Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1675/09.0TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROCURAÇÃO
IRREVOGABILIDADE
OBRIGAÇÃO DE MEIOS
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
CONTRATO PROMESSA
CESSÃO DE QUOTA
Data do Acordão: 03/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.265 CC, 56, 246 CSC
Sumário: 1. Tendo sido uma procuração outorgada no interesse do dominus (aquele que confere poderes) e do procurador, a ordem jurídica tutela ambos os interesses através do regime da irrevogabilidade unilateral da procuração, exigindo para a revogação a intervenção ou, pelo menos, a anuência de ambos os titulares dos interesses juridicamente tutelados e relevantes.

2. Se fosse permitido ao dominus revogar livremente a procuração, estaria a provocar a extinção dum poder numa esfera jurídica alheia (do procurador), contra o interesse juridicamente relevante que aquele tem na sua manutenção.

3. A fronteira entre os conceitos de “obrigação de resultado” e de “obrigação de meios”, reside na diferente vinculação do devedor: nas de resultado, obriga-se a causá-lo; nas de meios, obriga-se a tentar adequadamente causá-lo. Daí decorre que: i) só há cumprimento das primeiras quando ocorra o resultado definidor da prestação, em consequência da acção do devedor; ii) nas de meios há cumprimento quando o resultado foi adequadamente tentado, ainda que não conseguido.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
AM (…) e mulher, IM (…), intentaram a presente acção declarativa sob a forma do processo ordinário contra JL (…), MM (…), JM (…), NM (…) e MI (…), notária no 1º Cartório Notarial de Competência Especializada da Guarda, pedindo a condenação destes nos seguintes pedidos: serem os primeiro a quarto réus condenados a reconhecer que na escritura em que intervieram, o primeiro réu abusou, com conhecimento e consentimento dos segundo, terceiro e quartos réus, dos poderes que os mandatários lhe tinham conferido, pelo que as transmissões e demais actos por eles praticados nessa escritura são ineficazes face aos autores; serem os primeiro a quinto réus condenados a reconhecer que na escritura junta sob o documento 6, o primeiro réu não tinha poderes para dividir a quota propriedade dos autores e transmitir as quotas divididas fosse a quem fosse, pelo que a divisão, transmissões que lhe seguiram e demais actos nela praticados são ineficazes em relação aos autores; serem os primeiros a quarto réus condenados a reconhecer que a divisão e transmissão operadas na escritura junta como doc. 6, são actos simulados e como tal nulos; caso assim não se entenda: serem os primeiro a quarto réus condenados a reconhecerem que ao celebrarem a escritura pública junta como documento 6, praticaram voluntariamente com essa intenção actos que envolvem a diminuição das garantias patrimoniais do 1º réu e que visam impedir ou dificultar a satisfação por parte dos autores, do seu crédito e, consequentemente, declarar tais actos ineficazes face aos autores, com todas as consequências previstas nos artigo 610º e ss. do CC; ser ainda o primeiro réu condenado ao abrigo da execução específica consignada no contrato-promessa a reconhecer que os autores têm o direito de pedir que seja proferida sentença neste processo que ordenou o pagamento pelo 1º réu, aos bancos identificados, das quantias garantidas pelos autores referentes aos mútuos por estes bancos efectuados a favor das sociedades E (…) e E (…)r e posteriormente ordenar a transmissão das quotas dos autores nessas sociedade a favor do primeiro réu; serem os réus condenados a pagar aos autores a quantia de € 10 000,00 pelos danos morais e materiais sofridos até ao momento e ainda uma quantia a fixar em execução de sentença pelos prejuízos que advierem no futuro; serem ordenados os cancelamentos que por via da referida escritura junta como documento 6 foram averbados no registo da sociedade E (…), na competente Conservatória do Registo Comercial.
Na petição, os autores requereram a intervenção das instituições bancárias que referem, ao abrigo do disposto no artigo 325º e ss. do Código de processo Civil.
Como fundamento da sua pretensão, alegam os autores, em síntese: celebraram com o primeiro réu um contrato-promessa, através do qual prometeram vender ao primeiro réu as quotas, nas sociedades E (…), de que o autor marido era titular, nas condições e preços aí previstos, tendo acordado, nomeadamente, em termos de preço que existiriam três parcelas: uma em dinheiro; outra composta pela obrigação de três veículos automóveis e outra traduzida no cumprimento de uma obrigação, de libertar os autores das obrigações por eles assumidas como garantes das sociedades E (..:) e E (…) junto de várias instituições bancárias; o réu, no âmbito desta obrigação, obrigou-se a, junto das instituições bancárias, providenciar de modo a libertar os autores dessas garantias bancárias, o que deveria acontecer até à escritura de cessão de quotas; caso fosse impossível, até à outorga da escritura de cessão de quotas, os autores obrigavam-se a entregar ao primeiro réu uma procuração com poderes para este outorgar a escritura pública de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo, caso em que a parte em dinheiro do preço, seria paga contra a entrega da procuração, tendo, de facto, o autor marido outorgado tal procuração; no mesmo dia da assinatura do contrato-promessa, o autor marido outorgou instrumento de delegação de poderes a favor do primeiro réu, relativa aos poderes de gerente das sociedades E (…) e E (…); o autor entregou a procuração ao réu, tendo-lhe este entregue € 550 000; no entanto, mais tarde foi citado para uma acção executiva e, então, alertado para a situação, chegou à conclusão de que, utilizando a procuração que lhe havia conferido, o réu fez uma escritura de divisão, cessão de quotas, alteração parcial de pacto social, em que interveio com os segundo a quarto réus, seus filhos; mostram-se verificados os vícios de falta de poderes de representação e abuso de poderes, que geram a ineficácia da cessão de quotas em relação aos autores, tendo-se verificado ainda o vício de simulação, em relação à cessão aos segundo a quarto réus, geradora da nulidade da cessão de quotas, tratando-se de vícios que envolvem a diminuição da garantia patrimonial dos autores de verem satisfeito o seu crédito e cumprida a obrigação assumida pelo primeiro réu, de os libertar das garantias bancárias que prestou à E (…) dado que da, forma descrita, e com o conhecimento dos demais réus, seus filhos, o primeiro réu diminuiu, dessa forma, o seu património, com vista a prejudicar os autores.
A ré MI (…) veio contestar e deduzir pedido reconvencional, alegando em síntese: em face da análise da procuração outorgada pelo autor ao primeiro réu, nada permite concluir que este foi para além dos poderes que lhe foram conferidos, mas antes podia, efectivamente, decidir, como o fez, o modo de transmitir a quota que o autor marido possuía na E (…) estando a cessão de quotas, nos moldes em que foi outorgada, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos; por outro lado, e até porque o réu poderia adquirir para si próprio, poderia fazer da quota o que entendesse, depois de ficar dono da sua totalidade, não se podendo esquecer que a procuração é também conferida no interesse do procurador, não podendo ser revogada sem o seu acordo; todos os subsequentes actos formalizados na escritura foram dentro dos poderes conferidos, sendo depois legítimo deliberarem em Assembleia-geral, como o fizeram, a alteração do pacto social; deste modo, nenhum sentido faz a posição dos autores, quando vêm invocar a falta de poderes do réu, como também o não faz, quando pretendem que a notária, nessa qualidade, deveria ter verificado essa falta de poderes; este procedimento foi, aliás, também adoptado pelo autor em relação ao E (…), e por outro notário, sem que exista qualquer problema em relação a tal escritura; é contraditória a posição que os autores sustentam, em relação à procuração e, afinal, o que está em causa para os autores, mais não é do que o facto do primeiro réu fazer a escritura sem que antes tivesse efectuado o pagamento aos bancos, sendo certo, no entanto, que os autores poderiam ter expresso esta condição na procuração e não o fizeram.
Relativamente à sua posição enquanto notária e não outorgante no negócio, entende a ré que não tem legitimidade processual e que nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada, até porque, quer a escritura, quer a procuração, não contêm nenhum dos vícios que os autores lhes apontam, pelo que não poderia a ré recusar-se a outorgar a escritura pública em causa, sendo totalmente alheia às obrigações que as partes assumiram. Alega, por outro lado, que o seu comportamento, enquanto notária, não causou quaisquer prejuízos aos autores, e que os autores, ao intentarem a acção também contra si, agem de má-fé, bem sabendo que nenhuma razão lhes assiste nesta sua pretensão, pelo que requer a sua condenação como litigantes de má-fé, em multa e indemnização, bem como no pagamento do montante de € 20 000, em virtude de, com esta acção, porem em causa a sua honestidade e integridade pessoal e profissional, sentindo-se, pois, triste, incomodada e fragilizada, com noites sem dormir e inerentes preocupações.
Os réus MM (…), JM (…) e NM (…) , vieram também contestar, alegando em síntese: nunca participaram em quaisquer negociações entre o autor e o primeiro réu, o que o autor bem sabe, apenas lhe tendo sido dito pelo seu pai que o autor pretendia, a todo o custo, vender as quotas que detinha na E (…) e E (…) e daí que andasse a insistir junto do réu para as adquirir; por esse motivo, e porque o pai lhes colocasse a questão, sendo certo que por impossibilidade legal aquele não podia ficar dono da totalidade do capital dessas dias sociedades, acabaram por assumir, com o seu pai, esse compromisso, estando dispostos a ficar sócios dessas sociedades, assumindo o réu MM (…) e o réu NM (…) o compromisso de integrarem os quadros das sociedades; mais tarde, souberam que o seu pai chegou a acordo com o autor, tendo outorgado um contrato-promessa e tendo também o autor outorgado uma procuração a favor do primeiro réu, seu pai, mas foram totalmente alheios a tais contratos e negociações, desconhecendo mesmo, até serem citados para a acção, o teor de tais acordos; apenas intervieram na escritura de cessão de quotas, sabendo que o pai tinha uma procuração, à qual foram inteiramente alheios, convencidos de que nenhuma problema existia em relação à intervenção na escritura, nos termos em que o fizeram, correspondendo os actos por si praticados, à real vontade dos intervenientes e não qualquer conluio para prejudicar os autores; em relação ao valor das quotas adquiridas, foi-lhes transmitido pelo pai que esse valor de € 160 000 já o tinha pago ao autor, o que, aliás, este reconhece, sendo certo que, efectivamente, a procuração outorgada pelo autor, confere ao réu seu pai os poderes para decidir acerca do modo de transmitir a quota que o autor detinha na E (…) pelo que a escritura pública outorgada contém-se dentro desses poderes, até porque poderia fazer negócio consigo mesmo, ou seja, ficar com a totalidade da quota e depois transmiti-la dentro das condições que entendesse; os autores não podem ignorar que, por força do disposto no artigo 142º nº1 a) do CSC, o réu não poderia ficar com a totalidade do capital social da W...; o autor falta totalmente à verdade, quando se refere a um negócio com intenção de o prejudicar, o que não foi sua intenção, sendo a argumentação dos autores falaciosa e mal intencionada, até porque dizem que, apesar de reconhecerem expressamente que o réu tinha poderes para fazer o negócio consigo mesmo, referem, lodo a seguir, que não tinha poderes para isso; é manifesto que o que está em causa para os autores, não é a procuração, nem os actos notariais praticados na escritura, mas o facto dessa escritura ter sido outorgada antes do primeiro réu libertar os autores das garantia bancárias que tinham prestado; a ser assim, o que os autores poderiam ter feito, era deixar tal condição expressa na procuração outorgada, o que não fizeram, sendo esta uma omissão que apenas aos autores competia acautelar; referem duas cartas subscritas pelo autor, sendo que, através de uma delas, renuncia à gerência e, através da outra, pede autorização à sociedade para transmitir a sua quota, declarando mesmo que pretendia dividi-la e transmiti-la a quem o outro sócio indicasse, pelo que faltam à verdade os autores quando referem que a divisão não estava prevista, nem autorizada; e concluem pela condenação dos autores como litigantes de má-fé, por faltarem conscientemente à verdade e pela improcedência da acção.
Também o réu JL (…) veio contestar com argumentação semelhante à já aduzida pelos outros réus, alegando em síntese: acabou por celebrar o contrato-promessa com o autor, porque teve conhecimento de que ele pretendia vender as suas quotas, pelo que ponderou a possibilidade de as adquirir para evitar a venda a terceiros, sendo sempre do conhecimento do autor que apenas as compraria se os seus filhos estivessem interessados em ficar com uma parte da quota, o que veio depois a acontecer, com o acordo dos réus seus filhos, até porque ele, que tinha já uma quota de 50%, não poderia ficar com a totalidade das quotas; celebraram, então, o contrato-promessa sem qualquer intervenção da autora mulher, que se limitou a assiná-lo, e dos réus seus filhos, tendo sido outorgada também a procuração pelo autor a favor do primeiro réu, sem qualquer intervenção dos demais réus, que de nada souberam ou tiveram conhecimento, o que o autor bem sabe, apesar de, em desrespeito pela verdade, alegar o contrário; podia efectivamente, outorgar, como o fez, aquela escritura, até porque tinha, efectivamente, poderes para tanto, bem sabendo também o autor que o réu teria de ter a concordância dos filhos para outorgar aquela escritura pública; tal conhecimento ressalta das cartas subscritas pelo autor que refere, sendo que através da primeira, renunciou à gerência e, na segunda, referiu que pretendia dividir a quota e transmiti-la a quem o outro sócio (primeiro réu) indicasse; na procuração consta que o autor lhe concede poderes para ceder nos preço e condições que entender e mesmo fazer o negócio consigo mesmo, sendo a procuração também no interesse do procurador, pelo que a escritura pública que outorgou está totalmente contida nos poderes que lhe foram conferidos; todos os actos formalizados na dita escritura foram, pois, perfeitamente válidos, com observância de todas as formalidades, sendo que era também possível depois constituírem-se em Assembleia-Geral e deliberarem nos termos em que o fizeram, a alteração do pacto social; a argumentação dos autores é falaciosa, mal intencionada e reveladora de má-fé, sendo que, afinal, o que pretendem, é fazer depender a validade da escritura de cessão de quotas, da circunstância do réu não ter pago, antes da mesma escritura, aos bancos, os empréstimos da E (…) e E (…) o que não consta de parte alguma, quer do contrato-promessa, quer da procuração outorgada; apenas se comprometeu a providenciar junto das instituições bancárias por forma a libertar o autor e seu cônjuge das garantias que estes ali detêm, o que é totalmente diferente de pagar aos bancos, o que os autores bem sabem e reconhecem, sendo abusiva a interpretação que agora pretendem dar; assim, e dado que nos termos do artigo 424º nº1 do CC, a cessão da posição contratual que os autores detêm nos bancos, sempre dependeria do consentimento destes, a única coisa que o réu poderia assumir, era, e no que dele dependesse, providenciar junto dos bancos para que se procedesse à cessão da posição contratual dos autores junto desses bancos e nada mais do isso, sendo também que os autores tinham o dever de colaborar nesse sentido, o que não aconteceu; cumpriu o acordado no contrato-promessa, tendo pago € 550 000 ao autor, em face do que este lhe entregou as procurações, como bem sabe, sendo, aliás, ele quem fez as procurações como entendeu e sem qualquer intervenção do réu, tendo sido sempre o autor a insistir, através de cartas, para ser outorgada a escritura pública e intimando mesmo o réu a fazê-la; nenhuma razão assiste aos autores, que receberam o preço integral do valor da venda das quotas; pelo que deverá improceder a acção, bem como do incidente de intervenção principal provada das instituições bancárias.
Os autores vieram responder às contestações, invocando a violação do segredo profissional por parte do Exmo. Mandatário dos réus, e concluindo pela improcedência da excepção aduzida pela ré IC (…), e dos pedidos reconvencionais.
Os réus apresentaram tréplica, nos termos de fls. 249 e ss., pronunciando-se acerca da invocada violação do segredo profissional por parte do seu mandatário, concluindo que a mesma não se verifica, nem qualquer conduta deontologicamente incorrecta.
Alegam, por outro lado, que aceitam, para não mais poder ser retirada, a confissão que é feita pelos autores no artigo 75º da réplica na qual referem que “podendo, obviamente, o réu JL (…) cumprir esta obrigação de forma diferente, designadamente fazendo com que os bancos aceitem terceiro como garante, libertando os autores”, e, continuam os réus a alegar, que, afinal, e contrariamente ao peticionado pelos autores na alínea C) da petição inicial, não se trata da condenação do réu a pagar aos bancos todas as quantias garantidas pelos autores, mas afinal, o réu apenas se obrigou a providenciar junto dos bancos, no que dependesse dele, para que se procedesse á cessação da posição contratual dos autores junto desses bancos.
Por despacho de fls. 255, e com os fundamentos aí expressos, foi decidido indeferir o incidente de intervenção principal das instituições bancárias, deduzido pelos autores.
Mais se decidiu que, em face do pedido deduzido pelos autores em a), seria necessária a intervenção da sociedade E (…), pelo que foram os autores convidados a, querendo, deduzir incidente de intervenção principal provocada desta sociedade.
Por outro lado, foram ainda notificados os autores para concretizarem os danos morais que alegam ter sofrido.
Finalmente, foi a ré MI (…), convidada a juntar comprovativo da sua qualidade de agente da administração pública.
Por requerimento de fls. 262 e ss. os autores, vieram deduzir incidente de intervenção principal provocada de E (…) Lda., admitido por despacho de fls. 272.
Por requerimento de fls. 267, a ré MI (…) veio juntar comprovativo da sua qualidade de agente da administração pública.
Os autores interpuseram recurso, a fls. 286 e ss., do despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal provocada das instituições bancárias, o qual foi julgado improcedente por Acórdão do Tribunal de Coimbra, constante fls. 663 e ss. dos autos e pelos fundamentos aí constantes.
Foi realizada audiência preliminar (fls. 366), na qual se decidiu julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para decidir do pedido formulado na alínea d) da petição inicial contra a ré MI (…), absolvendo-se, nesta parte, esta ré da instância.
Mais se decidiu julgar a mesma ré parte ilegítima no que respeita ao pedido efectuado em a), ponto 2 da petição inicial, bem como não admitir a reconvenção deduzida por MI (…), cessando assim a sua intervenção nestes autos.
Na referida audiência, as partes deram cumprimento ao convite que lhes fora formulado de aperfeiçoamento dos respectivos articulados, tendo sido seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, que não foi objecto de qualquer reclamação.
Procedeu-se a realização da audiência de julgamento, após o que o tribunal respondeu à matéria de facto conforme fls. 696 e ss., não tendo sido deduzida qualquer reclamação.
Foi proferida sentença, na qual se conclui com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decide-se:

- julgar a presente acção totalmente improcedente e, consequentemente, absolver os réus (…)e interveniente “E (…)Lda.” de todos os pedidos contra si deduzidos pelos autores AM (…) e IM (…).

- absolver os autores AM (…) e IM (…), do pedido contra si deduzido pelos réus (…) de condenação como litigantes de má-fé.»
Inconformado, apelou o autor, apresentando alegações, onde formula as seguintes conclusões:

(…)
Os recorridos (…), responderam às alegações do recorrente, preconizando a manutenção do julgado.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) averiguar se o réu JL (…) ao celebrar o contrato formalizado por escritura pública exorbitou os poderes que lhe haviam sido conferidos pelo autor na procuração e incumpriu o contrato promessa por não ter previamente procedido à “liberação” das garantias assumidas pelo autor perante as entidades bancárias (conclusões 1.ª a 10.ª); ii) averiguar se a divisão de quotas efectuada na escritura pública celebrada enferma de nulidade ou de ineficácia (conclusões 11.ª a 23.ª); iii) averiguar se era viável a execução específica do contrato, tal como foi formulada (conclusões 24.ª a 27.ª).

2. Fundamentos de facto
Com relevância para a decisão a proferir, está provado que:
1) Encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Guarda, com o NIPC ..., a sociedade E (…), Lda, cujo contrato de sociedade e designação de membro(s) do(s) órgão(s) social(ais) foi inscrito, no registo comercial, pela apresentação 03/19880421, aí constando, à data, como sócios o autor marido, detentor de uma quota com o valor de € 500.000,00, e o 1º réu, detentor de uma quota de igual valor (alínea A) dos Factos Assentes)
2) Em 10 de Dezembro de 2007, nesta cidade da Guarda, o autor celebrou com o 1º réu, JL (…), um acordo escrito, com a epígrafe “contrato promessa de cessão de quotas”, cuja cópia se mostra junta a fls. 41 a 43 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte conteúdo:

«CONTRATO PROMESSA DE CESSÃO DE QUOTAS Entre: AM ((…) e JL (…), celebram o presente contrato promessa que se rege pelas seguintes cláusulas:

1º O Primeiro contraente, AM (…) é sócio e gerente da firma E (…) Lda, sociedade por quotas, matriculada na CRC da Guarda sob o Nº- ..., com sede na Av ... freguesia de ..., 6300-832 Guarda, com o capital social de 1 000 000€ dividido em duas quotas iguais de 500 000€ cada, pertencendo uma ao primeiro contraente AM (…) e outra ao segundo contraente JL (…).

2º O primeiro contraente é ainda sócio e gerente da firma E (…), Lda, sociedade por quotas, matriculada na CRC da Guarda sob o Nº ..., com sede na Av ... ..., 6300 Guarda, com o capital social de 1 000 000€, dividido em duas quotas iguais de 500 000€ cada, pertencendo uma ao primeiro contraente, AM (…) e outra ao segundo contraente JL

3º Pelo presente contrato, o primeiro contraente promete vender ao segundo contraente e este promete comprar as referidas quotas que possui em ambas as citadas sociedades pelo valor monetário de 550 000€ (Quinhentos e cinquenta mil euros).

4º Além desta quantia, integram ainda o preço da cessão das referidas quotas três veículos automóveis; dois de marca Audi, um modelo TT, coupe2.0TFSI, chassis nº 1011095, outro modelo A2, matrícula ...XT e o terceiro de marca Ford modelo Focus, chassis WSOXXXLVDX7KO2243, com o valor global de venda ao público de 96.000€ (Noventa e seis mil euros).

5º O primeiro contraente e a esposa deste subscreveram garantias bancárias junto de vários bancos, nomeadamente, BPI, CGD, BCP, BES, Finibanco e BNC (actual BPP), enquanto garantes da sociedade E (…) e nos bancos Banif BPP, BCP, CGD e BES, enquanto garantes da sociedade E (…) encargos estes que o segundo contraente assume e providenciará junto dessas instituições por forma a libertar o segundo contraente e o seu cônjuge dessas garantias bancárias, o que deve ser feito até à outorga da escritura de cessão de quotas.

6º Com a assinatura do presente contrato, o primeiro contraente entrega ao segundo contraente uma delegação de poderes para este praticar todos os actos de gestão de ambas as citadas sociedades, sem necessidade da assinatura do primeiro contraente, delegação esta que vigorará até à outorga da escritura de cessão de quotas.

7º As sociedades E (…) e E (…)e pagarão os descontos devidos à segurança social e farão a retenção e entrega de IRS nas Finanças relativos ao ordenado de gerência do primeiro contraente até ao final do mês em que ocorrer a outorga da escritura de cessão de quotas. No entanto, deixarão de lhe pagar os mesmos vencimentos a partir de 30 de Novembro de 2007.

8º O preço monetário de 550.000€ é pago no acto da assinatura da escritura de cessão de quotas a realizar nos próximos 30 dias a contar da assinatura do presente contrato. Os veículos referidos na cláusula 4ª, assim como os respectivos documentos são entregues ao primeiro contraente no decorrer do mês de Janeiro de 2008, à excepção do Ford Focus que ficará com a matrícula de 2007.

9º Na impossibilidade da outorga da referida escritura até à indicada data, o primeiro contraente entrega ao segundo contraente uma procuração com poderes para este outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo, caso em que o dito preço é pago contra a entrega desta procuração.

10. Na falta de pagamento do referido preço no acto da escritura, ou no acto da entrega da procuração, o segundo contraente pagará ao primeiro contraente a importância de 50 000€ (cinquenta mil euros) por cada dia de atraso nesse pagamento. Por sua vez, o primeiro contraente pagará igual quantia ao segundo contraente caso aquele não proceda à entrega da dita procuração no referido prazo.

11º A escritura de cessão de quotas é feita pelo valor nominal das quotas das ditas sociedades e deverá ser feita no prazo máximo de 90 dias a contar da presente data.

12º Ambos os contraentes atribuem carácter executivo ao presente contrato.

13º O cônjuge do primeiro contraente declara que tomou conhecimento do teor do presente contrato e dá o seu consentimento ao seu marido, assinando este contrato» (alínea B) dos Factos Assentes)
3) A autora mulher assinou o acordo referido em B) (alínea C) dos Factos Assentes).
4) Tendo em vista o cumprimento da cláusula 9º do acordo reproduzido em B), os autores deslocaram-se, no dia 14 de Janeiro de 2008 ao 1º Cartório Notarial de Competência Especializada da Guarda, e declararam perante Notário, que exarou por escrito as suas declarações, com a epígrafe “procuração”, cuja cópia se mostra junta a fls. 57 e 58, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o seguinte:
«Que, pelo presente instrumento, constituem seu bastante procurador, JL (…) (…), a quem conferem os necessários poderes para ceder pelo preço e condições que entender a quota no valor nominal de quinhentos mil euros, que gira em nome do outorgante marido, e que possuem na sociedade comercial por quotas com a firma “E (…), LDA”, (..) outorgar e assinar a respectiva escritura e tudo quanto se torne necessário aos indicados fins. Que a presente procuração é conferida também no interesse do procurador, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo, conforme previsto no número três, do artigo duzentos e sessenta e cinco e número dois do artigo mil cento e setenta, ambos do Código Civil» (alínea D) dos Factos Assentes)
5) Aquando da celebração do contrato referido em 3 (designado pelas partes como contrato promessa), o 1º réu entregou aos autores a quantia referida na cláusula 3º desse acordo: € 550.000,00 (alínea E) dos Factos Assentes).
6) Em 3 de Junho de 2009, o ora autor marido escreveu ao 1º réu uma carta, cuja cópia se mostra junta a fls. 48 e 49, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, na qual constava, entre o mais, o seguinte: “Exm.º Senhor 1- Como é do seu conhecimento, em Fevereiro de 2000 a E (…) Ldª subscreveu com o Finibanco dois contratos de abertura de crédito relativamente aos quais me constituí avalista. 2 – Nos termos da cláusula 5ª do contrato-promessa de cessão de quotas de 10.12.2007, Vª. Exª. Assumiu pessoalmente os encargos para mim (e minha esposa) resultantes de todos os avais constituídos junto das instituições ali discriminadas, entre elas o Finibanco, e ficou obrigado a providenciar junto das mesmas instituições no sentido de nos desobrigar de tais responsabilidades. 3 – Sucede que a E (…) Ldª não honrou os seus compromissos para com (pelo menos) o Finibanco, razão pela qual os contratos referidos no ponto 1 desta carta foram resolvidos. 4 – Em consequência, com data de 28 de Maio de 2009 o Finibanco enviou-me duas cartas, cujas cópias lhe envio e cujo conteúdo dou aqui por reproduzido. – Docs 1 e 2, e das quais consta que se encontram a vencimento em 9 de Junho de 2009 duas livranças no valor, respectivamente, de 90.735,11€ e 152.725,68€, por mim subscritas, comunicando que será instaurada acção judicial em caso do seu não pagamento no vencimento. 5 – Em face do exposto, venho por esta forma exigir a Vª. Exª. que imediatamente proceda à liquidação das dívidas referidas e nos prazos referidos, a que está obrigado por força do aludido no ponto 2 desta carta, por forma a que eu fique desobrigado desse pagamento. 6 – Caso tal não suceda, desde já lhe comunico que responsabilizarei judicialmente Vª. Exª. por todos os prejuízos, morais e materiais que esta situação me possa vir a causar” (alínea F) dos Factos Assentes)
7) No dia 13 de Novembro de 2009, compareceram no 1º Cartório Notarial de Competência Especializada da Guarda, o 1º, 2º e 4º réus, e perante Notário, que exarou por escrito as suas declarações, com a epígrafe “DIVISÃO, CESSÃO DE QUOTAS, UNIFICAÇÃO E ALTERAÇÃO PARCIAL DE PACTO SOCIAL”, cuja cópia se mostra junta a fls. 52 a 57 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, declararam o seguinte: «
Que, ele [1º réu] e o seu representado, AM (…) são os únicos sócios da sociedade comercial por quotas com a firma “ W...LDA”, com sede na Avenida ..., freguesia de ..., concelho da Guarda, com o número de matrícula e de Pessoa Colectiva cinco, zero, um, nove, seis, oito, zero, um, seis ( ...) com o capital social integralmente realizado em dinheiro e definitivamente registado de Um milhão de Euros; Que este capital corresponde à soma de duas quotas iguais, no valor nominal de Quinhentos mil Euros cada uma, pertencentes uma a cada um dos sócios JL (…) e AM (…), quotas estas já vencidas e inteiramente liberadas. Que em nome da Sociedade, consente na divisão e cessão de quotas adiante exarada. Que, pela presente escritura e em nome dos seus representados, DIVIDE a quota do valor nominal de Quinhentos mil Euros, que gira em nome do cedente AM (…), em quatro novas quotas: Uma do valor nominal de vinte mil Euros, que usando da faculdade de negociar consigo mesmo, CEDE a si próprio, Primeiro Outorgante, com todos os correspondentes direitos e obrigações por preço igual ao seu valor nominal, quantia que declara ter pago aos seus representados e de que é dada a devida quitação. Uma do valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, que CEDE à JM (…), representada do Segundo Outorgante [2º réu]; Uma do valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, que CEDE ao Segundo Outorgante, MM (…); e Uma do valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, que cede ao Terceiro Outorgante, NM (…); Que estas três cessões de quotas são feitas com todos os correspondentes direitos e obrigações, cada uma por preço igual ao seu valor nominal, quantia que os cedentes já receberam dos cessionários e de que lhes é dada a respectiva quitação» (alínea G) dos Factos Assentes).
8) Mais declararam o seguinte: “PELOS OUTORGANTES, NAS QUALIDADES EM QUE RESPECTIVAMENTE OUTORGAM FOI DITO: Que ACEITAM as cessões de quotas que a cada um respeita, nos termos exarados (alínea H) dos Factos Assentes)
9) Mais declararam o seguinte: “MAIS DISSE O PRIMEIRO OUTORGANTE [1º réu], EM SEU NOME PESSOAL: Que sendo agora titular de duas quotas, uma no valor nominal de Quinhentos mil Euros e outra no valor nominal de Vinte mil Euros, que se encontram totalmente liberadas, e como não lhes correspondem direitos nem obrigações diferentes, UNIFICA as suas quotas numa única com o valor nominal de Quinhentos e vinte mil Euros;” (alínea I) dos Factos Assentes).
10) Mais declararam o seguinte: “DECLARARAM OS OUTORGANTES, sendo o Primeiro em seu nome pessoal: Que eles e a representada do Segundo, são agora os únicos sócios da referida sociedade “E (…), COMERCIO AUTOMOVEL, LDA”, e que nessa qualidade, se constituem em Assembleia Geral, com dispensa de formalidades prévias, e deliberam por unanimidade: ALTERAR parcialmente o pacto social que rege a Sociedade, dando nova redacção aos seus Artigos Terceiro (capital, sócios e quotas) e Sexto (gerência e forma de obrigar), que passará a ser a seguinte: Artigo 3.° O capital social, integralmente subscrito e realizado em dinheiro, é de Um milhão de Euros e corresponde a soma das seguintes quotas: Uma no valor nominal de Quinhentos e vinte mil Euros, pertencente ao sócio, JL (…); Uma no valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, pertencente à sócia JM (…);- Uma no valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, pertencente ao sócio, MM (…); e Uma no valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, pertencente ao sócio, NM (…). Artigo 6.° 1- A Administração e representação da Sociedade, dispensada de caução e remunerada ou não, conforme for deliberado em Assembleia Geral, será exercida por quatro Gerentes; 2- Ficam desde já nomeados gerentes os sócios, MM (…), JM (…) e NM (…), mantendo-se na gerência o sócio JL (…), anteriormente nomeado; 3- Para obrigar a Sociedade em todos os actos e contratos, é suficiente a assinatura do sócio Gerente JL (…); ou a assinatura conjunta de dois dos restantes Gerentes. 4- Aos gerentes é expressamente proibido usar a firma social em actos e contratos que não digam respeito à Sociedade, designadamente letras, livranças, avales e fianças.” (alínea J) dos Factos Assentes)
11) Mais declararam o seguinte: “POR TODOS OS SÓCIOS PRESENTES FOI AINDA DITO, SOB SUA INTEIRA RESPONSABILIDADE: Que destituem da Gerência o anteriormente nomeado Gerente, AM (…), devendo esta destituição reportar-se à data de catorze de Janeiro de dois mil e oito, data da outorga da Procuração Irrevogável supra referida, passada a favor do Primeiro Outorgante.” (alínea K) dos Factos Assentes).
12) Por carta datada de 23 de Novembro de 2009, o autor foi citado para uma acção executiva movida no Tribunal Judicial da Guarda em que é exequente Finibanco, SA e executada E (…) Lda. e executados também o ora 1º réu e o ora autor marido (alínea L) dos Factos Assentes).
13) Tal acção executiva tem como título executivo uma livrança no valor de 152 725,68 € (sendo o valor da acção 153 131,59 €), com vencimento em 12 de Junho de 2009, subscrita pela sociedade E (…) e avalizada pelo ora autor marido e pelo ora 1º réu, processo que corre termos no 2º Juízo do dito tribunal sob o n.º 943/09.6TBGRD (alínea M) dos Factos Assentes)
14) No dia 07-12-2009, o autor marido constava como tendo prestado garantias a favor da E (…) nas seguintes instituições bancárias: a. No Banco Espírito Santo SA: i. uma garantia no valor de 238 760,00 €; ii. Uma garantia no valor de 99 760,00 €; b. No Banco BPI SA: i. uma garantia no valor de 7 430,00 €; ii. uma garantia no valor de 100 000,00 €; c. No Banco Comercial Português SA: i. Uma Garantia no valor de 470 000,00 €; ii. Uma Garantia no valor de 293 750,00 €; iii. Uma Garantia no valor de 1 246,00 €; iv. Uma Garantia no valor de 99 759,00 €; d. Na Caixa Geral de Depósitos SA: i. Uma Garantia no valor de 35 913,00 €; ii. Uma Garantia no valor de 199 519,00 €; e. No Finibanco SA, uma garantia no valor de 238 000,00 €, prestada a favor da E (…), garantia que corresponde ao aval prestado na livrança em execução no processo executivo referido em R) e S) (alínea N) dos Factos Assentes).
15) O autor marido instaurou, em Junho de 2009, no Tribunal Judicial da Guarda dois procedimentos – um inquérito judicial à E (…)e um inquérito judicial à E (…) - com vista a verificar, para além do mais, o cumprimento da obrigação contratualmente fixada da “libertação” da obrigação de pagamento das quantias garantidas aos Bancos mutuantes, processos a que foram dados os n.º 575/09.9TBGRD e 704/09.2TBGRD, ambos do 1º Juízo do TJ da Guarda (alínea O) dos Factos Assentes).
16) No processo 704/09.2TBGRD, referente à sociedade E (…) foi proferido em 26/06/2009, despacho no qual se diz: “Em face de todo o exposto: a) Determino a realização de inquérito judicial à sociedade E (…), Lda, com sede na Av. ..., Guarda - Gare, com o NIPC ..., a efectuar nos seguintes termos: a. por um único perito a designar pelo Tribunal; b. deve incidir sobre a averiguação do todos os factos vertidos no ponto 2. da parte final da petição inicial (Cf. fls. 15 e 16), com excepção das alíneas m) e n); c. fixo em trinta dias, a contar da notificação da nomeação do perito, o prazo máximo para a realização do inquérito e apresentação do relatório; b) Sem prejuízo do inquérito judicial determinado em a), desde já determino que JL (…), na qualidade de sócio-gerente da sociedade E (…), Lda: a. coloque, de imediato à disposição do Autor, para consulta na sede da sociedade, de toda a documentação relativa à gestão da sociedade com referência aos exercícios dos anos de 2007, 2008 e 2009 nomeadamente consulta dos documentos descritos no ponto 1 da parte final da petição inicial – cfr. fls. 14 e 15 – sob pena de condenação em multa por falta de colaboração, nos termos do art. 519°/1 e 2, do CPC; b. preste ao Autor, no prazo de vinte dias, informação verdadeira, completa e elucidativa sobre os factos questionados no ponto 2. da parte final da petição inicial, com excepção das alíneas m) e n) – cfr. fls. 15 e 16 -, com referência aos exercício dos anos de 2007, 2008 e 2009, devendo indicar, em relação a cada um dos factos, dos documentos comprovativos, que devem ser colocados à disposição do Autor, para consulta, nas instalações da sede da sociedade, sob pena de condenação em multa por falta de colaboração, nos termos do art. 519º/1 e 2, do CPC” (alínea P) dos Factos Assentes)
17) No processo 575/09.9TBGRD, referente à sociedade E (…), foi proferido em 21/09/2009, despacho no qual se diz: “Em face de todo o exposto: a) Determino a realização de inquérito judicial à sociedade E (…), Lda, com sede na Av. ..., Guarda - Gare, com o NIPC ..., a efectuar nos seguintes termos: a. por um único perito a designar pelo Tribunal; b. deve incidir sobre a averiguação do todos os factos vertidos no ponto 2. da parte final da petição inicial (cfr fls. 17 e 18), com excepção das alíneas m) e n); c. fixo em trinta dias, a contar da notificação da nomeação do perito, o prazo máximo para a realização do inquérito e apresentação do relatório; b) Sem prejuízo do inquérito judicial determinado em a), desde já determino que JL (…), na qualidade de sócio-gerente da sociedade E (…) Lda: a. coloque, de imediato à disposição do Autor, para consulta na sede da sociedade, de toda a documentação relativa à gestão da sociedade com referência aos exercícios dos anos de 2007, 2008 e 2009 nomeadamente consulta dos documentos descritos no ponto 1 da parte final da petição inicial - cfr fls. 16 e 17 – sob pena de condenação em multa por falta de colaboração, nos termos do art. 519°/1 e 2, do CPC; b. preste ao Autor, no prazo de vinte dias, informação verdadeira, completa e elucidativa sobre os factos questionados no ponto 2. da parte final da petição inicial, com excepção das alíneas m) e n) - cfr fls. 17 e 18 -, com referência aos exercício dos anos de 2007, 2008 e 2009, devendo indicar, em relação a cada um dos factos, dos documentos comprovativos, que devem ser colocados à disposição do Autor, para consulta, nas instalações da sede da sociedade, sob pena de condenação em multa por falta de colaboração, nos termos do art. 519º/1 e 2 do CPC” (alínea Q) dos Factos Assentes)
18) Quando emitiu as declarações reproduzidas em G) a K) (“escritura de cessão de quotas”), o 1º réu sabia que se mantinham as garantias bancárias referidas em N) (alínea R) dos Factos Assentes).
19) O valor das contrapartidas referidas que os autores iriam receber em virtude do acordo reproduzido em B) está na quota da E (…) e não na quota da E (…) facto que era do conhecimento dos réus (alínea S) dos Factos Assentes).
20) Os autores nunca apresentaram ao réu JL (…) e/ou aos bancos e/ou às sociedades E (…) e E (…) qualquer proposta ou sugestão acerca da forma como pretendem ser “libertados” das garantias referidas em N) (alínea T) dos Factos Assentes).
21) Os autores contraíram, entre si, casamento católico, no dia 01-12-1984, sem convenção antenupcial, que foi registado na Conservatória do Registo Civil da Fornos de Algodres pelo assento de casamento nº 49, de 1984 (alínea U) dos Factos Assentes).
22) Encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Guarda, com o NIPC ..., a sociedade E (…)– Comércio Automóvel, Lda, cujo contrato de sociedade e designação de membro(s) do(s) órgão(s) social(ais) foi inscrito, no registo comercial, pela apresentação 05/19601014, aí constando, à data, como sócios o autor marido, detentor de uma quota com o valor de € 500.000,00, e o 1º réu, detentor de uma quota de igual valor (alínea V) dos Factos Assentes).

3. Fundamentos de direito
3.1. A alegada exorbitação de poderes e incumprimento do contrato
Nas conclusões 1.ª a 10.ª, os recorrentes alegam que o réu José Luís ao celebrar o contrato formalizado por escritura pública exorbitou os poderes que lhe haviam sido conferidos na procuração e incumpriu o contrato promessa por não ter previamente procedido à “liberação” das garantias assumidas pelo autor perante as entidades bancárias.
Vejamos.
No contrato celebrado pelo autor e pelo réu JL (…) (fls. 37 a 39 dos autos), os contraentes começam por se identificar como sócios da sociedade E (…), Lda, com o capital social de € 1.000.000,00, detido em partes iguais (€ 550.000,00) por cada um deles (cláusulas 1.ª e 2.ª).
O objecto do contrato e as condições estipuladas encontram-se definidos nas cláusulas 3.ª a 13.ª, nestes termos:

3º Pelo presente contrato, o primeiro contraente promete vender ao segundo contraente e este promete comprar as referidas quotas que possui em ambas as citadas sociedades pelo valor monetário de 550 000€ (Quinhentos e cinquenta mil euros).

4º Além desta quantia, integram ainda o preço da cessão das referidas quotas três veículos automóveis; dois de marca Audi, um modelo TT, coupe2.0TFSI, chassis nº 1011095, outro modelo A2, matrícula ...XT e o terceiro de marca Ford modelo Focus, chassis WSOXXXLVDX7KO2243, com o valor global de venda ao público de 96.000€ (Noventa e seis mil euros).

5º O primeiro contraente e a esposa deste subscreveram garantias bancárias junto de vários bancos, nomeadamente, BPI, CGD, BCP, BES, Finibanco e BNC (actual BPP), enquanto garantes da sociedade E (…) e nos bancos Banif BPP, BCP, CGD e BES, enquanto garantes da sociedade E (…), encargos estes que o segundo contraente assume e providenciará junto dessas instituições por forma a libertar o segundo contraente e o seu cônjuge dessas garantias bancárias, o que deve ser feito até à outorga da escritura de cessão de quotas.

6º Com a assinatura do presente contrato, o primeiro contraente entrega ao segundo contraente uma delegação de poderes para este praticar todos os actos de gestão de ambas as citadas sociedades, sem necessidade da assinatura do primeiro contraente, delegação esta que vigorará até à outorga da escritura de cessão de quotas.

7º As sociedades E (…) e E (…) pagarão os descontos devidos à segurança social e farão a retenção e entrega de IRS nas Finanças relativos ao ordenado de gerência do primeiro contraente até ao final do mês em que ocorrer a outorga da escritura de cessão de quotas. No entanto, deixarão de lhe pagar os mesmos vencimentos a partir de 30 de Novembro de 2007.

8º O preço monetário de 550.000€ é pago no acto da assinatura da escritura de cessão de quotas a realizar nos próximos 30 dias a contar da assinatura do presente contrato. Os veículos referidos na cláusula 4ª, assim como os respectivos documentos são entregues ao primeiro contraente no decorrer do mês de Janeiro de 2008, à excepção do Ford Focus que ficará com a matrícula de 2007.

9º Na impossibilidade da outorga da referida escritura até à indicada data, o primeiro contraente entrega ao segundo contraente uma procuração com poderes para este outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo, caso em que o dito preço é pago contra a entrega desta procuração.

10. (…).

11º (…).

12º (…).

13º (…)»
Provou-se que, aquando da celebração do contrato, o réu José Luís pagou aos autores a quantia de € 550.000,00, referida na cláusula 3.ª (facto 5).
De acordo com o que haviam estipulado na cláusula 9.ª, os autores deslocaram-se ao cartório notarial, onde formalizaram a procuração junta aos autos a fls. 57 e 58, com o seguinte teor: «Que, pelo presente instrumento, constituem seu bastante procurador, JL (…), (…), a quem conferem os necessários poderes para ceder pelo preço e condições que entender a quota no valor nominal de quinhentos mil euros, que gira em nome do outorgante marido, e que possuem na sociedade comercial por quotas com a firma “E (…) LDA”, (..) outorgar e assinar a respectiva escritura e tudo quanto se torne necessário aos indicados fins. Que a presente procuração é conferida também no interesse do procurador, pelo que não poderá ser revogada sem o seu acordo, conforme previsto no número três, do artigo duzentos e sessenta e cinco e número dois do artigo mil cento e setenta, ambos do Código Civil»
Começamos por abordar o regime jurídico aplicável à procuração.
Como decorre do seu teor, trata-se de uma procuração no interesse do dominus (aquele que confere poderes) e do procurador.
Tal característica, como refere Pedro Leitão Pais de Vasconcelos[1], impede a livre revogabilidade unilateral pelo dominus, exigindo para a revogação a intervenção ou, pelo menos, a anuência, de ambos os titulares dos interesses juridicamente tutelados e relevantes: o dominus e do procurador.
Assim se compreende a relação entre o n.º 2 e o n.º 3 do art. 265.º do Código Civil. O n.º 2 traduz-se num caso de legitimação para uma situação especial (A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação). O n.º 3 é um mero resultado da aplicação das regras gerais da legitimidade com fundamento na autonomia privada, numa situação diferente (Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.)[2].
Na situação em que a procuração foi outorgada no interesse de dominus e procurador, ambos retiram uma utilidade da vigência da procuração, no que concerne à possibilidade de atingir ou realizar fins próprios, tendo ambos interesse na vigência e na não revogação da procuração.
A ordem jurídica tutela ambos os interesses através do regime de irrevogabilidade unilateral da procuração, elegendo a irrevogabilidade como regra, no caso da procuração outorgada no interesse de dominus e de procurador.
Com efeito, se fosse permitido ao dominus revogar livremente a procuração, estaria a provocar a extinção de um poder numa esfera jurídica alheia, contra um interesse juridicamente relevante que aquele tinha na sua manutenção.
Verifica-se in casu uma situação em que, tendo sido a procuração outorgada no interesse comum[3], o acto a praticar pelo procurador (celebração do negócio definitivo) será de considerar, objectivamente, no exclusivo interesse do mesmo[4], face ao teor da cláusula 9.ª do contrato promessa que justificou a outorga da procuração em causa: «Na impossibilidade da outorga da referida escritura até à indicada data, o primeiro contraente entrega ao segundo contraente uma procuração com poderes para este outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo, caso em que o dito preço é pago contra a entrega desta procuração».
Ou seja, o que as partes convencionaram no contrato promessa, foi a outorga e entrega da procuração ao réu (procurador) por parte do autor (dominus), com poderes para celebrar o contrato definitivo, inclusive consigo mesmo, apenas e se o preço fosse pago contra a entrega dessa procuração.
Esta cláusula é particularmente relevante, porque a entrega da procuração faz presumir que foi recebido o preço.
E provou-se que o réu JL (…) (procurador) pagou o preço de € 550.000,00 referido no contrato promessa (nada tendo sido alegado quanto aos veículos, que também integram o preço, nos termos das cláusulas 4.ª e 8.ª)[5].
Aqui chegados, concluímos, salvo o devido respeito, que não assiste razão aos recorrentes, quando alegam que no contrato formalizado por escritura pública, o réu (procurador) exorbitou os poderes que lhe haviam sido conferidos na procuração.
Com efeito, como vimos e resulta expressamente do estipulado no contrato promessa - cláusula 9.ª - na procuração são conferidos poderes para o réu José Luís “outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo, caso em que o dito preço é pago contra a entrega desta procuração”.
Referem os autores/recorrentes, que o réu José Luís incumpriu o contrato promessa por não ter previamente procedido à “liberação” das garantias assumidas pelo autor perante as entidades bancárias.
É esta a questão que nos vai ocupar de seguida.
Consta da cláusula 5.ª do contrato promessa: «O primeiro contraente e a esposa deste subscreveram garantias bancárias junto de vários bancos, nomeadamente, BPI, CGD, BCP, BES, Finibanco e BNC (actual BPP), enquanto garantes da sociedade E (…) e nos bancos Banif BPP, BCP, CGD e BES, enquanto garantes da sociedade E (…) encargos estes que o segundo contraente assume e providenciará junto dessas instituições por forma a libertar o segundo contraente e o seu cônjuge dessas garantias bancárias, o que deve ser feito até à outorga da escritura de cessão de quotas.».
Interpretando o contrato promessa e a procuração que foi outorgada na sequência e para cumprimento do mesmo, vimos já que as partes convencionaram que a procuração só seria entregue contra o pagamento do preço, tendo-se provado que o réu JL (…) pagou a quantia de € 550.000,00.
A interpretação do contrato leva-nos assim a concluir, como já se referiu, que o preço estaria pago (de outra forma, não teria sido entregue a procuração).
No entanto, a prova produzida nos autos vem reforçar, definitivamente, esta conclusão.
Com efeito, os autores (ora recorrentes) alegaram e foram integrados na base instrutória, os seguintes factos:

1) Quando assinaram o escrito reproduzido em B) (“contrato-promessa”), a vontade dos autores e do 1º réu, em relação à cláusula 5ª desse acordo, era a de que o 1º réu se comprometia a pagar às entidades bancárias aí indicadas as quantias assumidas pelos autores no âmbito das garantias bancárias referidas em N)?

2) Ou que se comprometia a “libertar”, por qualquer outro meio, os autores de tais garantias?

3) Como contrapartida da cessão de quotas, a acrescer ao valor indicado na cláusula 3º do acordo reproduzido em B) (€ 550.000,00) e aos veículos referidos na cláusula 4º do mesmo acordo?

4) E que a escritura de cessão de quotas referida na clausula 9º do acordo reproduzido em B) apenas seria celebrada após o pagamento de tais quantias pelo 1º réu ou após a “libertação” dos autores, por qualquer outro meio, de tais garantias?

5) A vontade dos autores, quando outorgaram o documento reproduzido em D) (“procuração”), era a de que o 1º réu celebrasse a escritura de cessão de quotas referida na cláusula 9º do acordo reproduzido em B) de acordo com o estipulado no documento reproduzido em B) e de acordo com a vontade das partes referida em 1) a 3)?

6) Vontade essa que era do conhecimento do 1º réu, quando emitiu as declarações reproduzidos em G) a K) (“escritura de cessão de quotas”)?
Sobre estas questões respondeu o tribunal a quo negativamente, considerando não provados tais factos[6].
A resposta do tribunal (não impugnada pelos recorrentes), parece-nos resultar óbvia, não só da leitura da cláusula 9.ª (onde se refere que a procuração só seria entregue contra o pagamento do preço), e da cláusula 5.ª – onde se refere que o réu (procurador) “providenciará junto dessas instituições por forma a libertar o segundo contraente e o seu cônjuge dessas garantias bancárias.
Não consta do contrato promessa, nem os autores lograram provar: que “Quando assinaram o (…) contrato-promessa, a vontade dos autores e do 1º réu, em relação à cláusula 5ª desse acordo, era a de que o 1º réu se comprometia a pagar às entidades bancárias aí indicadas as quantias assumidas pelos autores no âmbito das garantias bancárias referidas em N)” (quesito 1.º); “que (o 1.º réu) se comprometia a “libertar”, por qualquer outro meio, os autores de tais garantias (…) como contrapartida da cessão de quotas, a acrescer ao valor indicado na cláusula 3º do acordo reproduzido em B) (€ 550.000,00) e aos veículos referidos na cláusula 4º do mesmo acordo” (quesitos 2.º e 3.º); e “que a escritura de cessão de quotas referida na clausula 9º do acordo reproduzido em B) apenas seria celebrada após o pagamento de tais quantias pelo 1º réu ou após a “libertação” dos autores, por qualquer outro meio, de tais garantias” (quesito 4.º).
A conclusão a que chegámos, de que não foi estipulado o pagamento por parte do 1.º réu, às instituições bancárias (mas apenas a obrigação de providenciar para a liberação das garantias prestadas pelos autores), e que tal pagamento não integra o “preço” de venda e aquisição das quotas, resulta ainda do teor literal das cláusulas 3.ª e 4.ª do contrato:

“3.ª Pelo presente contrato, o primeiro contraente promete vender ao segundo contraente e este promete comprar as referidas quotas que possui em ambas as citadas sociedades pelo valor monetário de 550 000€ (Quinhentos e cinquenta mil euros).

4.ª Além desta quantia, integram ainda o preço da cessão das referidas quotas três veículos automóveis; dois de marca Audi, um modelo TT, coupe2.0TFSI, chassis nº 1011095, outro modelo A2, matrícula ...XT e o terceiro de marca Ford modelo Focus, chassis WSOXXXLVDX7KO2243, com o valor global de venda ao público de 96.000€ (Noventa e seis mil euros).”
Correctamente, a M.ª juíza qualificou a obrigação assumida pelo réu JL (…) na cláusula 5.ª [“providenciará junto dessas instituições bancárias”], como “obrigação de meios”.
Vejamos o conceito.
Pedro Múrias e Maria de Lurdes Pereira[7] situam a fronteira entre os dois conceitos em apreço, na seguinte distinção: «As obrigações de resultado poderiam chamar-se obrigações de causação ou obrigações causativas. Nelas, o devedor obriga-se a causar certo resultado, o resultado definidor da prestação. Como o comportamento devido se define pela causação de um facto, esse comportamento ocorre apenas se o resultado ocorrer: só se causa o que acontece. Logo, um acto só será qualificado como cumprimento se o resultado vier depois a ocorrer. As obrigações de meios chamar-se-iam com mais clareza obrigações de tentativa ou obrigações de adequação. As obrigações de meios também se definem por um resultado. O devedor, porém, não se obriga a causá-lo, mas a tentar causá-lo, ou melhor, a praticar os actos que, numa apreciação ex ante, sejam adequados a causá-lo.».
Constatam os autores citados, que é comum às obrigações de meios e de resultado, a circunstância de serem definidas através de um facto que se pretende causar. A diferença está naquilo a que o devedor se obriga: nas de resultado, obriga-se a causá-lo; nas de meios, obriga-se a tentar adequadamente causá-lo, daí decorrendo que: i) só há cumprimento das primeiras quando o resultado definidor da prestação ocorra causado pelo devedor; ii) nas de meios, há cumprimento quando o resultado é adequadamente tentado.
Mais referem os mesmos autores, que as «obrigações de meios» não se definem por nenhuma indicação dos meios que o devedor usará para cumprir. Pelo contrário, ele é totalmente livre na sua escolha, salvo convenção adicional.
Os autores citados afastam a tese doutrinária dominante, que reduz a prestação nas obrigações de meios ao emprego de um esforço de certa intensidade, de uma certa diligência, determinada segundo o critério do bonus pater famílias, concluindo que de tal entendimento se retiraria a contrario, a conclusão de que nas obrigações de resultado o devedor estaria obrigado a esforços de uma intensidade máxima, não podendo reclamar a eficácia exoneratória de um acréscimo, ainda que enorme, de despesas.
Por essa razão, concluem que a distinção entre as obrigações de meios e as obrigações de resultado não exige uma alusão às ideias de esforço ou de diligência, mas só ao facto de que o devedor de meios tem de tentar adequadamente alcançar o resultado, e não de causá-lo.[8]
Na situação sub judice a obrigação assumida pelo 1.º réu relativamente à desoneração dos autores, não se traduzia no pagamento às entidades bancárias, não se incluindo no “preço”, nem se configurava como uma “obrigação de resultado”, dado que nenhuma cláusula estabelece como condição da celebração do contrato definitivo (cessão de quotas), a prévia desoneração dos autores/recorrentes relativamente aos encargos bancários, pelo que não se poderá interpretar como “obrigação de resultado”, não tendo os ora recorrentes logrado provar a matéria vertida no quesito 1.º da base instrutória: “Quando assinaram o (…) contrato-promessa, a vontade dos autores e do 1º réu, em relação à cláusula 5ª desse acordo, era a de que o 1º réu se comprometia a pagar às entidades bancárias aí indicadas as quantias assumidas pelos autores no âmbito das garantias bancárias referidas em N)”[9].
Trata-se, efectivamente, de uma “obrigação de meios”.
E tal obrigação, até pela sua natureza[10], não constitui (nem foi estipulado que constituísse), condição prévia à realização do contrato definitivo (não se tendo provado o teor do quesito 4.º - que as partes tivessem convencionado “que a escritura de cessão de quotas referida na clausula 9º do acordo reproduzido em B) apenas seria celebrada após o pagamento de tais quantias pelo 1º réu ou após a “libertação” dos autores, por qualquer outro meio, de tais garantias”.
Acresce que, independentemente de se seguir um ou outro critério – diligência no esforço ou adequação do esforço ao resultado – os autores, ora recorrentes, no artigo 61.º da petição inicial vêm afirmar expressamente que “os Bancos credores da E (…) e E (…), nomeadamente o Finibanco, não estava disponível para continuar as garantias e exigia a sua imediata liquidação”.
Ou seja, os próprios autores alegam a “indisponibilidade” das entidades bancárias para a liberação das garantias por eles prestadas, bem como o facto de tais entidades se encontrarem dispostas a executar as referidas garantias (exigir a imediata liquidação), o que se veio a confirmar face ao teor do facto provado n.º 12, de onde se conclui pela inutilidade das providências a desenvolver pelo 1.º réu.
Convém, no entanto, não perdermos de vista a questão em análise, vertida nas conclusões 1.ª a 10.ª, ora enunciada pela interrogativa: o réu JL (…) ao celebrar o contrato formalizado por escritura pública exorbitou os poderes que lhe haviam sido conferidos na procuração e incumpriu o contrato promessa por não ter previamente procedido à “liberação” das garantias assumidas pelo autor perante as entidades bancárias?
 Pensamos, face a tudo o que ficou dito, que a resposta não poderá deixar de ser negativa, improcedendo, em consequência, salvo o devido respeito, as enunciadas conclusões do recurso.


3.2. As alegadas nulidade e/ou ineficácia da divisão de quotas
Nas conclusões 11.ª a 23.ª, alegam os recorrentes que a divisão de quotas efectuada na escritura pública celebrada enferma de nulidade ou de ineficácia.
Vejamos.
Na petição, os autores alegaram factos integradores da simulação negocial (divergência intencional entre a vontade e a declaração), vertidos nos quesitos 15.º a 24.º:

15) Quando foi celebrado o documento reproduzido em G) a K) (“escritura de cessão de quotas”), o 1º réu não queria dividir a quota referida em A)?

16) Nem queria ceder três das quatro quotas que resultaram da divisão aos 2º, 3º e 4º réus?

17) Nem estes queriam comprar tais quotas?

18) E, em sentido contrário àquele que declararam no documento reproduzido em G) a K) (“escritura de cessão de quotas”), os 2º, 3º e 4º réus não entregaram qualquer quantia pela cessão?

19) Tendo declarado o que consta no documento reproduzido em G) a K) (“escritura de cessão de quotas”), mediante acordo prévio?

20) E com os seguintes objectivos: haver na E (…)um conjunto de sócios - os 2º, 3º e 4º réus – que não seriam pessoalmente responsáveis pelas quantias mutuadas à sociedade, referidas em N)?

21) …, manter os autores obrigados ao cumprimento das garantias bancárias aí indicadas?

22) …, fazendo com que os autores perdessem ou vissem dificultada a possibilidade de se fazerem pagar, pelo incumprimento da contrapartida referida em 1) a 5), através da quota referida em A)?

23) …, e impedirem a realização do inquérito determinado no processo referido em Q)?

24) Os réus sabiam que com a divisão da quota referida em A) em quatro quotas e a transmissão de 96% da mesma para os 2º, 3º e 4º réus, os autores não se podiam fazer pagar, por qualquer crédito que tivessem em relação ao primeiro réu, resultante do acordo reproduzido em B) e 1) a 5), com o produto da venda da referida quota, na proporção transmitida aos 2º, 3º e 4º réus?
A tais quesitos, o tribunal a quo respondeu “não provados” (fls. 697), não tendo sido impugnada a decisão.
Vêm agora os autores, em sede de recurso, alegar: que a divisão de quota depende de deliberação dos sócios, nos termos do nº 1 do artº 246º do CSC (conclusão 13.ª); que ao declarar, na referida escritura de 13 de Novembro de 2009, que pretendia dividir a quota de que o A. AM (…)é titular na sociedade E (…), o R. JL (…) agiu sem representação do A. AM (…), que não lhe tinha concedido quaisquer poderes de representação para este o representar em qualquer assembleia geral da sociedade, mas tão-só tinha outorgado procuração para (nas condições e termos referidos no contrato-promessa aludido) vender a sua quota da E (…) e da E (…)  (conclusão 14.ª); que a deliberação da sociedade E (…), consubstanciada na declaração do R. JL (…)  de proceder à divisão da quota de que é titular o A. AM (…), por ter sido tomada em assembleia-geral não regularmente convocada, assembleia geral que não teve a presença do A. e sócio António Saraiva (nem a presença deste foi por este delegada fosse em quem fosse), é nula, nos termos da alínea a) do artº. 56º do CSC (conclusão 15.ª); e que, mesmo que assim não se entendesse, a procuração outorgada pelo A. AM (…) e mulher ao R. JL (…), a procuração a que se reportam as supra 5ª e 9ª conclusões, não concede a este (ao R.) poderes para dividir quaisquer quotas, nomeadamente aquela de que o A. AM (…) é titular na sociedade E (…). (conclusão 18.ª)
Salvo o devido respeito, não vislumbramos qualquer suporte jurídico válido para estas alegações.
Com efeito, e como amplamente se enfatizou, os recorrentes outorgaram a procuração irrevogável, junta aos autos a fls. 57 e 58, através da qual, depois de receberem € 550.000,00, conferem ao 1.º réu os «necessários poderes para ceder pelo preço e condições que entender a quota no valor nominal de quinhentos mil euros, que gira em nome do outorgante marido, e que possuem na sociedade comercial por quotas com a firma “E (…), LDA”, (..) outorgar e assinar a respectiva escritura e tudo quanto se torne necessário aos indicados fins».
Antes, tinham os recorrentes celebrado um contrato promessa onde se anunciava já a referida procuração “com poderes para este (1.º réu) outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo…”.
Usando a procuração em causa, o 1.º réu outorgou a escritura de fls. 52 a 57, na qual declarou: 1.º que em nome da sociedade (por si e em representação do outro sócio – autor), consente na divisão e cessão de quotas; 2.º que em nome dos seus representados, divide a quota do valor nominal de quinhentos mil Euros, que gira em nome do cedente AM (…), em quatro novas quotas: Uma do valor nominal de vinte mil Euros, que usando da faculdade de negociar consigo mesmo, cede a si próprio, por preço igual ao seu valor nominal, outra no valor nominal de cento e sessenta mil Euros, que cede a JM (…), outra no valor nominal de Cento e sessenta mil Euros, que cede ao Segundo Outorgante, MM (…); e uma do valor nominal de cento e sessenta mil Euros, que cede ao Terceiro Outorgante, NM (…).
Após a realização da cessão de quotas, sendo já titulares os intervenientes no contrato, declararam todos eles, que na qualidade de únicos sócios da referida sociedade “E(…)”, se constituíam em Assembleia Geral, com dispensa de formalidades prévias, e deliberavam por unanimidade alterar o pacto social, de acordo com a divisão de quotas efectuada e com as respectivas titularidades, destituindo da gerência o autor, reportando-se essa destituição à data da outorga da procuração irrevogável.
Alegam os recorrentes que a procuração não conferia poderes ao 1.º réu, para dividir as quotas (conclusão 21.ª), não lhes assistindo razão.
Com efeito, concedendo-lhe a procuração poderes para ceder a quota do autor “pelo preço e condições que entender”, tendo as partes estipulado no contrato promessa que seria outorgada uma procuração “com poderes para este (1.º réu) outorgar a escritura de cessão de quotas, nela se incluindo poderes para fazer negócio consigo mesmo” (cls. 9.ª), depois de vender e adquirir a quota (actos para os quais tinha poderes), o 1.º réu poderia fazer das mesmas o que entendesse (vender a terceiro, doar, etc.), sem que tivesse que pedir autorização ao anterior titular.
Por outro lado, não pode proceder a argumentação expendida na conclusão 15.ª, onde os recorrentes invocam a nulidade da deliberação, porque “tomada em assembleia-geral não regularmente convocada, assembleia geral que não teve a presença do A. e sócio António Saraiva”, por duas razões: 1.ª, porque o autor já não era sequer sócio; 2.ª porque nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 56.º do Código das Sociedades Comerciais, são nulas as deliberações, se “tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados”. Ora, todos os sócios estavam presentes ou devidamente representados.
Decorre do exposto, a manifesta improcedência das conclusões 11.ª a 23.ª.

3.3. A invocada execução específica
Alegam os recorrentes (conclusões 24.ª a 27.ª), que é viável a execução específica do contrato, tal como foi formulada.
Vejamos.
Formularam os autores, ora recorrentes, o seguinte pedido subsidiário:
C. Ser o 1.º réu condenado ao abrigo da execução específica consignada no contrato-promessa a reconhecer que os autores têm o direito de pedir que seja proferida sentença neste processo que ordenou o pagamento pelo 1º réu, aos bancos identificados, das quantias garantidas pelos autores referentes aos mútuos por estes bancos efectuados a favor das sociedades E (…) e E (…) e posteriormente ordenar a transmissão das quotas dos autores nessas sociedade a favor do 1.º réu.”
Sobre esta questão, concluem os autores nas suas alegações de recurso:
“25) O pedido de condenação do R. JL (…)no pagamento das quantias em dívida pela E (…) e pela E (…)  aos referidos bancos (e garantidas pelo A. AM (…) e mulher) não só não se opõe como vai ao encontro da obrigação assumida no contrato-promessa e que o R. JL (…) não cumpriu.
26) Assim, devia a Meritíssimas Juíza a quo ter condenado o R. JL (…) no pagamento das quantias em divida pelas sociedades E (…) e E (…)aos bancos referidos e garantidas pelo A. AM (…) e mulher, e ter proferido decisão que suprisse os efeitos da declaração negocial incumprida.”
A questão foi exaustivamente abordada no ponto 3.1., onde se concluiu que não foi estipulada no contrato promessa, qualquer obrigação (de resultado), de pagamento por parte do 1.º réu, das quantias garantidas pelos recorrentes, apenas tendo sido estipulada a obrigação (de meios), de “diligenciar” junto das entidades bancárias, não integrando tais quantias o “preço” estipulado pelas partes no aludido contrato.
Decorre do exposto, salvo o devido respeito, a total improcedência do recurso, também, nesta parte (conclusões 24.ª a 27.ª).

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo em consequência a sentença recorrida.
                                                  *
Custas do recurso pelos Apelantes.
                                                  *                                                               

Carlos Querido ( Relator )
Virgílio Mateus
Carvalho Martins


[1] A Procuração Irrevogável, Almedina, 2.ª Reimpressão, pág. 134.
[2] Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 134, autor que acompanharemos de perto na breve abordagem desta questão.
[3] Pelo menos é o que se depreende do seu teor literal: “a presente procuração é conferida também no interesse do procurador”.
[4] Vide a obra citada - Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Obra citada, A Procuração Irrevogável, Almedina, 2.ª Reimpressão, pág. 110, onde o autor refere que ocorre a evolução da procuração outorgada no interesse comum, para o interesse exclusivo do procurador, quando, após a celebração de um contrato promessa, o acto a praticar será a realização do contrato definitivo, que visa exclusivamente a realização do interesse do procurador.
[5] Consta da cláusula 8.ª, que os veículos seriam entregues no mês de Janeiro de 2008, à excepção do Ford Focus, que seria entregue em 2007, devendo presumir-se que o foram, na medida em que a procuração foi outorgada em 14.01.2008, tendo ficado acordado no contrato promessa, que a procuração só seria entregue pelo autor ao réu JL (…), depois de pago o preço.
[6] Vide fls. 697 dos autos, onde constam as seguintes respostas não impugnadas, em que o tribunal declara que nada mais se provou para além do teor dos documentos: “Factos 1º a 4º da base instrutória - Nada mais se provou para além do que consta da alínea B) e N) dos factos assentes. Factos 5º - Nada mais se provou para além do que consta das alíneas B) e D) dos factos assentes.”

[7] Obrigações de meios, obrigações de resultado e custos da prestação - Para os Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, artigo acessível em http://muriasjuridico.no.sapo.pt/eMeiosResultado.pdf.

[8] No acórdão desta Relação, de 19.04.2005, proferido no processo n.º 4001/04, defende-se o critério da “diligência”, como indispensável ao cumprimento da obrigação de meios: “Na obrigação de meios o devedor apenas se compromete a desenvolver diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza. Contrapõem-se-lhes as obrigações de resultado, que se verificam quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está obrigado a conseguir um certo efeito útil.

Num outro acórdão desta Relação, de 26.01.2010, proferido no processo n.º 130175/08.8YIPRT.C1, conclui-se desta forma:

I - O contrato de prestação de serviços pode ter como objecto uma obrigação de meios, em que o devedor apenas fica vinculado a desenvolver uma actividade independentemente da verificação do resultado a que ela se destina, ou uma obrigação de resultado, em que o devedor fica vinculado a obter um determinado resultado com a sua actividade, ou convencionar-se ambas as obrigações, no âmbito da liberdade contratual.
II – A obrigação de meios deve considerar-se cumprida, mesmo que não se venha a verificar o resultado pretendido e só haverá incumprimento se, nos termos do artigo 798º do CC, se concluir que a prestação não só não foi efectuada com a diligência devida, mas que também foram cometidos erros causais da não verificação do resultado.
[9] Conclusão que, desde logo, emerge do teor da cláusula, onde se estipulou que o réu “providenciará junto dessas instituições bancárias”
[10] Com efeito, tratando-se de obrigação de meios, através da qual o 1.º réu se obrigou a providenciar junto dos bancos, não estando vinculado a qualquer resultado, não se vislumbra como poderia esse resultado (desoneração) constituir condição prévia à celebração do negócio definitivo.