Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
42/11.0EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
PROIBIÇÃO
VALOR PROBATÓRIO
DEPOIMENTO INDIRECTO
REPRODUÇÃO DE DOCUMENTO
INQUÉRITO
INCINDIBILIDADE DA PROVA PROIBIDA
NOVO JULGAMENTO
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3.º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 128.º E 129.º, N.ºS 1 E 2, DO CPP
Sumário: I - O depoimento indirecto não respeita apenas ao testemunho de “ouvir dizer”, embora seja assim vulgarmente conhecido. Efectivamente, pode também resultar, v. g., da leitura de documentos elaborados por outrem, situação a que são, do mesmo modo, aplicáveis as regras do artigo 129.º do CPP.

II - O depoimento de uma testemunha, Inspector Principal da ASAE, que, em audiência de julgamento, se limitou a referir o conteúdo do suporte documental relativo às diligências realizadas, no decurso do inquérito, por outros elementos daquele organismo, há-de ter-se por indirecto, à luz dos comandos legais vertidos nos artigos 128.º e 129.º do CPP; consequentemente, é insusceptível de valoração, designadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal.

III - Tendo sido valorado, desconhecendo-se em que medida ou com que força influiu no juízo probatório do julgador do tribunal de 1.ª instância, não é possível “autonomizar” ou “expurgar” a prova proibida, tornando-se, deste modo, inevitável a realização, integral, de nova audiência de julgamento, seguindo-se a prolação de nova sentença.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo comum singular n.º 42/11.0EACBR do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Marinha Grande, mediante acusação pública, foram submetidos a julgamento as arguidas A..., SA e B..., melhor identificadas nos autos, sendo-lhes, então, imputada:

- À primeira: a prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, por negligência, p. e p. pelos artigos 3.º, 7.º, 8.º, 24.º, n.ºs 1, al. b) e 2. al. b), 81.º, n.º 1, al. a) e 82.º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do D.L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro, por referência aos artigos 13.º e 15.º, ambos do Código Penal;

- À segunda: a prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, por negligência, p. e p. pelos artigos 2.º, 8.º, 24.º, n.ºs 1, al. b) e 2, al. b), 81.º, n.º 1, al. a) e 82.º, n.ºs 1 e 2, al. b), todos do D.L. n.º 28/84, de 20 de Janeiro, por referência aos artigos 13.º e 15.º, ambos do Código Penal.

2. Realizado o julgamento, por sentença de 31.10.2012, o tribunal decidiu [transcrição parcial]:

«Face ao exposto, e ao disposto nos arts. 13, 14/1, 26, 40/1 e 2, 41/1, 70 e 71 do Código Penal de 1995 e arts. 374 e 375 do Código de Processo Penal, julgo procedente a acusação por provada e, consequentemente:

A) condeno a arguida “ A..., S.A.” como autora da prática em autoria material, na forma consumada de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares por negligência, previsto e punido pelos artigos 3.º, 7.º, 8.º, 24/1/b, e 2/b, 81/1/a), e 82/1 e 2/b, todos do Decreto - Lei 28/84, de 20 de Janeiro, por referência aos artigos 13 e 15 ambos do Código Penal na pena de multa de 50 dias, à taxa diária de € 15. O que perfaz o montante de € 750.

B) Mais condeno a arguida B... pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares por negligência, previsto e punido pelos artigos 2.º, 8.º, 24/1/b), e 2, al. b), 81/1/a), e 82/1 e 2/b), todos do Decreto – Lei 28/84, de 20 de Janeiro, por referência aos artigos 13 e 15 ambos do Código Penal na pena de prisão em 30 dias que se substitui por multa de igual número de dias. À taxa diária de € 7.

E condeno-a numa multa de 30 dias. Na mesma razão diária.

O que perfaz de harmonia com o art. 6.º/1 do DL 48/95 a pena única de multa de 60 dias.

E se cifra em € 420.

…».

3. Inconformadas com o, assim, decidido recorreram as arguidas [o que fizeram conjuntamente], extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

A) Entendem as Recorrentes que a sentença proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto nos art.º 410.º, n.º 2, al. a) e al. c) do CPP, consistente na insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, bem como da verificação de erro notório na apreciação da prova.

B) Entre outros elementos, o tribunal a quo formou a sua convicção no depoimento da testemunha de acusação D..., inspector principal da ASAE relatório final de fls. 97 e 98, a certidão de fls. 101 a 114 e CRC, constante a fls. 165 e 168 e ss.

C) De acordo com o exarado na douta sentença recorrida, a referida testemunha não teve qualquer intervenção no processo, a não ser na elaboração do relatório final, mais se mencionando que o mesmo não se deslocou ao estabelecimento comercial onde os factos terão ocorrido.

D) Assim, enquanto depoimento indirecto, não poderá o mesmo servir como meio de prova quanto à factualidade constante da acusação, nos termos do art.º 129.º, n.ºs 1 e 2 do CPP.

E) Não resultou demonstrado que incumbia à Arguida B... fiscalizar a secção de padaria do estabelecimento comercial em apreço ou que esta fosse responsável directa da referida secção.

F) Da prova produzida não resultou demonstrado que a arguida B... “não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação de um resultado, qual seja a adição de um cordel na massa do pão que confecciona, que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa à corrupção do produto alimentar que confeccionou e colocou à venda ao público”.

G) Salvo o devido respeito, tal juízo é meramente conclusivo, sem suporte na matéria de facto carreada junto dos autos e resultou da errónea apreciação da prova.

H) No que se refere ao preenchimento do elemento subjectivo quanto às Arguidas, o princípio da culpa exige a imputação e a punição dos factos da existência de um nexo de imputação subjectiva dos factos ao comportamento do agente.

I) No caso em apreço, assoma desde logo a dúvida quanto ao raciocínio lógico, o iter psicológico, que conduziu à condenação das Arguidas e das razões de facto e de direito que fundamentaram a responsabilidade criminal de cada uma delas.

J) No que se refere à Arguida B..., tal responsabilização ancora-se no mero facto da mesma tratar-se da gerente do estabelecimento comercial em apreço.

K) A responsabilização das Arguidas apenas poderá ter lugar mediante a demonstração do necessário nexo de imputação subjectiva, sob pena de consagração de uma responsabilidade meramente objectiva, não admissível no caso vertente.

L) Na realidade, a confirmar-se a existência de um corpo estranho no interior de um pão adquirido por uma cliente, não foram efectuadas no inquérito quaisquer diligências no sentido de apurar a identificação do(s) agente(s) singulares que, alegadamente, praticaram o ilícito criminal sub judice, nem o respectivo grau de participação dos mesmos, conforme dispõe o art.º 283.º do CPP.

M) Da mesma forma, não foram efectuadas quaisquer diligências, nem resulta da prova produzida a demonstração de qualquer conduta negligente por parte das Arguidas A... e B....

N) A mera verificação do resultado descrito nos autos não permite, por si só, concluir pela existência de um comportamento juridicamente censurável e imputável às Arguidas.

O) No que respeita à Arguida B..., não resulta demonstrado que sobre esta recaísse qualquer dever e obrigação de, pessoalmente, fiscalizar o processo de confecção, nas suas diferentes fases, dos géneros alimentícios produzidos pela secção de padaria.

P) Por outro lado, não foi igualmente demonstrado que as Arguidas tenham contribuído, por acção ou omissão, na verificação do resultado ou que tivessem a obrigação de prever a sua ocorrência.

Q) A responsabilidade da Arguida A..., enquanto pessoa colectiva, encontra-se dependente da possibilidade de imputar o facto a um seu órgão ou representante, situação que não resultou demonstrada e provada.

R) Importa ter presente que a área da padaria é uma secção especializada de um estabelecimento comercial e para a qual se encontra instituído um conjunto de rgras e procedimentos em matéria de Segurança e Higiene Alimentar (constantes das já mencionadas Instruções de Serviço vigentes em todas as lojas) de cumprimento obrigatório por parte dos funcionários da Arguida.

S) Assim, a confirmar-se a prática de qualquer facto susceptível de preencher o tipo de ilícito em questão, o mesmo apenas poderia resultar de um comportamento de agente singular que actuou contra contra ordens e instruções expressas da Arguida.

T) Para além da necessária demonstração que os factos praticados foram cometidos no interesse colectivo, o que não se verifica, o art.º 3.º, n.º 1 do Decreto – Lei 28/84, de 20/01, excepciona a responsabilidade do ente colectivo perante uma conduta contrária às instruções emanadas por este último.

U) Sendo sobejamente conhecida a dimensão da Arguida A... e a importância por esta atribuída à qualidade dos produtos que comercializa, enquanto imagem de marca que procura manter, é impensável, por parte desta, deixar de permanentemente diligenciar junto de todos os seus colaboradores pela estrita observância e cumprimento da legislação aplicável no tocante a higiene alimentar, a qual se encontra transposta nas Instruções de Serviço impostas a todos os seus colaboradores.

V) Todavia, tendo em consideração a Arguida possui cerca de 380 lojas distribuidas por todo o país, cada uma com vários trabalhadores, é de todo em todo impossível garantir que todas as regras, ordens, circulares e instruções sejam individualmente cumpridas pelos seus colaboradores.

W) Aliás, mesmo existindo, como existe, uma estrutura hierárquica implementada com supervisores de loja, de departamento ou de secção, responsáveis pelo estrito cumprimento das normas legais e das normas internas, é na prática impossível garantir que todos os colaboradores da arguida respeitem a sua vontade seguindo as suas normas.

K) Em face de tudo quanto se encontra exposto supra, constata-se que a douta sentença recorrida violou o disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, por se entender inexistir matéria de facto suficiente para se decidir como se decidiu.

Y) Da mesma forma, o Tribunal a quo errou, notoriamente, na apreciação da prova, em violação do art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP, bem como do disposto nos art.ºs 2.º, 3.º do Decreto – Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, impondo-se a sua absolvição.

Nestes termos e sempre com o mui douto suprimento do Venerando Tribunal ad quem,

Deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser proferido Acórdão que, revogando a douta sentença recorrida, absolva as Recorrentes da prática do crime de que vêm acusadas, pois só assim se fará Justiça.

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, o que fez subscrevendo a decisão judicial, pugnando, em consequência, pela respectiva manutenção – [cf. fls. 236/237].

5. Admitido o recurso, fixado o regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este tribunal – [cf. fls. 238].

6. Na Relação, o Exmo. Procurador – Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 244 a 246, refutando os vícios assacados pelas recorrentes à decisão recorrida, defendendo, em consequência, a improcedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

          

      De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

As questões suscitadas, sobre as quais tem este Tribunal de se pronunciar, traduzem-se em saber se ocorre:

- O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

- Erro notório na apreciação da prova;

- Proibição de valoração da prova/depoimento indirecto;

- Violação dos artigos 2.º e 3.º do D.L. n.º 28/84, de 20.01.

2. A decisão recorrida

Ficou consignado na sentença recorrida [transcrição parcial]:

2.1. Factos Provados

Efectuado o julgamento e discutida a causa, encontram-se provados os seguintes factos:

1. A sociedade arguida “ A..., S.A.” é uma sociedade anónima, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número (...), e tem como objecto social a produção e comércio de produtos alimentares e não alimentares, incluindo medicamentos não sujeitos a receita médica e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, a exploração de centros comerciais, a prestação de serviços e ainda o de importações e exportações, encontrando-se registada com o C.A.E. (...).

2. A sociedade arguida tem vários estabelecimentos em funcionamento no país, onde exerce a sua actividade comercial conforme o seu objecto social, nomeadamente na cidade de Marinha Grande.

3. Efectivamente, a sociedade arguida tem em funcionamento e aberto ao público o estabelecimento comercial sito na (...) Marinha Grande, sendo responsável pelo referido estabelecimento, para todos os efeitos legais, a arguida B....

4. No âmbito das actividades que desenvolve no referido estabelecimento, a sociedade arguida tem uma secção de padaria, onde se confecciona pão e outros produtos similares.

5. Para além da confecção, a sociedade arguida vende, naquele local, os produtos que confecciona.

6. No dia 24 de Janeiro de 2011, na referida secção de padaria do A... foi confeccionado pão de mistura, o qual foi, posteriormente, colocado à venda naquele estabelecimento comercial.

7. C... deslocou-se a tal loja, cerca das 16h25m daquele dia e aí comprou quatro pães de mistura que haviam sido ali confeccionados e colocados à venda ao público.

8. Porém, no interior de um dos pães que comprou estava um cordel com cerca de 20 centímetros.

9. O mencionado cordel constituía o fecho de um dos sacos de farinha utilizada na confecção do pão.

10. Daqui decorre que os colaboradores e funcionários da sociedade arguida, quando estavam a confeccionar o pão de mistura, abriram os sacos de farinha junto da máquina amassadeira e ao fazê-lo o cordel que neles existia caiu dentro da massa do pão.

11. Ao actuar da forma descrita, a sociedade arguida, através dos seus colaboradores e de quem é responsável a sua legal representante, não actuou conforme o exigido em termos de higiene e segurança “Ementar aquando da confecção do pão que, posteriormente, colocou à venda ao público.

12. Com efeito, a sociedade arguida, por intermédio dos seus colaboradores, os quais estavam sob responsabilidade da arguida B..., não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adoptar e que deveria ter adoptado para impedir a verificação de um resultado, qual seja a adição de um cordel na massa do pão que confecciona, que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa à corrupção do produto alimentar que confeccionou e colocou à venda ao público.

13. A arguida B..., enquanto representante da sociedade “ A..., S.A.”, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

14. A 1.ª arguida conta com uma condenação de 2007 pela prática em 2004 de crime em tudo idêntico.

15. A 2.ª arguida não tem antecedentes criminais.

2.2. Factos não provados:

Não há.

2.3. Motivação:

Considerando que no nosso ordenamento jurídico processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, salvo quando a lei o disponha de forma diversa, o que implica a apreciação da prova, legalmente produzida, de acordo com as regras da experiência e livre convicção da entidade julgadora (art. 127 do Código de processo Penal), sujeita tal produção ao princípio da imediação e contraditório (art. 355 do Código de Processo Penal), e que tanto pode assentar em prova directamente colhida como em prova indiciária (a este propósito atente-se no Ac. TRC, de 11-5-2005, Processo 1056/05 (UNANIMIDADE); Ac. TRC 1937/04, de 18-08-2004 (UNANIMIDADE); e Ac. TRE, de 29-11-2005, proferido no âmbito do P. 621/05.1 (UNANIMIDADE), a convicção do tribunal, relativamente aos factos que deu como provados, fundou-se na análise conjugada e à luz das regras do bom senso e experiência comum, no conjunto de provas produzidas em audiência de julgamento, a saber no teor do depoimento das testemunhas de acusação – D..., Inspector Principal da A.S.A.E., e C..., a cliente que encontrou o corpo estranho no pão adquirido, tendo ambos revelado seu saber explicando de forma esclarecida e coerente os factos.

D..., inspector da ASAE, embora sem qualquer intervenção no processo, a não ser no relatório final, teve a percepção e analisou os factos com base na reclamação da cliente, relatório de auditoria, auto de interrogatório do arguido, não se tendo deslocado ao estabelecimento do A....

Ao que sabe tudo começou pela aquisição de 4 pães de mistura pela cliente que quando terá dado o pão à filha detectou um fio; fez chamada de apoio ao cliente do PD e depois deslocou-se ao estabelecimento, confirmou se tudo pelo talão de compra, da auditoria resultou que o fio do saco de farinha caiu na manipulação do produto para dentro da massa do pão; em inícios de 2011; pela procuração recorda-se que a responsável era da 2.ª arguida; a confecção do pão era feita no próprio estabelecimento, o cordel não era visível de fora, estava dentro de um dos pães, relatório de auditoria de fls. 8 tem data de 4 dias depois.

Uma das funções de gerência de estabelecimento é fazer cumprir as regras e ver se as normas estão a ser cumpridas.

Como não foram cumpridas as normas relativas a higiene e segurança alimentar aquando a confecção do pão, mormente a distância entre os sacos de farinha e a amassadeira por forma a evitar a contaminação com agentes externos, eis a autuação.

Sabe que a postura da arguida foi dar conhecimento ao controlo de qualidade o que levou à auditoria, porquanto lhe reconhece diligência a posteriori.

Mais explicou que a representação da arguida decorria da procuração fls. 30. Que para além do gerente nestas lojas cada departamento tem um responsável directo.

Neste caso não consta nada se tenha apurado qual o responsável porque foi a consumidor final, isto porque havia directivas a respeitar definidas pela sociedade.

Quanto à recolha e exame do cordel ao que sabe terá terá sido entregue aos serviços de auditoria do A....

Foi apontado pelos intervenientes no processo que era o fio e que era fio de saca de pão.

Já C..., a cliente, referiu que em Janeiro de 2011 morava perto no pão que ela tinha comprado e dado à filha um pão onde detectou após a aflição da mesma um cordel de 20 cm, que mediu pontas finas e parte mais grossa, o qual estava enrolado e aparentava ser de saca de farinha cordel, ligou logo para o número do PD, pediram-lhe para pagar pão e talão e cordel. Ao deslocar-se às instalações do supermercado da 1.ª arguida quem a atendeu foi uma senhora de farda, e depois a arguida, que a atendeu muito bem quis pagar o pão, pediu desculpa, justificou-se e explicou que na confecção do pão ali no estabelecimento e apresentou-lhe logo o livro de reclamações, tudo na qualidade de gerente. E ela escreveu a reclamação e entregou tudo, o talão de compra e o pão e o cordel, uns dias depois o serviço de apoio a clientes ou a loja do PD confirmaram-lhe que era um fio de saca de farinha, teriam aberto junto da amassadeira.

Ajudou ainda a firmar a convicção do Tribunal a seguinte prova documental: Auto de denúncia de fls. 44; folha de reclamação de 11s. 45; relatório de auditoria de fls. 49; procuração de fls. 58 a 61; relatório final de fls. 97 e 98; certidão de fls. 101 a 114; CRC de fls. 165 e 168 e segs.

Quanto aos antecedentes criminais o Tribunal formou a sua convicção com base no teor do Certificado do Registo Criminal dos arguidos.

3. Apreciando

De entre as demais questões suscitadas, já acima identificadas, insurge-se o recorrente contra a valoração, levada a efeito pelo tribunal a quo, do depoimento da «testemunha» D..., Inspector Principal da ASAE, porquanto, conforme resultaria da sentença, nenhuma intervenção teria tido no decorrer dos acontecimentos, restringindo-se a sua função, tão só, à elaboração do Relatório Final que constitui fls. 97/98 dos autos.

Como tal, estar-se-ia perante um depoimento indirecto [artigo 129.º, n.ºs 1 e 2 do CPP], insusceptível de ser valorado.

Tratando-se de matéria tributária do direito das proibições de prova, na modalidade de proibição de valoração, naturalmente que, pelas consequências que a respectiva resposta pode vir a ter no conhecimento dos outros fundamentos de recurso, ter-se-á de lhe atribuir primazia de tratamento.

Vejamos, pois.

Em sede de fundamentação da matéria de facto, respiga-se da sentença recorrida:

«…a convicção do tribunal, relativamente aos factos que deu como provados, fundou-se na análise conjugada e à luz das regras das regras do bom senso e experiência comum, no conjunto de provas produzidas em audiência de julgamento, a saber no teor do depoimento das testemunhas de acusação – D..., Inspector Principal da A.S.A.E., e …, tendo ambos revelado seu saber explicando de forma esclarecida e coerente os factos.

D..., inspector da ASAE, embora sem qualquer intervenção no processo, a não ser no relatório final, teve a percepção e analisou os factos com base na reclamação da cliente, relatório de auditoria, auto de interrogatório do arguido, não se tendo deslocado ao estabelecimento do A....

Ao que sabe tudo começou …

(…)

Mais explicou que a representação da arguida decorria da procuração de fls. 30. Que para além do gerente nestas lojas cada departamento tem um responsável directo.

Neste caso não consta nada se tenha apurado qual o responsável porque foi a consumidor final …

Quanto à recolha e exame do cordel ao que sabe terá sido entregue aos serviços de auditoria do A....

Foi apontado pelos intervenientes no processo que era o fio e que era fio de saca de pão.» [os destaques são nossos].

Sobre a prova testemunhal (Objecto e limites do depoimento), dispõe o artigo 128.º do CPP:

«1. A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.», para de seguida, sob a epígrafe Depoimento indirecto, estatuir o artigo 129.º:

«1. Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.

2. O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documentos de auditoria de pessoa diversa da testemunha.

(…)».

A propósito do objecto e limites do depoimento testemunhal, refere Germano Marques da Silva «O primeiro limite do depoimento testemunhal respeita desde logo aos factos que constituam objecto da prova. A testemunha não pode ser inquirida sobre factos que não sejam objecto da prova.

A testemunha também só pode ser inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo, salvas as limitações decorrentes do disposto no art.º 129.º Conhecimento directo dos factos é aquele que a testemunha adquire por se ter apercebido imediatamente deles através dos seus próprios sentidos. No testemunho indirecto a testemunha refere meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos.

(…)

O testemunho indirecto não respeita apenas ao testemunho de ouvir dizer, embora seja assim vulgarmente conhecido. Pode resultar, v. g., da leitura de documentos elaborados por outrem e são aplicáveis as mesmas regras (art. 129.º, n.º 2).

(…)

A proibição do testemunho de ouvir dizer é, por outro lado, reforçada pela norma constante do art. 356.º, n.º 7: proibição de testemunho sobre o conteúdo de declarações recolhidas no inquérito ou na instrução e cuja leitura não seja permitida em audiência.» - [cf. “Curso de Processo Penal”, II, Editorial Verbo, 2002, págs. 158/159].

Também assim Simas Santos e Leal – Henriques quando referem «O conhecimento é indirecto quando provém de percepção exterior a esses mesmos sentidos e só chega à área do depoente através de veículos que lhe são alheios.

Assim, sempre que alguém relata um facto com base num conhecimento apreendido por si próprio através dos seus sentidos diz-se que faz um depoimento por ciência directa; quando o relata com base num conhecimento que obteve por intermédio de outrém ou por elementos informativos que não colheu de forma imediata (v. g., por ouvir dizer, através de um documento, de uma fotografia, de um filme, etc.), diz-se que faz um depoimento de ciência indirecta.» - [cf. Código de Processo Penal Anotado, volume I, 3.ª edição, 2008, pág. 925].

Traçadas que foram as coordenadas a atender em sede de objecto e limites do depoimento, afigura-se-nos inequívoco que, ao ter valorado o depoimento de D..., Inspector Principal da ASAE, violou o tribunal a quo os sobreditos preceitos, pois que dúvidas não subsistem que estamos perante um depoimento indirecto, que se limitou a referir meios de prova, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos [entre os quais, nos termos da própria motivação, se incluem o auto de interrogatório do arguido], mas não imediatamente dos próprios factos, circunstância que, em abono da verdade se diga, não causa qualquer estranheza dado o nível da intervenção da dita «testemunha» nos autos.

Com efeito, trata-se de pessoa que nenhuma participação teve na investigação, que não se deslocou ao local, sobre cuja secretária caiu o expediente, integrado pelas diligências realizadas no decurso do inquérito, que se limitou a ler os papéis, a partir dos quais elaborou o relatório final e que, arrolado como testemunha na acusação, em sede de julgamento prestou um depoimento que, sem surpresa, incidiu sobre meios de prova relativos aos factos [v. g. interrogatório de arguido; procuração de fls. 29 a 32, reclamação do cliente] e não já sobre o conhecimento directo que dos mesmos pudesse ter, o qual, naturalmente, em face das circunstâncias, não tinha!

Aliás, a narrativa de que se socorre a sentença na fundamentação de facto, não deixa réstia de dúvida sobre o que se passou, designadamente, mas não só, quando, reportando-se ao depoimento da dita testemunha consigna «Ao que sabe tudo começou …»; «Quanto à recolha e exame do cordel ao que sabe terá sido …»; «Foi apontado pelos intervenientes no processo que era o fio e que era fio de saca do pão» [destaques nossos].

Em conclusão, não tendo o depoimento incidido sobre factos de que a testemunha possuisse conhecimento directo, havendo-se, antes, a mesma limitado a transmitir aquilo que percepcionou através de outros meios de prova, o respectivo depoimento, à luz dos comandos legais [artigos 128.º/129.º do CPP] há-de ter-se por indirecto e, como tal, insusceptível de ser valorado, designadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal.

Não obstante, tendo-o sido, por si e na análise conjugada com a demais prova produzida, desconhecendo-se em que medida e com que força relevou no juízo probatório, não sendo, como tal, neste quadro viável autonomizar ou expurgar pura e simplesmente a prova proibida – insusceptível de ser valorada – por não ser possível, no caso, cindi-la da demais prova, torna-se inevitável a realização de uma nova audiência de julgamento, que deverá ser integralmente repetida, a que se seguirá a prolação de nova sentença.

Mostra-se, assim, prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.

III. Decisão

Termos em que acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, na procedência do recurso, em anular toda a audiência de julgamento, bem como a sentença recorrida, determinando a realização de uma nova audiência de julgamento, seguida de nova sentença, a realizar pelo tribunal de primeira instância.

Sem custas.

(Maria José Nogueira - Relatora)

(Isabel Valongo)