Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/10.2T6AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ALIMENTOS
ACORDO
DENÚNCIA
LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 05/17/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.219, 220, 280, 334, 1874, 1878, 2003, 2004, 1905, 2008 CC
Sumário: 1. O acordo escrito dos progenitores, posterior a um acordo judicial homologado, em que o pai assume os alimentos do filho e a mãe o dispensa do pagamento dos alimentos da filha, é nulo quer por violação de procedimento formal necessário (arts. 1905, 219 e 220, todos do CC), quer por o objecto ser contrário à lei já que corresponde à renúncia dos alimentos do pai para a filha (arts. 2008/1 e 280 do CC).

2. Não se pode paralisar, com base no abuso do direito, a invocação da nulidade decorrente da violação de normas de interesse público.

3. A liquidação de prestações alimentares actualizáveis, depende apenas de simples cálculos aritméticos, pelo que pode ser feita num requerimento executivo.

4. A liquidação de obrigações resultantes de sentenças (mesmo que homologatórias) que não dependa de simples cálculos aritméticos, deve ser feita num incidente do processo declarativo; se não o for, não existe título nessa parte (art. 47/5 do CPC).

Decisão Texto Integral:               Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              D (…) e J (…), casados um com o outro, divorciaram-se, por mútuo consentimento, por decisão proferida a 13/01/2006 na Conservatória do Registo Civil de ....

              Aí também foi homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais respeitantes à filha menor de ambos, C (…), nos termos do qual:
a menor ficou confiada à guarda e cuidados da mãe, sendo o exercício do “poder paternal” atribuído conjuntamente ao pai e à mãe e           o pai contribuiria para os alimentos da menor como despesas normais de alimentação, vestuário, com 300€ mensais, que serão entregues à mãe até ao dia 8 de cada mês, actualizados de acordo com os valores anuais da inflação. “As despesas extraordinárias, como as de saúde e medicamentosas e as escolares serão pagas em partes iguais pelo pai e pela mãe para isso, o progenitor que acom-panhar a menor quando tiver necessidade de efectuar tais despesas deve apresentar o recibo ao outro a fim de ser reembolsado da sua parte”.

              Em 05/10/2006, os progenitores, que têm outro filho, M (…), nascido a 17/07/1986, que na data do divórcio era maior de idade e estudante do 1º ano do curso de arquitectura na Universidade Lusíada, no Porto, acordaram, por escrito, que:
         “de 01/01/2007 até à data da conclusão do curso do M (…) o pai assume todas as despesas com este, ficando dispensado da contribuição para despesas da C (…)”.

              Em 23/02/2011, D (…) (= exequente) veio requerer execução contra J (…) (= executado) para que este lhe pague:  a) o valor líquido de 14.406,28€ que equivale à soma do capital das pensões alimentícias mensais em dívida, acrescido das contribuições para despesas de saúde, medicamentosas e escolares [= 1.236,13€ de despesas extraordinárias]; e b) o valor dependente de simples cálculo aritmético: 773,38€, que corresponde à soma dos juros de mora contados à taxa de 4% ao ano contados sobre cada uma das prestações alimentícias actualizadas anualmente segundo a taxa de inflação desde a data de cada um dos seus vencimentos até à presente data.

              No requerimento executivo, a exequente, quanto às despesas extraordinárias diz: acresce que entre o ano de 2007 e a presente data suportou a ora exequente, sem qualquer colaboração do executado, as seguintes despesas extraordinárias com a saúde, medicamentos e material escolar para a menor cfr. documentos comprovativos das despesas que protestam juntar: 2007 medicamentos 43,49€ + material escolar 184,20€; 2008 medicamentos 67,07€ + material escolar 365,20€; 2009 medicamentos 67,70€ + material escolar 294,61€ + saúde (dentista) 1450€; por assim ser, tem a ora exequente direito a receber do executado o valor equivalente a metade da despesa acima discriminada num montante que ascende a 1236.13€, acrescido de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.

              O executado deduz a presente oposição dizendo que cumpriu o acordo de 05/10/2006, suportando sozinho as despesas com o filho necessá-rias ao seu sustento e educação; esse acordo foi obtido porque os progeni-tores estavam obrigados a cumprir com alimentos para o filho maior, que deles necessitava (porque estava a estudar e não tinha rendimentos próprios que lhe permitissem custear o seu sustento e educação) e porque ambos o podiam fazer; o não ter pago os alimentos à menor deveu-se a tal acordo; o comportamento da exequente, de vir reclamar agora os alimentos respeitan-tes à menor reveste-se de grave má fé, já que o filho se encontra a escassos meses do fim do curso e já não poderá pedir à exequente qualquer prestação alimentícia; diz que a prestação alimentar que ele tinha de pagar à filha é menor do que metade da prestação alimentar que suportou com o filho; para além disso, continuou a contribuir para o sustento da filha; diz que o montante em dívida, não é, de qualquer, o valor indicado pela exequente; e que a exequente, desde a celebração do acordo de 05/10/2006, nunca pediu nem apresentou ao executado qualquer despesa de saúde (médica ou medi-camentosa), ou escolar, ou recibo do respectivo pagamento ao executado, desconhecendo o executado se e quando foram realizadas, pelo que também por esse motivo se impugna a matéria alegada pela exequente a esse respei-to; à cautela invoca o abuso de direito do comportamento da exequente, não sendo correcto nem leal, defraudando a confiança e crença que ela própria gerou no executado, que de forma legítima tinha a expectativa que o acordo celebrado era para honrar; termina peticionando a procedência da oposição à execução.

              Em contestação, para além de invocar a nulidade do acordo de 05/10/2006. com base na irrenunciabilidade do direito a alimentos e no fac-to de tal acordo ser negócio sobre direitos de terceiro (arts. 2008 e 280, am-bos do Código Civil), alega a exequente, em síntese, que tal acordo há muito foi revogado, pois com vista à propositura da acção de divórcio, exe-quente e executado celebraram “contrato-promessa de separação de mea-ções”, cuja programada partilha acabou por não ser justa por o executado ter omitido a existência de dinheiros comuns; quando ela, exequente, teve conhecimento desses dinheiros, logo deu sem efeito aquele acordo e reclamou do executado as quantias devidas à menor a titulo de alimentos; diz que ela também foi prestando alimentos ao filho; e que o executado tem pago alimentos ao filho com os rendimentos dos bens comuns do ex-casal, pelo que, também por aí, também ela os está a pagar; por tudo isto, nega a verificação de qualquer abuso de direito; termina pugnando pela impro-cedência da oposição, devendo declarar-se nulo e sem nenhum efeito o acordo junto aos autos.

              O Ministério Público, como parte acessória, deu parecer favo-rável à procedência da oposição, no essencial por, fazendo apelo à juris-prudência dos valores, entender que o acordo de 05/10/2006 salvaguarda o pagamento dos alimentos pelo pai à filha menor após a formação do irmão e traduz um justo equilíbrio no pagamento dos alimentos devidos pelos pais aos filhos, muito embora um deles seja já maior, para além de ser uma forma prática de pagar esses mesmos alimentos e por isso, no fundo não viola os direitos inalienáveis, irrenunciáveis e intransmissíveis da menor; acrescenta que não é correcto dizer-se que a mãe pagou metade dos alimentos ao filho maior com os bens que ficaram por partilhar, uma vez que, a todo tempo pode vir a exigir a sua meação em partilha adicional.

              Depois foi proferida sentença que julgou procedente a oposição, com a consequente extinção da execução.

              A exequente recorre desta sentença - para que seja revogada e substituída por outra onde se considere nulo o acordo de 05/10/2006 e, por via disso, se dê por improcedente a oposição; ou, quando assim se não entenda, para que se ordene a baixa do processo para julgamento em função de, nos autos, constarem factos não apreciados indispensáveis à decisão da causa – terminando as suas alegações com conclusões que, em síntese con-sistem no seguinte:

              Quanto aos factos,
         Nos autos não se faz prova nem da carência de alimentos do filho, nem dos elementos constitutivos do dever de prestar alimen-tos ao filho, nomeadamente das suas necessidades a esse título e das possibilidades de executado e exequente para os prestar, nem de que o acordo de 05/10/2006 prevê uma repartição equitativa dos alimentos devidos por ambos os progenitores aos dois filhos, um a cargo do pai e outro a cargo da mãe, pelo que tais factos não podiam ter sido considerados como provados; considerando-se válido o acordo de 05/10/2006, devia ter sido ordenada a produção de prova dos factos, alegados pela exequente, susceptíveis da reso-lução desse acordo de 05/10/2006, nomeadamente com fundamen-to em vícios da vontade; também devia ter sido produzida prova do facto alegado pela exequente de que continuou a prestar alimentos ao filho;

              Quanto ao direito,
         Não se pode confundir a obrigação dos progenitores quanto à filha, com a dos alimentos a prestar ao filho; não se podia fazer, nos presentes autos, prova dos elementos constitutivos do dever de prestar alimentos ao filho; o acordo de 05/10/2006 é nulo, por o direito, legal, a alimentos ser irrenunciável e indisponível, para além de ser da filha e não da exequente (arts. 2008 e 280, ambos do CC).

              O executado contra-alegou defendendo a improcedência do recur-so e o MP renovou o seu parecer já referido.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar: a falta de prova de factos invocados na sentença; se deviam ter sido averiguados outros factos; da confusão de obrigações; do objecto da oposição; da nulidade do acordo de 05/10/2006; se se concluir, ao contrário da decisão recorrida, pela nulidade do acordo, ficam ainda por resolver (art. 715/2 do CPC) a questão do abuso de direito de requerer o pagamento das prestações vencidas a partir de 01/01/2007; o valor das prestações em dívida; e se são devidas despesas extraordinárias e com que valor (isto para além das questões de conhe-cimento oficioso que entretanto surjam, decorrentes da apreciação destas).

                                                                 *

              Os factos que a sentença recorrida considerou como provados são, no essencial (completaram-se agora alguns deles, apenas com o recurso aos documentos que serviram para prova da versão originária deles…, ao abrigo do disposto nos arts. 659/3, 712/1a), 1ª parte, e 713/2, todos do CPC, para poderem ser apreciadas todas as questões que se colocam), os correspondentes aos 4 primeiros parágrafos deste acórdão.

                                                                 *

              Depois de esclarecer que a obrigação de prestar os alimentos incumbe a ambos os pais, de dizer o que ela abrange, como é que deve ser determinada e até quando é que se deve manter, por referência aos arts 1874º, 1878º/1, 1879º, 1878º, 2003º, 2004 e 1880º do C. Civil, a sentença decide o caso com as seguintes considerações:
         […N]a medida em que exequente e executado têm dois filhos, um maior de idade, que ainda não completou a sua for-mação universitária, e outro menor de idade, ambos carentes de alimentos, não estando a exequente isenta do pagamento de alimentos devidos ao seu filho, o acordo celebrado entre os progenitores no dia 05/10/2006, porque, provavelmente por razões logísticas ou contabilísticas da conveniência de ambos, prevê uma repartição equitativa dos alimentos devidos por ambos os progenitores aos dois filhos, um a cargo do pai e ou-tro a cargo da mãe, com termo final nele expressamente pre-visto (“…até à conclusão do curso do filho…”), não repre-senta qualquer irrenunciabilidade ao direito de alimentos à filha, razão pela qual não padece de qualquer nulidade, na cer-teza ainda que o processo de execução não é a via processual adequada para a progenitora pretender “acertar contas” resul-tantes de uma partilha extrajudicial alegadamente “injusta”.

                                                                 *

                                        Do recurso quanto aos factos

                                                                  I

              Diz a exequente/recorrente que nos autos não se faz prova da carência de alimentos do filho e portanto a sentença não se podia ter baseado neste facto.

              Sem qualquer razão.

              Mesmo que tenha razão quanto à invalidade do acordo de 05/10/ /2006, da existência do mesmo, enquanto facto, não pode deixar de resultar o reconhecimento, pela recorrente, de que o filho precisava de alimentos.

              De resto, tal também resulta da contestação à oposição, considerada no seu todo, até porque ela alega prestar alimentos ao filho, e porque, por outro lado, não pôs em causa o alegado pelo executado, ou seja, de que o filho estava a estudar e não tinha rendimentos próprios que lhe permitissem custear o seu sustento e educação.

              No mesmo sentido, diz o recorrido:
         “não pode colher, até porque admitida em sede de contesta-ção pela ora recorrente a necessidade de alimentos do filho, a tese que agora esta propugna de que não está provada a carência de alimentos do filho maior”

                                                                 II

              Diz a recorrente, depois, que também não se fez prova dos elemen-tos constitutivos do dever de prestar alimentos ao filho, nomeadamente das suas necessidades a esse título e das possibilidades de executado e exequen-te para os prestar.

              Também sem qualquer razão: a necessidade do filho já está tratada acima; as possibilidades do executado não se vê que a recorrente as queira ou possa discutir…; e quanto às possibilidades da exequente, as mesmas até resultam do facto de ela alegar que também presta alimentos ao filho. A questão da proporcionalidade entre todas, já é uma questão de repartição equilibrada, que é questão autónoma, tratada em IV.

                                                                 III

              Aqui chegados, sempre se poderá dizer que, considerando a senten-ça como provados, expressa ou implicitamente, tais factos (os postos em causa em I e II), os devia ter considerados antes como factos provados, e não inclui-los na parte da fundamentação de direito da sentença. Mas é a única e praticamente irrelevante crítica que se pode fazer à sentença, nesta parte.

                                                                IV

              Continua a recorrente dizendo que não se fez prova de que o acordo de 05/10/2006 preveja uma repartição equitativa dos alimentos devidos por ambos os progenitores aos dois filhos, um a cargo do pai e outro a cargo da mãe e portanto a sentença não se podia ter baseado neste facto.

              Aqui não pode deixar de se dar razão à recorrente, pois que não foi dito por nenhum dos progenitores que o acordo fosse equitativo (não ha-vendo tal afirmação, não pode haver prova do facto respectivo). Note-se que, pelo contrário, o executado até diz que pagava mais pelos alimentos do filho do que a recorrente pagava pelos alimentos da filha.

              Assim, a sentença não podia ter como provada a repartição equita-tiva dos alimentos, ou o justo equilíbrio de que fala o MP.

              Nem se pode chegar a tal conclusão por outras vias, pois que não se pode dizer que sempre que os progenitores cheguem a acordo quanto a ali-mentos, esse acordo seja sempre, necessariamente, equitativo ou equili-brado.

              Tal facto – repartição equitativa dos alimentos devidos por ambos os progenitores aos dois filhos, um a cargo do pai e outro a cargo da mãe – tem pois que ser considerado como não provado. A repercussão disto na questão de direito ver-se-á na altura própria, se tal for necessário.

                                                                 V  

              Prossegue a recorrente dizendo que considerando-se válido o acor-do de 05/10/2006, devia ter sido ordenada a produção de prova dos factos, alegados pela exequente, susceptíveis da “resolução” desse acordo, nomea-damente com fundamento em vícios da vontade.

              Diz o recorrido que:
         “na realidade o tribunal teve em consideração os factos alega-dos a esse propósito. Simplesmente entendeu que tais factos não eram relevantes para a questão em causa. Com efeito, na sentença o tribunal a quo depois de analisar o pressuposto da validade do acordo, refere expressamente que “...o processo de execução não é via processual adequada para a progenitora pretender “acertar contas” resultantes de uma partilha alegadamente injusta””.

              A confusão entre vícios da vontade, necessariamente existentes no momento da celebração do contrato e conducentes à anulação do acordo, e  resolução, que pressupõe a ocorrência de vicissitudes posteriores à celebração do acordo, logo indicia que a recorrente não tem razão.

              E para essa falta de razão aponta ainda a total falta de referência concreta aos factos a que está a aludir e a qualquer enquadramento norma-tivo dos mesmos. Não existe, nem nas alegações de recurso nem mesmo na contestação, a descrição concreta de factos que permitam dizer que vício da vontade é que está em causa na pretensão da recorrente, em termos de se poder dizer preenchida uma qualquer previsão normativa associada aos mesmos (arts. 240 a 257 do Código Civil). E o mesmo se diga, ainda com mais razão, quanto à questão da resolução.

              E tudo isto acaba por permitir a resposta da sentença recorrida, transcrita na parte final da contra-alegação do recorrido acabada de citar.

                                                                VI

              Diz a recorrente, ainda, que devia ter sido produzida prova do facto alegado pela exequente de que continuou a prestar alimentos ao filho.

              Tento a sentença considerado que havia uma repartição equitativa de alimentos, entre aqueles que o pai prestava ao filho e os que a mãe prestava à filha, tinha que ser ponderado, na questão, o facto, alegado pela exequente, de que também prestava alimentos ao filho.

              Como esta questão está dependente da solução que for dada à ques-tão de direito da validade do acordo, desenvolver-se-á a mesma, eventual-mente, depois de ser decidida aquela.

                                                                 *

                                        Do recurso quanto ao direito

                                                                VII

              Quanto à afirmação de que não se pode confundir a obrigação dos progenitores quanto à filha, com a dos alimentos a prestar ao filho: a mesma não tem autonomia das questões de facto já tratadas, até porque a sentença não as confundiu.

              Quanto à afirmação de que não se podia fazer, nos presentes autos, prova dos elementos constitutivos do dever de prestar alimentos ao filho: a mesma não tem autonomia da questão de direito a seguir tratada. 

                                                               VIII

              Fica pois, por resolver, a questão da nulidade do acordo de 05/10/2006, com base em dois argumentos da recorrente: o direito legal a alimentos é irrenunciável e indisponível, para além de ser da filha pelo que a mãe não podia fazer tal acordo (arts. 2008 e 280 do CC).

              O recorrido contra-alega dizendo (em termos compactados) que:
         Com tal acordo não se verificou uma renúncia de alimentos, tratou-se apenas de uma forma de distribuir entre os progenitores, as obrigações alimentícias a que ambos estavam sujeitos, ficando o pai com a obrigação concernente ao filho maior e a mãe com a da menor.
         No fundo o que o acordo consubstancia é uma “troca” de obrigações entre os progenitores. Ou seja, em vez de cada um assumir uma parte das despesas relativamente a cada um dos filhos, um ficou com a totalidade das despesas relativas ao filho e outro à filha.
         E os interesses da menor não ficaram prejudicados com a celebração do mencionado acordo: é que não se tratou de privar a menor do direito a alimentos, mas sim de transferir essa obrigação, durante um período limitado de tempo, para a mãe, enquanto o pai durante esse mesmo período de tempo ficou encarregue de assegurar todas as despesas com o outro filho.

              Posto isto:

              Quanto ao último argumento da recorrente afasta-se desde já, por ser manifestamente impertinente: que os progenitores têm legitimidade para acordarem quanto a alimentos devidos a filhos menores é um pressuposto do regime da fixação de alimentos (art. 1905 do CC).  

              Mas a razão que serve para afastar este argumento, logo permite concluir que o acordo de 05/10/2006 é inválido, pois que, este artigo 1905 do CC, quer na redacção em vigor à data do acordo, quer na actual, dispõe que “[...] os alimentos a este [filho] devidos e forma de os prestar serão regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação do tribunal; a homologação será recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor […]”.

              A utilização do processo e a homologação pelo tribunal são condi-ções essenciais para validade do acordo sobre alimentos. A falta de obser-vância da forma legal (que no caso ainda inclui um procedimento judicial) implica a invalidade do acordo, sob a forma de nulidade (arts. 219º e 220º, ambos do CC).

              Mas tivesse esse acordo sido obtido segundo os trâmites legais, terminando com a forma de um acordo homologado judicialmente, o mes-mo seria inválido por se traduzir, na prática, na renúncia ao direito a ali-mentos da filha menor, em violação do disposto no art. 2008º/1 do CC: 1. O direito a alimentos não pode ser renunciado ou cedido, bem que estes possam deixar de ser pedidos e possam renunciar-se as prestações vencidas. 2. O crédito de alimentos não é penhorável, e o obrigado não pode livrar-se por meio de compensação, ainda que se trate de prestações já vencidas.

              Ao dizer que dispensa o pai da contribuição para despesas da filha, a mãe está a dispôr, para o futuro, das prestações alimentares vincendas, está a dizer que não as pedirá, está, de facto, a renunciar a elas.

              Logo, esse acordo é nulo (arts. 2008 e 280 do CC).

              Neste sentido, vai a doutrina e a jurisprudência citadas pela recorrente:  Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao art. 2008º do CC, no CC anotado, Coimbra Editora, 1995, págs. 588/590; Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. II, Livraria Almedina, ed. 2002, (não se consultou); ac. do TRP de 13/11/2007 (0725196 da base de dados do ITIJ); ac. do TRP de 11/11/2004 (0435565 da base de dados do ITIJ); Abel Delgado, Divórcio, 1994, 183 (não se consultou; a ed. anterior não abrange a questão); ac. do TRL de 20/04/2010 (106/09.0T2AMD-A.L1-7 da base de dados do ITIJ); Remédio Marques, Algumas notas sobre alimentos, Coimbra Editora, pág. 113, nota 163, este particularmente significativo quanto à questão, face à posição defendida pelo recorrido, e que por isso se passa a transcrever na parte citada pela recorrente:
         “sobre as pregações vincendas não é admissível qualquer tipo de renúncia […] estão credor e devedor de alimentos proibidos de, mediante recíprocas concessões, prevenirem ou extinguirem um conflito atinente ao pagamento de alimentos futuros, contanto que esse contrato importe na diminuição ou renúncia de montantes que seriam legalmente devidos”.

               E a construção do recorrido acaba por ser o reconhecimento disto mesmo, pois que se se puder ver em tal acordo uma distribuição, troca ou transferência de obrigações, então o pai deixou de ter, para com a filha, a obrigação de lhe pagar alimentos. E quanto ao prejuízo para a filha, decorrente de tal acordo, basta, a partir desta posição do recorrido, pensar na hipótese de a mãe da menor perder a possibilidade de lhe prestar alimentos: a filha de facto não os poderá pedir da mãe; e de direito não os poderá pedir do pai…

                                                                IX

              Dado não se aceitar a validade do acordo, fica prejudicada a necessidade de averiguação de outros factos alegados pela exequente.

                                                                 X

                                                Do abuso de direito

              Visto que não se considera o acordo válido e que, por isso, se considera que a exequente pode exigir as prestações vencidas de Janeiro de 2007 em diante, importa agora considerar a questão que ficou prejudicada com o sentido da sentença recorrida, ou seja, a questão do abuso de direito (art. 715/2 do CPC).

              Quanto a isto diga-se que, estando em causa, na irrenunciabilidade do direito a alimentos, um interesse público (veja-se Antunes Varela, obra e local citados, esp. pág. 589) a inalegabilidade da nulidade, com base no abuso de direito, traduzir-se-ia na frustração daquele princípio, pelo que, nestes casos não deve ser admitida essa inalegabilidade (faz-se recurso às posi-ções que têm sido defendidas quanto às inalegabilidades de nulidades por vício de forma, tanto mais legítimo quanto, no caso, já se viu também existir nulidade por vício de forma: quanto a isto, veja-se Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratu-al positivo, Coimbra Editora, Dez2008, págs. 1253 a 1264, especialmente § final da nota 3523 e págs. 1263 a 1264; para além disso, vale o princípio por maioria de razão: se uma nulidade por vício de forma não pode ser invocada quando estiverem em causa interesses públicos, muito menos o pode ser quando a nulidade decorre directamente de regras de interesse público).

              De resto, a inalegabilidade da nulidade da renúncia, daria origem a uma contradição de soluções: o direito de alimentos não pode ser renuncia-do; a renúncia acontece, normalmente, por acordo; quando houvesse acor-do, na lógica do recorrido, haveria abuso de direito em alegar-se a nulidade; logo, quando houvesse acordo não poderia alegar-se a nulidade. Ou seja, a situação normal de renúncia proibida, seria precisamente a situação em que não se poderia alegar a proibição de renúncia… Um contra-senso.

              Para além disso, a solução seguida não dará lugar necessariamente à situação injusta invocada pelo recorrido: existem institutos jurídicos para salvaguarda da situação (do pagamento, apenas por ele, dos alimentos do filho; note-se que o eventual prejudicado é ele e não o filho, já que, por aquilo que se diz nos autos, o filho não deixou de receber os alimentos a que teria direi-to): a sub-rogação legal, a responsabilidade civil por abuso de direito ou violação da confiança, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa, etc..

                                                                XI

                                       Quanto ao que está em dívida:

              O executado diz que o montante em dívida, não é, de qualquer modo, o valor indicado pela exequente.

              A liquidação do valor das prestações alimentares em dívida, é, dado o teor da sentença homologatória do acordo inicial dos progenitores, com-pletado por este, algo que depende de simples cálculo aritmético (tal como a liquidação da obrigação do pagamento dum preço a determinar de acordo com a cotação [de uma moeda, acção ou mercadoria] verificada em determinado dia – um entre outros exemplos dados por Lebre de Freitas, A acção executiva depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 2009, pág. 97; os índices de inflação estão publicados por exemplo no http://www.pordata.pt/azap_run time/?n=4 e são fornecidos por uma instituição pública, o Instituto Nacional de Estatística). A li-quidação desse valor podia ter sido feita mais precisamente pela exequente (e o executado podia  ter contraposto um valor também preciso),  mas trata--se de algo dispensável: o art. 805/1 do CPC só exige a especificação dos valores que se consideram na prestação em dívida e a indicação de um valor líquido, não exige a demonstração das contas.

              Por isso, apesar de nenhuma das partes o ter feito, passa-se agora a esse cálculo:

              A prestação em 2006 tinha o valor de 300€.

              Ela devia ser actualizada anualmente de acordo com os índices da inflação.

              Em 2006 a inflação foi de 3,1%. 

              Em 2007 foi de 2,5%

              Em 2008 foi de 2,6%

              Em 2009 foi (- 0,8%)

              Em 2010 foi de 1,4%

                Assim, a prestação, a partir de 1/1/2007 passou a ser de 309,30€,

              A partir de 1/1/2008 passou a ser de 317,03€,

              A partir de 1/1/2009 passou a ser de 325,27€,

              A partir de 1/1/2010 passou a ser de 322,67€,

              A partir de 1/1/2011 passou a ser de 327,19€.

              = 12 x 309,30€ + 12 x 317,03€ + 12 x 325,27€ + 2 x 322,67€ =

              Assim, em 23/02/2010 estavam em dívida, a título de prestação alimentar: 12.064,54€.

              E não, como pretende a exequente, 13.170,15€ (este valor, da exe-quente, obtém-se do seguinte modo: ela diz que aquilo que está em dívida, sem juros, é 14.406,28€;  e diz que pede, de despesas extraordinárias, 1.236,13€. Logo, o valor das prestações mensais em dívida, para ela, é aquele, que, como se vê, está errado).

                                                                XII

                       Quanto à cláusula das despesas extraordinárias

              Quanto a isto, o executado diz que a exequente, desde a celebração do acordo de 05/10/2006, nunca pediu nem apresentou ao executado qualquer despesa de saúde (médica ou medicamentosa), ou escolar, ou recibo do respectivo pagamento ao executado, desconhecendo o executado se e quando foram realizadas, pelo que também por esse motivo se impugna a matéria alegada pela exequente a esse respeito.

              A necessidade da apreciação desta questão leva ao conhecimento ainda da seguinte:

              A dívida das despesas extraordinárias não é líquida e o seu cálculo não depende de simples operações aritméticas. Assim, como a obrigação respectiva decorre de uma sentença (o facto de ser homologatória não releva para a questão – Lebre de Freitas, obra citada, págs. 49/52) a liquidação da mesma tinha que ser feita no processo declarativo onde ela surgiu, nos termos dos arts. 378 e segs do CPC (por força do art. 47/5 do CPC - veja-se Lebre de Freitas, obra citada, págs. 29 a 33, espec. pág. 31, e págs. 84/85).

              A exequente limita-se a um arremedo de tentativa de liquidação, no requerimento executivo, sem dar oportunidade ao executado de discutir a natureza das despesas invocadas, o carácter extraordinário delas e o valor que devia ser aceite. 

              Falta pois, quanto a esta parte, um dos pressupostos específicos da acção executiva, que é o título executivo.

              Explica Lebre de Freitas que:
         “desde a reforma da acção executiva, […a] sentença judicial condenatória […] só constitui título executivo após a liquidação da obrigação pecuniária que não dependa de mero cálculo aritmético, a qual tem lugar no próprio processo declarativo (art. 47/5); neste caso, a liquidez integra o próprio título, em vez de complementar um título já constituído” (pág. 31).

              Assim, por falta de título executivo, a execução não pode prosse-guir quanto às despesas extraordinárias, devendo ser - porque a falta de títu-lo não pode ser, por natureza, suprida neste processo executivo [porque no caso tinha que ser obtido no incidente de liquidação no processo declara-tivo] -, rejeitada e julgada extinta quanto a estas [arts. 820, 47/5 e 812/2a), todos do CPC e Lebre de Freitas, obra citada, pág. 74 e nota 87.-A].

                                                                 *

              Sumário:

              I. O acordo escrito dos progenitores, posterior a um acordo judicial ho-mologado, em que o pai assume os alimentos do filho e a mãe o dispensa do paga-mento dos alimentos da filha, é nulo quer por violação de procedimento formal necessário (arts. 1905, 219 e 220, todos do CC), quer por o objecto ser contrário à lei já que corresponde à renúncia dos alimentos do pai para a filha (arts. 2008/1 e 280 do CC).

              II. Não se pode paralisar, com base no abuso do direito, a invocação da nulidade decorrente da violação de normas de interesse público.

              III. A liquidação de prestações alimentares actualizáveis, depende apenas de simples cálculos aritméticos, pelo que pode ser feita num requerimento execu-tivo.

              IV. A liquidação de obrigações resultantes de sentenças (mesmo que ho-mologatórias) que não dependa de simples cálculos aritméticos, deve ser feita num incidente do processo declarativo; se não o for, não existe título nessa parte (art. 47/5 do CPC).

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando a sentença recorrida, substituindo-a por esta que declara nulo o acordo de 05/10/2006 e julga parcialmente procedente a oposição à execução, determinando que a mesma deve prosseguir os seus termos, mas com o valor da quantia exequenda limitado, quanto a prestações já vencidas à data do requerimento executivo, a 12.064,54€, acrescidos dos juros de mora contados, à taxa de 4% ao ano sobre cada uma das prestações alimentícias actualizadas, desde a data de cada um dos seus vencimentos até à presente data.

              Rejeita-se ainda a execução, por falta de título executivo, quanto às despesas extraordinárias, julgando-a extinta quanto ao valor pedido por estas, incluindo os juros de mora respectivos.

              Custas da oposição pelo executado e pela exequente na proporção do decaimento.

              Custas do recurso pelo executado.

   


              Pedro Martins ( Relator )
              Virgílio Mateus
              António Carvalho Martins