro” da solução especial plasmada no citado artº. 1685º, num claro intuito de proteção ou benefício do contemplado com a liberalidade (cfr. os profs. Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. cit., pág. 313” e os profs Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito de Família, Vol. I, 3ª. ed. Coimbra Editora, pág. 442”).
Assim, à luz do que resulta do disposto no citado artº. 1685º, nº. 2 ex vi artº. 2252º, ambos do CC, a disposição testamentária que incida sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão do património comum (efetuada quer na pendência do matrimónio, quer depois da sua dissolução e enquanto esse património comum se mantiver indiviso) é sempre válida quanto ao valor e, em princípio, nula quanto à substância (transformação ope legis de uma disposição em substância num legado de valor). Desse modo, não ocorrendo nenhuma das exceções previstas no nº. 3 do artigo 1685º (que a ocorrerem, e não ocorrem caso sub júdice, conferiam ao comtemplado o direito de exigir a coisa em substância) a disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum, embora se reconduza a faculdade legal, apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor da deixa. (Neste sentido vide, entre outros, os Pires de Lima e A. Varela, in “Ob. e págs. cit.,” e Francisco Pereira Coelho, in “Ob. e pág. cit.”, Acs do STJ acima citados; Ac. da RC de 26/04/2006, proc. 549/06; Ac. da RC de 14/09/2010, proc.1585/9.TBMGR.C1; Ac. da RL de 14/07/95, proc. 000491; Ac. da RP de 21/01/2008, proc. 0755556, Ac. RP de 13/06/2013, proc. 159/12.4TBALJ.P1 e Ac. da RG de 05/05/2005, proc. 783/05-1, todos disponíveis em dgsi.pt).
Aqui chegados, importa aquilatar se os legados em causa, fruto disposição testamentaria em análise (a que se reporta o ponto 3. dos factos provados), foram ou não feitos sobre coisa certa e determinada do património comum indiviso do casal que o testador formou com a sua predefunta mulher M..., pois que se o foram será aplicável ao caso em apreço o regime plasmado no citado artº. 1685º, nº. 2, do CC, de que atrás demos conta, declarando-se a sua validade quanto ao valor e sua invalidade/nulidade quanto à substância.
Nos termos do disposto no artº. 2040º do CC, “diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede nos bens ou valores determinados” (nº. 1), sendo ainda “havido como herdeiro o que sucede no remanescente dos bens do falecido, não havendo especificação destes.” (nº. 2)
Distinguindo o herdeiro do legatário, o prof. Galvão Teles, depois de afirmar que herdeiro é o que sucede no universium ius ou per universitatem, ou seja, na universalidade dos bens do falecido ou num quota dessa universalidade, sucede no património do falecido considerado unitariamente, visto num prisma universal (no património como uma “unidade abstracta ou universitas”), já o legatário recebe bens determinados do património universal do de cuius, encontrando-se no legado os bens desde logo determinados, por via direta ou positiva, do de cuius (Direito das Sucessões, 4ª. ed., Coimbra Editora, págs. 153/154/159 e 197”).
Da leitura do testamento ressalta do exarado no mesmo que o testador lega o “direito que lhe pertence” nos imóveis e nos moldes ali descriminados a favor da 1ª. e 2ª. rés.
A expressão utilizada no testamento pelo testador “lega o direito que lhe pertence” nos imóveis ali descriminados a favor das legatárias ali contempladas, não se nos afigura, salvo o devido respeito, muito feliz, e suscita alguma ambiguidade, pois que, por um lado, lega-lhes um direito cuja natureza não especifica, e, por outro, esse direito incide ou tem como objeto bens concretos e determinados sobre os quais não podia dispor já que integravam (tal como ainda agora) o património comum então (como agora) indiviso de que ele era titular e a sua predefunta mulher, mas que, como património comum coletivo, não lhe conferia, como vimos, até à sua divisão ou partilha, qualquer direito sobre tais concretos bens.
E daí que, quando assim sucede, perante tal ambiguidade, hão-de as disposições testamentárias ser interpretadas de acordo com o que parecer mais ajustado à voluntas testatori, ou seja, de acordo com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, tal como determina o artº. 2187º, nº. 1, do CC (cfr., esse propósito, ainda o prof. Galvão Teles, in “Ob. cit.,” págs. 174/175”). Isto é, deve ir-se ao encontro da vontade do testador na interpretação dessas disposições testamentárias, ou seja, devendo para tal procurar-se saber qual foi a real intenção ou vontade do testador quando instituiu essas disposições.
Na falta de mais, melhores e seguros elementos (pois que nem sequer foram alegados), considerando que essas disposições incidem especificamente sobre aqueles concretos imóveis identificados no testamento, e não sobre quaisquer outros que compõem o referido património indiviso, e considerando - extraindo-se essa conclusão do pedido final do A. no sentido de as mesmas serem condenadas a restituírem-nos às heranças ilíquidas indivisas, abertas não só por óbito da mulher predefunta do testador, mas também por óbito do próprio testador, entretanto falecido – que esses imóveis se encontram na posse das rés contempladas com o referido testamento (o que as mesmas não questionaram), somos, assim, levados a concluir, nessa hermenêutica interpretativa, que a vontade real do testador, ao dispor nos aludidos termos em que o fez, foi legar efetivamente esses bens às rés, deixando-lhos.
E sendo assim, e ao contrário do que se conclui na sentença recorrida, estamos perante um legado de coisa certa e determinada.
E aqui chegados, tais disposições testamentárias caiem no âmbito de aplicação, como acima deixámos referido, do citado artº. 1685º, nº. 2, do CC.
Donde, por força da conversão ope legis ali consignada, tais disposições testamentárias convertem-se em disposições de valor, tornando-se nessa medida válidas, mas ao mesmo tempo inválidas quanto à sua substância.
E daí que assiste tão somente às rés beneficiárias o direito de exigir o valor em dinheiro correspondente a tais prédios (na exata medida com que foram contempladas com tais deixas testamentárias) - mas que aqui, no uso desse direito potestativo, não peticionaram, e que por isso, sob pena de violação do princípio do pedido, não lhe podemos aqui atribuir, sem prejuízo de, todavia, poderem vir a fazer valer esse direito oportunamente -, pois que não ocorre, in casu, nenhuma das situações de exceção previstas no nº. 3 desse preceito legal.
Em conclusão, sendo as disposições testamentárias do referido testamento válidas quanto ao seu valor, são, porém, nulas/inválidas quanto à substância, e daí que as rés por elas contempladas devam restituir os prédios ali identificados às atuais heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de M... e de Á...
E nesses termos, julgando-se parcialmente procedente o recurso, se revoga a douta sentença da 1ª. instância:

III- Decisão
Assim, em face do exposto, acorda-se em:
a) Julgar parcialmente procedente o recurso e revogar a sentença da 1ª. instância, e em consequência:
b) Declarar que o testamento, referido no ponto 3. dos factos provados, é válido, no que concerne às disposições testamentárias, quanto ao seu valor e nulo/inválido quanto à substância.
c) Condenar as rés, M... e M... a restituírem, livres de pessoas e bens, os prédios identificados no referido testamento às heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de M... e de Á...
Custas da ação e do recurso por A. e RR., na proporção do respetivo decaimento e que para o efeito fixo em 50% para cada um (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).
Coimbra, 2018/05/18
Isaías Pádua
Manuel Capelo
Falcão de Magalhães