Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1001/08.6TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
NÃO ENTREGA DE CARTA OU LICENÇA DE CONDUÇÃO
Data do Acordão: 06/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 348º, N.º 1, ALÍNEA A),353º DO C.P., 166º, N.º 3 DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: 1. Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;
2. Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador] nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;
3. Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO

            1. No processo comum singular n.º 1001/08.6TAVIS.C1 do 1º Juízo Criminal de Viseu, o arguido D..., devidamente identificado nos autos, foi condenado como autor material do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea a) do C.Penal, ex vi do artigo 166º, n.º 3 do Código da Estrada, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 15 (ou seja, na multa total de € 1200), fixando-se a prisão subsidiária em 53 dias.

           

            2. Inconformado, o arguido recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

            «1ª- O arguido apresentou defesa escrita sem que estivesse devidamente notificado da respectiva “Decisão”, o que apenas veio a ocorrer em Março de 2009, tendo sido aquela elaborada por pessoas sem conhecimentos técnico-juridicos para o efeito;

            2ª- Pese embora o Tribunal se tivesse enganado na admissão do recurso da respectiva impugnação judicial, dado que posteriormente acabou por considerar a sua apresentação extemporânea, ao arguido, ora recorrente, já lhe seria imposto que tivesse compreendido o conteúdo e sentido das notificações que recebia, com especial referência a de 30/11/2007 referida no ponto 1° do n° 1 da II - Fundamentação), o que não se aceita;

3ª- Apesar de algumas visitas/contactos entre agentes da P.S.P. e o arguido, este nunca foi devidamente esclarecido do conteúdo da decisão que originou a instauração dos presentes autos, nem a este foi exigida a entrega da sua carta de condução, o que se verificou ainda em
02/12/2008;

4ª- O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão em condenar o arguido com base na tese sustentada pela acusação, designadamente, a mera assinatura do AR. respeitante a aludida notificação de 30/11/2007 (referida no ponto 10 do n° 1 da II- Fundamentação ) seria suficiente para se poder concluir que o arguido praticou o crime de que foi acusado desobediência ), o que também não se aceita;

5ª- Na audiência de discussão e julgamento não foi feita qualquer prova no sentido de que o arguido tivesse entendido o conteúdo da decisão que lhe foi notificada em 30/11/2007, ou que sabia que deveria ter entregue a sua carta de condução em determinado sítio, aliás, a acusação sequer apresentou qualquer testemunha;

6ª- Nesse sentido decidiu o Acórdão da Relação de Guimarães (Ano XXXIV. Tomo 1 - 2009- Jan/Fev, pág. 307);

7ª- Quanto ao aludido “sítio” onde a carta de condução deveria ter sido entregue, o Tribunal a quo admite e reconhece, afinal, que pelo menos a partir de determinada altura seria antes a A.N.S.R. a entidade competente para o efeito;

8ª- Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, também não resulta, com razoável grau de certeza, que o arguido praticou o crime de desobediência, em absoluta violação do princípio “in dubio pro reo”;

9ª- Em 16/10/2006, a D.G.V solicitou à P.S.P. a apreensão da carta de condução do arguido, o que não foi cumprido e, apesar da informação/conhecimento interno, em 07/1112006 recebeu a mesma para actualização de morada e procedeu à sua devolução àquele sem qualquer tipo de reserva;

10ª- A DGV, à data, actuou, assim, de forma negligente, cujas respectivas e eventuais consequências não podem ser agora impostas ao ora recorrente;

11ª- Salvo sempre o devido respeito e melhor entendimento, a prática do crime de desobediência por parte do arguido apenas poderia ser aventada na hipótese deste ter recusado a entrega da sua carta de condução quando, em 07/03/2009, foi pessoalmente interpelado para o efeito pela P.S.P., o que não sucedeu;

12ª- Mesmo considerando tal hipótese, há que fazer referência ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/11/2009, Proc. n° 260/08.9TA.AND.C1 (visualizável em www.dgsi.pt), que contraria a sentença de fls. em crise;

13ª- O recorrente, para além de ser primário, é uma pessoa séria, empresário honesto, com inúmeros encargos sobre si, nunca tendo faltado aos pagamentos que lhe foram impostos por vias dos presentes autos, nem nunca faltou a qualquer convocatória e a audiência de discussão e julgamento, nem nunca quis ter cometido qualquer crime;

14ª- Mesmo que o recorrente tivesse praticado o crime de que foi acusado, o que só por mera hipótese se admite, o valor da multa a que o mesmo foi condenado, salvo sempre o devido respeito, é, manifestamente, exagerado e desajustado, quer atendendo aos factos apurados nos autos, quer atendendo a condição económica do arguido e a situação económica do pais.

15ª- O Tribunal a quo, salvo sempre o devido respeito, não avaliou correctamente a prova produzida em audiência de julgamento, documental, inclusive, e, em consequência, não poderia ter decidido pela condenação do ora arguido, mas antes pela sua absolvição.

16ª- A Sentença de fls. violou, entre outras, o disposto nos art°s 69° e 348° do C.P. e art°s 127°, 374° e 410°, n° 2, alínea c) e 500º, todos do C.P.P;

17ª- Deve, pois, dando-se provimento ao presente recurso, ser revogada a sentença de fls., absolvendo-se o recorrente, com as demais consequências legais».

           

3. O Ministério Público de 1ª instância respondeu a tal recurso, defendendo a sentença recorrida na sua totalidade.

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento.

            Explana assim a sua posição, discordante com a do Colega de 1ª instância:

            «(…)

            No caso vertente, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

(…)

Não existe qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.

(…)

Ora, no caso vertente, não houve lugar à apreensão do titulo de condução, tendo existido apenas uma decisão judicial que rejeitou o recurso interposto pelo arguido, da decisão de impugnação, por o considerar extemporâneo, mantendo-se como tal a decisão da autoridade administrativa de que o arguido deveria entregar a licença de condução por lhe ter sido aplicada a sanção acessória de inibição de conduzir pelo prazo de 60 dias, e que tal decisão se tornou definitiva.

E na alínea b) do n.° 1 do dito artigo 348° do CP? Aí existe uma cominação feita por uma autoridade? Também cremos que não.

Cristina Líbano Monteiro in “Comentário Conimbricense do Código Pena!”, Tomo III, pág. 354 diz que:

«[(...) a ai. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (1. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal]».

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução — entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito— tem como consequência a determinação da sua apreensão.

(…)

Estando, portanto, na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia o Sr. Juiz substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, tendo como consequência que a com inação feita carece de suporte legal.

Ora, no caso concreto, a sanção para a não entrega da carta de condução é a apreensão da carta em causa (artigo 500°, n.° 3 do CPP), não havendo outra sanção para o incumprimento dessa obrigação, não sendo legítimo ao aplicador da lei substituir-se ao legislador e anunciar uma nova cominação.

Nesta situação, na hipótese de o arguido não entregar a carta no período estipulado e no uso do art° 500°, n° 3 do C. P. P., o tribunal poderia ordenar a apreensão da licença de condução, cumprindo-se, assim, a pena acessória de proibição de condução e foi o que sucedeu no caso vertente. Ao arguido foi apreendida a carta de condução no dia 07/03/2009 para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, tendo-a levantado em 07/05/2009, conforme consta dos factos provados em 9 da decisão sub judice.

Além disso, a entrega da carta tem a “mera função de permitir um melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir”.

Em suma, não se pode, sob pena de violação dos princípios da legalidade e proporcionalidade, pretender consagrar como desobediência um eventual comportamento posterior omissivo da entrega da carta de condução, solução que contraria manifestamente o sentido da norma, ainda mais quando o próprio não acatamento da proibição de que a mesma é mero meio de controlo, é, de per si, haja ou não entrega do título, penalmente sancionado.

Assim, temos de concluir que, no caso vertente, os factos dados como provados, não constituem o ilícito criminal de desobediência a que se refere o art° 348° n°1 a) ou b) do C. P., pelo que deverá revogar-se a decisão proferida, absolvendo o arguido.

Pelo que, em nosso entender, o recurso merece provimento»

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – Fundamentação

            1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem no seguinte:

1º- Está perfectibilizado o crime de desobediência pelo qual veio a ser condenado o arguido [o p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea a) do CP]?

2º- A responder-se afirmativamente à 1ª questão, o valor da multa em que veio a ser condenado o arguido é «manifestamente exagerado e desajustado»?

           

            2. Da sentença recorrida

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. O arguido foi notificado em 30/11/2007, de uma Decisão do 1.º Juízo Criminal de Viseu, datada de 05/11/2007, a determinar a rejeição da impugnação judicial por si deduzida à decisão administrativa que lhe impôs a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias [“(…), uma vez que a tempestividade da interposição do recurso pode ser apreciada como questão prévia à decisão, nada mais resta do que rejeitar o recurso interposto, porquanto é manifestamente extemporâneo, (…)”];

2. Donde decorria que a sanção administrativa que condenou o arguido era definitiva e, consequentemente, deveria cumprir as demais imposições que administrativamente lhe tinham sido ordenadas por tal decisão que judicialmente impugnara e cuja impugnação fora julgada improcedente, por deduzida manifestamente fora de prazo, ou seja, de que deveria entregar a sua carta/licença de condução na Delegação de Viação da área da sua residência, no prazo de 20 dias, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, a fim de cumprir a sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 60 dias, que lhe fora aplicado, tal como constava da notificação da decisão administrativa de que havia sido pessoalmente notificado;

3. Efectivamente, naquela comunicação da decisão administrativa, da qual o arguido foi pessoalmente notificado, o arguido foi expressamente advertido de que deveria “entregar, no prazo de 20 dias após o trânsito em julgado da decisão em causa, a sua carta de condução, na Delegação de Viação da área da sua residência, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência”;

4. Do teor de tal sentença e ordem foi o arguido pessoalmente notificado;

5. O arguido, contudo, deixou decorrer o prazo que lhe havia sido concedido, sem que tenha procedido à ordenada entrega da sua carta de condução;

6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, ao não proceder à entrega da sua carta de condução no referido prazo, desobedecia a uma ordem legítima, emanada de autoridade competente no exercício das suas funções e que lhe fora regularmente comunicada;

7. Agiu ainda ciente de que a sua conduta era proibida por lei;

8. O arguido é primário;

9. No dia 07-03-2009, pelas 12:55 horas, na Rua da Cumieira, Lote 110, Loja D, a P.S.P. de Viseu, a solicitação da A.N.S.R., procedeu à apreensão da carta de condução do arguido,  emitida em 12-02-2007, pela D.G.V., Delegação de Viseu, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir supra referida, tendo o arguido levantado a carta no dia 07/05/2009, no Governo Civil de Viseu, após o cumprimento daquela sanção acessória;

10. Através de despacho judicial, datado de 16/07/2009, notificado ao arguido, foi declarada extinta, pelo cumprimento, a sanção acessória de inibição de conduzir supra referida;

11. O arguido é sócio-gerente de uma empresa familiar (sócio com a esposa), de climatização e energias renováveis, auferindo, para efeitos fiscais, o S.M.N.;

12. A esposa aufere salário da empresa, auferindo, para efeitos fiscais, o S.M.N.;

13. A empresa teve uma facturação anual de € 200.000, tem 3 trabalhadores, cujos salários variam entre os € 600 (2) e os € 700 (1);

14. Pagam de empréstimo para aquisição de habitação quantia mensal algo superior a € 800;

15. A empresa paga mensalmente de leasings a quantia mensal de € 800.

2.2 Como facto não provado elencou o seguinte:

1. Até hoje ainda não entregou a carta de condução, nem cumpriu o período de 60 dias.

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):


A convicção do Tribunal para considerar provados os factos acima referidos resultou:
a) Do C.R.C. do arguido, junto a fls. 139, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;
b) Dos documentos (certidão) de fls. 3 a 41, designadamente do A/R de fls. 40, assinado pelo arguido (sendo que a assinatura foi expressamente reconhecida pela esposa do mesmo, testemunha arrolada pelo arguido), cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa. Assim, dúvidas não existem de que o arguido tomou conhecimento da decisão judicial proferida no processo de recurso de contra-ordenação por si instaurado, na sequência da impugnação judicial da decisão administrativa que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, pelo período de 60 dias, designadamente do prazo e local da entrega da carta de condução e sanção penal a que se expunha, caso não cumprisse a obrigação da entrega da carta de condução, o que o arguido não fez, de forma consciente, com o propósito de desobedecer àquela ordem legítima e regularmente comunicada, proveniente de autoridade legalmente competente;
c) Das declarações do arguido relativamente à situação profissional, familiar e económica, conjugada com a “informação policial”, junta a fls. 145-146. Relativamente aos factos imputados, o arguido, usando do direito que legalmente lhe é conferido, não quis prestar declarações;
d) Do teor da “informação policial”, junta a fls. 145-146, solicitada oficiosamente pelo Tribunal, relativa à situação económica, familiar e social do arguido, cuja genuinidade e fidedignidade não foi posta em causa;
e) Relativamente à factualidade não provada, a mesma está em contradição com a factualidade provada.

           

3. APRECIAÇÃO DE DIREITO

           

3.1. Vem o arguido interpor recurso da sentença em que foi condenado pela prática de UM crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 15 (total de e 1200).

Impugna a sentença, alegando ter existido um erro notório na apreciação da prova, retirando desse erro a sua injusta condenação e defendendo a sua absolvição.

Contudo, pretende o recorrente impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença.

 

3.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;

· e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.3. O erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».

E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.

A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[2].

            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).

Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.

Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.

E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

3.4. O recorrente nunca alude a vícios do artigo 412º/3 mas sempre aos do 410º do CPP.

Como tal, não faz ele qualquer impugnação alargada da matéria de facto, invocando erro de julgamento.

A este propósito, sempre se dirá que as conclusões do recurso do arguido estão incorrectamente formuladas, se esse tivesse sido o seu objectivo.

Incidindo este recurso sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe ao recorrente o ónus de especificar:

a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c)- as provas que devam ser renovadas.

Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

Sobre este último requisito importa ainda referir que ao recorrente é exigível que quando efectue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, faça a remissão para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente (neste sentido, de forma claríssima cf. o Ac desta Relação de 24.02.2010, e Relação do Porto de 14.02.2000 in www. dgsi.pt). É essa imposição que decorre do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal refere que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º”.

 O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.

Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.

A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.

Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.

Ora, no nosso caso, em lado algum da motivação e das conclusões faz o recorrente uso do ónus de impugnação especificada, pois em lado algum indica com rigor as partes dos depoimentos gravados que crê terem sido mal valorados pelo tribunal.

Ao estabelecer que o recorrente tem que indicar as provas que impõem uma diversa apreciação da matéria de facto o legislador quer sublinhar que «o recurso não é um novo julgamento, [mas] sim um mero instrumento processual de correcção de concretos vícios praticados e que resultem de forma clara e evidente da prova indicada. É que houve um julgamento em 1ª instância. E do que aqui se trata é de remediar o que de errado ocorreu em 1ª instância. O recurso como remédio jurídico (conforme se refere no Ac. RC de 3.2.2010, relator Gomes de Sousa).

 Importa constatar, face às alegações de recurso efectuadas pelo recorrente sintetizadas nas suas conclusões, que a discordância incide numa eventual errada valoração da prova.

Ora, não é possível retirar-se deste recurso quais as concretas passagens de eventuais depoimentos em que se funda a impugnação por referência ao consignado em acta/suportes técnicos.

Não se indicam os exactos excertos dos seus depoimentos, nem sequer se fazendo referência aos suportes técnicos de forma individualizada e específica, como comanda a lei.

Concluindo:

Não cumpriu o recorrente o ónus de impugnação especificadas a que estava vinculado, apenas restando a este tribunal não conhecer a eventual impugnação alargada da matéria de facto, à luz do artigo 412º, n.º 3 do CPP (a que resulta da ampla possibilidade concedida à impugnação da matéria de facto resultante de erros de julgamento, por invocação de prova produzida e erroneamente apreciada pelo tribunal recorrido que se alude no artigo 412º nº 3).

Não teremos, assim, de ouvir a prova gravada.

3.5. Resta a outra impugnação de facto – a possibilidade de recurso que resulta da restrita aplicação estabelecida no artigo 410º nº 2 referente à correcção dos vícios aí referenciados por simples referência ao texto da decisão recorrida.

Implicitamente, parece alegar o recorrente que houve erro notório na apreciação da prova.

Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

3.6. Vejamos o nosso caso.

Lendo a decisão recorrida, fácil é de concluir que a mesma está elaborada de forma muito equilibrada, lógica, encadeada e assaz fundamentada.

O Tribunal valorou devidamente o teor da prova produzida, concluindo de forma razoável e entendível pela prova do facto controverso (o que consta do ponto 6).

Alega o recorrente que não teve efectivo conhecimento do teor da ordem que receber para entregar a carta de condução, ordem essa que lhe cominou a prática de um crime de desobediência, caso a ela desobedecesse.

Mas a verdade é que o arguido impugnou a decisão da autoridade administrativa, parecendo tê-la compreendido muito bem.

Quem não percebe uma decisão tenderá a não impugná-la. Mas o que é certo é que o arguido impugnou tal decisão, pugnando pela redução do período de inibição de conduzir em que foi condenado.

Ao ser notificado da decisão do tribunal de Viseu de não receber tal recurso de contra-ordenação, por extemporaneidade, o arguido não podia ignorar que estava repristinada a decisão administrativa anterior, cabendo-lhe cumprir a ordem que lhe fora então dada.

Nem se diga que o arguido não teve acesso à decisão da autoridade administrativa.

Foi ele que assinou o AR de fls 30 (o da notificação da decisão do tribunal de Viseu) e foi ele que recebeu a carta que o notificou da decisão da DGV pois foi ele que a impugnou passo a passo, tendo de ter lido o seu completo teor para elaborar o competente recurso de contra-ordenação.

Como é que pode agora o arguido vir dizer que não sabia o teor da decisão da DGV?

Então o arguido não impugna a decisão da DGV pelo facto de achar que a inibição foi excessiva?

Ora, ele só poderia saber dessa específica sanção com a natural visualização do auto decisório da DGV, não se retirando tal informação do auto de contra-ordenação de fls 5.

Intolerável esta argumentação.

E nem se diga que o arguido desconhecia o local exacto onde deveria fazer a entrega do seu título de condução. A decisão da DGV é clara: deveria fazê-lo na delegação da DGV da sua área de residência (fls 9).

E seria ele que o deveria fazer, não estando á espera de alguém com conhecimento jurídicos especializados o elucidasse. Salvo o devido respeito, o auto fala por si. Alguém que sabe que se não entregar uma carta de condução pode vir a ser punido como desobediente, deve agir de forma célere. Tudo DEVE tentar fazer para evitar poder vir a ser acusado da prática de um crime…

E não precisava de um advogado para tal…

Mal estaria este país se incumbisse às nossas Polícias o mister de elucidar os transgressores para os processamentos a encetar.

O auto da DGV é inequívoco e muito claro.

A decisão de Viseu não recebeu o recurso de contra-ordenação intentado pelo arguido, o que só pode significar, para qualquer pessoa, que se mantém intocável e eficaz a ordem recebida da DGV de entrega da carta de condução (e note-se que em Novembro de 2007 já a carta de condução estava nas mãos do arguido, conforme ele próprio reconhece no ponto M da sua alegação de recurso).

É verdade que a carta acabou por ser apreendida pela PSP em 7/3/2009.

Mas diga-se que o arguido foi constituído como tal e assim interrogado no âmbito destes autos em 3/12/2008, não tendo entregue voluntariamente a sua carta apesar de, ao menos nesse dia, não poder ignorar a ordem dada.

Refere ele a fls 57-v, nesse auto de interrogatório:

«Está disponível para entregar a mesma carta de condução na actual ANSR, assim que seja notificado nesse sentido».

Pasme-se, pois: ainda assim precisaria de uma nova notificação para justificar a sua acção de entrega da carta de condução, desta forma protelando ainda mais no tempo tal entrega.

Sabemos que acabou por cumprir os 60 dias de inibição mas a custo…

A própria sentença recorrida fala por si, desmontando o raciocínio defensivo do recorrente.

Ouçamo-la:

«Aliás, a tese que o arguido veio sustentar durante a audiência de julgamento (por intermédio das testemunhas de defesa que arrolou e foram ouvidas), de que não teve conhecimento daquela decisão judicial, da qual não foi notificado, resultante de “confusão”, decorrente de mudança da sua morada – já que o endereço era o “Bairro do Vale, , Viseu” e passou a ser “Rua da Bela Vista, Viseu” – apenas visou (tentar) confundir o Tribunal e entorpecer a acção da Justiça, porquanto percorrendo a certidão do processo de impugnação judicial que deu origem ao presente processo-crime – bem como dos documentos juntos pelo próprio arguido aos autos – resulta à evidência que:
a) No dia 16/03/2005, pelas 16:26 horas, na E. N. n.º 2, km 164,680, área deste concelho e comarca de Viseu, foi o arguido fiscalizado pela G.N.R., tendo-lhe sido levantado Auto de Contra-Ordenação n.º 243216386, porquanto naquelas circunstâncias de tempo e lugar o arguido, conduzindo o veículo de matrícula 75-54-SZ, ao efectuar uma manobra de ultrapassagem a outros veículos pisou e transpôs a linha longitudinal contínua existente no local e bem visível, linha separadora dos sentidos de trânsito (fls. 5);
b) Pagou de imediato, através de multibanco, a coima a que tal contra-ordenação pune, pelo mínimo, ou seja, € 49,88 (fls. 6);
c) Do Auto de Notícia, que o arguido assinou (e do qual recebeu cópia, como impõe a lei) consta que, para além da coima, aquela infracção é punível com inibição de conduzir de 1 a 12 meses (artigo 139.º do Código da Estrada) (fls. 5);
d) Por decisão da entidade administrativa competente, datada de 13/10/2005, foi o arguido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, uma vez que o arguido era reincidente, pela prática da contra-ordenação supra referida em a) (fls. 7 e 8-9);
e) Tal decisão foi notificada ao aí arguido, através de carta registada, remetida para o endereço constante da base de dados da D.G.V. (Bairro do Vale, Viseu), a qual foi devolvida com a indicação de “mudou-se”, pelo que em cumprimento de norma foi remetida ao aí arguido carta simples, em 20/01/2006, para o mesmo endereço, considerando-se o arguido devidamente notificado (artigo 16.º/4/7 do Código da Estrada); (fls. 10 e 11);
f) Através de ofício datado de 16/10/2006, a D.G.V. solicitou à P.S.P. de Viseu que procedesse à apreensão da carta de condução do arguido e seu envio para a D.G.V., Delegação de Viseu, a fim de cumprir a sanção acessória supra referida em d); (fls. 12);
g) Através de carta datada de 29/11/2006, recepcionada nesse mesmo dia na D.G.V., (embora dirigida ao Juiz da Comarca de Viseu), o arguido, indicando como endereço a Rua da Bela Vista, Viseu, solicita a “(…) suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, (…) pela prestação de caução de boa conduta, (…)” (fls. 13);
h) Por ofício da D.G.V., datado de 08/02/2007, dirigido ao arguido, para o endereço que o mesmo tinha indicado (Rua da Bela Vista, Viseu), a entidade administrativa convidou o arguido para, em 10 dias úteis, apresentar impugnação judicial aperfeiçoada (por aquela não apresentar conclusões), sob pena de “(…) o tribunal poder considerar a anteriormente apresentada, (…)”; (fls. 14);
i) Através de requerimento que deu entrada na D.G.V. em 22/02/2007, subscrito apenas pelo arguido, veio o mesmo apresentar impugnação judicial aperfeiçoada, da decisão administrativa supra referida em d), uma vez mais indicando como seu endereço a Rua da Bela Vista,  Viseu, na qual peticiona a revogação da decisão administrativa, “(…) devendo a sanção ser reduzida para metade, (…)”; (fls. 15-18);
j) Por decisão da entidade administrativa competente, datada de 21/03/2007, foi mantida a decisão anterior e os autos remetidos para este Tribunal Judicial da Comarca de Viseu (fls. 17-A);
k) Por despacho judicial de 11/05/2007, foi a impugnação judicial admitida e notificado o arguido (e Ministério Público) a fim de dizer se aceitava que a decisão fosse proferida por simples despacho, no prazo de 10 dias (fls. 21);
l) Tal despacho foi pessoalmente notificado ao arguido, através da P.S.P., no dia 05/06/2007, no endereço fornecido pelo arguido (Rua da Bela Vista,  Viseu) (fls. 22-24);
m) Decorrido o prazo fixado, o arguido nada veio dizer (o Ministério Público declarou aceitar que a decisão fosse proferida por simples despacho); (fls. 25);
n) Por despacho judicial de 05/11/2007, foi decido que “(…), uma vez que a tempestividade da interposição do recurso pode ser apreciada como questão prévia à decisão, nada mais resta do que rejeitar o recurso interposto, porquanto é manifestamente extemporâneo, (…)” (fls. 26-28);
o) O arguido foi devidamente notificado de tal decisão judicial, por carta registada com aviso de recepção, que por ele próprio foi assinado o A/R, em 30/11/2007, tendo tal carta sido remetida para o endereço conhecido do arguido em tais autos – Rua da Bela Vista,  Viseu – (correspondente ao endereço que o próprio arguido indicou na impugnação judicial que deduziu naquele processo), não tendo de tal decisão judicial interposto recurso (fls. 29-30);
p) Para o mesmo endereço foi notificado para proceder ao pagamento das custas, que pagou (fls. 31 e 33-34);
q) Através de ofício datado de 02/06/2008, no âmbito daquele processo, foi solicitado à A.N.S.R. a informação sobre se o arguido tinha já cumprido a sanção acessória que lhe foi imposta na decisão supra referida em d) , ao que a A.N.S.R. respondeu negativamente, informando que o arguido “(…) não procedeu à entrega da carta de condução (…)”, conforme elementos anexos (dos quais resulta que o endereço do arguido é já a Rua da Bela Vista,  Viseu) através de ofício datado de 12/06/2008 (fls. 35 e 36-39);
r) Através de despacho judicial, datado de 01/07/2008, na sequência de promoção do Ministério Público, foi informada a A.N.S.R. que deveria diligenciar pela apreensão da carta do arguido, para cumprimento da sanção acessória que lhe foi imposta e que fosse o tribunal informado do resultado da diligência (fls. 40 e 41);
s) Através de modelo próprio da D.G.V., subscrito e assinado pelo arguido, que deu entrada nos serviços da D.G.V., Delegação de Viseu, em 07-11-2006, o arguido requereu a substituição da sua carta de condução, invocando “alteração de residência”, tendo-lhe sido passada guia de substituição da carta de condução até ao dia 07-02-2007 (fls. 121);
Ø Ou seja, o arguido vem requerer a substituição da carta de condução por motivo de mudança de residência (do Bairro do Vale,  Viseu, para a Rua da Bela Vista,  Viseu) após ter tido conhecimento do conteúdo da decisão administrativa supra referida em d), como o demonstra o descrito supra em g), cujo requerimento é datado de 29/11/2006, o que terá ocorrido certamente com duas finalidades: 1.ª vir mais tarde a invocar a tese da “confusão” e não notificação da decisão judicial, supra referida em o); 2.ª continuar a deter a carta de conduzir e exercer a condução furtando-se ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada, eximindo-se ao cumprimento de decisão judicial, escudando-se em tal “confusão” em que pretendeu fazer incorrer o Tribunal;
t) No dia 07-03-2009, pelas 12:55 horas, na Rua da Cumieira, Lote 110, Loja D, a P.S.P. de Viseu, a solicitação da A.N.S.R., procedeu à apreensão da carta de condução do arguido,  emitida em 12-02-2007, pela D.G.V., Delegação de Viseu, para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir supra referida em d), tendo o arguido levantado a carta no dia 07/05/2009, no Governo Civil de Viseu, após o cumprimento daquela sanção acessória (fls. 122-126);
u) Através de despacho judicial, datado de 16/07/2009, notificado ao arguido, foi declarada extinta, pelo cumprimento, a sanção acessória de inibição de conduzir supra referida em d) (fls. 149-150)».

  O registo da sentença é encadeado e lógico.

  Desta forma, inexistem vestígios de erros notórios na apreciação da prova.

  Ou de qualquer um dos outros vícios do artigo 410º do CPP.

  O tribunal decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a.

 Concluindo que o arguido teve real conhecimento do teor da ordem que recebera.

E fê-lo, livremente apreciando a prova, nos termos consentidos e não arbitrários do artigo 127º.º do C.P.P[3].

No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.

Nem vale invocar o princípio do «in dubio pro reo», precisamente porque ele só funciona quando o tribunal está em estado de dúvida, o que não foi o caso do julgador de Viseu.

3.7. Em consequência, mantém-se a factualidade apurada, só restando agora conhecer de DIREITO.

Ou seja, o que se discutirá é se estão ou não perfectibilizados os requisitos objectivos para a subsunção ao citado crime de desobediência do comportamento do arguido em não entregar a sua carta de condução após uma condenação pela DGV na inibição de conduzir pelo período de 60 dias (E NÃO após uma condenação judicial e uma ordem dada por um JUIZ).

            3.8. Ora, o crime de desobediência encontra-se previsto no artigo 348º, n.º 1 do Código Penal que diz:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
 a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação”.
Acrescenta, por sua vez, o respectivo n.º 2, assim qualificando o ilícito penal previsto no indicado normativo legal, que:
 “A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.
São requisitos de tal crime:
· a ordem ou mandado;
· a sua legalidade substancial e formal;
· a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;
· a regularidade da sua transmissão ao destinatário;
· o conhecimento pelo agente dessa ordem.
Torna-se claro que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.
A respeito do bem jurídico protegido por tal incriminação, escreve Cristina Líbano Monteiro – “in” “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, tomo III, pág. 350 - que se trata da autonomia intencional do Estado, impondo-se assim ao cidadão uma forma particular de não colocação de entraves à actividade do ente público no exercício das suas funções, dirigidas ao bom andamento da vida comunitária.
Opina Lopes da Mota, “como se salienta no preâmbulo do Código Penal (nº 36), o que se protege, nos crimes contra o Estado, em geral, e, em particular, nos crimes contra a autoridade pública, é a própria ordem democrática constitucional. Nas palavras do legislador, o bem jurídico não se dilui na noção de Estado, antes se concretiza no valor que este, para a sua prossecução, visa salvaguardar” (Jornadas de Direito Criminal”, do CEJ, Vol II, p. 412).           
Nestes termos, o tipo objectivo de ilícito fica preenchido com o acto de falta de obediência, por acção ou omissão, desde que esta seja devida, designadamente por a ordem ser legítima, emanada de quem tenha competência para o efeito e regularmente chegada ao conhecimento do destinatário, entendendo-se aqui que terá de haver condições para que este último se possa inteirar efectivamente da ordem emitida, por forma a fundar-se o respectivo dolo.
Posto o que se acaba de dizer, a fonte da dignidade penal do acto de desobediência impõe então que exista disposição legal que expressamente comine a incriminação (são os casos da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do referido artigo 348º) ou, na ausência de tal norma, que a autoridade ou o funcionário que emite a ordem expressamente realize a referida cominação.
 Assim, no primeiro caso, a conduta em obediência impõe-se por via de norma geral e abstracta anterior à prática do facto; no segundo impõe-se por acto de vontade da autoridade ou funcionário que realizem a correspondente cominação.

       Revertendo ao caso dos autos, e do teor das disposições legais acabadas de citar resulta que o tribunal recorrido defendeu que seria a alínea a9 do artigo 348º do CP a norma aplicável [e não a sua alínea b)].

Deixa-se escrito a fls 161-v, na 1ª nota de rodapé:
«Sendo que o arguido haverá de ser condenado pela prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º/1, a) do Código Penal (e não 348.º/1, b) do mesmo diploma), uma vez que a cominação da desobediência para o comportamento criminalmente ilícito do arguido se encontra legalmente previsto, por remissão do disposto no artigo 166.º/3 do Código da Estrada (de 2001; actualmente artigo 160.º/3 do Código da Estrada de 2005) o que se determinará oficiosamente, sendo que a mera alteração da qualificação jurídica dos factos se traduz em alteração não substancial dos factos».

Como tal, salvo o devido respeito, não fará sentido a douta argumentação da Exmª PGA ao referir precedentes judiciários deste Tribunal da Relação no que á alínea b) do artigo 348º/1 diz respeito.

Também nós nos contamos no número de relatores deste foro que consideram inexistir justificação legal para que um juiz comine com o crime de desobediência a não entrega da carta de condução após condenação em pena acessória de proibição de conduzir.

No Pº 513/05.8TAOBR.C1, em acórdão de 25/11/2009, argumentámos assim:

«(…) Revertendo ao caso dos autos, e do teor das disposições legais acabadas de citar resulta que o MP recorrente defende que a omissão de entrega da carta de condução no prazo fixado constitui crime de desobediência [caindo assim na alçada do artigo 348º, n.º 1, alínea b) do Código Penal], fundando-se a dignidade penal de tal desobediência tanto não na vigência de norma expressa nesse sentido, mas sim na cominação expressa da incriminação que, ainda assim, a lei impõe que o agente da autoridade efectue, motivo pelo qual se cai na previsão da alínea b) da mesma disposição legal.

Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª ed., pág. 1045) opina sobre este normativo: «Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência».

(…)

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.»

(…)

In casu, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

De facto, prescreve o artigo 500.º n.º2, do C.P. Penal:

«No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.»

Adianta o n.º 3 do mesmo preceito:

 «Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.»

Façamos também uma alusão ao artigo 69.º, n.º 3, do Código Penal:

«No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.»

Como tal, inexiste qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.

(…)

E a alínea b) do n.º 1 do dito artigo 348ª do CP?

Aí existe uma cominação feita por uma autoridade.

Cristina Líbano Monteiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 354) doutrina que «[(…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal]».

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual não se entende, na linha do já profusamente defendido por esta Relação, que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega acaba por contrariar o sentido da norma.

Recuperemos o citado Acórdão desta Relação, de 22 de Outubro de 2008, processo 43/08.6TAALB.C1 (lido em www.dgsi.pt), referido pelo Exmº PGA na sua vista:

 «(…) O preceito que regula a execução da proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.

Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.

Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (art. 9.º C. Civil).

Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente (…)

            Tomando igual posição, temos, pelo menos, os outros dois acórdãos citados a fls 152 - o Acórdão da Relação de Lisboa, de 18 de Dezembro de 2008, no processo 1932/2008-9 (lido em www.dgsi.pt), e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22 de Abril de 2009, no processo 329/07.7GTAVR.C1 (lido na mesma base de dados).

No primeiro desses arestos adiantam-se mais argumentos:

            « (…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge no caso dos autos carece de legitimidade».

O segundo aresto poderia ter o seguinte Sumário:
· Para a entrega da pena acessória de proibição de conduzir, o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, razão pela qual se entende que a cominação de um crime de desobediência para a conduta de não entrega contraria o sentido da norma.

· A entrega ou apreensão de uma carta de condução constituiu um meio próprio e eficaz de controlar a efectiva execução da pena acessória.

Estando, portanto, na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia o JUIZ substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, opinando-se, em clara consequência, que a cominação feita carece de suporte legal.

            (…)

Poderão ser aventados argumentos contrários à bondade desta tese que agora se segue e que, no fundo, corrobora a posição do tribunal recorrido (não haver lugar, no caso, à prática do crime de desobediência).          
 - em primeiro lugar, uma interpretação sistemática sugere a conclusão de que o carácter verdadeiramente injuntivo da ordem de entrega e a respectiva cominação com o crime de desobediência são de considerar como perfeitamente compatíveis com o ordenamento jurídico em vigor. Com efeito, o Código da Estrada prevê, para os casos de aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir, que a falta de entrega da carta no prazo de 15 dias após a notificação para o efeito faz incorrer o responsável na prática do crime de desobediência – art.160º, nº 3 do Código da Estrada. Ora, não se compreende que a falta de entrega da carta para cumprimento de sanção administrativa aplicável a contra-ordenação seja cominada com o crime de desobediência, enquanto a mesma falta para cumprimento de pena acessória judicialmente decretada pela prática de crime não possa ter essa mesma consequência e que não tenha, afinal, consequência sancionatória alguma (e nem se diga que é assim porque a falta de entrega para cumprimento de pena acessória tem outra consequência – a apreensão – pois que tal apreensão está também prevista para a sanção acessória – art. 160º, n.º 3 e 4 do Código da Estrada).
- por outro lado, não parece que seja de considerar que a lei preveja sanção expressa para a falta de entrega da carta subsequente à aplicação da pena acessória. Efectivamente, é certo que a lei prevê em caso de não entrega voluntária da carta a sua apreensão, mas esta apreensão não tem natureza sancionatória mas, de outro modo, executiva. Dito de outro modo: não estando legalmente prevista qualquer sanção, o que se prevê com a apreensão é a forma de execução da pena acessória, aliás, como se disse, em termos paralelos à forma de execução da sanção acessória prevista no Código da Estrada. É que a apreensão - operação material de execução da pena - nada tem que ver com a sanção, designadamente criminal (ou contra-ordenacional), para a omissão de cumprimento de uma ordem (judicial ou administrativa) de entrega da carta.
- assim, da omissão do legislador quanto à sanção a aplicar no caso de não entrega da carta de condução em cumprimento de pena acessória (e da previsão quanto ao modo de execução material daquela pena), não resulta a irrelevância sancionatória, nomeadamente criminal, dessa omissão, caindo a situação, deste modo e em pleno, na previsão da alínea b) do nº 1 do artigo 348º do C. Penal.
- por último, também não se entende que a notificação efectuada para entrega da carta tenha valor meramente informativo, já que a lei – art. 69º do CP - é clara no sentido de que, após o trânsito em julgado, o arguido deve entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias, não estando prevista (nem sendo necessária) qualquer mediação judicial do sentido da norma. De outro modo, o que se entende é que tal comunicação visa dar uma ordem de entrega da carta em cumprimento do previsto no referido artigo 69º do CP cujo não cumprimento tem o desvalor criminal de inobservância de uma injunção judicial.

(…)

Os argumentos avançados em 3.5. não nos impressionam ao ponto de mudarmos de posição quanto à consideração da justa absolvição decretada por sentença de 20 de Maio de 2009.

Trata-se, no fundo, de uma norma em branco a do artigo 348º, n.º 1, alínea b) do CP – (que prevê uma «cominação funcional») -, a qual tem uma carácter absolutamente subsidiário, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra, só sendo válida tal cominação “se for, de entre o mais, materialmente legítima", em nome também de um modelo de intervenção mínima constitucionalmente consagrado no art. 18°, n° 2.

Ora, no caso concreto, a sanção é a apreensão da carta em causa (artigo 500º, n.º 3 do CPP), não havendo qualquer outra sanção para o incumprimento dessa obrigação, não sendo legítimo ao intérprete e aplicador da lei substituir-se ao legislador e “inventar” uma nova cominação, no caso, dispensável e ilegítima.

Nesta situação, na hipótese de o arguido não entregar a carta no período estipulado pelo juiz, e no uso do artº 500°, n° 3 do Código de Processo Penal, o tribunal poderia ordenar a apreensão da licença de condução, cumprindo-se, assim, a pena acessória de proibição de condução.

Além disso, a entrega da carta tem a "mera função de permitir um melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir".

Existe, portanto, uma norma legal que prevê a entrega coerciva da carta de condução e, sendo a mesma idónea a produzir o efeito pretendido, falece a condição essencial à cominação mais gravosa: a já aqui referida legitimidade.

Diga-se ainda que, se o arguido se escusasse ao cumprimento, sempre seria sancionado com o crime de violação de proibições p. e p. pelo art. 353° do Código Penal.

Não se pode, assim, secundar o raciocínio exposto na argumentação que defende o crime de desobediência, segundo o qual a lei penal não prevê, ao contrário da lei contra-ordenacional (estradal), directamente, a desobediência, só havendo, assim, que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal…

No fundo, é esse um dos argumentos decisivos da tese da desobediência - existindo no âmbito do direito contra-ordenacional uma disposição legal a prever a cominação da desobediência simples no caso de desrespeito do dever de entrega do título de condução para cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir - artigo 160° nº 3 do Código da Estrada ­não se compreenderia que a punição da mesma conduta não fosse possível, ainda que através de cominação funcional do crime de desobediência, estando em causa uma infracção criminal.

As alterações efectuadas ao Código da Estrada, no que tange à incriminação da referida conduta, nos termos previstos na actual redacção do art.° 160°, n.° 3, e na redacção anterior às alterações de 2005, nos artigos 166° e 157°, teriam, para tal teses, duas consequências:

- sabido que a jurisprudência dominante não punha em causa a referida incriminação, designadamente, a legitimidade do juiz para fazer a referida advertência, demonstra que a intenção do legislador foi a de manter a referida incriminação em virtude de ter reforçado essa ideia no âmbito do processo contra-ordenacional e não estabeleceu qualquer restrição no regime penal;

- por força do princípio da unidade do sistema jurídico, não teria qualquer cabimento descriminalizar a referida conduta no âmbito dum processo de natureza criminal na medida em que "não pode sustentar-se um regime mais benévolo para sanção de natureza criminal/penal que o da contra-ordenação correspondente", ou seja, por maioria de razão, não pode o legislador deixar de incriminar o mesmo facto para os casos em que a decisão é tomada por um Magistrado Judicial, quando a mesma advertência pode ser feita por um funcionário da Administração Pública!

(…)

Não se ignora, contudo, que uma incriminação é, em todas as situações, uma conatural restrição de direitos fundamentais e, como tal, as normas incriminatórias devem ser lidas de modo restritivo, não o contrário (v.g. 18º, n.º 2 da CRP), reservando-se o Direito Penal para uma função subsidiária, “de última linha da política social”.

Tal premissa é convocada, sem qualquer dúvida, para a situação que ora se discute, na qual um JUIZ emite uma ordem, substituindo-se ao legítimo legislador.

Urge, pois, esgotar os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem judicial de entrega (no caso, a apreensão da carta), residindo aí a condição da legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da proporcionalidade.

O juiz que comina o crime de desobediência descura e olvida completamente o princípio da proporcionalidade, podendo cair-se numa perigosa república dos juízes, sempre amparados pela ameaça penal, necessariamente desproporcionada. Há mesmo quem afirme que a proporcionalidade da cominação é ela própria condição da legitimidade material da ordem judicial.

Como tal, o raciocínio desta tese é circular e falacioso – como a lei penal não prevê directamente, ao contrário da lei contra-ordenacional, a desobediência, só haverá que interpretar a lei penal de acordo com a lei estradal!

Ora, não estamos aqui a “contar espingardas” entre juízes e funcionários da administração pública. Talvez por não deterem o mesmo “ius imperium” ínsito na actuação de um juiz, democraticamente legitimado no exercício da sua judicatura, estes últimos precisarão de uma ameaça penal e de uma promessa de coercividade penal, não justificável quando estamos a falar de sentenças de juízes em que, a título principal, se aplicam penas criminais e não meras coimas, fazendo-se assim as devidas compensações sancionatórias…

O que se deve fazer é uma correcta aplicação dos princípios constitucionais considerados estruturantes na nossa ordem jurídica e não uma simplista comparação de regimes, tão falaciosa e pouco significativa.

De facto, não pode o aplicador recorrer à analogia para qualificar um facto como crime, na linha do estipulado no artigo 1º, n.º 3 do C.Penal.

O juízo da tipificação criminal deve estar reservado para o legislador democraticamente legitimado.

Se é verdade que a lei estradal não comina crime de violação de proibições (artigo 353° do CP) para quem conduza inibido para tal, também é verdade que a lei penal não comina desobediência para quem não entrega a carta estando proibido de conduzir, cominação que é feita na lei estradal (artigo 160º, n.º 3, do CE).

Ou seja, não há que fazer equiparações quando foi o próprio legislador que não as quis fazer…

Se existem “assimetrias” sancionatórias para a não entrega da carta e para a condução sob inibição ou proibição, conforme se trate de contra-ordenação ou de crime, diremos que só há que respeitar essa opção, por muito que não concordemos com elas, não sendo também possível corrigir tais assimetrias por via de uma nova incriminação, além do mais, pela simples circunstância da equidade não ser fonte de Direito Penal ou critério legitimador da incriminação.

E que não se tema pela impunidade.

Na realidade, entendemos que aquele que conduz após condenação em pena acessória não cumprida (com ou sem apreensão da carta) pode incorrer na incriminação do artigo 353.° do CP (cf. PAULO PEREIRA ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa: UCP, 2007, p. 1278 e s.).

Estatui tal normativo:

Artigo 353º Violação de imposições, proibições ou interdições.

«Quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada em processo sumaríssimo, de pena acessória ou de medida de segurança não privativa da liberdade, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

(artigo 353.º, alterado pelo artigo 1.º da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, Vigésima terceira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro (DR 4 Setembro).
Redacção anterior Vigência: 15 Setembro 2007)

Como se ajuiza exemplarmente num dos acórdãos atrás citados, «o que não se pode é inverter as coisas: primeiro cominar a desobediência e depois ordenar a apreensão»!

Em suma, não se pode, sob pena de violação dos princípios da legalidade e proporcionalidade, pretender consagrar como desobediência um eventual comportamento posterior omissivo da entrega da carta de condução, solução que, repete-se, contraria manifestamente o sentido da norma, ainda mais quando o próprio não acatamento da proibição de que a mesma é mero meio de controlo, é, de per si, haja ou não entrega do título, penalmente sancionado.

(…)

Um último argumento – sabemos que a pena acessória aplicada ao arguido em 2005 não é rigorosamente uma sanção acessória, essa sim destinada a sancionar, acessoriamente, a prática de contra-ordenações graves e muito graves, logo, uma medida de segurança administrativa.

O que se fez nos autos, em 2005, foi a aplicação de uma pena acessória de proibição de conduzir e não uma inibição de conduzir.

Daí fazer-se a distinção entre a inibição de conduzir, que se define como uma medida de segurança[4] (artigo 147º do actual CE), e a proibição de conduzir, que se define como uma pena acessória que pressupõe a prática de um crime (artigo 69º do CP).

O artigo 160º, n.º 3 do CE prevê que se comine com o crime de desobediência aquando da notificação do condutor para entregar a sua carta de condução em 15 dias.

O n.º 1 desse artigo adianta que os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da

- cassação do título;

- proibição de conduzir ou

- inibição de conduzir.

O que pode perturbar a nossa tese é o facto de constar deste elenco a proibição de conduzir, a qual sabemos só é aplicável pelos tribunais (cfr. artigo 5º da Lei 2/98 de 3/1).

É verdade que na Lei de Autorização Legislativa n.º 97/97 de 23/8, é dada, no artigo 3º, alínea c), autorização ao legislador para punir como crime de desobediência a não entrega da carta ou licença de condução à entidade competente pelo condutor proibido ou inibido de conduzir (…).

A Lei 2/98, em cumprimento dessa autorização, vem estipular o seguinte no seu artigo 5º, n.º 4: «Na falta de entrega do título de condução nos termos do n.º 2, e sem prejuízo da punição por desobediência, a DGV deve proceder à apreensão daquele título (..)».

Ora, o n.º 2 da lei fala também em proibição de conduzir, pena acessória só prevista no Código Penal e já não no Código da Estrada.

Como tal, poder-se-ia pensar que ao falar em “proibição” quis o Código da Estrada alargar a cominação do crime de desobediência às situações de aplicação das penas acessórias pelos tribunais.

Sem razão, diremos de novo.

Sem descurar a hipótese de se ter colocado o termo “proibição” sem o sentido técnico-jurídico que estamos aqui a dar-lhe, opinamos que não faz qualquer sentido, em nome dos princípios acima expostos, que a lei penal e a lei processual penal não tenham aproveitado os embalos das recentes revisões (levadas a cabo pelas Leis 59/2007 de 4/9 e 48/2007 de 29/9) para colocar nos artigos 69º e 500º, respectivamente, a expressa referência à cominação do crime de desobediência.

E poderiam tê-lo feito. O nosso legislador optou por não o fazer, o que não pode deixar de ser entendido como uma renúncia a mais uma possível incriminação criminal.

Daí não considerarmos que exista incriminação penal[5] capaz de subsumir o comportamento do ora arguido à previsão do artigo 348º, n.º 1, alínea a) (não rotulamos a norma do actual artigo 160º, n.º 3 do Código da Estrada com virtualidade para erigir um novo crime no nosso panorama penal – ele apenas será o salvo conduto para a existência de um crime de desobediência simples no caso de o condutor não entregar a carta de condução após ser inibido de conduzir pois é só dessa medida de segurança que pode tratar o Código da Estrada, não lhe sendo lícito intrometer-se em águas do Direito Penal).

A alínea a) do n.º 1 artigo 348º do CP é destinado a servir de norma auxiliar a alguns preceitos do direito penal extravagante que incriminam um determinado comportamento desobediente, sem contudo fixarem uma moldura penal própria.

Ora, uma norma do Código da Estrada não é nem nunca poderá ser uma norma de direito penal extravagante.

Veja-se até que são diferentes os prazos legais para a entrega da carta de condução na situação dos crimes (na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir) e nas situações das contra-ordenações (na sequência de aplicação da medida de segurança “inibição de conduzir”) – o CE alude a 15 dias, o CPP, no seu artigo 500º, n.º 2, e o Código Penal, no seu artigo 69º, n.º 3, aludem a 10 dias – como tal, estamos fatalmente a falar de matérias diversas, a merecer diferenciados tratamentos sancionatórios.

Tipificar um crime por recurso a uma norma do Código da Estrada é ir longe demais, em prejuízo claro do Estado de Direito e da coerência do sistema.

Por tudo isto, falecem os argumentos do recorrente, não nos merecendo, pois, qualquer censura a sentença recorrida, referente a factualidade anterior à entrada em vigor da nova redacção do artigo 353º[6] do CP, norma não aplicável in casu, por força do artigo 2º, n.º 4 do CP, assente que hoje poderemos, por tal nova letra, defender a existência de crime na acção do arguido que não entrega a sua carta de condução depois de uma ordem judicial (a tal “imposição” determinada por sentença criminal)».

3.9. Essa situação explanada nesse acórdão – e nos demais indicados pela Exmª PGA no seu parecer - não é a mesma dos autos.

 Aqui temos uma medida de segurança que é aplicada pela DGV e a existência de concreta norma legal – a do Código da Estrada[7] – que comina com o crime de desobediência o não acatamento dessa ordem de entrega.

E já o Tribunal Constitucional decidiu pela não inconstitucionalidade da norma constante do n.º 3 do artigo 161º do CE[8], aprovada pelo DL 114/94 de 3 de Maio, na parte em que tipifica como crime de desobediência o comportamento do condutor que - notificado para entregar a carta ou licença de condução a apreender pela entidade competente – o não faça no prazo legal.

Argumentou, assim, tal foro, no seu Acórdão n.º 149/00 de 21/3/2000:

«(…)

É o seguinte o teor da norma constante do n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio (e que corresponde ao conteúdo normativo do artigo 167º, n.º 3, do mesmo Código, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro), que a decisão recorrida recusou aplicar, com fundamento em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade:

"Artigo 161º

Outros casos de apreensão de cartas e licenças de condução

1. As cartas e licenças de condução devem ser apreendidas para cumprimento da inibição de conduzir ou da cassação da carta ou licença.

2. [...]

3. Nos casos previstos nos números anteriores, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias, entregar a carta ou licença de condução à entidade competente, sob pena de desobediência." (itálico nosso).

Para cabal compreensão do preceito legal transcrito, refira-se que, nos termos do artigo 141º, n.º 1 do mesmo diploma legal, "as contra-ordenações graves e muito graves [previstas no Código da Estrada] são puníveis com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir".

A sanção acessória de inibição de conduzir pode ser decretada pela autoridade administrativa competente, nos termos gerais das normas que regulam o processo das contra-ordenações (artigo 152º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio).

Pode todavia suceder que seja um tribunal, e não uma autoridade administrativa, a decretar a proibição de conduzir veículos motorizados, como pena acessória. A essa situação se refere o artigo 500º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro.

Dado que, no presente caso, foi recusada a aplicação da norma contida no n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada com o fundamento de que trataria de modo mais gravoso uma situação materialmente idêntica à regulada no referido artigo 500º do Código de Processo Penal, justifica-se a transcrição das pertinentes disposições deste artigo:

"Artigo 500º

(Proibição de condução)

1. [...]

2. No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.

3. Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.

[...]"

Saliente-se ainda que o artigo 500º do Código de Processo Penal se insere sistematicamente nas disposições do mesmo Código relativas às execuções das decisões penais (Livro X) e, dentro destas, nas disposições relativas à execução das penas não privativas da liberdade (Título III do Livro X).

           Na interpretação perfilhada na decisão recorrida, resultaria da comparação entre o artigo 161º, n.º 3, do Código da Estrada (redacção do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio) e os n.º s 2 e 3 do artigo 500º do Código de Processo Penal que, se o condenado na inibição de conduzir não entregar voluntariamente a carta ou licença de condução à entidade competente, se sujeita à pena do crime de desobediência ou apenas à apreensão dessa carta ou licença, conforme a inibição de conduzir constitua sanção acessória de uma contra-ordenação, ou pena acessória.

Esta dualidade de regimes implicaria, segundo o tribunal recorrido, violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição.

Vejamos se assim é.

           Sendo a inibição de conduzir decretada como pena acessória, é possível ao órgão que decretou a pena – o tribunal – usar os meios coercitivos necessários e juridicamente admissíveis à execução dessa decisão. Se, ao invés, a inibição de conduzir for decretada como sanção acessória de uma contra-ordenação, a autoridade administrativa que a pretenda executar não pode usar desses meios, quando os mesmos colidam com certos direitos fundamentais (veja-se, nomeadamente, o artigo 34º, n.º 2 da Constituição, relativo à necessidade de autorização judicial para se proceder a buscas). Refira-se, aliás, que o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (que institui o ilícito de mera ordenação social e o respectivo processo) faz eco desta maior limitação dos poderes das autoridades administrativas em sede processual, ao vedar, na pendência deste, o uso de certos "meios de coacção".

A diferente possibilidade de uso de meios coercitivos para a execução das próprias decisões explica o diferente tratamento da falta de entrega da carta ou licença de condução, consoante a inibição de conduzir tenha sido decretada por um tribunal ou por uma autoridade administrativa. No primeiro caso, nada obsta a que a entidade que proferiu a decisão ordene a efectiva apreensão da licença, mediante o recurso aos meios coercitivos que forem possíveis; no segundo caso, e como refere o Sr. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, "as alternativas que se colocavam ao legislador seriam precisamente a de criminalizar a omissão culposa do arguido ou facultar à Administração o recurso ao tribunal, com vista à autorização das ditas medidas coercivas que visassem a efectivação da apreensão da carta ou licença de condução".

Conclui-se, assim, que a norma ínsita no n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada não trata de forma discriminatória o condenado na sanção acessória da inibição de conduzir, por referência ao condenado na pena acessória equivalente, na medida em que os meios ao alcance das entidades que proferiram as decisões em causa são, por natureza, distintos e, como tal, são, por natureza, distintas as formas de executar essas decisões.

A menor ressonância ético-jurídica das decisões emanadas das autoridades administrativas em sede de processo contra-ordenacional, face às decisões dos tribunais, não permite, ao contrário do que o recorrido invoca nas suas alegações, afirmar a existência de qualquer discriminação. Com efeito, o n.º 3 do artigo 161º do Código da Estrada, por si só ou em conjugação com o artigo 500º do Código de Processo Penal, não reveste as decisões administrativas de força executiva superior à das decisões dos tribunais, nem consagra mecanismos mais eficazes para o cumprimento das primeiras.

Não resulta, assim, violado o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição».

3.10. No fundo, o que se decidiu foi que não são situações materialmente idênticas as que respeitam ao regime da execução da pena acessória de proibição de conduzir ou da medida de inibição de conduzir, assente que são decretadas por entidades diversas – a primeira por um órgão jurisdicional e a segunda por autoridade administrativa.

Na realidade, não sendo viável a esta última a adopção de medidas coercivas, limitadoras dos direitos fundamentais do arguido (revistas, buscas) destinadas a apreender a carta ou licença de condução, não espontaneamente entregue, bem se compreende que o Código da Estrada puna como integrando o crime de desobediência a omissão culposa do arguido.

Tendo o tribunal plenos poderes para efectivar, específica e coercivamente, a sanção acessória que tenha decretado, não se justificaria tal punição, sem prejuízo dos casos em que ulteriores condutas do arguido possam implicar, nos termos gerais, desobediência a específicas e expressas cominações ou mandados legítimos da autoridade ou do funcionário encarregado de proceder à referida apreensão.

Como tal, existe crime in casu, já que temos no nosso ordenamento jurídico uma disposição legal – oriunda do CE (e considerada como não inconstitucional) – que comina com o crime de desobediência [logo a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 348º do CP] a atitude de um arguido que não entrega a sua carta de condução a fim de cumprir uma medida de segurança aplicada pela DGV.

No fundo, temos o seguinte panorama:

1º- Existe crime de desobediência nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de contra-ordenação, a que corresponde sanção acessória de inibição de conduzir;

2ª- Até à entrada em vigor do CP, na versão de 2007, não existia crime de desobediência – quer pela alínea a) (inexistência de norma expressa que tal comine), quer pela alínea b) (inexistindo legitimidade legal para tal cominação casuística feita pelo julgador] nos casos em que o agente não entrega a carta/licença de condução após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir;

3º- Após 15/9/2007, pratica o crime do artigo 353º do CP aquele que não entrega a carta após ser condenado pela prática de crime, a que corresponde pena acessória de proibição de conduzir

Tanto basta para se julgar legal e justificada a condenação proferida em Viseu, improcedendo a tese do recorrente (ínsita na Conclusão 12ª do seu Recurso) e da Exmª PGA.

            3.11. DA MEDIDA DA PENA

Perfectibilizados os elementos objectivos e subjectivos do crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, alínea a) do CP, há agora que analisar a medida da pena aplicada ao arguido, assente que ele a coloca em causa.

            Rotula-a de excessiva e desajustada, «quer atendendo aos factos apurados nos autos, quer atendendo à condição económica do arguido e à situação económica do país».

Este delito criminal é punível com pena de prisão ou com pena de multa, esta com os seguintes limites – de 10 dias – cfr. artigo 47º/1 do CP  - a 120 dias.

            Discorda o arguido do VALOR DA MULTA encontrado pelo tribunal recorrido, o que só pode significar que está a colocar em crise o n.º de dias de multa, bem como o quantitativo de cada dia de multa.

            No caso, determinou-se que a pena de multa ficaria situada nos 80 dias, à taxa diária de € 15.

            Ninguém põe em causa a ESCOLHA da pena de multa como a única com adequação ao caso vertente, atentos os pressupostos ínsitos no artigo 70º do CP.

Há divergência quanto à MEDIDA da pena de multa.

3.11.1. Defendeu-se assim o tribunal recorrido, neste jaez:

«A determinação da medida da pena dentro dos limites aplicáveis far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção – geral e especial –, nos termos do disposto no artigo 70.º/1 do Código Penal.

Atentar-se-á a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente o muito elevado grau de ilicitude do facto (não cumprimento da obrigação de entrega da carta de condução a fim de cumprir a inibição que lhe foi imposta), o modo de execução do crime (designadamente o tempo decorrido desde a data limite em que deveria ter procedido à entrega da carta de condução, sem que até à data o tenha feito) [artigo 71.º/2, a) do Código Penal]; o dolo directo (manifestado na sua conduta violadora da lei, cuja proibição o arguido bem conhecida) [artigo 71.º/2, b) do Código Penal]; as condições pessoais do arguido e a sua situação económica (proventos e encargos referidos pelo arguido) [artigo 71.º/2, d) do Código Penal]; a conduta anterior ao facto (primário), entendemos ser de aplicar ao arguido uma pena de multa que fixaremos acima de ½ do limite máximo, ou seja em 80 (oitenta) dias, fixando-se a taxa diária em € 15 (quinze euros), face ao disposto no artigo 47.º/2 do Código Penal, fixando-se a respectiva prisão subsidiária, de acordo com o disposto no artigo 49.º/1 do Código Penal, sendo certo que tal pena não ultrapassa a culpa do arguido (artigo 40.º/2 do Código Penal), culpa essa de grau e intensidade muitíssimo elevado».

Quanto à taxa de € 15 diários, argumentou do seguinte modo:
«Tal taxa foi fixada por estimativa. O recurso à estimativa para a fixação do montante diário da multa é expressamente admitido pelo Professor Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 156, página 156). Por outro lado, como ensina o mesmo Mestre, «É indispensável que a aplicação concreta da pena de multa não represente uma forma disfarçada de absolvição ou o Ersatz de uma dispensa ou isenção de pena que se não tem a coragem de proferir. (…) a aplicação da pena de multa represente, em cada caso, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.» (obra citada, § 123, página 119)».
QUID IURIS?
No caso em apreço, ao contrário do que se deixou escrito em sentença, o arguido já cumpriu a sanção acessória, sendo certo que lhe foi apreendida a carta de condução por ordem da ANSR (facto 9).
Por isso, esse facto não deve ser considerado a favor da sua pessoa.
Ou seja, retira-se esta factualidade do conjunto de factores que pesam contra si mas não se coloca a mesma no rol dos factores abonatórios.
Note-se que é primário, o que corre bem a seu favor.

            O artigo 71º, n.º 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. O n.º 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.

A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.

Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.

A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.

O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).

Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.

Ora, no caso vertente, o dolo é directo e até algo intenso (veja-se que nem após ser ouvido como arguido no âmbito destes autos se propôs ele entregar voluntariamente a carta de condução).

Em termos de prevenção geral, não podemos olvidar a quantidade de condutores condenados que tentam protelar essa fatal entrega, de forma a que possam conduzir mais tempo do que seria devido, evitando ilegalmente os naturais transtornos advindos dessa «cassação». Não ignoramos que a parte da sentença que mais lhes dói é, não raras vezes, a da inibição/proibição de conduzir.

 Como tal, parece-nos que a pena adequada é aquela que foi encontrada na sentença recorrida (80 dias).

Não nos podemos esquecer que o limite máximo da pena de multa é 120 dias.

Condenando-se o arguido na pena de 80 dias de multa, a ela corresponde, em termos subsidiários, a pena de 53 dias de prisão (artigo 49º, n.º 1 do CP).

           

3.11.2. SOBRE O QUANTITATIVO DIÁRIO DA MULTA

No que se reporta à fixação do quantitativo diário da multa, deve ser em função da situação económico-financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, correspondendo cada dia a uma quantia entre € 5 e € 500, nos termos do artigo 47º/2 Código Penal.

Por seu lado, o nº. 3 desta norma prevê a possibilidade de o tribunal autorizar o pagamento da multa em prestações, sempre que a situação económica e financeira do condenado, o justifique.

«A amplitude estabelecida naquela norma, quanto ao quantitativo diário da multa, visa eliminar ou pelo menos esbater as diferenças do sacrifício que o seu pagamento implica entre os arguidos possuidores de diferentes meios de a solver» (cf. Acórdão do STJ de 2.10.97, in CJ - Supremo, Tomo V, 184, citando o Conselheiro Maia Gonçalves).

Como critério que deve ser tomado em conta na determinação da condição económica e financeira do condenado, deve atender-se ao maior campo possível de eleição de factores relevantes.

Deverá atender-se à totalidade dos rendimentos próprios, qualquer que seja a fonte, como seguro é, que àqueles rendimentos devem ser deduzidos os gastos e encargos, sendo ainda legítimo tomar em linha de conta rendimentos e encargos futuros, mas já previsíveis no momento da condenação (vg. o caso de um desempregado que dentro de alguns dias assumirá um posto de trabalho).

Também se deverão atender aos deveres jurídicos de assistência que incumbam ao condenado, no quadro familiar, nomeadamente a obrigação de prestar alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar (artigo 1675º Código Civil). Já quanto a outras obrigações voluntariamente assumidas, não podendo ser todas elas tomadas em consideração, sob pena de se colocar em perigo o efeito geral-preventivo, que desta pena se espera, deve o juiz guiar-se por critérios de razoabilidade e de exigibilidade na sua ponderação.

O montante diário da pena de multa deve ser fixado em termos de constituir um sacrifício real para o condenado, por forma a fazê-lo sentir de maneira assaz veemente esse juízo de censura, assim se assegurando a função preventiva que qualquer pena envolve, sem todavia, deixar de assegurar ao condenado um mínimo de rendimento para que possa fazer face às suas despesas e do seu agregado familiar” (cf. Ac. RC de 17.4.2002, in CJ, II, 57).

O próprio Prof. Figueiredo Dias defende que «pode tornar-se difícil ao Juiz obter prova sobre os elementos necessários à correcta determinação do quantitativo diário da multa, tanto mais que o arguido pode socorrer-se, legitimamente, do seu direito aos silêncio e que face a uma tal situação, o Juiz deve fazer uso dos seus poderes de investigação oficiosa, com vista a determinar, ao menos, os factores essenciais de fixação daquele quantitativo diário, com observância, naturalmente, das regras gerais de produção de prova aplicáveis (artigos 340º/1 e 2 e 371º C P Penal); se se tornar inevitável, o juiz determinará aqueles factores por estimativa – prova por presunção natural - fundamentando-a sempre e fazendo constar tudo da sentença”.

Fazer uma estimativa, implica fazer uma avaliação, o cálculo aproximado a respeito de algo, com base em evidências existentes.

E teremos nós faróis, balizas, referências?

Já decidiu o Acórdão desta Relação, datado de 28/6/2006 (Pº n.º 572/06.0YRCBR):

«Entre outros critérios possíveis, consideramos que a evolução do salário mínimo nacional ao longo dos tempos traduz, de certo modo, a evolução económica e também social da média da população e ao mesmo tempo vai actualizando sucessivamente os critérios que estariam na mente do legislador, muito especialmente quando fixou os limites mínimo e máximo da multa.

Ao fixar tais montantes o legislador sabia perfeitamente que a evolução socio-económica da sociedade faria com que o esforço exigido para pagar um dia de multa se iria gradualmente afastando do limite mínimo e, consequentemente, aproximando do limite máximo.

Ora, ao não actualizar regularmente tais limites, não teve o legislador em mente qualquer diminuição do esforço, como é óbvio. Deixou foi tal actualização ao critério do intérprete.
Posto isto, diremos que o Decreto-Lei nº 47/83 de 29 de Janeiro fixou o salário mínimo nacional geral em 13.000$00 para o ano de 1983 e o Decreto-Lei n.º 242/2004, de 31 de Dezembro fixou-o em € 374,70 para o ano de 2005, ou seja, à data da entrada em vigor do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro.

Em 1 de Janeiro de 1983 um dia de salário mínimo correspondia a 433$00 (€ 2,16) e actualmente corresponde a € 12,49.

Assim e não esquecendo que com a entrada em vigor do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março o limite diário máximo da pena de multa decuplicou (passou de 10.000$00/€ 49,88 para 100.000$00/€ 498,80), afigura-se-nos ajustado manter o "esforço" e por conseguinte fazer corresponder o "esforço" actual ao "esforço" exigido no momento da entrada em vigor do Código Penal (sendo de considerar que os "esforços" que actualmente se aproximam mais do limite mínimo de € 1,00 correspondam às situações que no âmbito do Código Penal aprovado pelo Decreto Lei nº 400/82, de 23 de Setembro eram susceptíveis de suspensão de execução da pena de multa nos termos do artº 48º, nº 1 deste diploma)».

O CP revisto em 2007 veio alterar o limite mínimo, fixando-o agora em € 5, ciente que era necessário actualizar tais irrisórios valores, «obviando à distorção que foi sendo paulatinamente introduzida no sistema jurídico português, em que o nível sancionatório contra-ordenacional (coimas) é significativamente superior ao que decorre do sistema penal (penas de multa), invertendo a estrutura valorativa que justifica materialmente os dois ordenamentos».

No caso vertente, foi provado que:

· O arguido é sócio-gerente de uma empresa familiar (sócio com a esposa), de climatização e energias renováveis, auferindo, para efeitos fiscais, o S.M.N.;

· A esposa aufere salário da empresa, auferindo, para efeitos fiscais, o S.M.N.;

· A empresa teve uma facturação anual de € 200.000, tem 3 trabalhadores, cujos salários variam entre os € 600 (2) e os € 700 (1);

· Pagam de empréstimo para aquisição de habitação quantia mensal algo superior a € 800;

· A empresa paga mensalmente de leasings a quantia mensal de € 800

O arguido é sócio-gerente de uma empresa familiar, ganhando muito mais do que o salário mínimo nacional, só assim se justificando que consiga pagar todos os meses, a título de salários a empregados, a quantia de € 1900.

Foi dado como provado que a empresa faz uma facturação anual de € 200.000, o que distribuído por 12 meses, dá um valor mensal de € 16.660, o que corresponde, em termos de dividendos da sociedade, grosso modo a trinta e cinco vezes o valor do salário mínimo nacional (hoje situado nos € 475 – DL 5/2010 de 15/1), sem contar com aquilo que aufere ele pessoalmente a título de salário mensal.

      Também se deverá considerar o rendimento da esposa para a satisfação das despesas globais do agregado, não havendo filhos no agregado em causa (cfr. fls 146 e motivação da decisão).

Assim, a fixação do quantitativo diário da multa em valor inferior a € 15 mostra-se fortemente inadequado (note-se que o máximo pode ir até os € 500), não respeitando o princípio da igualdade.

Cremos que a pena de multa deve ser doseada para que a mesma represente um sacrifício para o condenado. Esta mesma ideia veio recentemente, repete-se, a ser reforçada pelo legislador ao aumentar o valor mínimo da taxa diária da pena de multa para os € 5,00, expressando assim a preocupação em que as sanções penais não percam a sua validade perante a comunidade se fixadas em valores pouco significativos, muitas vezes abaixo dos valores previstos para a generalidade das contra-ordenações.

Deste modo, no caso em apreço, ponderando a situação económica do arguido e seu agregado familiar, cremos que a taxa diária da pena de multa não deverá ser fixada em valor inferior a € 15, sob pena de, assim não sendo, se fazer perigar as finalidades de prevenção da pena aplicada.

Concluímos, assim, que os dados apurados – aferidos no momento do julgamento - são suficientes para que o tribunal ajuíze da justeza ou injustiça do sentenciado neste jaez – in casu, parece-nos que a quantia de € 15 é razoável e ponderada, não sendo de seguir a posição do arguido (rotulando-a de exagerada).

Por uma questão de justiça relativa, a quantia diária de € 15 é, pois, adequada ao quadro económico-familiar em que se envolve a existência do arguido.

           

3.12. Improcedendo o recurso também nesta parte, só resta confirmar in totum a sentença recorrida.

III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida.



Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 8 UCs [artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ].


Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso),o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões») – Cfr. ainda Acórdão da Relação de Évora de 7/4/2005 in www.dgsi.pt.

[2] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.

[3] Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.

Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
[4] Embora com a discordância de Figueiredo Dias, expressa em “Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime”, Aequitas, p. 164.
[5] E terá de ser fatalmente penal, como está bem de ver. Cristina Líbano Monteiro (Comentário ao Código Conimbricense, Tomo III, p. 354, opina que “aqui, disposição legal quer evidentemente dizer norma penal; de outro modo – fazendo entrar no conceito qualquer tipo de preceito sancionatório -, cair-se-ia na situação impensável de o artigo 348º poder absorver e punir com pena de prisão ou multa condutas que o legislador entendia deverem pertencer a outros ramos do ordenamento jurídico sancionatório».
[6] Estando nós de acordo com o exarado no Acórdão desta Relação datado de 20/1/2010, proferido no Pº 672/08.8TAVNO.C1.
[7] A do artigo 166º, 3 do CE em vigor à data da autuação (o de 2001 – DL 265-A/2001 de 28/9), hoje correspondente à do artigo 160º/3 do CE revisto em 2005 ((DL 44/2005 de 23/2).
[8] Em tudo igual às normas do CE de 2001 e de 2005.