Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
544/15.0T8ACB-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SENTENÇA
TÍTULO EXECUTIVO
DIREITO DE RETENÇÃO
PROMITENTE COMPRADOR
CONSUMIDOR
NEGÓCIOS EM CURSO
CONTRATO-PROMESSA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
EFICÁCIA REAL
EFICÁCIA OBRIGACIONAL
SINAL
Data do Acordão: 09/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 102.º, 104.º, 106.º, 128.º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESA (DL N.º 53/2004, DE 18 DE MARÇO).
ARTIGOS 442.º, 755.º, N.º 1, ALÍNEA F) DO CÓDIGO CIVIL.
Sumário: I) Na execução singular, a prévia formação de um título executivo é imprescindível ao ingresso no concurso de credores com garantia real sobre os bens penhorados, podendo aguardar-se a produção desse título.

II) No processo de insolvência, o credor que disponha de um qualquer crédito relativamente ao devedor pode reclamá-lo no apenso de reclamação de créditos, mesmo que não tenha ainda sido reconhecido judicialmente.

III) Em processo de insolvência só pode reconhecer-se o direito de retenção resultante de contrato-promessa de compra e venda ao promitente comprador se estiverem verificados os seguintes pressupostos: estar em causa uma promessa de constituição ou transmissão de um direito real; existir tradição da coisa objecto mediato do contrato e a entrega de sinal; verificar-se a natureza de consumidor do promitente-comprador; ocorrer o não cumprimento do contrato pelo administrador da insolvência.

IV) O administrador da insolvência pode recusar o cumprimento dos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, haja ou não traditio rei a favor do promitente-comprador.

V) A recusa pode ser meramente tácita, por exemplo, pelo não reconhecimento dos créditos pelo administrador na lista que apresentou nos termos do art.º 129 do CIRE e posteriormente às impugnações que a esse respeito tenham sido deduzidas.

VI) No caso de recusa lícita do administrador ao cumprimento dos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, não tem aplicação do regime do artigo 442.º do Código Civil referente às consequências civilísticas do incumprimento do contrato-promessa, haja ou não sinal constituído, subsistindo, contudo, o direito de retenção de que seja titular o promitente-comprador.

Decisão Texto Integral:






Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Nos autos de insolvência de A…, Lda, a correr termos pelo Juízo de comércio de Alcobaça, Comarca de Leiria, apresentou oportunamente o Sr. Administrador da Insolvência a lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos a que se reporta o art.º 129 do CIRE.
Por se arrogarem titulares de créditos reclamados mas ali não reconhecidos, vieram impugnar tal lista:
1. B… e mulher C…, que reclamaram um crédito de € 180.000,00, correspondente ao dobro do sinal alegadamente por si prestado no intitulado contrato promessa de compra e venda celebrado com a devedora em 18 de Novembro de 2002, aditado em 24 de Fevereiro de 2012 (doc. de fls. 60 v e 61);
2. D… e mulher E…, que reclamaram um crédito de € 180.000,00, correspondente ao dobro do sinal alegadamente por si prestado no intitulado contrato promessa de compra e venda celebrado com a devedora em 18 de Novembro de 2002, aditado em 24 de Fevereiro de 2012 (cfr. docs. de fls. 90 e 89 v);
3. F… , que reclamou um crédito de € 70.200,00, proveniente do intitulado contrato promessa de permuta celebrado com a devedora em 30 de Novembro de 2012 (cfr. fls. 75v, 76, 78v e 79).

Mais requereram que, admitidos, os respectivos créditos fossem graduados como créditos privilegiados por todos eles se acharem garantidos por direito de retenção.

Respondeu a estas impugnações G…, SA, julgada habilitada como cessionária do crédito reclamado pelo H…, SA., refutando a existência dos créditos invocados bem como dos pressupostos dos inerentes direitos de retenção.

Prosseguindo os autos com o saneamento e a produção de prova, veio a final a ser proferida sentença do seguinte teor:
“A – Julgo integralmente procedentes por provadas as impugnações deduzidas por F…; por D… e E… e por B… e I….
B – Em consequência, declaro verificados os concretos valores de créditos que cada um dos impugnantes apresentam nas respectivas impugnações, sendo que todos e tais créditos assumem natureza privilegiada com e para todos os efeitos.
(…)”.

Inconformada, deste veredicto recorreu a credora G…, SA, recurso admitido como de apelação, com subida imediata em separado e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                                                                       *            

São os seguintes os factos que em 1ª instância foram dados como provados sem qualquer impugnação:

1. A 17-2-2015 foi requerida a insolvência da A…, Lda.
2. Através de Sentença proferida a 6-7-2015 foi a mesma insolvência declarada.
3. O relatório elaborado pelo Sr. AI e apresentado a 8/9/2015, nos termos do artigo 155.º do CIRE, concluía no sentido da liquidação do activo da insolvente.
4. A 17/9/2015 a assembleia de credores deliberou unanimemente no sentido da liquidação do activo.
5. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do auto da apreensão datado de 10/7/2015, o qual integra o apenso A.
6. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da escritura pública outorgada a 18/11/2002 (fls. 200 a 203 e a fls.. 211 a 214), da qual se transcrevem os seguintes excertos: “(…) Primeiro: E… e marido, D… (…) Segundo: C… e marido, B…(…) Terceiro: J…(…) em nome e representação da sociedade comercial por quotas, com a firma A…, Lda. (…) Disseram a primeira e segunda outorgantes: Que, pela presente escritura e pelo preço de Duzentos mil euros, que já receberam, vendem à representada do terceiro outorgante, o seguinte: Um terço indiviso do prédio urbano, sito na vila e freguesia de …, (…) inscrito na matriz predial respectiva sob os artigos 29 e 1012 (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número Trinta e Sete Mil Quatrocentos e Vinte e Sete (…) Disseram os primeiros e segundos outorgantes: Que, por esta escritura e pelo preço de Trezentos e cinquenta mil euros, que já receberam, vendem à mesma sociedade representada do terceiro outorgante dois terços indivisos do prédio urbano acima identificado (…) Disse o terceiro outorgante, na qualidade em que intervém: Que, para a sociedade sua representada aceita a presente venda nos termos exarados e que o imóvel ora adquirido se destina a revenda. (…)

Da impugnação deduzida por F….
 
7. F… celebrou com a insolvente contrato promessa de compra e venda com permuta com a insolvente.
8. O objecto do referido contrato promessa de compra e venda foi a fracção autónoma designada pela letra “A” (…) descrita na Conservatória o Registo Predial de … sob o n.º …-A [verba 1.ª do acima referido auto de apreensão].
9. No âmbito do contrato acima referido, F… entregou, a título de pagamento, os prédios: misto inscrito na matriz sob o artigo rústico … e o artigo urbano n.º ….
10. Desde o dia 30/11/2012 e até ao ano de 2016 que F… residiu no imóvel acima indicado em 8.
11. Ao longo do período acima referido, F… beneficiou plenamente do imóvel e sem qualquer oposição.
12. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do acordo com a epígrafe “Aditamento ao Contrato de Promessa de Permuta” (fls. 194), do qual se destaca o seguinte excerto: “(…) Aditando o contrato de promessa de permuta, celebrado em 30.11.2012 (…) Cláusula Quarta A escritura de permuta será outorgada no máximo até 30.11.2014. Hoje, 12 de Agosto de 2014, foi outorgada a escritura pública de compra e venda do prédio misto em cima identificado, correspondente aos prédios inscritos na matriz sob os artigos rústico … e o artigo urbano …, pelo montante global de € 60.000,00 (Sessenta Mil Euros). Nesta data, a Primeira Outorgante entregou a totalidade da quantia recebida pela venda atrás identificada à sociedade A…, Lda. A Primeira Outorgante tomou já posse do imóvel em 30 de Novembro de 2012. Resultado desta escritura, as partes acordam em outorgar até 30.11.2014 apenas a escritura de compra e venda do imóvel a favor da Primeira Outorgante, sem mais contrapartidas, uma vez que já cumpriu a parte dela do contrato.”
13. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do cheque n.º … no valor de € 60.000,00, assinado pelo então legal representante da insolvente a favor de F.. (fls. 195).
14. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Declaração”, do qual se transcreve o seguinte excerto (fls. 196): “J…, sócio-gerente da empresa A… Lda. (…) declara que entrega a F… o cheque …. do Banco…., no valor de € 60.000,00 (Sessenta mil euros). Mais declara que este cheque serve de garantia adicional ao contrato de promessa de permuta, celebrado entre a referida A… Lda. E F…, uma vez que nesta data foi efectuado um aditamento ao referido contrato. F…, declara que recebe este cheque apenas como garantia em caso de J… ficar impedido de cumprir as obrigações da referida sociedade por morte ou invalidez…., 12 de Agosto de 2014. (…)”

Da impugnação deduzida por B… e C….

15. B… e C… eram donos do prédio acima identificado em 6.
16. A 18/02/2002, B… e C… prometeram comprar, pelo preço de € 90.000,00, a fracção identificada com a letra “K” descrita na CRP de … sob o n.º …/… [verba 14.ª do auto de apreensão].
17. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Contrato Promessa de Compra e Venda” (fls. 216), do qual se destaca o seguinte excerto: “(…) Entre: Primeiro Contraente: A…, Lda. Segundos Contraentes: C… (…) e  B… (…) Que acordam na celebração do presente contrato-promessa de compra e venda que se regerá pelos termos constantes das clausulas seguintes: Considerando que: 1 A primeira contraente é dona e legítima possuidora de metade de dois prédios urbanos (…) descritos na Conservatória do Registo Predial de  … sob o n.º … (…) 2 A primeira contraente irá demolir esses imóveis e construir, no espaço demolido, um bloco de apartamentos. Clausula primeira: Pelo presente contrato, a promitente vendedora prometer vender e os promitentes compradores prometem comprar um apartamento, tipologia T2, no rés do chão (parte virada para a serra) e garagem, do prédio que a primeira contraente irá construir (…). Clausula Terceira: O preço global da prometida venda será de € 90.000 (Noventa Mil Euros). Clausula quarta: O pagamento será efectuado da seguinte forma: € 90.000,00 (Noventa Mil Euros) na data da celebração deste contrato promessa, a título de sinal e totalidade de pagamento, da qual e pela presente via e forma, a primeira contraente, lhe dá a respectiva quitação. (…)”.
18. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Declaração”, do qual se transcreve o seguinte excerto (fls. 215): “(…) Primeiros: A…, Lda. (…) Segundos: B… (…) A primeira declara, para os devidos efeitos, que hoje, por escritura pública de compra e venda celebrada (…) adquiriu aos segundos, metade de dois prédios urbanos (…) descritos na Conservatória do Registo Predial de  … sob o n.º … (…). Declara ainda que, ao preço a pagar, aos segundos, na referida escritura, abateu o montante de € 90.000,00 (Noventa Mil Euros), respeitantes à aquisição, por parte dos segundos, de um apartamento, tipologia T2, e garagem, de um prédio a edificar nos atrás mencionados prédios urbanos. (…) Venda das Raparigas, 18 de Novembro de 2002. (…)”
19. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do acordo com a epígrafe “Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda Celebrado em 18.11.2002” (fls. 217), do qual se destaca o seguinte excerto: “(…) Entre: Primeiro Contraente: A…, Lda. Segundos Contraentes: C… (…) e B…(…) Que acordam as partes em aditar o contrato de promessa de compra e venda celebrado em 18.11.2002, alterando as seguintes clausulas: Clausula Primeira: A primeira contraente é dona e legítima possuidora de uma fracção autónoma designada pela letra “k” (…) descrita na Conservatória o Registo Predial de … sob o n.º 3752-k. Clausula Terceira: Pelo presente contrato a Promitente Vendedora promete vender e os Promitentes compradores prometem comprar a referida fracção autónoma. (…)…, 24 de Fevereiro de 2012. (…)”
20. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Termo de Entrega de Chaves”, do qual se transcreve o seguinte excerto (fls. 218): “(…) C… (…) e A… (…) declaram, para os devidos efeitos, que, nesta data, receberam de A…, Lda. (…), através do seu sócio gerente, Sr.J…, as chaves da fracção autónoma designada pela letra “k”, do prédio sito na Rua (…). Declaram ainda que inclui chaves da respectiva fracção autónoma, chaves da porta principal do prédio e chaves e comando da garagem, …., 28 de Maio de 2012. (…)”.
21. As aludidas chaves foram efectivamente entregues pelo gerente da insolvente – J… –a B… e a C….
22. Desde o mês de Junho de 2012 e ao longo de cerca de quatro anos que B… e C… residiram no imóvel.
23. No período acima indicado, B… e C… beneficiaram plenamente do imóvel e sem oposição.
24. No período acima indicado em 22., B… e C… instalaram no referido imóvel água, gás, bem como procederam em exclusivo ao pagamento dos respectivos consumos.
25. B… e C… adquiriram móveis, os quais foram colocados no interior da referida fracção.
26. B… e C… procederam à pintura do interior da referida fracção autónoma.
27. No período acima indicado em 22., na referida fracção autónoma B… e C… passaram a ter a sua residência fiscal.
28. Uma vez que a referida fracção não beneficiava de posto transformador de energia eléctrica instalado, B… e C…, em conjunto com os
restantes moradores da zona, passaram a pagar a energia eléctrica no seu todo.
29. No período acima indicado em 22., B… e C… dormiram na referida fracção, aí celebraram os respectivos aniversários, bem como o Natal.

Da impugnação deduzida por D… e E…

30. D… e E… eram donos de prédio sito na freguesia de … inscrito na respectiva matriz sob o n.º 1012. A 18/11/2002, a insolvente declarou adquirir o referido prédio, tudo nos termos acima exposto no ponto 6.º.
31. A 18/02/2002, D… e E… prometeram comprar, pelo preço de € 90.000,00, à insolvente a fracção identificada com a letra “V” descrita na CRP de ….sob o n.º …/… [verba 25.ª do auto de apreensão].
32. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Contrato Promessa de Compra e Venda” (fls. 205), do qual se destaca o seguinte excerto: “(…) Entre: Primeiro Contraente: A…, Lda. Tribunal Judicial da Comarca de Leiria Juízo de Comércio de Alcobaça - Juiz 1 Palácio da Justiça - Praça João de Deus Ramos 2461-502 Alcobaça Telef: 262580060 Fax: 262093539 Mail: alcobaca.comercio@tribunais.org.pt Proc. nº 544/15.0T8ACB-B Segundos Contraentes: E… (…) e D…(…) Que acordam na celebração do presente contrato-promessa de compra e venda que se regerá pelos termos constantes das clausulas seguintes: Considerando que: 1 A primeira contraente é dona e legítima possuidora de metade de dois prédios urbanos (…) descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … (…) 2 A primeira contraente irá demolir esses imóveis e construir, no espaço demolido, um bloco de apartamentos. Clausula primeira: Pelo presente contrato, a promitente vendedora prometer vender e os promitentes compradores prometem comprar um apartamento, tipologia T2, no rés do chão (parte virada para a serra) e garagem, do prédio que a primeira contraente irá construir (…). Clausula Terceira: O preço global da prometida venda será de € 90.000 (Noventa Mil Euros). Clausula quarta: O pagamento será efectuado da seguinte forma: € 90.000,00 (Noventa Mil Euros) na data da celebração deste contrato promessa, a título de sinal e totalidade de pagamento, da qual e pela presente via e forma, a primeira contraente, lhe dá a respectiva quitação. (…)”
33. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do acordo com a epígrafe “Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda Celebrado em 18.11.2002” (fls. 204), do qual se destaca o seguinte excerto: “(…) Entre: Primeiro Contraente: A…, Lda. Segundos Contraentes: E… (…) e D…(…) Que acordam as partes em aditar o contrato de promessa de compra e venda celebrado em 18.11.2002, alterando as seguintes clausulas: Clausula Primeira: A primeira contraente é dona e legítima possuidora de uma fracção autónoma designada pela letra “V” (…) descrita na Conservatória o Registo Predial de … sob o n.º …-V. Clausula Terceira: Pelo presente contrato a Promitente Vendedora promete vender e os Promitentes compradores prometem comprar a referida fracção autónoma. (…) …, 24 de Fevereiro de 2012. (…)”.
34. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Declaração”, do qual se transcreve o seguinte excerto (fls. 206): “(…) Primeiros: A…, Lda. (…) Segundos: E… (…) e D…(..) A primeira declara, para os devidos efeitos, que hoje, por escritura pública de compra e venda celebrada (…) adquiriu aos segundos metade de dois prédios urbanos (…) descritos na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º … (…). Declara ainda que, ao preço a pagar, aos segundos, na referida escritura, abateu o montante de € 90.000,00 (Noventa Mil Euros), respeitantes à aquisição, por parte dos segundos, de um apartamento, tipologia T2, e garagem, de um prédio a edificar nos atrás mencionados prédios urbanos. (…) Venda das Raparigas, 18 de Novembro de 2002. (…)” 35. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento com a epígrafe “Termo de Entrega de Chaves”, do qual se transcreve o seguinte excerto (fls. 207): “(…) E… (…) e D…(…) declaram, para os devidos efeitos, que, nesta data, receberam de A…, Lda. (…), através do seu sócio gerente, Sr. J…, as chaves da fracção autónoma designada pela letra “V”, do prédio sito na Rua (…). Declaram ainda que inclui chaves da respective fracção autónoma, chaves da porta principal do prédio e chaves e comando da garage. …, 28 de Maio de 2012. (…)”.


36. Desde o referido mês de Maio de 2012 e ao longo de cerca de quatro anos, que D… e E… passaram a residir no imóvel.
37. No período acima referido em 36., D…e E… beneficiam plenamente do imóvel e sem oposição.
38. D… e E… instalaram no referido imóvel água, gás, bem como procederam em exclusivo ao pagamento dos respectivos consumos.
39. D… e E… adquiriram móveis, os quais foram colocados no interior da referida fracção.
40. D… e E… procederam à pintura do interior da referida fracção autónoma.
41. No período acima referido em 36., na referida fracção autónoma D… e E… passaram a ter a sua residência fiscal.
42. Uma vez que a referida fracção não beneficiava de posto transformador de energia eléctrica instalado, D… e E… , em conjunto com os restantes moradores da zona, passaram a pagar a energia eléctrica no seu todo.
43. No decurso do período acima indicado em 36., D… e E… dormiram na referida fracção, aí celebraram os respectivos aniversários bem como o Natal.

                                                                                            *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a credora recorrente levanta duas questões:
A que se prende com saber se para a atribuição do direito de retenção aos créditos dos impugnantes seria necessária a existência de uma prévia sentença condenatória, o que não se verifica;
E se, de todo o modo, nunca ocorreu incumprimento definitivo da parte da devedora/insolvente, sendo esse incumprimento indispensável para a constituição do crédito da restituição do sinal em dobro a que se reporta o art.º 442 do C.Civil, crédito esse que é o fundamento do direito de retenção

Não houve contra-alegações.

Sobre a necessidade de uma sentença condenatória.

Defende a recorrente que os impugnantes só podiam ver reconhecidos os seus créditos mediante uma sentença de condenação da devedora, sentença da qual não se muniram oportunamente.
Salvo o devido respeito, não tem razão.
Se não vejamos.

Diferentemente do que sucede na execução singular, onde a prévia formação de um título exequível é imprescindível ao ingresso no concurso de credores com garantia real sobre os bens penhorados, podendo inclusivamente aguardar-se a produção desse título (art.ºs 788, nºs 1 e 2 e 792, nº 1, do CPC), o credor que disponha de um qualquer crédito relativamente ao devedor, ainda que não reconhecido judicialmente, não está impedido de o reclamar no respectivo processo de insolvência. É apenas aqui que, perante o universo dos credores sobre a insolvência, o crédito deve ser reclamado, discutido e, se for caso disso, declarado/verificado com vista à sua graduação e pagamento. Não se podendo então falar de sentença condenatória, cuja exigência só faz sentido no processo executivo para a obtenção de um título com força executiva. Porque na insolvência é o contraditório dos credores absolutamente essencial para o reconhecimento e pagamento de qualquer crédito, a segunda parte do nº 3 do art.º 128 do CIRE estabelece que “mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”
De resto, o nº 1 do art.º 128 do CIRE determina tão só que o requerimento dos credores que pretendam reclamar os seus créditos seja acompanhado “de todos os documentos probatórios de que disponham”, o que claramente significa que há uma fase declarativa que se inicia e tem lugar no processo de insolvência destinada à prova do créditos reclamados.

Em suma, tal como se acha formulada, esta questão não pode ser acolhida com a finalidade que a recorrente dela pretende extrair.

Sobre a não demonstração do incumprimento definitivo da devedora A…, Lda. e a sua implicação sobre os créditos dos impugnantes que pretendem ser indemnizados em dobro dos sinais prestados.

A propósito desta segunda questão a recorrente suscita o problema – que verdadeiramente centraliza o objecto recursivo – da delimitação dos pressupostos do reconhecimento e declaração do direito de retenção que a sentença recorrida concedeu aos créditos dos três credores impugnantes.
Insurge-se desde logo contra a presença de um desses pressupostos: o de que o crédito relativamente ao qual se invoca o direito de retenção se funda no incumprimento definitivo da devedora nos termos do art.º 442 do C. Civil.
Apreciando.

Como é sabido, o direito de retenção consiste na faculdade conferida ao devedor de reter a coisa que está obrigado a entregar ao credor por dispor de um crédito contra esse credor resultante de despesas feitas por causa da coisa ou por danos por ela causados – art.º 754 do C. Civil.
Trata-se, assim, de um direito real de garantia que integra o capítulo do Código Civil destinado às garantias especiais das obrigações (Capítulo VI, Título I, Livro II).
Para o que agora interessa, importa averiguar se os credores impugnantes gozam do direito de retenção dos imóveis em questão e, no caso afirmativo, em que termos.

Estabelece a alínea f) do nº1 do art.º 755 do CC que o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, goza do direito de retenção sobre essa coisa pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442.
Sintetizando estes requisitos escreve Calvão da Silva[1]:
“Em primeiro lugar, goza do direito de retenção o beneficiário de promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa objecto do contrato prometido. Vale dizer que o titular do direito de retenção é o beneficiário de qualquer contrato-promessa com traditio rei (…). Em segundo lugar, o direito de retenção existe para garantia do crédito resultante do não cumprimento imputável à parte que promete transmitir ou constituir um direito real. Vale dizer, por outras palavras, que está em causa o crédito (dobro do sinal, valor da coisa, indemnização convencionada nos termos do nº 4 do art.º 442) derivado do incumprimento definitivo.”
Há ainda que ter em conta a jurisprudência uniformizada sobre o direito de retenção resultante de contrato-promessa de compra-e-venda em processo insolvencial, jurisprudência que só o confere ao promitente comprador simultaneamente consumidor (cfr. o AUJ nº 4/2014 de 19 de Maio de 2014, DR nº 95, Série I, e também o AUJ 4/2019 de 25 de Julho de 2019, DR nº 141, Série I).
Na sentença recorrida considerou-se que se encontravam preenchidos os requisitos necessários ao reconhecimento do direito de retenção de todos os credores impugnantes provenientes dos três contratos-promessa juntos aos autos a fls. 47 e 60 v (estes datados de 18 de Novembro de 2002) e 75 v (este de 20 de Novembro de 2002).
Vejamos agora se com acerto.

Os credores impugnantes reclamam créditos fundados no incumprimento da promitente vendedora, à luz do art.º 442 do CC, sendo dois deles no montante do dobro do sinal prestado (caso dos credores B… e mulher C… e D… e mulher E…) e o terceiro – o da credora F…– no montante do valor atribuído ao imóvel prometido comprar (€ 60.000,00) acrescido de juros e despesas.
Note-se, quanto a este último crédito, que embora as partes tenham celebrado inicialmente um contrato-promessa de permuta, vieram a outorgar separadamente o contrato de compra-e-venda tendo por objecto os imóveis pertencentes à credora F…, estabelecendo um prazo suplementar para a outorga da escritura de compra-e-venda da fracção autónoma pertencente à sociedade A…, Lda., sem qualquer

outra contrapartida da compradora. Quer dizer, mantiveram a promessa de venda da fracção à aludida credora dando o respectivo preço por integralmente pago.
No que concerne aos créditos derivados para os impugnantes B… e mulher C… e D… e mulher E…, outorgantes nos dois contratos de 18 de Novembro de 2002, não foi questionada a sua natureza de contratos-promessa de compra-e-venda nem a verificação do requisito da tradição da coisa obtida pelos impugnantes.
Com efeito, da inspecção do clausulado em tais contratos constata-se que o preço estipulado para os promitentes-compradores aí identificados foi em ambos os casos de € 90.000,00, tendo sido neles declarado que o mesmo se encontrava totalmente pago na data da celebração dos contratos e que a sua entrega revestia o carácter de sinal.
Do confronto destes contratos com os aditamentos de 24 de Fevereiro de 2012 – cfr. fls. 47 v e 61 – e com o documento aludido em 18 e 34 dos factos provados, conclui-se que os preços estipulados e havidos como logo recebidos, foram realmente pagos através um negócio realizado naquela mesma data que teve por objecto a venda à promitente-vendedora A…, Lda, de dois prédios urbanos ali identificados, que na proporção de 1/3 e 2/3 pertenciam a cada casal dos promitentes-compradores outorgantes nos contratos de 18 de Novembro de 2002 – cfr. o documento de fls. 87v a 89.
Decorrendo dos factos provados em 18 e 34 que o preço de € 90.000,00 de cada uma das vendas prometidas a estes dois outorgantes naqueles contratos promessa foi considerado pelas partes abatido através da venda daqueles prédios urbanos ( 350.000,00).
Neste quadro, sem embargo de não ter ocorrido a entrega material da quantia/verba mencionada em cada um dos contratos promessas, é de configurar como sinal entregue pelos promitentes compradores o valor de € 90.000,00 mencionado em cada um dos contratos promessa como sinal e totalidade de pagamento –cfr. os factos provados em 17 e 32.[2]
Outro tanto não podemos dizer da posição da impugnante F….
Sendo ela inicialmente beneficiária de um contrato-promessa de transmissão de um direito real, celebrado em 30 de Novembro de 2012 com a promitente A…, Lda, mediante o qual as partes prometeram permutar um prédio misto desta impugnante com uma fracção autónoma propriedade da devedora, veio aquele contrato a reduzir-se à promessa de venda desta fracção.
Entretanto, a promitente A…, Lda, tomou posse do prédio misto em 30 de Novembro de 2012, vindo a comprá-lo à impugnante por escritura pública de 12 de Agosto de 2014, sem desembolso do preço aí convencionado e com a entrega de uma cheque de 60.000,00 para “garantia” da impugnante – cfr. os factos provados de 12 a 14.
É certo que do clausulado do contrato-promessa de permuta documentado nos autos decorre também que nesse acto houve o pagamento de um sinal de € 5.000,00 pela impugnante e promitente F… (sendo, no entanto, de relevar que no crédito reclamado não vem pedida a indemnização correspondente ao dobro do mesmo sinal). Mas, como se disse, vendido o prédio da dita impugnante, as partes mantiveram a promessa de venda da fracção pertencente à devedora/insolvente. De todo o modo, esta impugnante encontra-se desembolsada do montante correspondente ao preço não recebido (€ 60.000,00) que engloba no valor do seu crédito.

Seja como for, nas respectivas conclusões, o recurso não contempla qualquer ataque ao montante pelo qual a sentença verificou e graduou este crédito.
Não vindo questionada no recurso a qualidade de consumidores dos credores impugnantes, tendo em atenção a doutrina fixada no AUJ nº 4/2014, publicado no DR, 1ª Série, nº 95, de 19 de Maio de 2014, resta agora ponderar a questão concretamente suscitada no recurso da ausência de incumprimento definitivo por banda da devedora/insolvente em face da subsistência de um mero incumprimento temporário, ou seja, de uma mora.

Importa ter em conta que os contratos invocados pelos impugnantes radicam em contratos-promessa não cumpridos pela devedora/insolvente na data da declaração de insolvência.
Estamos assim confrontados com o regime do CIRE para os chamados “Negócios em curso”, regime esse que se acha traçado nos art.ºs 102 e ss.
Já no que concerne aos contratos-promessa, importa ter presente o art.º 106 do CIRE, preceito que, sobre a denominada “Promessa de contrato”, contem uma disciplina própria para os contratos-promessa de compra e venda ainda não cumpridos pela devedora.
Declarada a insolvência não pode subsistir a mora nos negócios não cumpridos pelo devedor.
Do regime constante dos art.ºs 102 e ss. do CIRE decorre que uma de três hipóteses pode ocorrer no que respeita à atitude do administrador da insolvência sobre os contratos bilaterais não cumpridos:

Ou cumpre o contrato;
Ou recusa o seu cumprimento, por tal lhe estar vedado por lei ou por sua livre opção;
Ou nada diz, ou seja, não cumpre nem recusa o cumprimento, sujeitando-se à fixação de prazo para a opção pela outra parte, findo o qual se considera que a recusa opera.


No que se atem à recusa de cumprimento de contratos-promessa de compra e venda em que houve insolvência do promitente vendedor, o nº 1 do art.º 106 do CIRE contem uma limitação/proibição: não pode haver recusa do contrato-promessa com eficácia real se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.
A interpretação literal deste preceito conduz-nos a ter por lícita a recusa do administrador da insolvência dos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, haja ou não traditio rei a favor do promitente-comprador.
É verdade que nos presentes autos o administrador da insolvência não só não declarou querer cumprir como não manifestou expressamente a sua recusa do cumprimento após as impugnações dos três créditos não reconhecidos.
Tal não quer dizer que que não valha a respectiva recusa que pode ser meramente tácita.
Na verdade, os créditos não foram reconhecidos pelo administrador na lista que apresentou nos termos do art.º 129 do CIRE, nem em momento posterior às impugnações deduzidas.
Seria redundante que após estes comportamentos o administrador viesse declarar a recusa do cumprimento dos aludidos contratos ou de alguns ou algum deles.[3]
Não se justifica, por isso, considerar os créditos dos impugnantes sob a condição suspensiva do cumprimento dos negócios nos termos do nº 1 do art.º 102 e 50, nºs 1 e 2, al.ª a), do CIRE.

De todo o modo, dúvidas não podem existir de que todos os contratos-promessa dos impugnantes têm eficácia obrigacional e que em todos eles houve traditio rei, como já se deixou dito.
Divide-se, no entanto, a doutrina quanto à possibilidade de aplicação das consequências civilísticas do incumprimento do contrato-promessa previstas no art.º 442 do C. Civil, havendo quem a admita e quem em afaste em termos absolutos face à disciplina específica do CIRE sobre a recusa do cumprimento[4].

Tema sobre o qual nos é imposto tomar partido, uma vez que, questionando a verificação do incumprimento da devedora, a apelante põe igualmente em causa o valor dos créditos dos impugnantes que reclamam o pagamento do sinal em dobro.

Dispõe a referida norma da lei civil (art.º 442):
“1 - (…).
2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago. 
3 – (…).
4 – (…)”.
Por seu turno, prescreve-se no art.º 102, nº 3, do CIRE:
“Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência (…):
a) (…)
b) (…)
c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;
d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:
i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);
ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito por aplicação da alínea c);
iii) Constitui crédito sobre a insolvência.
e) (…)
4. (…)”.
 
O regime que emerge da aplicação do disposto no nº 3 do art.º 102, ex vi do nº 5 do art. 104 e nº 2 do art.º 106, todos do CIRE, é claramente menos favorável para a contraparte do devedor, reduzindo significativamente a indemnização. Mas não deixa de ser uma estratégia coerentemente concebida para atenuar os efeitos que adviriam para a massa insolvente do funcionamento em pleno do art.º 442 do C. Civil.
Afigura-se-nos que o CIRE quis afastar em qualquer caso – haja ou não sinal, haja ou não traditio rei a intervenção sancionatória contida no art.º 442 do C.Civil 
Desde logo não divisamos uma base argumentativa suficientemente forte para aplicar o regime do art.º 102, nº 3, do CIRE só aos contratos-promessa não sinalizados, ficando os sinalizados sujeitos à disciplina do art.º 442 do C. Civil.
Já se compreende melhor a posição de Menezes Leitão quando este autor defende a aplicação única ou exclusiva do regime do nº 3 do art.º 102 do CIRE, sem embargo de sustentar a inadmissibilidade da recusa de cumprimento pelo administrador na hipótese de já ter havido tradição da coisa mesmo que o contrato tenha eficácia meramente obrigacional.
Esta inadmissibilidade não parece, no entanto, compaginável – ou fácilmente compaginável – com a redacção do art.º 106, nº 1, do CIRE, por, diante dela, não se conceber que o legislador só tenha visado a recusa do administrador nas situações de tradição da coisa em que as partes atribuíram eficácia real à promessa.
Sempre salvo respeito por opinião diversa, não cremos que o legislador tenha deixado passar em claro (isto é, tenha deixado sem regulação) aquelas situações em que, apesar da eficácia meramente obrigacional, houve tradição da coisa susceptível de dar lugar ao direito de retenção nos termos do art.º 755, nº 1, al.ª f) do C. Civil.[5]



Impressionando nestas situações a confiança que se pode ter gerado no promitente-comprador na solidez do vínculo[6], não se pode, ainda assim, perder de vista que:

1. A tradição que para aqui pode relevar é aquela que é fundante do próprio direito de retenção, à luz do conceito plasmado na alínea f) do nº 1 do art.º 755 do C. Civil;
2. O direito de retenção é sempre um direito real de garantia que caduca com a venda do bem, transferindo-se o direito do terceiro garantido para o produto da venda – art.º. 824, nºs 2 e 3 do C. Civil.

Mais consistente se nos afigura a solução – propugnada, entre outros, por Catarina Serra – de afastar sempre a aplicação do chamado regime civilístico do incumprimento do contrato em que se constituiu sinal a que se refere o nº 2 do art.º 442 do C. Civil.
Com efeito, a recusa do cumprimento é um acto lícito do administrador (inserido no exercício de um verdadeiro direito potestativo, como tal reconhecido e conferido por lei), enquanto o incumprimento da parte fora do âmbito da insolvência é indiscutivelmente um facto ilícito.
Sendo que este acto é, em princípio culposo, atento que na responsabilidade contratual se presume a culpa do devedor (art.º 799, nº 2 do C. Civil).
É verdade que a actual redacção do art.º 755, nº 1, al. f), do C. Civil concede o direito de retenção “pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º.”
Devendo inferir-se daqui que o crédito resultante de incumprimento no contrato-promessa em que não haja sinal constituído (única hipótese versada no art.º 442) não pode beneficiar do direito de retenção.
Não crendo nós que tenha sido esse o objectivo do preceito, tal como ele se acha redigido é muito difícil defender que o promitente comprador que não haja passado sinal possa ter direito a qualquer forma de indemnização do art.º 442.
Significando isto que a disciplina do art.º 442 do C. Civil só vale para contratos em que haja sinal constituído, o que nem sempre sucede no contrato-promessa. 
A referência da alínea f) do nº 1 art.º 755 ao art.º 442 confere ao beneficiário da promessa várias opções de indemnização ou reparação, sendo que qualquer dessas opções está garantida pelo direito de retenção.
Só que o art.º 442 se situa na ilicitude. 
Diferentemente, o art.º 102 o CIRE conferiu, em princípio, licitude à recusa do cumprimento pelo administrador, para o que terá sopesado as vantagens que podem advir para a massa com o não cumprimento do contrato pelo administrador.
Como se sabe, há factos lícitos que desencadeiam a responsabilidade civil de quem deles aproveita e, consequentemente, impõem a obrigação de indemnizar os respectivos lesados (de que é exemplo paradigmático a expropriação).
Bem se compreendendo que, não obstante declarar lícita a recusa do cumprimento do contrato pelo administrador da insolvência, em homenagem a um justo balanceamento entre o interesse geral dos credores em obter a máxima satisfação dos seus créditos com a execução universal do património do insolvente e a natural preocupação em não defraudar por inteiro a legítima expectativa que acompanhava o outro contraente – em ver aplicada a sanção do art.º 442, nº 2, do C. Civil ao incumprimento do insolvente – o legislador do CIRE não tenha querido deixar este último sem qualquer tipo de protecção.
Protecção esta que o nº 3 do art.º 102 do CIRE previu em dois planos:
O primeiro é o da correcção do eventual empobrecimento gerado entre as partes, procurando suprimir o desequilíbrio produzido pelas deslocações patrimoniais provenientes do próprio contrato. A ele se reportam as alíneas a) a c) do nº 3 do art.º 102.
O segundo é o que concerne ao ressarcimento dos prejuízos causados com a recusa, que a alínea d)) qualifica de “direito à indemnização” e constitui um crédito sobre a insolvência (alínea iii).
Sem prejuízo da remessa que para o nº 3 do art.º 102 é sucessivamente feita pelos art.ºs 106, nº 2, e 104, nº 5, todos do CIRE, não se vê como as alíneas a) a c) poderão funcionar num contrato-promessa de compra-e-venda, uma vez que aí a prestação de uma das partes envolve forçosamente apenas a transmissão da propriedade do bem.
Já interessará, todavia, a este tipo contratual a determinação do “direito de indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento” que vem regulada na alínea c).
O “direito à indemnização” do promitente-comprador que deflui do CIRE é, por conseguinte, necessariamente mais restrito do que o estatuído no art.º 442, nº 2, do C. Civil, até porque, de harmonia a al.ª i), está delimitado e compreendido no “valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da al.ª b)”.
O limite da indemnização prevista no nº 3, al. i) do art.º 102 do CIRE é, na observação de Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE ANOTADO, Vol. I, p.395, nota 10, o do “valor da obrigação que a al. b) impõe à contraparte do insolvente”, ou seja, o “valor da contraprestação” correspondente à prestação a cargo do insolvente.
No caso dos créditos reclamados que são computados no dobro do sinal prestado, impõe-se apenas a restituição do sinal entregue, ou seja, € 90.000,00 para cada um deles. É essa, portanto, a indemnização insolvencial que, nos termos do nº 2 do art.º 106, nº 5 do art.º 104 e nº 3 do art.º 102 do CIRE, cabe aos impugnantes B… e mulher e D… e mulher. Por sua vez, no que toca à impugnante F…a respectiva indemnização consistirá no valor prestado e entregue à devedora para pagamento da fracção por ela prometida adquirir, ou seja, valor que foi considerado em débito pelas partes com a venda dos imóveis à devedora A…, Lda, - ou seja, € 60.000,00.
Nesse seu crédito sobre a insolvência não se compreenderiam nem os juros nem os honorários de advogado que peticiona.
Todavia, como já sublinhou o recurso não se dirigiu à verificação e graduação do montante em que este crédito foi reclamado na impugnação, verificação que pura e simplesmente julgou procedente a impugnação pelo concreto valor apresentado pela impugnante - € 70.200,00.
De sorte que há que manter a decisão na parte não recorrida.   

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogando em parte a sentença recorrida, julgam as impugnações procedentes do seguinte modo:

A. Os créditos objecto das impugnações deduzidas são reconhecidos como créditos sobre a insolvência nos seguintes valores:
1. O crédito dos impugnantes B… e mulher C… é reconhecido/verificado no montante de € 90.000,00;
2. O crédito dos impugnantes D… e mulher E… é reconhecido/verificado no montante de € 90.000,00;
3. O crédito de F… é reconhecido/verificado no montante de € 70.200,00.
B. Estes créditos assumem natureza privilegiada e cada um deles está garantido pelo direito de retenção sobre as fracções que foram objecto dos contratos-promessa celebrados com os impugnantes melhor identificadas na matéria provada.

Custas pelos apelados A… e mulher C… e D… e mulher E….

(…)

                                            Coimbra, 7 de Setembro de 2021


    
                                                           (Freitas Neto – Relator)
                                                           (Paulo Brandão)
                                                           (Carlos Barreira)              
 


 

 
   


 




































[1] Sinal e contrato-promessa, Coimbra, 1988, p. 111.
[2] Vemos aqui uma declaração das partes no sentido de uma compensação de créditos reciprocamente reconhecidos (art.º 847, nº 1, do CC), acordada entre credores e devedores, pela qual o crédito da quantia em causa não pode deixar de valer como sinal totalizando o preço devido pelos compradores.
É oportuno lembrar que a doutrina tem construído o conceito de sinal com suficiente elasticidade, definindo-o como “a coisa (fungível ou não), normalmente dinheiro, entregue por um dos contraentes ao outro ao mesmo tempo da conclusão do contrato ou até em data ulterior ” (Gravato Morais),coisa (dinheiro ou outra coisa fungível ou não fungível) que um dos contraentes entrega ao outro, no momento da celebração do contrato ou em momento posterior, como prova da seriedade do seu propósito negocial e garantia do seu cumprimento, ou como antecipação da indemnização devida ao outro contraente, na hipótese de o autor do sinal se arrepender do negócio e voltar atrás” (Antunes Varela), “modo de determinação antecipada da indemnização devida pelo incumprimento do contrato” (Galvão Telles), “entrega, no momento da celebração do contrato ou em momento posterior, por um dos contraentes ao outro, de coisa que coincida, no todo ou em parte, com a prestação a que fica adstrito, desde que tal qualificação lhe seja atribuída pelas partes” (Ana Prata), ou “uma coisa normalmente, uma quantia pecuniária, que um dos contraentes entrega ao outro, no momento da celebração do contrato ou em momento posterior” (Calvão da Silva).
O denominador comum em todas estas definições é a especificação de algo de valor que, ao ser entregue, permite saber de antemão as consequências do incumprimento definitivo por banda do accipiens.    
[3] Nada parecendo obstar a que, pelo menos até ao trânsito da sentença de verificação dos créditos, revendo a sua posição, o administrador da insolvência se disponha a cumprir o contrato e isso se venha a concretizar com a anuência da outra parte.
[4] Sustentando alguns autores – como Pestana de Vasconcelos e Gravato Morais – a aplicabilidade desse regime civilístico apenas às promessas sinalizadas
[5] Note-se que no segmento uniformizador do aludido AUJ de 2014 não foi declarada a admissibilidade da recusa do cumprimento pelo AI sempre que tivesse havido traditio rei, sem embargo da adesão que a esse entendimento ficou patenteada na respectiva fundamentação. É de realçar a circunstância de terem sido vários os votos de vencido que se insurgiram contra uma tal interpretação do nº 2 do art.º 106 do CIRE, como, de resto, se observou no Ac. do STJ de 21.06.2016 prof. na p. nº 3415/14.3CLRS-C.L1.S1, (Rel Cons. Júliuo Gomes) citado na sentença.
[6] Aspecto este que aparece realçado na fundamentação do AUJ nº 4/2014 de 20.03.2014, in DR 1º Série de 19.05.2014 anteriormente convocada.