Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
589/12.1T2ILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DECISÃO POR DESPACHO JUDICIAL
SILÊNCIO
ARGUIDO
NULIDADE
Data do Acordão: 05/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE PEQUENA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO (COMARCA DO BAIXO VOUGA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 64.º DO RGCO; ARTIGO 120.º, N.º 2, ALÍNEA D), DO CPP
Sumário: I - Não pode o julgador, sem ofensa do contraditório, logo, das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho da impugnação judicial da decisão administrativa, em casos, como o dos autos, em que: (i) foram negados os factos; foi apresentada, a par de prova documental, prova testemunhal; o despacho proferido (o recorrido) não deixa antever, minimamente, os motivos da irrelevância da prova arrolada; o despacho, para os efeitos referidos na parte final do artigo 64.º, n.º 2, do RGCO, foi proferido nos seguintes termos: «notifique o arguido e o MP para (…) declararem se se opõem ou não a que seja proferida decisão naqueles termos».

II - A dita violação do direito de defesa, porque redunda na preterição da realização da audiência de julgamento - diligência essencial para a descoberta da verdade -, consubstancia uma nulidade processual, enquadrável na al. d) do n.º 2 do artigo 120.º do CPP.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária de 09.11.2011 foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, condenado, pela prática, a título de negligência, de uma contra-ordenação ao disposto no artigo 60.º, n.º 1 do Regulamento de Sinalização do Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar nº 22-A/98, de 1 de Outubro, punida nos termos do artigo 65º, a) do citado diploma e artigos 138º e 146º, al. o) do Código da Estrada, na coima de € 74,82 [setenta e quatro euros e oitenta e dois cêntimos] e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 [sessenta] dias.

2. Inconformado o arguido impugnou judicialmente a decisão.

3. Recebido o recurso – que correu sob o n.º 589/12.1T2ILH na Comarca do Baixo Vouga – Ílhavo – Juízo de Pequena Instância Criminal – por despacho de 06.02.2013 decidiu o tribunal pela sua improcedência, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.

4. Não se conformando com o assim decidido recorreu o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

A. Com o presente recurso sobre os vícios da decisão recorrida, primacialmente relativa à participação do recorrente na acção típica e demais circunstancialismo, não se pretende colocar em causa o exercício das mui nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão – somente exercer o direito de “manifestação de posição contrária” ou “discordância de opinião”, traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do nº 1 do art. 61º CPP e no nº 1 do art. 32º da CRP.

B. Mostra-se o recorrente prejudicado nos seus direitos e garantias de defesa com a proferição de douta decisão mediante despacho e interpretação do seu silêncio sobre a oposição a tal forma de decisão como de assentimento e não oposição a tal possibilidade, uma vez que tal qual decorre da impugnação judicial formulada, verifica-se para cabal salvaguarda dos seus direitos e interesses processuais, a necessidade e essencialidade de audição da prova testemunhal, expressamente arrolada para tal efeito, devendo assim ser anulada a douta decisão proferida e facultado o exercício de tal direito;

C. Tem-se por disforme à Lei fundamental, por violação dos n.ºs 1 e 10 do art. 32º CRP e consequente privação do arguido de um dos direitos constitucionais e elementares que um Estado de Direito justamente lhe concede (o exercício de contraditório e garantias de defesa, assentes no fair trial), a interpretação e dimensão normativa do art. 64º n.º 2 do DL 433/82 no sentido de o mesmo colocar sobre o arguido um ónus de expressamente se opor à decisão por mero despacho e interpretar o seu silêncio como assentimento/não oposição, sem se mostrar o Tribunal vinculado a interpretar a impugnação judicial deduzida, que não se reduzindo à mera prova documental (por fazer alusão expressa à essencialidade de audição das testemunhas arroladas) deixava antever a necessidade de realização de audiência de discussão e julgamento, um dos requisitos cumulativos a obstar à decisão por simples despacho;

D. Verifica-se uma preterição do princípio do inquisitório e demissão ajuizativa relativamente à prova junta pelo impugnante e encerra a douta decisão proferida erro notório na apreciação da prova bem como erro interpretativo da norma legal plasmada no n.º 3 do art. 171º CE, uma vez que a mesma não exige e identificação e condutor mas tão-só de pessoa distinta, o que se mostra efectivado pelo arguido em sede de prova documental junta, estando identificados os donos do stand vendedor bem como o comprador, sendo tal negócio celebrado em momento anterior à suposta prática da infracção, que é assim totalmente desconhecida por parte do arguido;

E. Tem-se por inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade, a dimensão normativa e interpretação do art. 171º n.º 3 CE no sentido de impor sobre o titular do documento de identificação do veículo o ónus de identificar o condutor do veículo na ocasião da infracção, não se bastando a elisão da presunção de responsabilidade com a invocação e prova de prévia colocação do veículo para venda num stand bem como celebração de tal negócio em momento anterior à transgressão, com identificação de comprador e dono do stand, mediante nomes completos, moradas e números de contribuinte dos intervenientes;

F. Apresenta-se igualmente disforme à lei fundamental, por identidade de motivos, a interpretação da mesma norma legal sempre e quando, na falta de qualquer elemento identificativo da pessoa distinta como autora da contra-ordenação não seja de requerer ao arguido ou a tais pessoas que sejam tais elementos completados e se possa, sem mais, decidir pela condenação do arguido sem averiguação da real verdade materialmente verdadeira;

G. A douta decisão recorrida assenta no que se julga uma falácia argumentativa, radicada numa errada interpretação e valoração da prova globalmente considerada, redundando numa colagem evidente, ostensiva e expressa à decisão administrativa contra o recorrente e sem que tenha sido efectuada qualquer prova da sua culpabilidade pois a uma omissão de produção de prova juntou-se uma deliberada ausência de adição, nada autorizando que se presuma por provado (é esse o requisito!) um facto sem que exista prova bastante face ao mesmo

H. Não poderá ser assacada qualquer infracção ao arguido, não tendo o mesmo qualquer culpa pelo que, atenta a inexistência da mesma e na senda do brocardo latino, nulla poena sine culpa, deverá o presente processo de contra-ordenação ser arquivado contra si por inexistência de fundamento legal no qual se escude, ou seja, pela não verificação dos requisitos positivos de punibilidade uma vez que nunca o recorrente conduziu o veículo no circunstancialismo descrito no auto de contra-ordenação, não podendo, em obediência ao princípio da culpa, haver pena sem culpa, a qual, socorrendo-nos das palavras do Ilustre Professor Doutor Costa Andrade, constitui “axioma antropológico fundamental, como reverso da dignidade humana, a estrela polar da constelação axiológica constitucional”, encontra consagração legal no n.º 2 do art. 40º CP.

Normas jurídicas violadas: maxime arts. 1º, 2º, 64º nº 2, 72º DL 433/82; art. 171º nº. 3 CE; arts. 124º nº. 1, 127º, 410º n.º 2 CPP; arts. 1º, 13º nº. 1, 18º n.ºs 1 e 2, 32º n.ºs 1 e 10 CRP; art. 514º nº. 1 CPC; art. 9º CC; art. 60º nº. 1 do Regulamento de Sinalização de Trânsito.

Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime livre apreciação da prova, in dubio pro reo, da culpa, contraditório e garantias de defesa, legalidade, igualdade e proporcionalidade.

Destarte,

Sempre com o V/ mui douto suprimento

requer-se, mui humilde e respeitosamente a V/Exas., a admissão e procedência do presente recurso, com a consequente revogação da douta decisão proferida, atentos os vícios de que o mesmo padece (erro notório na apreciação da prova, preterição do exercício do contraditório, errada interpretação de normas legais e violação de princípios constitucionais bem como contradição entre factualidade provada, fundamentação e decisão) e absolvição do recorrente.

Na verdade, sem prejuízo da preterição dos seus direitos e garantias de defesa, sempre a prova documental junta imporia decisão diversa por se mostrar preenchida e cumprida a obrigação de identificação de pessoa distinta como autora da infracção, devendo, em nome do princípio da culpa e da verdade material o recorrente ser absolvido da prática dos factos pelos quais se mostra condenado, em razão da ausência de prática de qualquer facto ilícito e punível e não preenchimento do tipo de ilícito objectivo;

V/Exas., seres humanos sábios, pensarão e decidirão necessariamente de forma justa por ser impossível alcançar justiça sem sabedoria, todavia, como sempre, decidindo farão a costumada e almejada

Justiça, rainha e senhora de todas as virtudes!

5. O Exmo. Procurador Adjunto respondeu ao recurso, concluindo:

1. Tendo sido o arguido notificado nos termos do art.º 64.º, n.º 2, do RGCO, sem a advertência de que o seu silêncio equivaleria a uma não posição, não poderá a ausência de resposta ser interpretada como não oposição a que a causa seja decidida através de simples despacho, especialmente quando arrolou testemunhas na sua impugnação judicial.

2. Assim, ao ter-se proferido decisão por despacho, terá sido praticada uma nulidade processual susceptível de ser enquadrada na al. d) do n.º 2 do art. 120º do C.P.P., o que determinará a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que designe dia para realização de audiência de julgamento,

3. Caso assim não se entenda, no que respeita às outras questões elencadas pelo arguido, deverá manter-se o douto despacho ora recorrido, concordando-se integralmente com a argumentação aí aduzida.

Com o que se fará


JUSTIÇA

6. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal.

7. Na Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto apôs o correspondente visto.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

                       De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

                        Neste quadro, as questões colocadas traduzem-se em saber se:

                        - No caso concreto, a interpretação do silêncio do arguido - na sequência da notificação para o efeito do artigo 64º do RGCO - como assentimento ou não oposição a que a decisão fosse tomada por mero despacho, violou os seus direitos de defesa, designadamente o princípio do contraditório;

                        - Ocorreu erro notório na apreciação da prova;

                         - Se se verificou uma errada interpretação do artigo 171º, nº 3 do Código da Estrada, padecendo, ainda, de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade, a interpretação do artigo 171º, nº 3 do Código da Estrada levada a efeito pelo tribunal.

2. A decisão recorrida

É do seguinte teor o despacho recorrido:

A..., portador do BI n.º (...), com residência na Rua (...), Casal Comba, arguido nos presentes autos de recurso de contra-ordenação, foi condenado no pagamento de uma coima e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias.

Inconformado, vem impugnar judicialmente a decisão administrativa, sustentando a sua absolvição.

Alega, em suma, que não cometeu a infracção em causa, que à data já havia transferido a propriedade do veículo em causa, cujo proprietário identifica, bem como ter respondido em tempo à notificação que lhe foi enviada pela entidade autuante.

Perante a não oposição do recorrente e do Ministério Público, cumpre decidir por mero despacho, nos termos do art. 64º do DL nº 433/82, de 27/10, com as subsequentes alterações do DL n.º 356/89, de 17/10 e DL n.º 356/98, de 17/0 e DL n.º 244/95, de 14/9.

A instância mantém-se válida e regular e não há quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que se imponham conhecer.


*

Do auto de contra-ordenação, do aviso de recepção e do registo individual do condutor, juntos aos autos a fls. 7, 10 e 33, bem como do alegado pelo recorrente, resultam relevantes os seguintes factos para apreciação do presente recurso:

- No dia 6/5/2011, pelas 1h58, na EN 109, em Quintã, Vagos, o condutor do motociclo, com a matrícula “ (...)XG”, transpôs a linha longitudinal contínua (marca M 1), separadora de sentidos de trânsito.

- O condutor não actuou com o cuidado de que era capaz e a que estava obrigado, abstendo-se de transpor tal linha de trânsito.


*

- À data dos factos, o arguido era o titular do documento de identificação do veículo em causa;

- No dia 17/5/2011, foi notificado para identificar o infractor;

- O arguido não identificou o infractor nem efectuou o pagamento voluntário da coima.


*

- O arguido não tem antecedentes pela prática de infracções estradais.


*

Perante estes factos, importa apreciar a responsabilidade contra-ordenacional imputada ao arguido.

Dispõe o artigo 135.º, n.º 3, do Código da Estrada que “A responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:

a) Condutor do veículo, relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução;

b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor”.

Por sua vez, o art. 171.º prevê que

“2 – Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.

3 – Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra – ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.”

A obrigação de identificação do condutor deve observar o disposto no art. 171.º, n.º 1, do Código da Estrada, ou seja, “A identificação do arguido deve ser efectuada através da indicação de:

a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social;

b) Residência ou, quando se trate de pessoa colectiva, sede;

c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor ou, quando se trate de pessoa colectiva, do número de pessoa colectiva;

d) Número do título de condução e respectivo serviço emissor;

e) Identificação do representante legal, quando se trate de pessoa colectiva;

f) Número e identificação do documento que titula o exercício da actividade, no âmbito da qual a infracção foi praticada”.

Ora, não tendo sido identificado o condutor no momento em que a infracção foi cometida, o arguido, enquanto titular do documento único automóvel, foi notificado para proceder à identificação do infractor, o que não fez.

Ou seja, ainda que tenha respondido à notificação da autoridade autuante como alega, limitou-se a invocar que a venda do veículo em momento anterior ao da infracção e a identificar o comprador, mas não já o condutor, em observância ao previsto nas supra referidas disposições legais.

Veio, em sede de impugnação da decisão administrativa, negar a prática da infracção.

A responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo a que alude o art. 135.º, n.º 3, al. b), do Código da Estrada assenta numa presunção ilidível.

Na senda do raciocínio tecido pelo Tribunal Constitucional relativamente ao art. 152.º, n.º 1, do Código da Estrada, na versão anterior ao Decreto – Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, a norma não está ferida de inconstitucionalidade, salvaguardada que esteja, com está, a possibilidade de ser feita prova do contrário (cfr. Acórdão n.º 276/04, de 20/4/2004).

Ora, cumpre evidenciar que, nem na fase administrativa, nem na presente fase de recurso judicial, o arguido veio identificar o infractor.

Nesta medida, independentemente da posição que se adopte quanto à tempestividade do exercício deste ónus de identificação com vista à elisão da presunção – isto é, se ainda é admissível nesta fase judicial (cfr. sobre esta questão o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Setembro de 2010, proferido no proc. n.º 1106/09.6TAPDL e publicado na página da DGSI) -, a verdade é os factos sobre que assenta a sua defesa não seriam nunca os bastantes. Tal como salientado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, por exemplo, no acórdão de 5 de Julho de 2006, não basta do veículo alegar e mesmo provar que não era o condutor do veículo na ocasião; impõe-se que identifique quem era o condutor do veículo nessa mesma ocasião, e se essa indicação só for feita em sede de impugnação judicial, necessário será que faça prova de tal facto.

Faz-se ainda notar que a presunção de responsabilidade assenta na qualidade de “titular do documento de identificação do veículo” e não na de proprietário, pelo que a mera prova de qualquer acto de transmissão da propriedade também não é o bastante para ilidir a presunção.

Nesta medida, falecem em absoluto os fundamentos da defesa

….

3. Apreciando

a.

Insurge-se o recorrente contra a circunstância de o tribunal a quo ter interpretado o seu silêncio, na sequência da notificação que lhe foi dirigida a fls. 36 dos autos, em cumprimento do despacho exarado a fls. 35, no sentido de assentimento/não oposição a que a decisão fosse proferida mediante despacho, o que, aduz, resultou em prejuízo do seu direito de defesa, tanto mais que decorre da impugnação judicial a essencialidade da audição da prova testemunhal, expressamente arrolada.

Tem, assim, por violadora da CRP [cf. artigo 32.º, n.ºs 1 e 10] a «interpretação e dimensão normativa do art.º 64º n.º 2 do DL 433/82 no sentido de o mesmo colocar sobre o arguido um ónus de expressamente se opor à decisão por mero despacho e interpretar o seu silêncio como assentimento/não oposição, sem se mostrar o Tribunal vinculado a interpretar a impugnação judicial deduzida, que não se reduzindo à mera prova documental (por fazer alusão expressa à essencialidade de audição das testemunhas arroladas) deixava antever a necessidade de realização de audiência de discussão e julgamento, um dos requisitos cumulativos a obstar à decisão por simples despacho» - [cf. ponto C. das conclusões].

Com tal fundamento, como forma de garantir o exercício do seu direito de defesa, pugna pela anulação da decisão proferida.

É, pois, óbvia a precedência de tal questão relativamente às demais colocadas, cuja decisão pode prejudicar o conhecimento das restantes, motivo mais do que suficiente para lhe concedermos primazia.

Convoquemos, então, o que, para o efeito, de relevante decorre dos autos.

Na sequência da decisão da autoridade administrativa, reagiu o recorrente mediante a impugnação judicial de fls. 16 a 18, na qual pôs em causa a factualidade ali vertida [tudo o que consta da decisão é manifestamente impossível de ter ocorrido], concretizando os motivos de facto, em razão dos quais, entendia, não lhe poder ser a conduta imputada.

Do mesmo passo, indicou prova documental - juntando quatro documentos – e arrolou três testemunhas.

No despacho de admissão do recurso, ficou, entre o mais, consignado:

«Tendo em conta a defesa invocada e ao abrigo do disposto no art. 64.º do supra citado diploma legal, o tribunal está desde já habilitado a decidir por mero despacho.

Notifique o arguido e o Digno Magistrado do M. P. para, em 10 dias, declararem se se opõem ou não a que seja que seja proferida decisão naqueles termos

Realizada a notificação, no caso do arguido, acompanhada de cópia do despacho – [cf. fls. 36], veio o Ministério Público, expressamente, manifestar a sua não oposição [à decisão por despacho], tendo-se aquele remetido ao silêncio.

Perante o que – como, aliás, resulta do teor da decisão recorrida [supra transcrita] – entendeu o tribunal face à não oposição do recorrente e do Ministério Público decidir por despacho, precisamente o, ora, em crise.

Feito este breve excurso, é agora tempo de nos debruçarmos sobre o artigo 64º do RGCOC – Decisão por despacho judicial -, enquanto dispõe:

«1 – O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

2 – O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.

(…)», normativo, que se nos afigura de consenso por parte dos autores quando realçam a necessária conjugação dos factores, inscritos no n.º 2, para que a decisão tenha lugar mediante despacho.

      Neste sentido escrevem António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral «Consideramos, assim, adquirido que a decisão do recurso da entidade administrativa apenas se pode efectuar através de despacho desde que, para além do juízo nesse sentido formulado pelo julgador e da não oposição do M.º P.º e do arguido, não exista prova cujos respectivos meios de produção apenas tenham a possibilidade de ser contraditados em sede de audiência de julgamento. Significa o exposto que apenas quando o juiz considera adquiridos os factos recolhidos em sede administrativa e que não existem outras provas a produzir é que deverá decidir através de despacho.

    (…)

      Os casos em que o juiz deverá decidir por despacho terão de ser casos em que a decisão final não dependa da realização de diligências de prova.

      Assim, poderá decidir-se por despacho sempre que for de julgar procedente alguma excepção, dilatória … ou peremptória …, ou a questão que é objecto de recurso for apenas de direito ou, quando a questão que é objecto de recurso for de facto, o processo forneça todos os elementos necessários para o seu conhecimento – [cf. “Notas ao Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, 3.ª Edição, Almedina, págs. 228/230].

                               Também a propósito refere António Beça Pereira «Da conjugação coordenada copulativa e utilizada neste n.º 2, resulta, claramente, que estamos perante dois requisitos cumulativos, a saber: 1.º O juiz considera desnecessária a realização da audiência de julgamento; 2.º O arguido e o Ministério Público não se opõem à decisão do recurso por despacho» - [cf. “Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 134].

                                E coisa diferente não resulta das palavras de Paulo Pinto de Albuquerque quando escreve «Para a decisão por despacho são necessárias três condições cumulativas: (1) o juiz considerar desnecessária a audiência de julgamento; (2) o arguido não se opor à decisão por despacho, nem requerer produção de prova e (3) o MP não se opor à decisão por despacho. Faltando uma das condições, o juiz tem de marcar audiência de julgamento …» - [cf. “Comentário do Regime Geral das Contra – Ordenações”, Universidade Católica Editora, págs. 265/266].

                       

                       Contudo, como realça o Exmo. Procurador Adjunto, importa determinar o valor a atribuir ao silêncio do arguido, atendendo até à circunstância de, na sua impugnação, ter indicado testemunhas, permitindo-nos aqui, por elucidativo das posições que se vem firmando, respigar da sua resposta: «Quanto a este tema, existem duas posições opostas, quer na doutrina quer na jurisprudência ...: para uns, nesta situação, o juiz não pode decidir por despacho, uma vez que deve entender-se que constitui manifestação implícita de oposição o oferecimento de prova que deva ser produzida em audiência – neste sentido, Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in “Contra-Ordenações. Anotações ao Regime Geral”, 5ª edição, Setembro de 2009, Vislis, p. 550, e na jurisprudência, entre outros, os Acs. da RP de 25/10/2006 (Pº 643695), de 17/9/2008 (Pº 2397/08) e de 4/2/2009 (Pº 816413), todos disponíveis in www.dgsi.pt e Ac. RL de 4/3/1992, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo II, pág. 164]; para outros, a oposição exigida pelo n.º 2 do art.º 64.º tem de ser expressa e inequívoca, não podendo ser tida por oposição a circunstância do arguido, na impugnação judicial ter arrolado testemunhas – neste sentido, António Beça Pereira, in “Regime Geral das Contra – Ordenações e Coimas”, em anotação ao mencionado art.º 64º e na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 17.10.2001 (Pº 111027), de 24.01.2007 (Pº 615898) e de 09.02.2009 (Pº 846813), bem como Ac. da Relação de Évora de 11/10/2011 (Pº 272/11.5TBLGS), todos disponíveis in www.dgsi.pt»

                       …

                       No caso em apreço, perante a controvérsia em redor da questão, afigura-se-nos dever a mesma ser encarada tal como o foi no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14.01.2008, do qual se extracta:

                       «Em termos gerais, a “não oposição” pode ser expressa ou meramente tácita. Porém, não decorrendo da citada norma que a não oposição tácita tem o mesmo valor da expressa, essa consequência terá necessariamente de ser comunicada ao acoimado, isto é, se nada disser no prazo concedido, se terá por assente que não se opõe a que a causa seja decidida “através de simples despacho”.

                       E a necessidade dessa cominação será ainda maior naqueles casos – como o presente -, em que o acoimado, na impugnação judicial, negue os factos e ofereça prova testemunhal. É que, independentemente da relevância da defesa, é normal que o recorrente espere que o juiz apenas decida das questões colocadas na impugnação depois de produzir a prova que ofereceu, ou depois de lhe serem comunicadas as razões porque se considera a prova irrelevante.

                       Ora, in casu, para além do despacho de fls. … não conter tais razões perante a expressão genérica utilizada (“face à situação concreta dos autos”), o certo é que, atenta a forma como foi efectuada a notificação, não podia o Ex.mo Sr. Juiz a quo concluir pela “não oposição”…

                       A decisão por despacho nos casos em que não tiver sido validamente obtida a não oposição do MºPº ou do arguido a tal forma de decisão «constitui uma nulidade processual susceptível de ser enquadrada na al. d) do n.º 2 do art. 120º do CPP, pois a imposição legal da obrigatoriedade de realização da audiência, nestes casos, tem como corolário que ele deva considerar-se como essencial para a descoberta da verdade» - vide Simas Santos e Lopes de Sousa, em anotação ao RGCO, pág. 376» - [cf. CJ, Ano XXXIII, T. I, 2008, págs. 294/295].

                         Ora, no contexto dos autos, tal como na situação retratada, parece-nos que não podia o julgador, sem ofensa do contraditório, logo, das garantias de defesa, extrair do silêncio do arguido a sua não oposição à decisão por despacho, já porque pelo mesmo foram, veementemente, negados os factos [tudo o que consta da decisão é manifestamente impossível de ter ocorrido, seguindo-se a concretização dos factos, em razão dos quais, entendia, não lhe poder ser a conduta imputada], já porque foi apresentada, a par de prova documental, prova testemunhal, já porque o despacho proferido não deixa, minimamente, antever os motivos da irrelevância da prova arrolada, já, finalmente, porque o despacho que, para o efeito, lhe foi notificado, a saber: «Notifique o arguido e o Digno Magistrado do M.P. para … declararem se se opõem ou não a que seja proferida decisão naqueles termos», não afasta a necessidade de uma tomada de posição expressa, no sentido de «oposição» ou de «não oposição» à decisão pela forma preconizada por parte do julgador.

                               Redundando a invocada violação do direito de defesa na preterição da realização da audiência de julgamento – diligência essencial para a descoberta da verdade -, numa nulidade processual, enquadrável na al. d), do n.º 2, do artigo 120º do CPP, no caso atempadamente suscitada [artigos 410.º, nº 3 do CPP e 73.º, n.º 1, al. e) do RGCO], só resta revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que designe data para a realização do julgamento.

Fica, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que designe data para realização da audiência de julgamento.

Sem tributação

(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)