Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||||||||||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||||||||||
Relator: | LUÍS COIMBRA | ||||||||||
Descritores: | SENTENÇA ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS ACUSAÇÃO | ||||||||||
Data do Acordão: | 09/11/2013 | ||||||||||
Votação: | UNANIMIDADE | ||||||||||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS (1.º JUÍZO) | ||||||||||
Texto Integral: | S | ||||||||||
Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||||||||||
Decisão: | DECLARADA A NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO, POR APLICAÇÃO DO ARTIGO 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CPP | ||||||||||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 1.º, ALÍNEA F), E 358.º, AMBOS DO CPP | ||||||||||
Sumário: | I - Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação - ainda que lhes confira um encadeamento diverso, mas sem que lhes retire a identidade naturalística -, não ocorre qualquer alteração relevante em matéria de facto, não sendo, assim, de cumprir o disposto no artigo 358.º, n.º 3, do CPP. II - Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere mais pormenor ao relato, apenas para precisar os termos da conduta, mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, também não se verifica a referida alteração factual. III - Efectivamente, aferindo-se a relevância da alteração fáctica em função da identidade do objecto do processo e do fair trial pressuposto por um processo penal justo, estes dois princípios basilares não são minimamente afectados quando nenhuma novidade se acrescenta à descrição, na acusação, do comportamento típico. | ||||||||||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO 1. No âmbito do Processo Comum (Colectivo) nº 339/11.0JALRA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, o arguido A... (melhor identificado nos autos), após ter sido acusado pelo Ministério Público e, posteriormente, pronunciado como autor material e em concurso real da prática de um crime continuado de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelos artºs 30 nºs 2 e 3, 79, 171 nºs 1 e 2 e 177 nº 1 al. b) todos do Código Penal e de um crime continuado de coacção agravada p p pelos artºs 30 nºs 2 e 3, 79, 154 nº 1 e 155 nº 1 al b) ambos do CP, foi submetido a julgamento tendo, a final (a fls. 683 a 711), sido proferido acórdão em que se decidiu nos seguintes termos (transcrição): “IV. Decisão. Pelos fundamentos expostos e após alteração da qualificação jurídica: -- dois crimes de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 1 do CP [pontos 6).- e 7).-] nas penas de 2 (dois) anos de prisão e 3 (três) anos de prisão respectivamente; -- um crime de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 3 al a) do CP [ponto 9).- ] na pena de 5 (cinco) meses de prisão; -- dois crimes de coacção p p pelo artº 154 nº 1 do CP [pontos 6).- e 8).-] nas penas respectivamente de 4 (quatro) meses e 6 (seis) meses de prisão. d) condenamos o arguido nas custas do processo, em 3 UC de taxa de justiça. (…)” 2. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 725 a 752), retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões: 1. O douto acórdão para além de nulo nos termos do disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal, de lavrar em erro notório na apreciação da prova, em insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão de facto e contradição notória também na apreciação da prova, peca por alguma superficialidade e preconcebida análise crítica da prova, não fazendo a correcta interpretação e aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, e entre outros, dos artigos 30º, 171° n°1; 171° n°3 al. a), 154° n°1 todos do Código do Processo Penal e 32° da Constituição da República Portuguesa, devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outra decisão que absolva o arguido com as demais e legais consequências. 2. Nos termos do disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”. 3. Ou seja, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, através do processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas. 4. Impõem-se pois, na nossa modesta opinião, que esse exame critico, indique, no mínimo, e não necessariamente de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal. 5. No caso dos autos e concretamente no que a este ponto diz respeito, o tribunal limitou-se a fazer referências genéricas às declarações da menor “a B... disse que o arguido é primo do seu pai e que às vezes ia para casa dele e da sua companheira a F...”; da testemunha E... — avó paterna da menor — A E... disse que o arguido foi muitas vezes a X... buscar a B... e foi sozinho” ou ainda da testemunha F... — no que ao ponto 16 dos factos dados como provados “declarações de F...”. 6. Não é possível ao tribunal de recurso com base em tal argumentação poder concluir pela bondade da decisão, significando que a fundamentação constante da douta decisão por esta via colocada em crise, impede, por forma absoluta, o exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão. 7. Designadamente qual o motivo que da credibilidade dada à testemunha E... em contraponto com o depoimento da testemunha D... — mãe da menor — que em sede julgamento questionada pelo Mm° Juiz Presidente sobre quem ia levar e buscar a menor a X... para passar as férias e alguns fins-de-semana em casa da avó paterna, afirmou a testemunha nestes autos (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 12:17:50, nas passagens 06:46 a 7:17, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 657) “Foi lá várias vezes a minha casa”, à pergunta “Ia sozinho quando lá foi? Respondeu “não eu acho que ele uma vez foi sozinho.. .“ à pergunta “ Ia com quem?” Respondeu “Ia com a avó da B..., chegou a ir a minha casa com a esposa co o filho pequeno e com a mãe dele” á pergunta “Portanto foi sempre acompanhado ou foi alguma vez sozinho? Que a Sra se lembre? Respondeu “é assim, eu acho que ele uma vez foi sozinho, eu não tenho bem a certeza mas uma vez foi sozinho” 8. Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame critico, viola manifestamente o disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal acarretando a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artigo 379° n°1 al. a) do mesmo diploma legal. 9. Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame critico, viola manifestamente o disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal acarretando a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artigo 379° n°1 ai. a) do mesmo diploma legal. 10. O tribunal a quo após a produção de toda a prova o Tribunal a quo entendeu que, e a provarem-se os factos imputados ao arguido, poderão existir mais do que um crime de abuso sexual de criança, e mais do que um crime de coação agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação não refere circunstâncias exteriores que facilitassem de algum modo a prática deste comportamento mais do uma vez. (cfr. Acta de fls. 712 a 714, cfr fls. 713). 11. Ou seja, o arguido vem acusado da prática de um crime continuado de abuso sexual de criança agravado p.p. pelos artigos 30º n°2 e 3, 79°, 171° n°s 1 e 2 e 177° al. b) todos do Código Penal e de um crime continuado de coação agravada p.p. pelos artigos 30° n°s 2 e 3, 79°, 154° n°1 e 155° n°1 al. b) ambos do Código Penal. 12. Face à prova produzida o tribunal a quo considerou que não estavam reunidos os pressupostos para que se estivesse na presença do crime continuado, condenando o recorrente em cinco crimes. 13. Apesar do tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 358° n°3 do Código do Processo Penal ter dado a palavra ao arguido a verdade é que não concretizou em que consistia a alteração da matéria factual que conduziu à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. (cfr. Acta de fls. 712 a 714, cfr fls. 713). 14. Designadamente quanto aos pontos 6, 7 e 9 dos factos dados como provados em contraponto com os pontos 7°, 8°, 10° e 11° da acusação. 15. É inconstitucional por violação do princípio constitucional do acusatório, contraditório e garantia das garantias de defesa — artigo 32° n°5 da Constituição da Republica Portuguesa — a eventual interpretação dada ao artigo 358° n°1 do Código do Processo Penal, no sentido de que não ter que ser comunicada ao arguido as alterações factuais que conduziram à alteração da qualificação jurídica dos factos, caso a defesa tenha sido estruturada tendo em conta esse dado, designadamente através de apresentação de álibi, o que aconteceu no decurso do presente processo. 16. As garantias de defesa do arguido só estão asseguradas quando, da exposição dos factos que sustentam a acusação e bem ainda dos factos trazidos para a audiência de julgamento, por via dos depoimentos prestados resulta a possibilidade razoável de serem impugnados e sujeitos ao princípio do contraditório. 17. Em suma, tendo o arguido sido condenado com base em factualidade diversa da que constava na acusação, sem que se tenha procedido à prévia comunicação prevista no artigo 358° n°1 do Código do Processo Penal, leva a que o acórdão, aliás douto, seja nulo, irremediavelmente nulo, por força do disposto nos artigos 358°, 359° e 379° n°1 al. b) do Código do Processo Penal. 18. Nos termos o disposto no artigo 412° n°3 do Código do Processo Penal, o recorrente considera os infra referidos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, pelo que expressamente se impugnam e se indicam para os efeitos previstos na al. a) da supra referida norma legal: Pontos 6°; 70; 8° e 9° dos factos considerados provados. 19. No ponto 6° - “Entre 23 de Fevereiro de 2009 e Junho de 2009, em data não concretamente apurada, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido em casa deste, o arguido chamou-a pelo menos uma vez, para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, ejaculando para cima do corpo da menor, após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgadinhos e lhe batia. 20. O depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 05:00 a 05:14 e 37:28 a 37:48, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa. 21. Em sede de julgamento a menor questionada sobre os factos ocorridos em casa do arguido, designadamente no quarto deste, referiu que “Se não mexesse na pila do arguido a pedido deste, não lhe dava mais salgadinhos que a menor gosta muito e que o arguido tinha lá em casa” referindo ainda que “Se contasse a mais alguém não lhe dava mais salgadinhos e a Barbi que o arguido tinha me sua casa e que a menor gostava muito” 22. Certo é que ao longo do seu depoimento a menor dá enfase aos salgadinhos e à boneca que o arguido tinha em sua casa. Perante estes elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o arguido tivesse dito à menor que lhe batia. 23. No ponto 8° - “Na data do primeiro aniversário do G..., filho do arguido e da F..., a menor B... disse que ia contar tudo à avó, ao que o arguido empunhando uma faca na mão disse à B... “...ai se tu vais contar à tua avó”. 24. Em sede de julgamento a menor questionada sobre os factos ocorridos em casa do arguido, no dia do aniversário do filho deste, a menor disse mordeu a perna do arguido e que o arguido lhe deu um pontapé e nessa sequência a menor disse-lhe que ia contar tudo à avó, tendo o arguido pegado numa faca e dito “ai se tu vais dizer à tua avó...” 25. Do depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 16:30 a 16:49, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) — resulta que a expressão utilizada pelo arguido foi na sequência de um pontapé dado à menor no seguimento de ter sido beliscado por esta numa perna por debaixo da mesa 26. Não só a agressão da menor é um acto reflexo ocorrido em consequência do beliscão como a expressão deverá ser interpretada no restrito contexto desse episódio. 27. Perante estes elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o arguido tivesse proferido as expressões da sequência da afirmação da menor em contar tudo à avó, mas na sequência de uma reflexa reação à agressão perpetrada pela menor. 28. Nos pontos 6°; 7° e 9° nos que ao espaço temporal diz respeito, o depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 31:10 a 32:07; 39:24 a 40:03 e 40:41 a 41:30, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa. A menor questionada quanto ao espaço temporal em que os relatados factos aconteceram foi dizendo o que “ Tudo o que se passou foi antes do nascimento do G...”; “Bem antes do nascimento do G...” dizendo ainda “Três semanas antes do nascimento do G...” para depois dizer “Os acontecimentos aconteceram nas férias do verão” completando com “As férias do verão eram 3 meses, eu fiquei lá um mês na minha avó e depois foi quando isto aconteceu”. 29. E que tais factos aconteceram, “A 1a vez foi de manhã, a situação do filme pornográfico foi à tarde e a 3a, quando tentou por o pénis no meu rabo, acho que foi de manhã” — (depoimento da menor gravado em CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 37:55 a 38:50, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) 30. Do depoimento da companheira do arguido F... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 01.03.2013, com inicio às 10:43:44, nas passagens 05:15 a 05:19 e 11:44 a 12:48 e 19:00 a 19:09, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 663 a 667 — Cf. fls 665) bem como do depoimento de H... (mãe de F...) - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 01.03.2013, com inicio às 11:19:36, nas passagens 01:17 a 01:20 e 01:30 a 02:47, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 663 a 667 — Cf. fls 665 e 666) resulta que o filho do arguido nasceu em 23 de Fevereiro de 2009, sendo certo que o relato efectuado pelas testemunhas em conjugação com os documentos cuja junção aos autos foi admitida em audiência de 12 de Março de 2013 (cfr. acta de fls. 676 a 678), consubstanciados no horário e folhas de presença do arguido no seu trabalho, em que se demonstra que o arguido face ao seu horário e presença da mãe da sua companheira e esta própria na sua habitação, devia o tribunal a quo, salvo o devido respeito, concluir pela impossibilidade da ocorrência de tais factos. 31. Não se olvidando ainda que do relatório da avaliação psicológica forense — cfr. fls 518 e ss. - efectuada à menor B..., resulta que a menor, no que à análise qualitativa diz respeito tem uma personalidade com afectos recalcados e revanchistas. 32. O depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 15:40 a 17:39, consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 714 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa. Na verdade a menor disse que “dois dos acontecimentos ocorreram no período da manhã e outro no período da tarde” 33. Ora face aos restantes elementos de prova constantes dos autos, designadamente dos depoimentos das testemunhas F... e H..., no período em referência, ou seja, três semanas antes do G...nascer, o arguido estava com o horário de trabalho das 06:00h às 14:30h, sendo certo ainda que aos fins-de-semana estava acompanhado pela sua companheira que estava também de folga. 34. Por tudo o supra exposto o recorrente considera incorrectamente julgado o ponto 6°; 7° e 9° dos factos provados, que perante os elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o espaço temporal constante dos mesmos. 35. Ora, perante os elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento, impunha que se não tivesse dado como provado os concretos pontos da matéria de facto supra identificados, considerando-se, por isso, como não provados. 36. E dando-se provimento ao presente recurso, no que aos concretos pontos da matéria de facto supra indicados diz respeito, deverá esse Venerando Tribunal proceder à modificação da decisão sobre a matéria de facto provada nos termos do disposto no artigo 431° al. b) do Código do Processo Penal, já que a prova se encontra devidamente documentada e o princípio da livre apreciação da prova vincula também esse tribunal e porque as provas, cuja reapreciação se requer impõem decisão diversa da proferida (artigo 412° n°3 al. b) do Código do Processo Penal). 37. Modificada a decisão sobre a matéria de facto, nos termos pugnados, deverá o arguido ser absolvido da prática dos crimes de que foi condenado. 38. Sem prescindir o recorrente entende que o julgado ora submetido à vossa apreciação enferma de erro de apreciação da prova com reflexo na consequência jurídica que deles extraiu o tribunal colectivo esteve na base da pena em que foi condenado. 39. Com efeito consta do ponto 7. dos factos dados como provados que “(...) o arguido já despido, despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido, este agarrou-a, puxando-a na sua direcção e tentou introduzir o pénis erecto no ânus da menor.”. 40. Contudo o ponto 10 dos factos dados como provados é fundamentado pelo que consta do relatório de fls. 15 a 19, sendo relevante para a conclusão das lesões verificadas a informação prestada pela examinanda, sendo, por isso, as descritas lesões a nível anal coadunadas com a existência de lesões traumáticas por provável cópula anal. 41. O referido exame foi efectuado com base na informação da examinanda que relatou uma agressão sexual que terá constado de penetração anal (consumada) — cfr. relatório de fls 15 a 19 — ponto A. História do Evento a fls. 15.- a versão trazida a julgamento pela menor não retrata a mesma agressão sexual— cfr. depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 46:59 a 46:17, consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 714 — Cf. fls 656 — por conseguinte, tendo um relatório da perícia de natureza sexual sido efectuado com base em declarações da examinada que não coincidem com a versão apresentada em audiência de julgamento não podia o tribunal a quo sustentar as declarações da menor com o referido relatório. 42. A jurisprudência dos nossos tribunais tem tido sobre o tema da prova nos crimes sexuais em que as vitimas são menores, mormente com a apreciação dos indícios que possam ser evidenciados pelas vítimas, o que impõe o recurso a outros meios de prova a fim de se poder confirmar as declarações por elas prestadas. 43. Escreveu-se no Ac. da Rel de Guimarães, 14-04-2010, disponível em www.dgsi.pt, quanto ao critério de apreciação do depoimento da vitima, sendo esta criança, que tal depoimento poderia abalar a presunção de inocência se nele estiverem presentes os seguintes critérios: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada de um móbil das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricos de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (. ..)“ 44. Vejamos então se o depoimento prestado pela vítima no presente caso concreto passa pelo crivo daqueles critérios. 45. Pois bem, sobre o primeiro critério do relatório de avaliação psicológica forense de fls. 518 e ss. é referido que “A avaliação projectiva faz perceber uma criança muito carente do ponto de vista afectivo/relacional, vivenciando intimamente sentimentos de desvalorização/rejeição e apelando á centração de atenção e afectos sobre si, com recurso a estratégias de sedução e manipulação” e ainda “ (...) detectando-se um elevado número de resposta características de um estilo obsessivo.”. 46. O referido relatório descreve a menor com uma personalidade que recorre a estratégias de sedução e manipulação, sendo certo que a descrição fáctica apresentada em julgamento contrasta com as suas anteriores declarações prestadas no decurso das várias perícias que lhe foram feitas e, ainda, do que consta da própria denúncia em que o facto mais gravoso, ou seja, cópula anal, mesmo na perspectiva da tentativa não é referido. 47. Sobre o segundo critério a menor foi objecto de perícia forense, baseado em declarações desta, que não coincidentes com as trazidas a julgamento, a conclusão precípua do de que”‘As lesões descritas a nível anal coadunam-se com as existentes de lesses traumáticas por provável, cópula anal, de acordo com a informação da examinada “ 48. Assim sendo, não resulta que sobre o critério em apreciação, possam tais elementos corroborar o testemunho da menor sobre quem teriam sido praticados os crimes de abuso sexual, porque afirma uma probabilidade, sem aquilatar do grau. 49. E, sobre o último dos critérios, caberá dizer que a constante contradição entre o anteriormente relatado e o que foi dito pela menor em audiência de julgamento. Relatos manifestamente contraditórios no que tange aos crimes de abuso sexual como aos crimes de coação. 50. Os mesmos critérios se podem aplicar no que aos crimes de coação diz respeito. Aliás outros meios probatórios que corroborem o depoimento da vítima, não existe em relação crime de coação e não servem para corroborar tal depoimento no caso dos crimes de abuso sexual sobre o qual o tribunal colectivo formulou a sua convicção de facto, no sentido de resultarem provados aqueles concernentes à incriminação do arguido. 51. Assim o Tribunal a quo, salvo do devido respeito, errou na apreciação feita destes factos. A prova produzida era suficiente para evitar uma errada apreciação e contradição insanável da fundamentação, pelo que o Acórdão recorrido padece dos vícios previstos no artigo 410° n°2 al. a) e c) do Código do Processo Penal. 52. Outrossim, para a circunstância de não ser atendida a acima peticionada absolvição do recorrente quanto aos crimes alegadamente por si perpetrados, o que aqui se faz por mera cautela e dever de patrocínio e sem conceber ao quanto acima dito, afigura-se que mal andou o tribunal a quo ao não subsumir a matéria factual dada como provada ao crime de abuso sexual de criança e de coação ambos na forma continuada e ainda no que diz respeito à não suspensão da pena de prisão. 53. O artigo 30° n°1 do Código do Processo Penal define os pressupostos para que estejamos na presença de um crime continuado. 54. Assim, o crime continuado pressupõe, precisamente, a existência de diversas resoluções, só que todas elas tomadas dentro de um quadro exterior que facilita, de forma, considerável, o renovar das sucessivas resoluções. 55. Deste modo, quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontra-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de for, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tomado cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito. 56. Face a tal, e tendo em conta a factualidade provada, quer no que diz respeito ao crime de abuso sexual de criança e ao crime de coação, poderemos concluir que se verificam todos os pressupostos para que se esteja na presença de crime continuado de abuso sexual de crianças e de um crime continuado de coação. 57. Na verdade estamos na presença de uma pluralidade de resoluções criminosas, uma realização plúrima de um tipo de crime que protege o mesmo bem jurídico tendo sido executados por forma essencialmente homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior. 58. Consequentemente tendo em conta todo o factualismo considerado provado, deve o douto acórdão recorrido ser revogado devendo o arguido ser condenado pela prática de um só crime abuso sexual de criança e um só crime de coacção. 59. O tribunal a quo decidiu, do ponto de vista do recorrente mal, não suspender a pena de prisão aplicada. 60. Da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido está familiarmente e socialmente inserido, tem apoio familiar, sendo considerado como um indivíduo trabalhador e responsável. 61. Não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido, ora recorrente, nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, ou posterior ao mesmo, já que não tem averbado no seu registo criminal a prática de outros crimes, decorridos mais de quatro anos sobre a prática dos factos, sendo delinquente primário. 62. Em termos de prevenção geral a reação penal aos factos e a simples ameaça de prisão mostram-se suficientes para que o tribunal a quo tivesse optado pela suspensão da pena de prisão, ainda que condicionada a determinadas regras de conduta. 63. Deste modo, considera o recorrente, que a decisão ora colocada em crise, viola o disposto no artigo 50º do Código Penal. NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO Devem as presentes conclusões proceder e por via disso, deve o recurso obter provimento e ser revogada a decisão recorrida com as legais consequências. Porém, Vossas Excelências farão JUSTIÇA”
3. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 760.
4. O Ministério Público junto da primeira instância, respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição com os realces): “CONCLUSÕES I 5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 807 a 808vº, sufragando a posição evidenciada pelo magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. 6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o arguido respondeu mantendo e reforçando, no essencial, a posição que já havia manifestado no recurso. 7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995). a) factos provados. 1).- A menor B..., nascida a 10/7/2002 é filha de C... e de D... , reside habitualmente em X..., junto da sua mãe, desde a separação ocorrida por volta do ano de 2006 entre os seus progenitores, sendo que desde então, se desloca em vários fins de semana e nos períodos de férias, para casa da avó paterna, E..., sita na (...), Y..., Torres Novas e onde passou a residir o seu pai após a separação. 2).- O arguido é primo do pai da menor e também actual vizinho deste, sendo que desde o ano de 2006, era frequente a menor privar com o arguido e a respectiva companheira. 3).- Por muitas ocasiões e algumas delas sozinho, foi o arguido quem foi buscar a menor a X... para a transportar para casa da avó paterna, mediante solicitação desta, e em virtude de o pai da menor, à data, não ser titular de carta de condução. 4).- Durante o tempo de permanência da menor na casa da avó paterna, era frequente o arguido convidá-la para ir para casa dele. 5).- No período compreendido entre 23 de Fevereiro de 2009 e o mês de Junho de 2009, altura em que a sua companheira E...se encontrava ausente de casa, juntamente com o filho recem-nascido de ambos G..., o arguido sendo próximo da família da menor B..., intensificou o tempo de contacto com esta, sendo nesse período, frequentes as deslocações da menor para casa do arguido. 6).- Entre 23 de Fevereiro de 2009 e Junho de 2009, em data não concretamente apurada, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido em casa deste, o arguido chamou-a pelo menos uma vez, para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, ejaculando para cima do corpo da menor, após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgados e lhe batia. 7).- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e em data não concretamente apurada, o arguido já despido, despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido, este agarrou-a, puxou-a na sua direcção e tentou introduzir o pénis erecto no ânus da menor. 8).- Na data do primeiro aniversário do G..., filho do arguido e da F..., a menor B... disse que ia contar tudo à avó, ao que o arguido empunhando uma faca na mão disse à B... “... ai se tu vais dizer à tua avó”. 9).- Pelo menos uma vez, em data não apurada, no interior da casa do arguido, este, na presença da menor, entre cinco e dez minutos, exibiu um filme, onde uma mulher mexia no pénis de um homem e o arguido dizia “é assim que tens que fazer”. 10).- Em resultado da conduta do arguido descrita no ponto 7).- resultaram para a menor B... as lesões descritas no relatório médico legal junto aos autos a fls 15 a 19 designadamente “vestígios cicatriciais de lacerações que se encontram dispostas ao longo das pregas perianais nos pontos correspondentes às 2 horas, 6 horas e 11 horas do mostrador de um relógio, medindo cada uma delas cerca de dois milímetros de comprimento. A tonicidade do esfíncter encontra-se ligeiramente diminuída”, aí se concluindo que “(...) a totalidade das lesões descritas a nível perianal são compatíveis com a informação prestada pela examinanda (...) as lesões descritas a nível anal coadunam-se com a existência de lesões traumáticas por provável cópula anal (...). 11).- Ao agir do modo descrito em 6).- e 7).- o arguido quis satisfazer os seus desejos sexuais e eróticos com a menor B..., o que conseguiu, explorando a relação de confiança que tinha com a menor e sua família. 12).- O arguido bem sabia que ao agir do modo descrito em 6).- e 8).- intimidava a menor e constrangia-a a nada dizer à sua avó e restante família, assim cerceando a sua liberdade de acção e pretendendo garantir a possibilidade de repetição no futuro de outros e semelhantes abusos na pessoa da menor, o que quis e conseguiu. 13).- O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que ao assim agir incorria em responsabilidade criminal. 14).- O arguido é delinquente primário. 15).- Do relatório social conclui-se que : o processo de desenvolvimento do arguido decorreu num ambiente familiar estável, sendo manifesta a transmissão de regras e valores consonantes com o normativo social, com valorização de práticas educativas e de proximidade entre todos os elementos. O seu percurso educativo decorreu sem dificuldades. Frequentou o ensino até ao 11º ano. Em termos profissionais trabalhou numa fábrica de álcool, depois foi para Inglaterra onde trabalhou no ramo da restauração. Após regressar a Portugal vai trabalhar para a (...) e posteriormente para os (...) onde se encontra na actualidade. O arguido é tido como um indivíduo trabalhador, portador de uma conduta recatada e normativa, sendo-lhe reconhecidas competências pessoais e sociais. Pela entidade patronal o arguido é descrito como um bom funcionário, demonstrando responsabilidade e empenho. Em termos de projectos futuros, o arguido tenciona manter o seu posto de trabalho e voltar a residir com a sua mulher e filho, regressando á anterior morada, uma vez que cumpre a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica em casa dos pais. 16).- O arguido tem casa própria pela qual paga um empréstimo mensal de 250 €. O arguido ganha mensalmente cerca de 700 €. A sua companheira ganha mensalmente 650 €. Pagam de infantário para o filho G... 200 € por mês. b) factos não provados: não se provou que: -- nesse período e em dia não concretamente apurado, o arguido tivesse pedido à avó da menor que esta deixasse a menor B... pernoitar em sua casa; -- tivesse introduzido o pénis e que depois de introduzir um dedo na vagina da menor, procurasse introduzir o pénis na vagina; -- nas circunstâncias referidas em 6).- e 7).- e depois de a menor entrar no quarto, o arguido tenha fechado a porta à chave, guardando-a em local inacessível à menor; -- uma ocasião, em data não apurada, se tivesse deslocado com a menor a uma sex shop. * Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento. Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos: Quanto à alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. E para melhor ser feita essa comparação coloquemos na tabela que segue, lado a lado, os factos da acusação/pronúncia (que ficarão à esquerda) e os factos que no acórdão recorrido foram dados como provados (que ficarão à direita), sendo certo que, por uma questão de enquadramento espácio-temporal subjacente aos mesmos teremos, necessariamente, também mencionar o ponto 5º quer da acusação/pronúncia quer dos os factos dados como provados no acórdão recorrido: Acusação/pronúncia Acórdão
Por outro lado, e com interesse para a questão, importa ainda referir que no acórdão recorrido, entre outros, foi dado como não provado que o arguido: “-- tivesse introduzido o pénis e que depois de introduzir um dedo na vagina da menor, procurasse introduzir o pénis na vagina;” Ou seja, da comparação entre os supra referidos factos da acusação/pronúncia com os factos dados como provados, constata-se: - que os factos dados como provados representam um “minus” em relação aos da acusação/pronúncia (caso do acusado facto 7º e o dado como provado facto 8, conjugado com o mencionado facto não provado); - que o acrescento na parte final do provado facto 6º, comparado como o acusado facto 7º, apenas pode ser visto, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto se passou entre arguido e ofendida, tanto mais que o ponto 10 da acusação já aludia a um desses contextos e à alegada “ameaça” de morte caso a menor fosse dizer à avó; - que os pormenores mencionados no facto 9º da matéria de facto dada como provada, em comparação com o acusado facto 11º, sem relevo para a decisão da causa (mormente ao nível do respectivo enquadramento jurídico) apenas podem ser vistos, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto se passou entre arguido e ofendida, sendo certo que até, de forma evidente, apontam no sentido de uma menor frequência das situações de exibição de filmes e, necessariamente, de um menor período de tempo dessa visualização. E neste mesmo sentido também se pronunciam, entre outros, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815. Por outro lado, como tivemos oportunidade de dizer, os pequenos acrescentos ou menções constantes nos demais factos dados como provados e postos em crise pelo recorrente, apenas servem para concretizar/contextualizar/explicitar/precisar os termos da acção típica neles constante, sendo que dos mesmos não se descortina o necessário “relevo para a decisão da causa” (exigido no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal) para que se impusesse a comunicação a que alude tal preceito legal. São pois acrescentos ou pormenores que, em si mesmos, não assumem relevo para a decisão da causa, mas que apenas servem para esclarecer/pormenorizar/concretizar/enquadrar os demais factos da acção típica em que se inserem. E quanto a esta questão tem interesse trazer à colação o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23.05.2012 (in www.dgsi.pt, relator Jorge Jacob) quando a dado passo refere: “ Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. A bitola para se aferir da relevância da alteração fáctica será sempre a identidade do objecto do processo e o fair trial pressuposto por um processo penal justo, que não são afectados quando nada de novo se acrescenta à descrição da acção típica.” Por isso, e porque nenhuma das divergências assinaladas pelo recorrente se enquadra no âmbito no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, não era exigível, nem se justificaria qualquer comunicação de tal alteração pretendida pelo ora recorrente. E embora esta questão não tenha sido directamente colocada pelo recorrente, da análise dos autos, constata-se que o arguido vinha pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.°, n.ºs 2 e 3, 79.°, 171.°, n.ºs 1 e 2, e 177.°, n.º 1, alínea b), do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma continuada. previsto e punido pelos artigos 30.°, n.ºs 2 e 3, 79.°, 154.°, n.º 1, e 155.°, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, sendo que após a realização da audiência de julgamento veio a ser condenado: por dois crimes de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 1 do Código Penal; por um crime de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 3 al a) do Código Penal; e por dois crimes de coacção p p pelo artº 154 nº 1 do Código Penal Todavia, em relação a essa questão, e por considerar que os factos imputados ao arguido na acusação/pronúncia deveriam ter uma qualificação jurídica diversa daquela que constava da acusação pronúncia, como consta da acta de fls. a 712 a 714, previamente à leitura do acórdão, o Mmo Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho: “O Ministério Público acusa o arguido A... da prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças e um crime continuado de coação agravada. Após a produção de toda a prova o Tribunal entende que, e a provarem-se os factos imputados ao arguido, poderão existir mais do que um crime de abuso sexual de criança, e mais do que um crime de coação agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação não refere circunstancias exteriores que facilitassem de algum modo a prática deste comportamento mais do que uma vez. Assim sendo, poderá ocorrer uma alteração da qualificação jurídica dos factos. Ao abrigo do disposto no artigo 358°, n.º 3 do Código Processo Penal, dá-se a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido para requer o que entender por bem. Notifique.” * E dessa mesma acta imediatamente consta o seguinte que se passa também a transcrever: “Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo sido dada a palavra ao Ilustre Mandatário nos termos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal. */*/* Neste momento, pelo Ilustre Mandatário do arguido foi dito nada ter a requerer. */*/* Após, o Mm. Juiz Presidente procedeu à leitura do acórdão (…)”.
Muito embora, convenhamos, o atrás citado despacho não seja um primor de clareza ou transparência quer quanto ao concreto número de crimes que podiam estar em causa quer quanto às disposições legais atinentes aos mesmos, o certo é que, com tal despacho, o Mmo Juiz Presidente do Tribunal a quo chamou a atenção da defesa para a eventualidade de alteração da qualificação jurídica dos factos que eram imputados ao arguido na acusação/pronúncia, considerando que podiam existir mais do que um crime de abuso sexual de criança e mais do que um crime de coacção agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação/pronúncia, efectivamente, não mencionava circunstâncias exteriores que, de algum modo, pudessem facilitar prática deste comportamento mais do que uma vez. E apesar dessa, quanto a nós, algo deficiente clareza do despacho, o certo é que, depois de lhe ter sido dada a palavra nos termos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal, pelo Ilustre Mandatário do arguido foi dito nada ter a requerer. Esta afirmação de que nada ter a requerer para além de se traduzir a ausência de reacção perante tal despacho, também implicitamente demonstra que tal despacho foi devidamente compreendido pois, caso tal não ocorresse, certamente que seria pedida a palavra para pedir esclarecimentos quanto ao sentido e/ou alcance do despacho que acabava de ser proferido. Ora, vista a referida acta, nada foi requerido nem nenhum esclarecimento foi pedido por parte de qualquer sujeito processual, mormente pela defesa do arguido. E se algo não percebia deveria, logo, ter solicitado esclarecimentos. Percebendo ou não, o ilustre mandatário do arguido prescindiu de um direito que sabia qual era. Ou seja, e no que à comunicação da possível alteração da qualificação jurídica dizia respeito, ao tomar aquela posição e não arguindo qualquer nulidade ou irregularidade nem pedindo qualquer esclarecimento por forma a obter despacho mais esclarecedor, deixou o ora recorrente precludir o seu direito de impugnar tal despacho, sendo que o recurso de tal despacho – a haver nulidade (que sempre já estaria sanada pelo decurso do tempo) - deveria ter sido interposto de imediato, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 3, al. a) do Código de Processo Penal, e ser objecto de recurso interlocutório. Por isso, por ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal (conforme o demonstra a mencionada acta) e por nada ter sido requerido pela defesa na sequência da aventada alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação/pronúncia, sob este prisma, também não ocorre a causa de nulidade a que se reporta o artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal. Em conclusão, não se verificando a apontada nulidade a que se reporta o artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal, terá necessariamente que improceder esta pretensão do recorrente. * III. DISPOSITIVO Nestes termos, decide-se declarar a nulidade parcial do acórdão do tribunal a quo, na parte relativa à motivação acima descrita, devendo proceder-se a elaboração de nova decisão final que observe o supra exposto, quanto à fundamentação da decisão de facto. Sem custas. * (Luís Coimbra - Relator)
(Cacilda Sena) |