Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4035/18.9T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECONVENÇÃO
VALOR DA CAUSA
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
NULIDADE DA DECISÃO
SONEGAÇÃO DE BENS
PROCESSO DE INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J. L. CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 299º, NºS 1 E 2, E 530º, Nº 3, E 615º, Nº 1, AL. C), DO NCPC.
Sumário: i) Havendo reconvenção, decorre do art. 299º, seus nºs 1 e 2, do NCPC, que na determinação do valor da causa só se soma o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do art. 530º, nº 3, do mesmo código, dispondo, por sua vez, este normativo que não se considera distinto o pedido quando a parte pretenda obter a mera compensação de créditos; assim se o pedido reconvencional visa obter uma mera compensação de créditos, em valor inferior ao valor do crédito invocado pelo A. o valor do pedido reconvencional não se soma ao valor do pedido do A.;
ii) A nulidade da decisão prevista no art. 615º, nº 1, c), 2ª parte do NCPC, ininteligibilidade da decisão por ambiguidade, refere-se apenas ao seu segmento decisório;

iii) A procedência da declaração de sonegação de bens não depende da prévia instauração de processo de inventário;

iv) Se em processo de inventário que, corre em Cartório Notarial, o ora A. acusa a falta de determinados bens que devem ser relacionados, a ora R. nega a sua existência e o Notário remete os interessados (A. e R.) para os meios comuns, para apuramento da sua existência, o A. pode, na respetiva ação declarativa, invocar e pedir adicionalmente o consequente reconhecimento da mesma e condenação na concomitante pena civil;

v) Para conhecimento de ambos os pedidos – existência de bens a relacionar e sonegação - é competente materialmente o Tribunal Cível.

Decisão Texto Integral:




I – Relatório

1. J..., residente em Pombal, intentou ação declarativa contra M..., residente em Sesimbra, peticionando que:

I. PEDIDO PRINCIPAL:

a) Declarar-se que do património do falecido inventariado A... fazem parte o crédito de tornas referido nos artigos 10º a 17º, bem como as quantias pela ré retiradas da conta bancária referidas nos artigos 31º a 32º, ambos da p.i.;

b) Declarar-se que a ré omitiu intencionalmente na relação de bens que, como cabeça de casal, apresentou no inventário referido em 2º da petição, as quantias discriminadas nos artigos 10º a 17º e 31º e 32, da p.i., assim como negou, contra a verdade dela sabida, a existência desses mesmos bens;

c) Julgar-se que a Ré se apoderou, em seu exclusivo proveito e em prejuízo do Autor, do valor do crédito de tornas e das referidas quantias retiradas da conta bancária;

d) Condenar-se a ré a perder, em benefício do A., todo o direito que lhe pertencia no dito crédito de tornas e quantias em dinheiro, que, em consequência, pertencem na totalidade ao demandante; Consequentemente,

e) Condenar-se a ré a entregar ao autor a quantia de 27.698,89€, correspondente ao crédito de tornas referido nos artigos 10º a 17º da p.i., acrescida dos juros moratórios vencidos, contados desde 23.4.2016 (dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença de partilhas) até 28.11.2018, à taxa legal e liquidados na quantia de 2.888,72€, bem como os juros de mora que futuramente se vencerem desde data sobre aquele capital até ao dia do pagamento integral; e,

f) Condenar-se a ré a entregar ao autor 27.900€, correspondente às quantias retiradas da conta bancária do falecido e referidas nos artigos 31º e 32º da p.i., acrescida dos juros de mora desde a citação e até integral pagamento;

Quando assim se não entenda:

II-PEDIDO SUBSIDIÁRIO:

a) Condenar-se a ré a restituir a restituir à massa da herança aberta por óbito de A... a quantia de 27.698,89€, correspondente ao crédito de tornas, referido nos artigos 10º a 17º da p.i., acrescida dos juros moratórios vencidos à taxa legal, contados desde 23.4.2016 (dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença de partilhas) até 28.11.2018, da quantia de 2.883,72 € e os juros de mora que futuramente se vencerem sobre aquele capital desde a presente data até à respetiva partilha;

b) Condenar-se a ré a restituir à massa da herança aberta por óbito de A... a quantia de 27.900€, correspondente às quantias retiradas da conta bancária do falecido e referidas nos artigos 31º e 32º da p.i., acrescida dos juros de mora desde a citação e até à respetiva partilha;

c) Condenar-se a ré a relacionar adicionalmente no inventário referido no art. 2º deste petição, instaurado por óbito de A..., o crédito de tornas e as quantias em dinheiro, de capital e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, descritos nas alíneas a) e b) deste pedido subsidiário, a fim de aí serem partilhadas pelos seus herdeiros, que são os ora autor e ré.

Alegou, em apertada síntese, o curso no Cartório Notarial de Pombal do processo de inventário nº ..., para partilha dos bens da herança aberta por óbito, em 13.08.2016, de A..., tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus dois filhos, que são os ora autor e ré. E que a ré, cabeça de casal no mesmo, após reclamação, pelo autor, da relação de bens por ela apresentada, negou intencionalmente a existência de um direito de crédito do falecido A. sobre ela, cabeça de casal, emergente de outro processo de inventário, e a existência de dinheiro do falecido numa conta bancária que ela, cabeça de casal, de lá retirou, tendo agido assim para se apoderar de tais valores. A ré sonegou bens no identificado inventário, quer o mencionado direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito doutro processo de inventário, quer a existência de dinheiro por ela retirado da conta bancária do inventariado. No referido inventário foi proferido despacho a remeter as partes para os meios judiciais comuns, relativamente a essas duas questões.

Indicou como valor da causa 58.482,61 €.

A ré contestou (com vários fundamentos que para o caso não interessam) e deduziu pedido reconvencional, com base em compensação, pelo valor de 27.698,89 € (equivalente ao supra mencionado crédito de tornas).

Indicou como valor da reconvenção este mesmo montante de 27.698,89 €.

E indicou como novo valor da causa 86.181,50 €.   

Em réplica, o autor, além do mais, pugnou para que o valor da causa fosse o por si indicado.

Na audiência prévia a Sra. Juíza suscitou oficiosamente a questão da incompetência material do tribunal, dando prazo para as partes se pronunciarem. O autor pugnou pela competência do tribunal recorrido para o conhecimento da totalidade dos pedidos. A ré defendeu que a questão da sonegação de bens deve ser apreciada pelo Notário.

*

De seguida foi proferido despacho saneador que:

- fixou o valor da causa em 86.181,50 €;

- declarou o Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação na parte respeitante a todos os pedidos que extravasam o conhecimento da “existência ou inexistência do direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito do processo de inventário que correu, a favor do inventariado” e a “existência ou inexistência de dinheiro retirado pela cabeça de casal da conta bancária do inventariado”, absolvendo a R. da instância quanto a tais pedidos (alíneas b) a f) do pedido principal e alíneas a) e b) do pedido subsidiário);

- condenou o A. nas custas da ação, na proporção de 2/3.

2. O A. recorreu, concluindo que:

...

Nestes termos e nos mais de direito:

a) Deve conhece-se da apontada nulidade da decisão;

b) Deve o despacho recorrido ser revogado e substituídos por outro que admita todas as alíneas do pedido principal e do pedido subsidiário, prosseguindo a ação com as legais consequências;

c) Deve revogar-se o douto despacho recorrido na parte referente a custas;

d) Deve revogar-se o douto despacho recorrido na parte que fixou o valor da causa e atribuindo-se à causa o valor indicado pelo autor na p.i., ou seja, €58.482,61.

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

1. Corre termos pelo Cartório Notarial de Pombal, a cargo da Notária ..., o processo de inventário nº... para partilha dos bens da herança aberta por óbito, em 13.08.2016, de A..., tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus dois filhos, que são os ora autor e ré (documentos 1 a 4 juntos com a petição inicial).

2. No âmbito desse processo foi suscitado incidente de reclamação contra a relação de bens, no termo do qual, por despacho de 22.06.2018, foi decidido, além do mais, remeter “as partes para os meios judiciais comuns para apreciação das questões controvertidas referentes à existência ou inexistência do direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito do processo de inventário que correu, a favor do inventariado, e a respeitante à existência ou inexistência de dinheiro retirado pela cabeça de casal da conta bancária do inventariado, nos termos do nº 1 do art. 36º e nº 2 do art. 17º, ambos do Regime Jurídico do Processo de Inventário”, tendo as demais questões suscitadas pelas partes sido objeto de decisão, nesse mesmo despacho (documento 4 junto com a petição inicial).

3. Nesta ação, o autor formulou os seguintes pedidos:

«I. PEDIDO PRINCIPAL:

a) Declarar-se que do património do falecido inventariado A..., fazem parte o crédito de tornas referido nos artigos 10º a 17º, bem como, as quantias pela ré retiradas da conta bancária referidas nos artigos 31º a 32º, ambos desta p.i.;

b) Declarar-se que a ré omitiu intencionalmente na relação de bens que, como cabeça de casal, apresentou no inventário referido em 2º desta petição, as quantias discriminadas nos artigos 10º a 17º e 31º e 32º desta p.i., assim como negou, contra a verdade dela sabida, a existência desses mesmos bens;

c) Julgar-se que a Ré se apoderou, em seu exclusivo proveito e em prejuízo do Autor, do valor do crédito de tornas e das referidas quantias retiradas da conta bancária;

d) Condenar-se a ré a perder, em benefício do A., todo o direito que lhe pertencia no dito crédito de tornas e quantias em dinheiro que, em consequência, pertencem na totalidade ao demandante; Consequentemente,

e) Condenar-se a ré a entregar ao autor a quantia de 27.698,89 €,  correspondente ao crédito de tornas referido nos artigos 10º a 17º desta p.i., acrescida dos juros moratórios vencidos, contados desde 23.4.2016 (dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença de partilhas) até 28.11.2018, à taxa legal e liquidados na vencerem desta data sobre aquele capital até ao dia do pagamento integral; e,

f) Condenar-se a ré a entregar autor a 27.900,00 €, correspondente às quantias retiradas da conta bancária do falecido e referidas nos artigos 31º e 32º desta p.i., acrescida dos juros de mora desde a citação e até integral pagamento;

Quando assim se não entenda:

II-PEDIDO SUBSIDIÁRIO:

a) Condenar-se a ré a restituir a restituir à massa da herança aberta por óbito de A..., a quantia de 27.698,89 €, correspondente ao crédito de tornas, referido nos artigos 10º a 17º desta p.i., acrescida dos juros moratórios vencidos à taxa legal, contados desde 23.4.2016 (dia seguinte ao trânsito em julgado da sentença de partilhas) até 28.11.2018, da quantia de 2.883,72 € e os juros de mora que futuramente se vencerem sobre aquele capital desde a presente data até à respetiva partilha;

b) Condenar-se a ré a restituir à massa da herança aberta por óbito de A... a quantia de 27.900 €, correspondente às quantia retiradas da conta bancária do falecido e referidas nos artigos 31º e 32º desta p.i., acrescida dos juros de mora desde a citação e até à respetiva partilha;

c) Condenar-se a ré a relacionar adicionalmente no inventário referido no art. 2º deste petição, instaurado por óbito de A..., o crédito de tornas e as quantias em dinheiro, de capital e respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, descritos nas alíneas a) e b) deste pedido subsidiário, a fim de aí serem partilhadas pelos seus herdeiros, que são os ora autor e ré.»

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Valor da causa.

- Nulidade da decisão.

- Competência material do Tribunal.

- Custas.

2. No respeitante ao valor da causa, disse-se no despacho recorrido que: 

“À ação cabe o valor indicado pelo autor - 58.482,61 -, porquanto é o conforme ao critério legal artigo 297º, nºs.1, 2 e 3, do Código de Processo Civil.

À reconvenção corresponde, seguindo o mesmo critério legal, o valor indicado pela ré - €27.698,89 -, o qual, estando em confronto pedidos distintos, se soma, desde logo, ao valor do pedido formulado pelo autor artigo 299º, nº2, do Código de Processo Civil …)”.

O A. discorda, conforme suas conclusões de recurso 18ª) a 23ª). E tem razão.

Ora, do citado art. 299º, seus nºs 1 e 2, do NCPC, resulta que na determinação do valor da causa deve atender-se à reconvenção deduzida, somando-se o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do art. 530º, nº 3 do mesmo código, dispondo, por sua vez, este normativo que não se considera distinto o pedido, quando a parte pretenda obter a mera compensação de créditos.

E, como sabemos, o pedido reconvencional da R. visava obter uma compensação de créditos, em valor equivalente ao supra mencionado crédito de tornas, inferior ao valor do crédito invocado pelo A. Logo o valor do pedido reconvencional não se soma ao valor do pedido do A. para efeitos de fixação do valor à causa.

Desta maneira, o valor a atribuir à causa é o valor indicado pelo autor na p.i., de 58.482,61 €.

Procede, por isso, o recurso do A. nesta parte. 

3. O recorrente argui a nulidade da decisão recorrida, nos termos do art. 615º, nº 1, c), do NCPC, por a mesma enfermar duma ambiguidade que torna a decisão ininteligível e importa esclarecer (1ª conclusão de recurso).

Dispõe tal artigo, número e alínea, 2ª parte, que a decisão é nula quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Como resulta da lei, a apontada ambiguidade geradora de nulidade refere-se tão só ao segmento decisório e não aos fundamentos.

Ora, a decisão é bem clara: a R. foi absolvida da instância quanto aos pedidos principais b) a f), e subsidiários a) e b), pelo que quanto aos pedidos formulados pelo A., principal a) e subsidiário c), a ação segue para seu conhecimento.

Não se verifica, assim, a acusada nulidade.    

4. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Conforme se pensa ser comummente aceite, o conhecimento da competência material de um tribunal deve partir da análise da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, tendo em conta as pretensões que este formula e os fundamentos de facto em que as sustenta (neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 1º, p. 110), sendo relativamente indiferente, para o efeito, o enquadramento jurídico por ele dado, pois, como expressamente consagrado no artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito, o juiz não está sujeito às alegações das partes.

Assim, relevantes para efeito da determinação da competência são os factos integradores da causa de pedir e o pedido que, com base nos mesmos, é formulado e não o enquadramento jurídico que deles a parte faz.

(…)

Dispõe o artigo 2º do Código de Processo Civil respeitante à garantia de acesso aos tribunais -, sob o seu nº2, que a todo o direito corresponde a ação destinada a fazer reconhecê-lo em juízo, exceto quanto a lei determine o contrário.

Um dos processos especiais previstos na nossa lei é, como é sabido, o do processo de inventário …

E, para a decisão da acima enunciada questão da competência material deste tribunal, passam-se a citar os ensinamentos e o entendimento (que se perfilha) vertidos no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.04.2017, proferido no Processo 4206/15.0T8BRG.G1 (disponível no site da dgsi):

(…)

No caso dos autos, os pedidos principais do autor, bem mesmo como os seus dois primeiros pedidos subsidiários, extravasam a matéria em relação à qual as partes foram remetidas para os meios comuns, no âmbito do processo de inventário.

Os pedidos principais do autor contendem, claramente, com a matéria da sonegação de bens, a qual, por força do disposto no artigo 35º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, na redação vigente à data quer da supra aludida decisão proferida no âmbito do processo de inventário, quer da instauração desta ação, constitui incidente do processo de inventário (cf., ainda, artigos 14º a 17º do aludido Regime), que deve ser nele decidida, a não ser que, verificados os legais pressupostos, venha a ser proferida a decisão a que se refere o artigo 16º do mesmo Regime, o que, in casu, não ocorreu.

Nos termos e pelos mais doutos fundamentos jurisprudenciais acima transcritos, também no caso dos autos se entende que este tribunal é materialmente incompetente para apreciação e decisão de todos os pedidos do autor que excedem a questão em relação à qual os interessados foram remetidos, no processo de inventário, para os meios comuns, pois tal competência pertence ao Notário junto do quem está pendente o processo de inventário (sendo, ainda e consequentemente, esta ação o meio processual impróprio para conhecimento de tais pedidos, uma vez que o legislador previu uma ação especial para o efeito).

Apenas se e quando aquele Notário (ou quem lhe venha a suceder, por força da alteração legislativa posterior ao momento da entrada em juízo desta ação) entender estarem reunidos os pressupostos para a remessa das partes para os meios comuns é que, fora do processo de inventário, os tribunais adquirem competência e o processo declarativo comum passa a ser o meio próprio para o conhecimento de questões relacionadas com a partilha dos bens entre autor e ré e apenas em relação às concretas questões abrangidas por essa decisão.

Na situação sub judice, as partes foram remetidas para os meios judiciais comuns para apreciação das questões controvertidas referentes à existência ou inexistência do direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito do processo de inventário que correu, a favor do inventariado, e a respeitante à existência ou inexistência de dinheiro retirado pela cabeça de casal da conta bancária do pois, somente em relação a estas matérias que este tribunal é materialmente competente.

Está-se, por conseguinte, perante uma situação de incompetência absoluta (em razão da matéria) deste tribunal (vide artigo 96º do Código de Processo Civil), em relação aos pedidos do autor que extravasam o conhecimento da existência ou inexistência do direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito do processo de inventário que correu, a favor do inventariado e da existência ou inexistência de dinheiro retirado pela cabeça de casal da conta bancária do inventariado, que é de conhecimento oficioso (nos termos previstos nos artigos 97º, 577º, alínea a) e 578º, do mesmo diploma legal), sendo este o momento próprio para dela conhecer (cf. artigos 98º e 99º também do citado Código), importando tal exceção a absolvição da ré da instância quanto a tais pedidos, como decorre do estabelecido nos artigos 99º, nº1; 278º, nº1, alínea a); 576º; 577º, alínea a) e 578º, todos do Código de Processo Civil.”.

O apelante questiona este entendimento (cfr. 2ª) a 16ª) conclusões de recurso). Vejamos então.

No curso, no Cartório Notarial de Pombal, do processo de inventário nº ..., para partilha dos bens da herança aberta por óbito, em 13.08.2016, de A..., tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros os seus dois filhos, que são os ora A. e R., aquele reclamou da relação de bens pela R. apresentada (como cabeça de casal), pela falta de um direito de crédito do falecido A. sobre ela, R., emergente de outro processo de inventário, e de dinheiro do falecido numa conta bancária que ela, R., de lá retirou. A R. respondeu, negando a existência de tais bens. Por despacho notarial de 22.6.2018 foi decidido remeter as partes para os meios judiciais comuns para apreciação das questões controvertidas referentes à existência ou inexistência do direito de crédito correspondente ao valor das tornas fixado no âmbito do processo de inventário que correu, a favor do inventariado, e a respeitante à existência ou inexistência de dinheiro retirado pela cabeça de casal da conta bancária do inventariado, nos termos do nº 1 do art. 36º e nº 2 do art. 17º, ambos do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI).

A decisão recorrida aceita que o tribunal a quo é competente em razão da matéria quanto ao pedido principal a) e subsidiário c), porque são os decorrentes do aludido despacho notarial de 22.6.2018.

Vistos os pedidos principais formulados sob b) a f), verificamos que o b) a d) se reportam a alegada sonegação de bens, sendo os e) e f) mera dependência daqueles.

O ora A, reclamante no inventário, podia ter arguido a sonegação de bens no mesmo, quando a ora R., aí cabeça de casal, negou a existência da acusada falta de bens que devia ser relacionada, a coberto do art. 35º, nº 3, do RJPI. Nessa situação o Notário teria de conhecer da arguida sonegação (art. 35º, nº 4, do mesmo regime). Se o ora A. tivesse alegado a referida sonegação no inventário é certo e seguro que o Notário teria igual e logicamente remetido para os meios comuns a apreciação da mesma, já que esta pressupõe exactamente que tenha havido reclamação à relação de bens a acusar a falta destes. Se isso tivesse acontecido, com certeza, não estaríamos agora a discutir uma questão de competência material, dado que o tribunal recorrido teria aceite a discussão de tal questão, pois passaria a integrar as questões para as quais as partes foram remetidas para os meios comuns.

O ora A. não fez, todavia, essa arguição no processo de inventário. Mas fica-lhe defeso fazê-lo depois? Claro que não, bastando pensar que a final do presente processo caso se vier a concluir que a cabeça de casal tem de relacionar tais bens, o A. já não poderia ir ao inventário arguir tal sonegação, pois a decisão positiva proferida na presente acção apenas teria implicação no aditamento à relação de bens inicialmente apresentada (art. 35º, nº 5, do mesmo RJPI). O que seria inadmissível, mesmo inconstitucional, nos termos do art. 20º, nº 1, da CRP, pois coartava-se ao A. a possibilidade de invocar judicial e futuramente a dita sonegação.

Temos, por isso, como dado adquirido, mesmo inquestionável, que qualquer interessado pode propor ação de sonegação fora do processo de inventário, como defendem R. Capelo de Sousa, em Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, 2ª Ed. (1993), pág. 86 (nota 695), J. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. I, 4ª Ed. (1990), pág. 574, e Ac. do STJ de 1.7.2010, Proc.1315/05.7TCLRS, in www.dgsi.pt. 

Assim, terá de socorrer-se ao processo comum de declaração, de acordo com o disposto nos arts. 10º, nº 1, 2, e 3, b), 546º, nº 1 e 2, 2ª parte, e 548º todos do NCPC, que no caso foi seguido.

Ou seja, o tribunal recorrido tanto é materialmente competente para o pedido principal a), como para os b) a f), nos termos do art. 64º e 96º, a), a contrario, do NCPC.

No que diz respeito aos pedidos subsidiários, estamos perante igual situação.

Na hipótese de não procederem os pedidos principais atinentes à sonegação, mas provar-se tão-só a existência dos ditos bens na massa da herança, os mesmos terão de ser restituídos a esta para serem relacionados e serem levados em conta na partilha. É exactamente isso em que consistem os pedidos subsidiários a) a c), não se compreendendo bem como o tribunal recorrido aceita ser competente materialmente para o pedido c) – a relacionação no inventário os ditos bens – e se declare incompetente para os prévios pedidos a) e b) que não passam de mera concretização monetária dessa eventual condenação de obrigação de relacionação !

Importando, pois, concluir, mutatis mutandis, que o tribunal recorrido é competente para os pedidos principais e para os subsidiários.

Procede, assim o recurso nesta parte. 

5. Quanto às custas da ação (17ª conclusão de recurso).

Como a decisão da 1ª instância vai ser revogada, as custas aí fixadas, na proporção de 2/3, a cargo do A., também vai logicamente cair, não tendo o mesmo de suportar a apontada proporção ou totalidade de custas que sejam.

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Havendo reconvenção, decorre do art. 299º, seus nºs 1 e 2 do NCPC, que na determinação do valor da causa só se soma o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do art. 530º, nº 3, do mesmo código, dispondo, por sua vez, este normativo que não se considera distinto o pedido, quando a parte pretenda obter a mera compensação de créditos; assim se o pedido reconvencional visa obter uma mera compensação de créditos, em valor inferior ao valor do crédito invocado pelo A. o valor do pedido reconvencional não se soma ao valor do pedido do A.;

ii) A nulidade da decisão prevista no art. 615º, nº 1, c), 2ª parte do NCPC, ininteligibilidade da decisão por ambiguidade, refere-se apenas ao seu segmento decisório;

iii) A procedência da declaração de sonegação de bens não depende da prévia instauração de processo de inventário;

iv) Se em processo de inventário que, corre em Cartório Notarial, o ora A. acusa a falta de determinados bens que devem ser relacionados, a ora R., nega a sua existência, e o Notário remete os interessados (A. e R.) para os meios comuns, para apuramento da sua existência, o A. pode, na respectiva acção declarativa, invocar e pedir adicionalmente o consequente reconhecimento da mesma e condenação na concomitante pena civil; 

v) Para conhecimento de ambos os pedidos – existência de bens a relacionar e sonegação - é competente materialmente o Tribunal Cível.

IV – Decisão

Pelo exposto, julgam-se os recursos procedentes, assim se revogando a decisão recorrida, e sua decisão sobre custas, e, consequentemente, se fixando o valor da ação em 58.482,61€, mais se declarando competente materialmente o tribunal recorrido, ordenando-se, concomitantemente, a prossecução dos autos para conhecimento da totalidade dos pedidos deduzidos pelo A.

Sem custas.

                                                              Coimbra, 1.7.2021

                                                              Moreira do Carmo