Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
735/13.8TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
ESTRADAS
SOCIEDADE ANÓNIMA
SOCIEDADE DE CAPITAL PÚBLICO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PRIVADO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 22º DA LOFTJ (LEI Nº 3/99, DE 13/01); 4º, Nº1, ALS. G) E I) DO ETAF.
Sumário: I – De acordo com o artº 22º n.ºs 1 e 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (com correspondência no artº 24º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes, até, as modificações de facto e de direito posteriores, excepto, quanto a estas últimas, se for suprimido o órgão a que estava afecto ou lhe for atribuída competência de que antes carecia (cfr. t.b. artº 60º do NCPC).

II - O art. 4º, nº 1, als. g) e i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

III - Mesmo em relação às entidades de direito privado, é lhes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.

IV - Sucedendo à “EP-Estradas de Portugal”, a “EP - Estradas de Portugal, S.A.” é uma sociedade anónima de capitais públicos, que se rege pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, constante do Decreto-Lei n.° 558/99, de 17 de Dezembro. (artºs 1º, nº 1, 2º e 3º, do Decreto-Lei n° 374/2007, de 7 de Novembro).

V - Derivando a responsabilidade extracontratual por que a ré é demandada das suas legais atribuições, a relação material apresentada à lide pela autora é uma relação materialmente administrativa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A) - 1) – M…[1], residente em …, intentou, em 04/09/2013, no Tribunal Judicial da Lousã, contra a “Estradas de Portugal, S.A.”, acção declarativa, de condenação, com processo comum, para efectivação da responsabilidade extracontratual da Ré, pedindo a condenação desta a pagar-lhe uma indemnização de 73.034,00 € pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que alegou ter sofrido.

Fundou a sua pretensão na conduta da Ré, que reputa de ilícita e culposa, consubstanciada nos sucessivos indeferimentos (desde 1994) no âmbito do processo administrativo da Ré, da pretendida declaração de viabilidade da construção, num prédio pertencente à Autora, de um posto de abastecimento de combustíveis, sustentando que dessa conduta resultaram para ela, Autora, os danos patrimoniais e não patrimoniais que descriminou e que pretende ver ressarcidos mediante a presente acção.

Sustentou ser o Tribunal Judicial o competente para apreciar a acção, explicando a exclusão, para esse efeito, da jurisdição administrativa, dizendo o seguinte: «Aquando do tempo dos factos fundadores de responsabilidade dos factos em apreço, vigorava o regime de responsabilidade do Estado constante do DL nº 48501, de 21/11/67, aplicável tão somente a entidades, funcionários ou agentes públicos, inexistindo, então, lei substantiva a atribuir às pessoas jurídicas de direito privado o regime legal da responsabilidade civil extracontratual de entidades públicas. Tal implica não lhe ser aplicável, impondo-se consequentemente a exclusão do previsto no art. 4, nº1, al i), do ETAF.».

2) - Na contestação que apresentou, a Ré, invocou, entre o mais, a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, por entender serem os tribunais administrativos os materialmente competentes para a apreciação do pedido indemnizatório formulado.

3) - A Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, no despacho saneador de 11/12/2013, entendendo que, para a apreciação da pretensão da A., eram materialmente competentes os Tribunais Administrativos, julgou verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal Judicial da Lousã e, consequentemente, absolveu a ré da instância.

B) - Inconformada com tal decisão, dela veio apelar a Autora, que, a findar a respectiva alegação recursiva, ofereceu as seguintes conclusões:

...

II - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil (NCPC), aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[3]).

Assim, a questão a resolver resume-se a saber se é aos Tribunais Judiciais que compete a apreciação da matéria a que os presentes autos respeitam, ou se, ao invés, essa competência deve ter-se como atribuída, como entendeu a 1ª Instância, aos Tribunais Administrativos.

III - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I supra.

B) - Como se sabe, de acordo com o entendimento expendido, entre outros autores, por Manuel de Andrade ("in" Noções Elementares de Processo Civil, I, reedição de 1979, pág. 91) e seguido em numerosos Acórdãos do STJ (v.g., Ac. do STJ, de 20/02/90, no BMJ n.º 394, pág. 453, Ac. do STJ, de 27/06/89, no BMJ n.º 388, pág. 464, e Ac. do STJ, de 06/06/78, no BMJ n.º 278, pág. 122), a competência do tribunal afere-se pelos termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos).

De facto, no que respeita aos pressupostos processuais, v.g., o da competência material, aplica-se a lei em vigor à data da instauração da acção. Efectivamente, de acordo com o artº 22º n.ºs 1 e 2 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro[4] (com correspondência no artº 24º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), a competência fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes, até, as modificações de facto e de direito posteriores, excepto, quanto a estas últimas, se for suprimido o órgão a que estava afecto ou lhe for atribuída competência de que antes carecia (cfr. t.b. artº 60º do NCPC).

Daqui resulta que, salvo o devido respeito, é completamente destituído de sentido, fazer apelo, para aferir da jurisdição competente para apreciar a presente acção, à data em que ocorreram os “factos fundadores de responsabilidade do caso em apreço”.

A incompetência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (artº 96º, a)), excepção dilatória que, podendo ser arguida pelas partes, deve, salvaguardadas as excepções legais previstas, ser suscitada oficiosamente em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (artº 97, nº 1), e que implica a absolvição do réu da instância ou, se detectada no despacho liminar, o indeferimento da petição (artº 99º, nº 1), do NCPC).

A competência dos tribunais da ordem judicial é residual. Efectivamente, os tribunais judiciais são competentes para as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (art.º 64º do NCPC e 18º, n.º 1, da LOFTJ).

De harmonia com o disposto no artº 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, (CRP) compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Uma vez que a presente acção deu entrada em juízo em 04/09/2013, a aferição da competência material, no que aos Tribunais Administrativos respeita, faz-se tendo em conta o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro e alterado por sucessivos diplomas, entre os quais, a Lei n.º 20/2012, de 14/05.

Também nesse Estatuto se preceitua (art. 59º, nº 1) que a “competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.

A merecer a nossa concordância, escreveu-se na decisão recorrida:

«O art. 4º do ETAF concretiza o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos, concretizando, através de enumerações exemplificativas, quer os litígios nela incluídos quer os que dela estão excluídos.

No nº 1 dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público ” - al. g); e “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público ” - al. i).

Isto é, o art. 4º nº 1 als. g) e i) do ETAF atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público e dos sujeitos privados em relação aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. A competência do foro administrativo em relação à responsabilidade civil extracontratual dos privados, está portanto dependente de a estes dever ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público. “Considerou-se aqui, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas”. (cfr. Ac. STJ de 16.10.12, proc. 950/10.6TBFAF-A.G1.S1).

Preceitua o art. 1º nº 5 da Lei 67/2007 de 31/12 (diploma que aprovou o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas) que “as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo ”.

Quer tal norma significar que mesmo em relação às entidades de direito privado, é lhes aplicável o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado, desde que estejam em causa acções ou omissões levadas a cabo “no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.».

Sucedendo à “EP-Estradas de Portugal”, a “EP - Estradas de Portugal, S.A.” é uma sociedade anónima de capitais públicos, que se rege pelo regime jurídico do sector empresarial do Estado, constante do Decreto-Lei n.° 558/99, de 17 de Dezembro. (artºs 1º, nº 1, 2º e 3º, do Decreto-Lei n° 374/2007, de 7 de Novembro).

A “EP - Estradas de Portugal, S.A.”, “ex vi” do artº 10º, nº 2, do referido DL nº 374/2007, detém, para o desenvolvimento da sua actividade, “os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis” no que respeita, designadamente, “À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública”. (alínea h), do nº 2, do supra referido artº 10º)”.

Por outro lado, como se diz na decisão ora sob recurso «Também os arts. 14º, nº 1, al. c) e 18º, nº 1 do DL nº 558/99 de 17.12 que estabelece o regime jurídico do sector empresarial do Estado (diploma revogado pelo já publicado DL nº 133/2013 de 03.10 - cfr. arts. 22º, nº 1, al. c) e 23º deste novo diploma) preceituam que poderão as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a: “Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio público, da ocupação ou do exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra-estruturas que lhe estejam afectas”, sendo que “Para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos contenciosos, respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14.º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades administrativas”.

Extrai-se do cotejo destas normas que pertence à ré a representação do Estado no que toca às infra-estruturas rodoviárias (nomeadamente a manutenção permanente de condições de infra estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação, através da sua intervenção no processo de licenciamento de pretensões conexas com a estrada ou realizadas na sua proximidade), e que nessa actividade está dotada de poderes de autoridade.».

Assim, a conduta da Ré, que a Autora alega ser ilícita e culposa - que, objectivamente e em síntese, se consubstanciou na inviabilização da construção de um posto de abastecimento -, putativamente geradora dos danos que, por via da presente acção, a Autora pretende ver indemnizados pela Ré, integra-se, como se diz na decisão recorrida, “na prossecução das legais atribuições em que a mesma actua dotada de poderes de autoridade próprios do Estado e na prossecução do interesse público.”, pelo que, como também aí se adianta, “derivando a responsabilidade extracontratual por que a ré é demandada das suas legais atribuições, a relação material apresentada à lide pela autora é uma relação materialmente administrativa.”.

De tudo o exposto decorre que, estando em causa relação materialmente administrativa e sendo o caso vertente abarcado na competência jurisdicional dos tribunais da ordem administrativa a que se reporta a alínea i) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, excluída fica, atento o apontado critério residual, a competência dos Tribunais Judiciais e, consequentemente, a do Tribunal “a quo”.

Concluindo, dir-se-á, pois, que os Tribunais Judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da presente causa, competência essa que pertence aos tribunais da ordem administrativa, pelo que bem andou o Tribunal “a quo” ao assim entender e, por via disso, absolver a Ré da instância.

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Coimbra, 13/05/2014


Falcão de Magalhães (Relator)
Sílvia Pires
Henrique Antunes


[1] Que litiga com o benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo, bem assim como na modalidade de atribuição de agente de execução.
[2] Código este que é o aplicável, uma vez que a acção foi interposta já na sua vigência.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante se citarem sem referência de publicação.
[4] É esta a lei aplicável e não a nº 52/2008 (nem, para o caso, a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto – cfr. respectivo artº 188, nº 1), perfilhando-se o entendimento expresso no Acórdão do STJ de 30/03/2011 (processo nº 492/09.2TTPRT.P1.S1, da 4ª Secção), onde, em nota, se escreveu: «1)- É esta a LOFTJ que está actualmente em vigor, apesar da publicação da Lei 52/2008, de 28 de Agosto.
Na verdade, esta pretendeu consagrar uma nova LOFTJ, resultando no entanto do seu artigo 187º/1 e 2 que apenas será aplicável, a título experimental, nas comarcas piloto indicadas no artigo 171º nº 1 (Alentejo Litoral, Baixo -Vouga e Grande Lisboa Noroeste), e cujo período de experiência terminaria em 31 de Agosto de 2010 (nº 2 do artigo 187º).
Como o artigo 162º da Lei 3-B/2010 de 28/4 (Lei do Orçamento do Estado de 2008) deu nova redacção ao artigo 187º da LOFTJ, alargando o período experimental de vigência da nova LOFTJ nas comarcas piloto até 1/9/2014, o alargamento da Lei 52/2008 a todo o território nacional ainda não se concretizou.
Pelo exposto, entendemos que esta nova lei vigora apenas nas comarcas piloto, já referidas. E nas outras, como é o caso dos autos, vigorará a Lei 3/99.».