Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/16.5GACDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR;
CONDUTOR NÃO POSSUIDOR DE TÍTULO VÁLIDO;
INÍCIO DE CUMPRIMENTO DA PENA ACESSÓRIA
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CONDEIXA-A-NOVA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 291.º, N.º 1, E 69º Nº 1 AL. A), DO CP; ART. 126.º DO CE; ART. 18.º, N.º 1, AL. E) DO REGULAMENTO DE HABILITAÇÃO LEGAL PARA CONDUZIR
Sumário: Em relação a arguido não possuidor de título válido para conduzir, o cumprimento da pena acessória prevista no artigo 69.º do CP inicia-se com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Na Instância Local da Secção de Competência Genérica de Condeixa-a-Nova, da Comarca de Coimbra, nos autos de processo sumário que aí correram termos sob o nº 162/16.5GACDN, o arguido A foi julgado e condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. pelo art. 291º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 5,50 €, o que perfaz o montante global de 412,50€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses.
A sentença transitou em julgado no dia 21 de Setembro de 2016.
O Arguido procedeu ao pagamento da multa, mas não entregou a sua carta ou licença de condução para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir.
Por considerar que a pena acessória não tinha sido cumprida, porquanto o título de condução do arguido se mostrava inválido, por caducidade, o MP proferiu despacho no qual expressamente afirma não promover a sua extinção.
Notificado, o arguido pronunciou-se pela extinção de tal pena, face ao seu cumprimento, não obstante a invalidade do título.
Na sequência, e após averiguar junto do IMT que o arguido não havia obtido nova licença de condução nos cinco meses seguintes ao trânsito em julgado da sentença (v. fls. 128), o M.mo Juiz ‘a quo’ viria a proferir o seguinte despacho (transcrição literal):
Por requerimento com a referência Citius nº 3453941, veio o arguido pugnar que deve ser declarada extinta a pena acessória de inibição de conduzir que lhe foi aplicada nos autos, pois no seu entender, e apesar de ter na sua origem um título de condução inválido, por caducidade, já cumpriu a referida pena. Por sua vez, o Ministério Público entende que a inibição de conduzir só se iniciará quando o arguido obtiver licença de condução e a entregar, como isso não sucedeu, o prazo da inibição acessória ainda não começou a correr, pelo que não se deve considerar a mesma extinta.
Apreciando e decidindo.
Conforme se colhe dos autos, o arguido foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artº 291º, nº 1 e 69º do Código Penal, sendo que para além da pena única principal imposta, foi-lhe aplicada ainda a pena acessória de inibição de conduzir pelo período de cinco meses, cuja sentença transitou em julgado em 21 de Setembro de 2016. Está em causa saber, em que momento temporal deve considerar-se iniciado o cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no artº 69º do Código Penal, nos casos em que o arguido não possua carta ou licença de condução válida à data da prática dos factos, como é o caso dos autos.
Nos termos da alínea e) do nº 1 do artº 18 do Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir, “1 - A obtenção de título de condução está condicionada ao preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: (…) e) Não se encontrar a cumprir sanção acessória de proibição ou de inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução determinada por autoridade judicial ou administrativa portuguesa”.
Ora, interpretando tal comando legal, extraísse em nossa opinião que quem for condenado em pena acessória de inibição de conduzir não poderá obter título de condução enquanto tal condenação não se mostrar cumprida. A interpretar-se de forma diversa a referida norma legal, tal implicaria que alguém, condenado numa pena acessória de proibição de condução, sem ter título de condução, estaria impedido de aceder à obtenção do título que lhe permitiria iniciar a execução da pena, ficando esta, por esta via inacessível. Só podendo, no limite, candidatar-se à aquisição do título de condução quando a pena acessória prescrevesse. Se assim fosse, estava franqueada a possibilidade de a condenação em processo penal incidir sobre facto incerto quanto à sua verificação, o que é proibido pela Constituição da República Portuguesa. Por isso, entendemos que o que se pretende com o artº 69º do Código Penal, no que tange à condução por falta de título, é que a inibição se cumpra e que o arguido não possa conduzir, nem habilitar-se a conduzir, no período em que a proibição/inibição produza os seus efeitos.
Destarte, tal período de proibição inicia-se com o trânsito em julgado da sentença de condenação, aliás, na esteira, entre outros, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 Janeiro 2006, Secção Criminal, Processo 7836/06-3 Relator Conceição Gonçalves (Ref. 8245/2006), no qual se considerou a situação em que o arguido não possui carta de condução, sendo que do respectivo sumário consta: «Ainda que o arguido não possua carta, ou licença de condução, o cumprimento da medida acessória de proibição de conduzir, prevista no art. 69º do CP, inicia-se quando transite em julgado a decisão condenatória.»
Termos em que, encontrando-se cumprido o período de inibição de conduzir imposto nos presentes autos, contado desde o trânsito em julgado da decisão condenatória, ao abrigo do disposto no artº 475º do Código de Processo Penal, declara-se extinta a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados aplicada ao arguido.
Notifique. Remeta Boletins ao Registo Criminal. Comunique à ANSR/IMT.

Inconformada com tal despacho, a Digna Magistrada do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
A) – As penas só podem ser declaradas extintas, pelo cumprimento, ou por efeito da prescrição;
B) – O arguido não fez a entrega, por não ter título válido que o habilitasse a conduzir, no prazo que lhe foi fixado;
C) – A pena acessória não foi cumprida pelo arguido e não decorreu o prazo de prescrição, pelo que não poderá ser declarada extinta, apenas porque se encontra decorrido – não cumprido – o período de inibição de conduzir fixado.
D) – Também as exigências de prevenção especial impõem que o arguido “sofra” as consequências da sua conduta, com a diminuição do seu património – pagando a multa – e não apenas com um “ralhete”, que mais não é do que o “apagar” da censura que a sua conduta merece.
E) – Ao declarar extinta a pena acessória de inibição de conduzir, o despacho impugnado violou o disposto no art. 69º nº 1 al. a) e nºs 3 e 6 do Cód. penal e art. 500º nº 2 e 4 do Cód. Proc. Penal. A douta sentença impugnada viola o disposto no art. 60º nº 2 do Cód. Penal.

Nos termos exposto, e nos mais de Direito, cujo douto suprimento de Vossas Excelências se aguarda, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogado e substituído por outro, que determine que os autos continuem a aguardem a possibilidade de ser cumprida a inibição de conduzir, ou, a, eventual, extinção da pena referida, por efeito, da prescrição.

E, assim fazendo, Vossas Excelências farão, como sempre Justiça

Notificado, o arguido não apresentou resposta.

Nesta Relação, a Dig.ma PGA emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.

Respondeu o arguido concluindo pela extinção de tal pena, face ao seu cumprimento, não obstante a invalidade do título, pelo que deve o recurso improceder.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:
Analisadas as conclusões que o recorrente retira da respectiva motivação do recurso, logo se constata que a questão essencial a decidir se prende com aquela de saber se se deve considerar cumprida a pena acessória, face ao decurso do período de 5 meses sobre o trânsito em julgado da sentença (tese do despacho recorrido, também sustentada pelo arguido) ou se, ao invés, o cumprimento dessa pena apenas se iniciará com a obtenção de nova licença de condução e que, no máximo, a extinção dessa pena acessória apenas ocorrerá com a respectiva prescrição (tese do recorrente).
Estatui o artº 69º nº 3 do Código Penal que:
No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo”.
No nosso caso, o arguido nunca poderia entregar o título de condução pois que não era detentor de título válido que o habilitasse a conduzir.
Com efeito, como consta dos autos, a sua carta de condução havia caducado em 16/09/2011, data em que completara 50 anos de idade (v. informação constante de fls. 110); acresce que o arguido não obteve tal habilitação legal nos 5 meses seguintes ao trânsito em julgado da sentença em causa (v. informação de fls. 128).
Para poder entregar a sua licença, nos termos do disposto no artº 69º, 3, e assim iniciar o cumprimento da pena acessória, é suposto que o agente seja titular de licença válida. Se não detém tal licença, e na perspectiva do recorrente, o agente apenas poderia iniciar o cumprimento da pena acessória após obtenção de habilitação legal para o efeito e da sua entrega nos termos regulamentares. A alternativa, na mesma versão, seria aguardar pelo decurso do prazo de prescrição de tal pena.
Em apoio da sua tese, o recorrente invoca a jurisprudência do acórdão desta Relação, proferido no âmbito do Proc. 2399/04.0GTAVR-A.C1, de 1 de Março de 2007, segundo a qual “a oportunidade processual do termo inicial do efectivo cumprimento da referida pena acessória pressuporá sempre e cumulativamente a realização da condição suspensiva do (prévio) desapossamento do título pessoal de condução ao sujeito condenado”. Mas, salvo o devido respeito, tal jurisprudência, ao falar em desapossamento do titulo pessoal de condução, pressupõe, necessariamente, que o sujeito é detentor de titulo válido, pois que só nesse caso fará sentido falar em tal desapossamento.
O que acabou de se dizer é também válido para a doutrina citada no parecer da Dig.ma PGA, no sentido de que «a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pode ser aplicada a agente que não seja titular de licença para o exercício legal da condução; o condenado fica então proibido de conduzir veículo motorizado, ainda que entretanto obtenha a licença…» (Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários, Pena Acessória e Medidas de Segurança, pag. 32). Com efeito, estando em causa a proibição de conduzir por um determinado período, faz sentido que o agente não titular da necessária licença cumpra essa proibição, na medida fixada na sentença, ainda que venha a obter tal licença no decurso do prazo fixado para a proibição; mas esta cessa logo que decorra o período respectivo.
Ou seja, a proibição tem a duração definida na sentença e essa duração, na falta de título válido, inicia-se com o trânsito da sentença condenatória e prolonga-se até ao termo do período fixado, mantendo-se mesmo que o condenado, nesse período, obtenha habilitação legal.
Face à actual redacção do artº 126º do CE, «os requisitos exigidos para a obtenção dos títulos de condução são fixados no RHLC»; ora resulta da alínea e) do nº 1 do artº 18º deste Regulamento de Habilitação Legal para Conduzir, que:
1 - A obtenção de título de condução está condicionada ao preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: (…) e) Não se encontrar a cumprir sanção acessória de proibição ou de inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução determinada por autoridade judicial ou administrativa portuguesa”.
Na nossa perspectiva, a interpretação de tal norma conduz, de forma imperativa, à conclusão de que ao agente está vedada a possibilidade de aceder à faculdade legal de conduzir, e assim à capacidade de ser titular de tal direito, enquanto decorrer o período fixado como sanção acessória de proibição ou de inibição de conduzir ou medida de segurança de interdição de concessão de carta de condução determinada por autoridade judicial ou administrativa portuguesa. Tal norma inculca a ideia de que essa proibição de obtenção da faculdade legal de conduzir durará enquanto durar a proibição decretada pelo tribunal, de onde se deve concluir que a proibição é cumprida antes da obtenção do título e a obtenção deste não é pressuposto do início de cumprimento daquela, antes pelo contrário, só após o decurso daquele prazo pode ocorrer.
A exigência de entrega do título de condução, quando exista, como condição necessária ao início do cumprimento da proibição em causa bem se compreende, pois que se destina a facilitar às autoridades policiais a fiscalização relativamente a condutores inibidos dessa faculdade; já no caso de inexistência de titulo válido, essa fiscalização se mostra facilitada em qualquer caso, pois que o condutor surpreendido em tais condições, para além do mais, incorrerá também na prática de crime de condução ilegal.
Sumário: não é de exigir, para que se inicie o cumprimento da pena acessória, que o arguido (não possuidor de titulo válido) obtenha entretanto esse título e o entregue nos termos do disposto naquele artº 69º, 3, do CP; e não há que aguardar pelo decurso do prazo da extinção da pena, por prescrição. Face à inexistência de título válido, apenas há que aguardar pelo decurso do prazo de proibição fixado na sentença, contado desde o respectivo trânsito em julgado. Decorrido este deve declarar-se cumprida também a pena acessória.
Termos em que, nesta Relação, se acorda em negar provimento ao recurso, assim confirmando o douto despacho recorrido.
Recurso sem tributação.

Coimbra, 12 de Abril de 2018

Jorge França (relator)
Fernanda Ventura (adjunta)