Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4824.07.0TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
JUROS COMPENSATÓRIOS
Data do Acordão: 09/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 5º JUÍZO CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 286.º; 289.º, N.º 1; 1270.º, N.º 1 DO CC
Sumário: 1. Declarado nulo o contrato de mútuo por falta de forma, o direito do mutuante - “o direito de outrem” mencionado no art.º 1270.º, nº 1 do CC - não é o direito ao cumprimento do contrato mas, meramente, o direito a ser reintegrado da prestação proveniente da declaração de nulidade.
2. A restituição decorrente da nulidade só pode vencer juros a partir da interpelação do respectivo obrigado e não da mora pelo incumprimento do contrato se este fosse válido.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS S.A., Sociedade Aberta, fez instaurar no 5º Juízo Cível de Leiria uma acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra A.... e B...., pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de € 15.348,22, acrescida de juros de mora à taxa legal, sendo os vencidos desde 6.08.2000 e os vincendos desde esta data até efectivo pagamento.
Alega em resumo - numa primeira versão - que em 3.12.1999 deu de empréstimo aos Réus a quantia de Esc. 3.500.000$00 (com o contravalor em Euros de € 17.457,93) que estes se obrigaram a restituir em prestações mensais e sucessivas, com início em 5.01.2000, mediante débito na sua conta bancária no dia 5 de cada mês; no entanto vieram a pagar apenas as oito primeiras, incumprindo, assim, o acordado a partir de 5 de Setembro de 2000, inclusive.

Citados, contestaram ambos os Réus.
O R. A....defendeu-se por excepção, invocando a ilegitimidade activa do Banco A., uma vez que o único contrato de mútuo que teria celebrado foi com o Banco Mello, nunca tendo solicitado ao A. fosse o que fosse, pelo que são falsos os extractos bancários por este apresentados; no mais, impugna a factualidade da petição, terminando com a improcedência da acção.
Por seu turno, a Ré B...., defendeu-se também por excepção, arguindo a sua própria ilegitimidade, impugnando a factualidade alegada pelo A. e rematando com a improcedência da acção e a condenação do A. como litigante de má fé.

Replicando, o A. viria a alterar a causa de pedir aduzindo que foi o Banco Mello SA quem efectivamente celebrou com os RR. o empréstimo em questão, tendo ele A. adquirido os direitos e obrigações que ao mesmo competiam por virtude de uma fusão que se operou através de incorporação. Conclui como na petição.

No saneador foi admitida a ampliação da causa de pedir e foram julgadas improcedentes as invocadas excepções de ilegitimidade.

Prosseguindo o processo, veio a final a julgar-se a acção totalmente procedente por totalmente provada, condenando-se os RR. a pagar ao A. a quantia de € 15.348,22, acrescida dos juros de mora vencidos desde 6/08/2000 até integral pagamento.

Inconformada, deste veredicto interpôs a Ré B.... oportuno recurso, admitido como de apelação com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos cumpre decidir.

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São os seguintes os factos dados como provados em 1ª instância:

1. O Banco Mello, S.A. fundiu-se por incorporação no Banco ora Autor, levada ao registo comercial respectivo pela inscrição 4, Ap. 21/20000201 e ap. 14/20000509, e pela inscrição 5, ap. 8/20000630 (Alínea A) dos factos assentes).
2. Com a inscrição da fusão no registo comercial, extinguiu-se o Banco Mello, S.A., e os seus direitos e obrigações foram transmitidos para o Banco Comercial Português, S.A. (Alínea B) dos factos assentes).
3. Os Réus contraíram casamento católico entre si, sem convenção antenupcial, no dia 19 de Setembro de 1992, tendo o mesmo sido dissolvido por divórcio, decretado por sentença de 04 de Outubro de 2001, transitada em julgado em 15 de Outubro de 2001 (Alínea C) dos factos assentes).
4. Em 03/12/1999, o Réu A.... contraiu um empréstimo junto do Banco Mello, S.A. (Alínea D) dos factos assentes).
5. Em 03/12/1999, os Réus solicitaram ao Banco Mello, S.A. que lhes entregasse o montante de Esc. 3.500.000$00 (€ 17.457,93), ficando aqueles obrigados a restituir a este a referida quantia (resposta ao facto nº 1 da base instrutória).
6. A referida quantia foi creditada em 06/12/1999 na conta de depósitos à ordem n.º 50047315386, aberta em nome dos Réus (resposta ao facto nº 2 da base instrutória).
7. A quantia cedida pelo Autor aos Réus foi utilizada por ambos (resposta ao facto nº 3 da base instrutória).
8. Ficou acordado que a referida quantia seria restituída pelos Réus em prestações mensais e sucessivas, com início em 05/01/2000 (resposta ao facto nº 4 da base instrutória).
9. O valor de cada uma das referidas prestações era de Esc. 74.158$00 (€369.90) (resposta ao facto nº 5 da base instrutória).
10. Ficou acordado que as referidas prestações seriam debitadas ao dia 5 de cada mês na conta à ordem com o n.º 50047315386 (resposta ao facto nº 6 da base instrutória).
11. Apenas foram pagas 8 prestações, vencidas nas seguintes datas:
05/01/2000, 05/02/2000, 05/03/2000, 05/04/2000, 05/05/2000, 05/06/2000, 05/07/2000 e 05/08/2000 (resposta ao facto nº 7 da base instrutória).
12. A prestação vencida em Setembro de 2000 não foi paga porque a conta referida em 6. (que corresponde ao nº 2 da base instrutória) não tinha provisões para o efeito (resposta ao facto nº 8 da base instrutória).
13. A fusão referida em A) dos factos assentes e a transmissão de direitos e obrigações aí referida em B) foi comunicada aos Réus (resposta ao facto nº 10 da base instrutória).
14. No dia 24.08.1994, o Autor deu de empréstimo aos RR, que receberam, a quantia de 2.000.000$00, de que estes se declararam devedores mediante a aposição das suas assinaturas no documento junto a fls. 5 e que aqui se dá por reproduzido (Al. A) dos Factos Assentes).
15. Os RR assumiram a obrigação de pagar ao Autor a referida quantia até ao final do dia 24.08.1996 (Al. B) dos Factos Assentes).

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A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a recorrente levanta as seguintes questões, com as quais se mostra circunscrito o objecto da vertente apelação:
A nulidade da sentença;
A ilegitimidade da recorrente;
A alteração da decisão sobre a matéria de facto;
A inexistência de qualquer empréstimo à recorrente ou do eventual proveito comum das quantias mutuadas ao R. Manuel Duarte.

O Banco apelado contra-alegou, batendo-se pela confirmação do sentenciado.

Cumpre decidir.


Sobre a invocada nulidade da sentença.

A certo passo das suas conclusões qualifica a recorrente a sentença de nula, nulidade que adviria da sempre extraordinária sobreposição de três dos vícios tipificados no nº 1 do art.º 668 do CPC: falta de fundamentação de facto e de direito e contradição entre os fundamentos e a decisão - alíneas b), c) e d).
Sem qualquer razão, porém.
Que a sentença fundamentou quantum satis o direito que teve por adequado ao caso é o que se colhe da alínea B da sua parte III (Motivação). E que elencou os factos que igualmente teve por provados é o que se patenteia nos diversos itens da alínea A dessa mesma parte III.
No que se atem, por seu turno, à suposta contradição entre os fundamentos e a decisão, reporta-se apenas a apelante à incorrecta subsunção dos factos ao direito aplicável o que, longe de acarretar a nulidade imputada, apenas representa o eventual erro de julgamento, erro que a verificar-se conduzirá à revogação do decidido.
Improcede, pois, esta questão.

Quanto à ilegitimidade da recorrente.

Esta excepção foi objecto de apreciação no despacho saneador, no sentido da respectiva improcedência, cuja declaração transitou já em julgado.
É que, tendo os presentes autos conhecido o seu início antes de 1 de Janeiro de 2008, ao presente recurso é ainda aplicável o regime processual anterior ao DL 303/2007 de 24 de Agosto (cfr. o art.º 12 respectivo), regime que, através da nova redacção do art.º 691 do CPC, em especial dos seus nºs 3 e 4, veio permitir a impugnação de decisões interlocutórias com o recurso interposto da decisão final.
Donde que esta questão não possa ser objecto de nova apreciação.


Sobre a alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Propugna a apelante que se dê com Não provada a matéria dos nºs 1,3 e 4 da base instrutória.
Porém, não menciona quaisquer meios probatórios que infirmem as respostas dadas na 1ª instância.
Prescreve o nº 1 do art.º 712 do CPC que " A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa (…)".
E, articuladamente, no nº 1 do art.º 690-A do CPC, na redacção aplicável, exarava-se que “Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida".
Deste modo, não tendo a recorrente cumprido com o ónus de indicar quais os meios probatórios que imporiam decisão diversa da prolatada, a impugnação da decisão de facto não pode ser atendida, tendo de ser rejeitada.
É certo que a apelante também alude à inexistência de qualquer documento “onde conste a assinatura da Recorrente a solicitar as quantias de que o A. peticiona”, e à circunstância de a decisão de facto se ter apoiado em meros extractos bancários.
Aparentemente, o que estaria aqui em apreço seria apenas o uso pelo tribunal recorrido de prova inadmissível.
Porém, o que está dado como provado é o que diz respeito à própria factualidade ou materialidade do mútuo, isto é a prova de ter havido efectiva solicitação pela Ré ao A. de uma determinada quantia, com a correspondente obrigação desta de a restituir, materialidade cuja demonstração não depende necessariamente de prova documental. Não há que confundir a falta de uma formalidade ad substantiam para a validade do mútuo - nomeadamente, quando se trata de aplicar o artº 1143 do CC - com a ausência de prova - que pode ser de qualquer tipo, nomeadamente testemunhal - dos elementos constitutivos de um mútuo nulo, por esta nulidade radicar na falta da forma legalmente exigida para o negócio.
O tribunal a quo limitou-se a dar como provado que entre A. e RR. foi convencionada ou acordada a entrega de uma soma em dinheiro pelo primeiro aos segundos, com a obrigação de restituição por estes em determinados termos. Tendo o mesmo tribunal configurado a vontade das partes em celebrar um empréstimo, todavia veio tão só a declará-lo nulo, face à inobservância da forma legalmente prevista - in casu, a incorporação do contrato em documento escrito à luz do preceituado no art.º único do DL 32.765 de 29/04/83 (norma que requer a prova do mútuo bancário por escrito particular).
Nesta conformidade não se verifica o desrespeito por prova vinculada nos termos apontados.
Donde que a matéria em causa dada como provada se deva manter.


Sobre a fonte obrigacional que conduziu à condenação da Ré.


Pugna ainda a apelante que nada a pode vincular a restituir ao A. a quantia emprestada ao R., seu ex-marido, como nada inculca a comunicabilidade da dívida por este contraída, designadamente com base no proveito comum do casal que então com aquele formava.
Como é evidente, a recorrente labora aqui num equívoco.
É que a obrigação de restituir imposta pela sentença recorrida à apelante e ao R. A....resultou, não do contrato de mútuo aduzido como causa de pedir pelo A. - contrato que, como deflui do acervo fáctico, foi realmente celebrado com ambos os Réus Cfr. o facto provado em 5. - mas antes da respectiva declaração de nulidade por falta de forma, oficiosamente conhecida e declarada (art.º 286 do CC).
Declarado nulo um contrato de mútuo por falta de forma, porque tal nulidade opera retroactivamente (ex tunc), deve ser restituído tudo o que houver sido prestado, isto é o capital mutuado - art. 289º nº 1 do C. Civil; e, por força da remissão operada pelo nº 3 desse preceito para o disposto nos arts. 1269º e ss do mesmo diploma, a obrigação de restituir abrangerá, não só o capital mutuado, como também os juros legais a contar da citação (ou da interpelação admonitória se esta tiver ocorrido).
Contudo, num segmento de decisão tem a apelante razão em insurgir-se.
Trata-se do montante atinente aos juros que decorrem da nulidade do mútuo.
Na verdade, no aresto ora sob censura considerou-se com base no art.º 289 do CC que os RR. deviam restituir não só o prestado, “mas também os juros/frutos civis que se venceram sobre tal montante” que no dispositivo vieram a ser concedidos desde a omissão do cumprimento do contrato, ocorrida em 6 de Setembro de 2000.
E também aí se chega a afirmar que “a condenação dos RR., com base nas consequências da nulidade do mútuo celebrado, alcança o efeito prático do pedido feito nos autos”.
Com isto não podemos concordar.
É que por via da nulidade do mútuo o A. não pode obter o mesmo exacto benefício que obteria com o seu cumprimento, se válido ele fosse Como apropriadamente lembra Antunes Varela, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 124º, pág. 250 e ss., referindo-se à posição do credor do mútuo nulo, o que este pode aspirar a receber em tal situação " (…) são as cinzas resultantes da nulidade do contrato, e não o produto vivo resultante da aplicação das cláusulas (…)”.
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A restituição decorrente da nulidade só pode vencer juros a partir da interpelação do respectivo obrigado, que no caso coincide com a citação.
Não havendo dúvida de que os juros devidos aludidos pela condenação da apelante são os legais - que foram igualmente os peticionados na acção - é já excessiva a sua contabilização desde 6.08.2000, porquanto não provou o A. que em momento anterior à citação tivesse providenciado pela interpelação admonitória dos RR. para a restituição.
Até à citação ou interpelação para a restituição, os RR. puderam fazer seus os frutos civis produzidos, ao abrigo dos art.ºs 1270, nº 1 e 289, nº 3 do CC, visto que o facto de conservarem em sua posse a quantia entregue pelo A. não equivaleu ao conhecimento de com isso lesarem o “direito deste”, direito que, por força da nulidade, que só poderia consistir na restituição da sua prestação (na parte em falta).
O direito do A. - “o direito de outrem” mencionado no art.º 1270, nº 1 do CC - não é o direito ao cumprimento do contrato mas, meramente, o direito a ser reintegrado da prestação proveniente da declaração de nulidade.
Na verdade, mesmo admitindo a invalidade do mútuo, sempre o A. poderia ter optado - ou não - por exigir tal restituição, p. ex., aceitando o pagamento das quantias em falta, eventualmente sem juros de mora. Ou, inclusivamente, agora naturalmente no erróneo pressuposto da sua validade, tentado a renegociação o empréstimo.
Podiam os RR. inadimplentes esperar qualquer destes cenários.
Daí que só com a citação para a acção a apelante visse nascer a obrigação de responder pelos juros ou frutos civis da quantia recebida do A. (e ainda não satisfeita).
Destarte, o recurso tem sucesso para apelante, ainda que apenas no que concerne à questão do momento que se inicia a contagem dos juros devidos.

Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, revogam parcialmente a sentença, condenando os RR. a pagar ao A. a quantia de € 15.348,22, acrescida de juros mora à taxa legal, vencidos e vincendos, desde 6/08/2000 quanto ao R. A...., e desde a citação quanto à Ré ora apelante, sempre até integral pagamento.
Custas na proporção 4/5 para a apelante e 1/5 para o apelado.

Coimbra, 18 de Setembro de 2012