Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
339/11.0JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: SENTENÇA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 09/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: DECLARADA A NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO, POR APLICAÇÃO DO ARTIGO 379.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CPP
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, ALÍNEA F), E 358.º, AMBOS DO CPP
Sumário: I - Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação - ainda que lhes confira um encadeamento diverso, mas sem que lhes retire a identidade naturalística -, não ocorre qualquer alteração relevante em matéria de facto, não sendo, assim, de cumprir o disposto no artigo 358.º, n.º 3, do CPP.

II - Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere mais pormenor ao relato, apenas para precisar os termos da conduta, mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, também não se verifica a referida alteração factual.

III - Efectivamente, aferindo-se a relevância da alteração fáctica em função da identidade do objecto do processo e do fair trial pressuposto por um processo penal justo, estes dois princípios basilares não são minimamente afectados quando nenhuma novidade se acrescenta à descrição, na acusação, do comportamento típico.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum (Colectivo) nº 339/11.0JALRA, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, o arguido A... (melhor identificado nos autos),

após ter sido acusado pelo Ministério Público e, posteriormente, pronunciado como autor material e em concurso real da prática de um crime continuado de abuso sexual de criança agravado p. e p. pelos artºs 30 nºs 2 e 3, 79, 171 nºs 1 e 2 e 177 nº 1 al. b) todos do Código Penal e de um crime continuado de coacção agravada p p pelos artºs 30 nºs 2 e 3, 79, 154 nº 1 e 155 nº 1 al b) ambos do CP,

 foi submetido a julgamento tendo, a final (a fls. 683 a 711), sido proferido acórdão em que se decidiu nos seguintes termos (transcrição):

“IV. Decisão.

Pelos fundamentos expostos e após alteração da qualificação jurídica:
a) julgamos procedente por provada a acusação do Mº Pº e em consequência condenamos o arguido A...em concurso real e como autor material de:

-- dois crimes de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 1 do CP [pontos 6).- e 7).-] nas penas de 2 (dois) anos de prisão e 3 (três) anos de prisão respectivamente;

-- um crime de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 3 al a) do CP [ponto 9).- ] na pena de 5 (cinco) meses de prisão;

-- dois crimes de coacção p p pelo artº 154 nº 1 do CP [pontos 6).- e 8).-] nas penas respectivamente de 4 (quatro) meses e 6 (seis) meses de prisão.
b) em cúmulo jurídico de todas as penas vai o arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
c) após trânsito passe mandados para cumprimento da pena.

d) condenamos o arguido nas custas do processo, em 3 UC de taxa de justiça.

 (…)”

2. Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs recurso (constante de fls. 725 a 752), retirando da correspondente motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O douto acórdão para além de nulo nos termos do disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal, de lavrar em erro notório na apreciação da prova, em insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão de facto e contradição notória também na apreciação da prova, peca por alguma superficialidade e preconcebida análise crítica da prova, não fazendo a correcta interpretação e aplicação de determinados preceitos legais, nomeadamente, e entre outros, dos artigos 30º, 171° n°1; 171° n°3 al. a), 154° n°1 todos do Código do Processo Penal e 32° da Constituição da República Portuguesa, devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outra decisão que absolva o arguido com as demais e legais consequências.

2. Nos termos do disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal, “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

3. Ou seja, para além da indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este tem ainda que expressar o respectivo exame crítico das mesmas, através do processo lógico e racional que foi seguido na apreciação das provas.

4. Impõem-se pois, na nossa modesta opinião, que esse exame critico, indique, no mínimo, e não necessariamente de forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal sido relevantes, para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.

5. No caso dos autos e concretamente no que a este ponto diz respeito, o tribunal limitou-se a fazer referências genéricas às declarações da menor “a B... disse que o arguido é primo do seu pai e que às vezes ia para casa dele e da sua companheira a F...”; da testemunha E... — avó paterna da menor — A E... disse que o arguido foi muitas vezes a X... buscar a B... e foi sozinho” ou ainda da testemunha F... — no que ao ponto 16 dos factos dados como provados “declarações de F...”.

6. Não é possível ao tribunal de recurso com base em tal argumentação poder concluir pela bondade da decisão, significando que a fundamentação constante da douta decisão por esta via colocada em crise, impede, por forma absoluta, o exame do processo lógico ou racional que esteve subjacente à decisão.

7. Designadamente qual o motivo que da credibilidade dada à testemunha E... em contraponto com o depoimento da testemunha D... — mãe da menor — que em sede julgamento questionada pelo Mm° Juiz Presidente sobre quem ia levar e buscar a menor a X... para passar as férias e alguns fins-de-semana em casa da avó paterna, afirmou a testemunha nestes autos (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 12:17:50, nas passagens 06:46 a 7:17, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 657) “Foi lá várias vezes a minha casa”, à pergunta “Ia sozinho quando lá foi? Respondeu “não eu acho que ele uma vez foi sozinho.. .“ à pergunta “ Ia com quem?” Respondeu “Ia com a avó da B..., chegou a ir a minha casa com a esposa co o filho pequeno e com a mãe dele” á pergunta “Portanto foi sempre acompanhado ou foi alguma vez sozinho? Que a Sra se lembre? Respondeu “é assim, eu acho que ele uma vez foi sozinho, eu não tenho bem a certeza mas uma vez foi sozinho”

8. Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame critico, viola manifestamente o disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal acarretando a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artigo 379° n°1 al. a) do mesmo diploma legal.

9. Uma tal fundamentação em que se faz um insuficiente exame critico, viola manifestamente o disposto no artigo 374° n°2 do Código do Processo Penal acarretando a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artigo 379° n°1 ai. a) do mesmo diploma legal.

10. O tribunal a quo após a produção de toda a prova o Tribunal a quo entendeu que, e a provarem-se os factos imputados ao arguido, poderão existir mais do que um crime de abuso sexual de criança, e mais do que um crime de coação agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação não refere circunstâncias exteriores que facilitassem de algum modo a prática deste comportamento mais do uma vez. (cfr. Acta de fls. 712 a 714, cfr fls. 713).

11. Ou seja, o arguido vem acusado da prática de um crime continuado de abuso sexual de criança agravado p.p. pelos artigos 30º n°2 e 3, 79°, 171° n°s 1 e 2 e 177° al. b) todos do Código Penal e de um crime continuado de coação agravada p.p. pelos artigos 30° n°s 2 e 3, 79°, 154° n°1 e 155° n°1 al. b) ambos do Código Penal.

12. Face à prova produzida o tribunal a quo considerou que não estavam reunidos os pressupostos para que se estivesse na presença do crime continuado, condenando o recorrente em cinco crimes.

13. Apesar do tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 358° n°3 do Código do Processo Penal ter dado a palavra ao arguido a verdade é que não concretizou em que consistia a alteração da matéria factual que conduziu à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. (cfr. Acta de fls. 712 a 714, cfr fls. 713).

14. Designadamente quanto aos pontos 6, 7 e 9 dos factos dados como provados em contraponto com os pontos 7°, 8°, 10° e 11° da acusação.

15. É inconstitucional por violação do princípio constitucional do acusatório, contraditório e garantia das garantias de defesa — artigo 32° n°5 da Constituição da Republica Portuguesa — a eventual interpretação dada ao artigo 358° n°1 do Código do Processo Penal, no sentido de que não ter que ser comunicada ao arguido as alterações factuais que conduziram à alteração da qualificação jurídica dos factos, caso a defesa tenha sido estruturada tendo em conta esse dado, designadamente através de apresentação de álibi, o que aconteceu no decurso do presente processo.

16. As garantias de defesa do arguido só estão asseguradas quando, da exposição dos factos que sustentam a acusação e bem ainda dos factos trazidos para a audiência de julgamento, por via dos depoimentos prestados resulta a possibilidade razoável de serem impugnados e sujeitos ao princípio do contraditório.

17. Em suma, tendo o arguido sido condenado com base em factualidade diversa da que constava na acusação, sem que se tenha procedido à prévia comunicação prevista no artigo 358° n°1 do Código do Processo Penal, leva a que o acórdão, aliás douto, seja nulo, irremediavelmente nulo, por força do disposto nos artigos 358°, 359° e 379° n°1 al. b) do Código do Processo Penal.

18. Nos termos o disposto no artigo 412° n°3 do Código do Processo Penal, o recorrente considera os infra referidos concretos pontos de facto incorrectamente julgados, pelo que expressamente se impugnam e se indicam para os efeitos previstos na al. a) da supra referida norma legal: Pontos 6°; 70; 8° e 9° dos factos considerados provados.

19. No ponto 6° - “Entre 23 de Fevereiro de 2009 e Junho de 2009, em data não concretamente apurada, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido em casa deste, o arguido chamou-a pelo menos uma vez, para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, ejaculando para cima do corpo da menor, após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgadinhos e lhe batia.

20. O depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 05:00 a 05:14 e 37:28 a 37:48, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa.

21. Em sede de julgamento a menor questionada sobre os factos ocorridos em casa do arguido, designadamente no quarto deste, referiu que “Se não mexesse na pila do arguido a pedido deste, não lhe dava mais salgadinhos que a menor gosta muito e que o arguido tinha lá em casa” referindo ainda que “Se contasse a mais alguém não lhe dava mais salgadinhos e a Barbi que o arguido tinha me sua casa e que a menor gostava muito”

22. Certo é que ao longo do seu depoimento a menor dá enfase aos salgadinhos e à boneca que o arguido tinha em sua casa. Perante estes elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o arguido tivesse dito à menor que lhe batia.

23. No ponto 8° - “Na data do primeiro aniversário do G..., filho do arguido e da F..., a menor B... disse que ia contar tudo à avó, ao que o arguido empunhando uma faca na mão disse à B... “...ai se tu vais contar à tua avó”.

24. Em sede de julgamento a menor questionada sobre os factos ocorridos em casa do arguido, no dia do aniversário do filho deste, a menor disse mordeu a perna do arguido e que o arguido lhe deu um pontapé e nessa sequência a menor disse-lhe que ia contar tudo à avó, tendo o arguido pegado numa faca e dito “ai se tu vais dizer à tua avó...”

25. Do depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 16:30 a 16:49, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) — resulta que a expressão utilizada pelo arguido foi na sequência de um pontapé dado à menor no seguimento de ter sido beliscado por esta numa perna por debaixo da mesa

26. Não só a agressão da menor é um acto reflexo ocorrido em consequência do beliscão como a expressão deverá ser interpretada no restrito contexto desse episódio.

27. Perante estes elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o arguido tivesse proferido as expressões da sequência da afirmação da menor em contar tudo à avó, mas na sequência de uma reflexa reação à agressão perpetrada pela menor.

28. Nos pontos 6°; 7° e 9° nos que ao espaço temporal diz respeito, o depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 31:10 a 32:07; 39:24 a 40:03 e 40:41 a 41:30, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa. A menor questionada quanto ao espaço temporal em que os relatados factos aconteceram foi dizendo o que “ Tudo o que se passou foi antes do nascimento do G...”; “Bem antes do nascimento do G...” dizendo ainda “Três semanas antes do nascimento do G...” para depois dizer “Os acontecimentos aconteceram nas férias do verão” completando com “As férias do verão eram 3 meses, eu fiquei lá um mês na minha avó e depois foi quando isto aconteceu”.

29. E que tais factos aconteceram, “A 1a vez foi de manhã, a situação do filme pornográfico foi à tarde e a 3a, quando tentou por o pénis no meu rabo, acho que foi de manhã” — (depoimento da menor gravado em CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 37:55 a 38:50, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 657 — Cf. fls 656)

30. Do depoimento da companheira do arguido F... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 01.03.2013, com inicio às 10:43:44, nas passagens 05:15 a 05:19 e 11:44 a 12:48 e 19:00 a 19:09, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 663 a 667 — Cf. fls 665) bem como do depoimento de H... (mãe de F...) - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 01.03.2013, com inicio às 11:19:36, nas passagens 01:17 a 01:20 e 01:30 a 02:47, depoimento consignado em acta de sessão de audiência de fls. 663 a 667 — Cf. fls 665 e 666) resulta que o filho do arguido nasceu em 23 de Fevereiro de 2009, sendo certo que o relato efectuado pelas testemunhas em conjugação com os documentos cuja junção aos autos foi admitida em audiência de 12 de Março de 2013 (cfr. acta de fls. 676 a 678), consubstanciados no horário e folhas de presença do arguido no seu trabalho, em que se demonstra que o arguido face ao seu horário e presença da mãe da sua companheira e esta própria na sua habitação, devia o tribunal a quo, salvo o devido respeito, concluir pela impossibilidade da ocorrência de tais factos.

31. Não se olvidando ainda que do relatório da avaliação psicológica forense — cfr. fls 518 e ss. - efectuada à menor B..., resulta que a menor, no que à análise qualitativa diz respeito tem uma personalidade com afectos recalcados e revanchistas.

32. O depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 15:40 a 17:39, consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 714 — Cf. fls 656) impõe decisão diversa. Na verdade a menor disse que “dois dos acontecimentos ocorreram no período da manhã e outro no período da tarde”

33. Ora face aos restantes elementos de prova constantes dos autos, designadamente dos depoimentos das testemunhas F... e H..., no período em referência, ou seja, três semanas antes do G...nascer, o arguido estava com o horário de trabalho das 06:00h às 14:30h, sendo certo ainda que aos fins-de-semana estava acompanhado pela sua companheira que estava também de folga.

34. Por tudo o supra exposto o recorrente considera incorrectamente julgado o ponto 6°; 7° e 9° dos factos provados, que perante os elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento impunha que não se tivesse dado como provado que o espaço temporal constante dos mesmos.

35. Ora, perante os elementos de prova enunciados, cuja reapreciação se requer, a prova produzida em audiência de julgamento, impunha que se não tivesse dado como provado os concretos pontos da matéria de facto supra identificados, considerando-se, por isso, como não provados.

36. E dando-se provimento ao presente recurso, no que aos concretos pontos da matéria de facto supra indicados diz respeito, deverá esse Venerando Tribunal proceder à modificação da decisão sobre a matéria de facto provada nos termos do disposto no artigo 431° al. b) do Código do Processo Penal, já que a prova se encontra devidamente documentada e o princípio da livre apreciação da prova vincula também esse tribunal e porque as provas, cuja reapreciação se requer impõem decisão diversa da proferida (artigo 412° n°3 al. b) do Código do Processo Penal).

37. Modificada a decisão sobre a matéria de facto, nos termos pugnados, deverá o arguido ser absolvido da prática dos crimes de que foi condenado.

38. Sem prescindir o recorrente entende que o julgado ora submetido à vossa apreciação enferma de erro de apreciação da prova com reflexo na consequência jurídica que deles extraiu o tribunal colectivo esteve na base da pena em que foi condenado.

39. Com efeito consta do ponto 7. dos factos dados como provados que “(...) o arguido já despido, despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido, este agarrou-a, puxando-a na sua direcção e tentou introduzir o pénis erecto no ânus da menor.”.

40. Contudo o ponto 10 dos factos dados como provados é fundamentado pelo que consta do relatório de fls. 15 a 19, sendo relevante para a conclusão das lesões verificadas a informação prestada pela examinanda, sendo, por isso, as descritas lesões a nível anal coadunadas com a existência de lesões traumáticas por provável cópula anal.

41. O referido exame foi efectuado com base na informação da examinanda que relatou uma agressão sexual que terá constado de penetração anal (consumada) — cfr. relatório de fls 15 a 19 — ponto A. História do Evento a fls. 15.- a versão trazida a julgamento pela menor não retrata a mesma agressão sexual— cfr. depoimento da menor B... - gravado em áudio (CD relativo à sessão do dia 05.02.2013, com inicio às 10:28:35, nas passagens 46:59 a 46:17, consignado em acta de sessão de audiência de fls. 652 a 714 — Cf. fls 656 — por conseguinte, tendo um relatório da perícia de natureza sexual sido efectuado com base em declarações da examinada que não coincidem com a versão apresentada em audiência de julgamento não podia o tribunal a quo sustentar as declarações da menor com o referido relatório.

42. A jurisprudência dos nossos tribunais tem tido sobre o tema da prova nos crimes sexuais em que as vitimas são menores, mormente com a apreciação dos indícios que possam ser evidenciados pelas vítimas, o que impõe o recurso a outros meios de prova a fim de se poder confirmar as declarações por elas prestadas.

43. Escreveu-se no Ac. da Rel de Guimarães, 14-04-2010, disponível em www.dgsi.pt, quanto ao critério de apreciação do depoimento da vitima, sendo esta criança, que tal depoimento poderia abalar a presunção de inocência se nele estiverem presentes os seguintes critérios:

a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada de um móbil das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricos de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições

(. ..)“

44. Vejamos então se o depoimento prestado pela vítima no presente caso concreto passa pelo crivo daqueles critérios.

45. Pois bem, sobre o primeiro critério do relatório de avaliação psicológica forense de fls. 518 e ss. é referido que “A avaliação projectiva faz perceber uma criança muito carente do ponto de vista afectivo/relacional, vivenciando intimamente sentimentos de desvalorização/rejeição e apelando á centração de atenção e afectos sobre si, com recurso a estratégias de sedução e manipulação” e ainda “ (...) detectando-se um elevado número de resposta características de um estilo obsessivo.”.

46. O referido relatório descreve a menor com uma personalidade que recorre a estratégias de sedução e manipulação, sendo certo que a descrição fáctica apresentada em julgamento contrasta com as suas anteriores declarações prestadas no decurso das várias perícias que lhe foram feitas e, ainda, do que consta da própria denúncia em que o facto mais gravoso, ou seja, cópula anal, mesmo na perspectiva da tentativa não é referido.

47. Sobre o segundo critério a menor foi objecto de perícia forense, baseado em declarações desta, que não coincidentes com as trazidas a julgamento, a conclusão precípua do de que”‘As lesões descritas a nível anal coadunam-se com as existentes de lesses traumáticas por provável, cópula anal, de acordo com a informação da examinada “

48. Assim sendo, não resulta que sobre o critério em apreciação, possam tais elementos corroborar o testemunho da menor sobre quem teriam sido praticados os crimes de abuso sexual, porque afirma uma probabilidade, sem aquilatar do grau.

49. E, sobre o último dos critérios, caberá dizer que a constante contradição entre o anteriormente relatado e o que foi dito pela menor em audiência de julgamento. Relatos manifestamente contraditórios no que tange aos crimes de abuso sexual como aos crimes de coação.

50. Os mesmos critérios se podem aplicar no que aos crimes de coação diz respeito. Aliás outros meios probatórios que corroborem o depoimento da vítima, não existe em relação crime de coação e não servem para corroborar tal depoimento no caso dos crimes de abuso sexual sobre o qual o tribunal colectivo formulou a sua convicção de facto, no sentido de resultarem provados aqueles concernentes à incriminação do arguido.

51. Assim o Tribunal a quo, salvo do devido respeito, errou na apreciação feita destes factos. A prova produzida era suficiente para evitar uma errada apreciação e contradição insanável da fundamentação, pelo que o Acórdão recorrido padece dos vícios previstos no artigo 410° n°2 al. a) e c) do Código do Processo Penal.

52. Outrossim, para a circunstância de não ser atendida a acima peticionada absolvição do recorrente quanto aos crimes alegadamente por si perpetrados, o que aqui se faz por mera cautela e dever de patrocínio e sem conceber ao quanto acima dito, afigura-se que mal andou o tribunal a quo ao não subsumir a matéria factual dada como provada ao crime de abuso sexual de criança e de coação ambos na forma continuada e ainda no que diz respeito à não suspensão da pena de prisão.

53. O artigo 30° n°1 do Código do Processo Penal define os pressupostos para que estejamos na presença de um crime continuado.

54. Assim, o crime continuado pressupõe, precisamente, a existência de diversas resoluções, só que todas elas tomadas dentro de um quadro exterior que facilita, de forma, considerável, o renovar das sucessivas resoluções.

55. Deste modo, quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontra-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de for, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tomado cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.

56. Face a tal, e tendo em conta a factualidade provada, quer no que diz respeito ao crime de abuso sexual de criança e ao crime de coação, poderemos concluir que se verificam todos os pressupostos para que se esteja na presença de crime continuado de abuso sexual de crianças e de um crime continuado de coação.

57. Na verdade estamos na presença de uma pluralidade de resoluções criminosas, uma realização plúrima de um tipo de crime que protege o mesmo bem jurídico tendo sido executados por forma essencialmente homogénea, no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior.

58. Consequentemente tendo em conta todo o factualismo considerado provado, deve o douto acórdão recorrido ser revogado devendo o arguido ser condenado pela prática de um só crime abuso sexual de criança e um só crime de coacção.

59. O tribunal a quo decidiu, do ponto de vista do recorrente mal, não suspender a pena de prisão aplicada.

60. Da matéria de facto dada como provada resulta que o arguido está familiarmente e socialmente inserido, tem apoio familiar, sendo considerado como um indivíduo trabalhador e responsável.

61. Não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido, ora recorrente, nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, ou posterior ao mesmo, já que não tem averbado no seu registo criminal a prática de outros crimes, decorridos mais de quatro anos sobre a prática dos factos, sendo delinquente primário.

62. Em termos de prevenção geral a reação penal aos factos e a simples ameaça de prisão mostram-se suficientes para que o tribunal a quo tivesse optado pela suspensão da pena de prisão, ainda que condicionada a determinadas regras de conduta.

63. Deste modo, considera o recorrente, que a decisão ora colocada em crise, viola o disposto no artigo 50º do Código Penal.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO

Devem as presentes conclusões proceder e por via disso, deve o recurso obter provimento e ser revogada a decisão recorrida com as legais consequências.

Porém, Vossas Excelências farão JUSTIÇA”

3. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 760.

4. O Ministério Público junto da primeira instância, respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição com os realces):

“CONCLUSÕES

                                                     I
A menor , B... , no período compreendido entre 23 de fevereiro de 2009 e o mês de junho de 2009 , deslocou-se com muita frequência a casa do arguido ; que estava sozinho , por a esposa ter adoecido na sequência do parto e nascimento do filho, G..., ausentando-se com este
                                                    II
Nestas circunstâncias e tal como consta dos factos dados como provados, encontrando-se sozinho em casa com a menor e ofendida , o arguido “ . ..chamou-a pelo menos uma vez , para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis , ao mesmo tempo que se masturbava , ejaculando para cima do corpo da menor , após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado ) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgados e lhe batia
7)- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e em data não concretamente apurada , o arguido já despido , despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido , este agarrou-a , puxou-a na sua direção e tentou introduzir o pénis ereto no ânus da menor
8) Na data do primeiro aniversário do G..., filho do arguido e da F... , a menor disse que ia contar tudo à avó , ao que o arguido empunhando uma faca na mão disse à B... “...ai se tu vais dizer à tua avó
9) - Pelo menos uma vez , em data não apurada, no interior da casa do arguido, este na presença da menor, entre cinco e dez minutos, exibiu um filme, onde uma mulher mexia no pénis de um homem e o arguido dizia “é assim que tens de fazer .“
                                                    III
A fundamentação do acórdão recorrido é clara e concisa , situando não só os factos mas também os elementos de prova que lhe serviram de base para a formação da livre convicção do julgador - art.° 127.º do CPP - em nada fugindo às regras da experiência
                                                    IV
Sendo certo que nos crimes em apreço a versão da ofendida deve merecer sempre especial relevo , o arguido e recorrente apoia-se no alibi construindo um cenário que se não compagina com a versão da , B..., e muito menos a infirma
                                                    V
Buscando a apontada insuficiência e errónea valoração das provas para a decisão de facto, nos depoimentos da sua companheira , F... e na mãe desta , esquece a versão da menor e da sua avó paterna, E....
                                                    VI
O Tribunal entendeu que a provarem-se os factos imputados ao arguido na acusação , poderiam existir mais do que um crime de abuso sexual de criança e mais do que um crime de coação agravada , não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado , “ até porque, a acusação não refere circunstâncias exteriores que facilitassem de algum modo a prática deste comportamento mais do que uma vez
                                                    VII
Assim , considerando não estarem reunidos os pressupostos do crime continuado , a palavra dada ao arguido, nos termos do disposto pelo art.° 358º , n.° 3 , do CPP, reportou-se tão só à possível alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação e só destes
                                                    VIII
O recorrente não explica qual a factualidade diversa da que consta na acusação pela qual foi condenado , pois não existe e , a que existe não configura o quadro da solicitação da mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
                                                    IX
A pretendida reapreciação da prova produzida buscando arrimo quer no depoimento da menor quer da sua avó paterna , testemunha , E... nos termos do disposto no art.° 412.º , n.° 3 , do Código de Processo Penal, perde-se na atomização/segmentação dos mesmos depoimentos , sem atender como deve à prova no seu conjunto
                                                    X
Muito menos se percebe que face aos factos dados como provados no ponto 8 coloque a menor , B... , na sequência de um pontapé e atribuindo este a um movimento reflexo , a dizer que ia contar tudo à avó.
                                                    XI
Tudo ( não um simples pontapé) é o que explica que o arguido empunhando uma faca na mão lhe dissesse “ai se tu vais dizer à tua avó”
                                                    XII
Assim, percebendo muito bem ao que a menor se referia , longe de qualquer movimento reflexo, o único contexto que explica o gesto e as palavras ameaçadoras, num quadro de parentesco muito próximo e de vincados laços afetivos asseverados ao Tribunal pela mesma avó e testemunha , E... , foram os abusos praticados pelo arguido sobre a menor e dados como provados na decisão recorrida
                                         XIII
O recorrente reconhece a localização temporal dos factos dados como provados nos pontos 6 a 9 , igualmente no depoimento da menor , B...:
“As férias do verão eram 3 meses , eu fiquei lá um mês na minha avó e depois foi quando isto aconteceu
                                                    XIV
A defesa - alibi em que o arguido se escuda soçobra perante esta afirmação , sendo certo que corresponde ao período mais prolongado de permanência da menor, B... , junto da avó paterna e é completamente diverso do contexto do nascimento do menor , G... , no dia 23/02/2009
                                                    XV
Por outro lado, os relatos da menor não são, manifestamente contraditórios nem no que tange aos crimes de abuso sexual nem aos crimes de coação de que foi vítima, tendo em consideração a história do evento - alegada penetração anal - e as conclusões do Relatório da Perícia onde o perito médico afirma:
“- As lesões descritas a nível anal coadunam-se com existência de lesões traumáticas por provável , cópula anal, de acordo com a informação da examinada”,  o que asseverou em julgamento
                                                    XVI
A decisão recorrida não sofre, pois, de qualquer contradição insanável na fundamentação e muito menos erro de apreciação - os vícios previstos no art.° 410.º al. a) e c) do Código de Processo Penal.
                                                    XVII
Aceitando que da acusação não constam os factos necessários ao enquadramento das condutas na figura do crime continuado , carece de sentido, face ao disposto pelo art.° 30º do Código Penal , sustentar a existência do quadro da solicitação da mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente “,
                                                    XVIII
Uma vez que não existe nem se afigura concebível tal quadro da solicitação da mesma situação exterior , tendo à sua mercê um ser humano - uma criança de 6 anos de idade e de família muito próxima - o arguido tinha especial obrigação de se abster de qualquer ataque à liberdade de autodeterminação sexual ;com exclusão de qualquer beneficio ou atenuação
                                                    XIX
Isto mesmo vale para dizer que , acompanhando a decisão recorrida , apesar de o arguido e recorrente, além de delinquente primário ,se encontrar familiar e socialmente inserido, sendo trabalhador e responsável, as suas condutas espelham a inexistência de qualquer freio nos seus instintos - apetites e impulsos sexuais com total indiferença pelo sofrimento psíquico e físico causado à menor , B....
                                                    XX
O que afasta não só a prognose favorável do julgador no sentido de considerar provável que a simples ameaça da pena e censura do fato são suficientes para que o arguido não volte a cometer crimes e mas também não basta para satisfazer as exigências de prevenção da criminalidade
                                                    XXI
Não se vê qualquer erro, obscuridade ou contradição em toda a matéria de facto dada como provada, tal como inexiste qualquer falta de fundamentação, geradora de nulidades.
                                                    XXII
Nestas circunstâncias e perante os elementos de prova, no seu conjunto e obedecendo ao princípio da livre apreciação , bem andou o tribunal ao enquadrar as condutas do arguido, condenando-o como autor material de
- dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. , pelo art.° 171.º , n.° 1, do Código Penal,, respetivamente nas penas de dois anos e três anos de prisão,
- um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. , pelo art.° 171.º , n.° 3, al. a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão e
- dois crimes de coação p. e p. pelo art.° 154.º, n.° 1, do Código Penal, nas penas respetivamente de 4 (quatro) e 6 (seis) meses de prisão
Em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
                                                    XXIII
Que se mostra bem doseada e equilibrada.
                                                    XXIV
Não se mostram violados os art.° s 30º ; 50.º,154º, nº 1, 171º nºs 1 e 3, al. a) todos do Código Penal; 374º do CPP e 32.º da Constituição da República Portuguesa ou qualquer outra disposição legal.
                                                    XXV
Merece inteira confirmação o acórdão recorrido.
Assim farão, V.ªs Ex.ªs, JUSTIÇA! “

5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a fls. 807 a 808vº, sufragando a posição evidenciada pelo magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, o arguido respondeu mantendo e reforçando, no essencial, a posição que já havia manifestado no recurso.

7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
No caso vertente, vistas as extensas conclusões do recurso (e não havendo motivos para se ser demasiado exigente num convite ao recorrente para, com o devido formalismo, aperfeiçoar as conclusões tendentes a sinteticamente resumir o alegado na motivação), as questões suscitadas no recurso são as seguintes:
1. Saber se o acórdão recorrido é nulo:
A) por falta de fundamentação/exame crítico da prova (artigo 374º nº 2 e 379º nº 1 a), ambos do Código de Processo Penal);
B) pelo facto do arguido ter sido condenado por factos diversos dos constantes da acusação/pronúncia sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal, em violação do artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal;
2. Saber se há erro de julgamento;
3. Saber se o acórdão recorrido padece dos vícios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal;
4. Qualificação jurídica dos factos: saber se estão verificados os pressupostos do crime continuado.
5. Saber se, a manter-se a condenação, deve ter lugar a suspensão da execução da pena, ainda que condicionada a regras de conduta.
                                         *
Vejamos, desde já, o que do acórdão recorrido consta quanto aos factos provados e não provados, bem como quanto à motivação da matéria de facto (transcrição):

a) factos provados.

1).- A menor B..., nascida a 10/7/2002 é filha de C... e de D... , reside habitualmente em X..., junto da sua mãe, desde a separação ocorrida por volta do ano de 2006 entre os seus progenitores, sendo que desde então, se desloca em vários fins de semana e nos períodos de férias, para casa da avó paterna, E..., sita na (...), Y..., Torres Novas e onde passou a residir o seu pai após a separação.

2).- O arguido é primo do pai da menor e também actual vizinho deste, sendo que desde o ano de 2006, era frequente a menor privar com o arguido e a respectiva companheira.

3).- Por muitas ocasiões e algumas delas sozinho, foi o arguido quem foi buscar a menor a X... para a transportar para casa da avó paterna, mediante solicitação desta, e em virtude de o pai da menor, à data, não ser titular de carta de condução.

4).- Durante o tempo de permanência da menor na casa da avó paterna, era frequente o arguido convidá-la para ir para casa dele.

5).- No período compreendido entre 23 de Fevereiro de 2009 e o mês de Junho de 2009, altura em que a sua companheira E...se encontrava ausente de casa, juntamente com o filho recem-nascido de ambos G..., o arguido sendo próximo da família da menor B..., intensificou o tempo de contacto com esta, sendo nesse período, frequentes as deslocações da menor para casa do arguido.

6).- Entre 23 de Fevereiro de 2009 e Junho de 2009, em data não concretamente apurada, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido em casa deste, o arguido chamou-a pelo menos uma vez, para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, ejaculando para cima do corpo da menor, após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgados e lhe batia.

7).- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e em data não concretamente apurada, o arguido já despido, despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido, este agarrou-a, puxou-a na sua direcção e tentou introduzir o pénis erecto no ânus da menor.

8).- Na data do primeiro aniversário do G..., filho do arguido e da F..., a menor B... disse que ia contar tudo à avó, ao que o arguido empunhando uma faca na mão disse à B... “... ai se tu vais dizer à tua avó”.

9).- Pelo menos uma vez, em data não apurada, no interior da casa do arguido, este, na presença da menor, entre cinco e dez minutos, exibiu um filme, onde uma mulher mexia no pénis de um homem e o arguido dizia “é assim que tens que fazer”.

10).- Em resultado da conduta do arguido descrita no ponto 7).- resultaram para a menor B... as lesões descritas no relatório médico legal junto aos autos a fls 15 a 19 designadamente “vestígios cicatriciais de lacerações que se encontram dispostas ao longo das pregas perianais nos pontos correspondentes às 2 horas, 6 horas e 11 horas do mostrador de um relógio, medindo cada uma delas cerca de dois milímetros de comprimento. A tonicidade do esfíncter encontra-se ligeiramente diminuída”, aí se concluindo que “(...) a totalidade das lesões descritas a nível perianal são compatíveis com a informação prestada pela examinanda (...) as lesões descritas a nível anal coadunam-se com a existência de lesões traumáticas por provável cópula anal (...).

11).- Ao agir do modo descrito em 6).- e 7).- o arguido quis satisfazer os seus desejos sexuais e eróticos com a menor B..., o que conseguiu, explorando a relação de confiança que tinha com a menor e sua família.

12).- O arguido bem sabia que ao agir do modo descrito em 6).- e 8).- intimidava a menor e constrangia-a a nada dizer à sua avó e restante família, assim cerceando a sua liberdade de acção e pretendendo garantir a possibilidade de repetição no futuro de outros e semelhantes abusos na pessoa da menor, o que quis e conseguiu.

13).- O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que ao assim agir incorria em responsabilidade criminal.

14).- O arguido é delinquente primário.

15).- Do relatório social conclui-se que : o processo de desenvolvimento do arguido decorreu num ambiente familiar estável, sendo manifesta a transmissão de regras e valores consonantes com o normativo social, com valorização de práticas educativas e de proximidade entre todos os elementos.

O seu percurso educativo decorreu sem dificuldades. Frequentou o ensino até ao 11º ano. Em termos profissionais trabalhou numa fábrica de álcool, depois foi para Inglaterra onde trabalhou no ramo da restauração. Após regressar a Portugal vai trabalhar para a (...) e posteriormente para os (...) onde se encontra na actualidade.

O arguido é tido como um indivíduo trabalhador, portador de uma conduta recatada e normativa, sendo-lhe reconhecidas competências pessoais e sociais. Pela entidade patronal o arguido é descrito como um bom funcionário, demonstrando responsabilidade e empenho.

Em termos de projectos futuros, o arguido tenciona manter o seu posto de trabalho e voltar a residir com a sua mulher e filho, regressando á anterior morada, uma vez que cumpre a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica em casa dos pais.  

16).- O arguido tem casa própria pela qual paga um empréstimo mensal de 250 €.

O arguido ganha mensalmente cerca de 700 €.

A sua companheira ganha mensalmente 650 €.

Pagam de infantário para o filho G... 200 € por mês.

b) factos não provados:

não se provou que:

-- nesse período e em dia não concretamente apurado, o arguido tivesse pedido à avó da menor que esta deixasse a menor B... pernoitar em sua casa;

-- tivesse introduzido o pénis e que depois de introduzir um dedo na vagina da menor, procurasse introduzir o pénis na vagina;

-- nas circunstâncias referidas em 6).- e 7).- e depois de a menor entrar no quarto, o arguido tenha fechado a porta à chave, guardando-a em local inacessível à menor;

-- uma ocasião, em data não apurada, se tivesse deslocado com a menor a uma sex shop.
c) fundamentação da matéria de facto: os factos acima provados tiveram por fundamento os seguintes meios de prova, ponto 1 pelo que disse a B... quanto á data do seu nascimento (10.7.2002), as testemunhas C... e D... disseram que a B... é sua filha, disseram desde quando estão separados, onde vive cada um deles após a separação e que a menor se deslocava para as Y... para casa da avó paterna E... durante alguns períodos de tempo, porque o seu pai vivia na casa da avó paterna E...; ponto 2 a B... disse que o arguido é primo do seu pai e que ás vezes ia para casa dele e da sua companheira a E...; ponto 3 a E... disse que o arguido foi muitas vezes a X... buscar a B... e foi sozinho; ponto 4 a E... disse que o arguido muitas vezes lhe pediu para deixar a neta ( B...) ir para casa dele arguido, a E... disse que ouviu muitas vezes o arguido dizer à B... para ir para casa dele brincar; ponto 5 a E... disse que após o nascimento do G... filho do arguido e da E... e que ocorreu em 23/2/2009 (fls 168) a E... esteve algum tempo ausente da casa que era residência de ambos e próxima da casa da E..., esta ausência terá correspondido ao período de maternidade, ou parte dele; ponto 6 pelo que disse a B..., que o arguido lhe disse para ela mexer “na pila” e que depois ele se masturbou à frente dela e caiu esperma para cima dela; disse ainda que o arguido lhe disse, que se ela dissesse à avó o que se tinha passado, ele não lhe dava mais salgadinhos e lhe batia; ponto 7 a menor relatou que uma vez o arguido tentou meter o pénis no seu rabo, que ele fez força para entrar, que lhe doeu mas pensa que não entrou; o perito médico, Dr I... ouvido sobre as cicatrizes que refere no seu relatório, disse que as cicatrizes podem ser resultado de tentativa ou de introdução de corpo estranho no ânus; não garantiu ter havido introdução do pénis; ponto 8 a menor relatou que por alturas do primeiro aniversário do G..., o arguido com uma faca na mão lhe disse sic “ai se tu vais dizer à tua avó”; ponto 9 a menor relatou que uma vez na companhia do arguido viu um filme, pensa que era um DVD, durante cerca de 5 a 10 minutos onde uma mulher mexia no pénis de um homem e o arguido dizia –“é assim que tens que fazer”; o relatório pericial pedopsiquiátrico de fls 204 conclui que “não é possível quer por avaliação psicológica, quer pedopsiquiátrica confirmar a veracidade das declarações da menor; no entanto não parecem existir grandes dúvidas que esta criança terá sido vítima de abusos sexuais”; ponto 10 pelo que pode ler-se no relatório de fls 15 a 19 confirmado pelo Dr I... em audiência; pontos 11, 12 e 13 reportam-se ao dolo, ele resulta daquilo que as regras da experiência permitem concluir; na verdade, o dolo pertence à vida afectiva de cada um e é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo possa concluir-se, entre os quais surge, com a maior representação, o preenchimento dos elementos materiais integrantes da infracção; o dolo resulta das presunções materiais, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência (Ac RP de 23.2.83 BMJ 324-620); como diz Malatesta (A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág 172)  “o homem ser racional, naquilo que faz, dirige as suas acções, com vista a alcançar um determinado fim; ora se o fim obtido/querido/e conseguido, foi um ilícito criminal, tudo aquilo que o arguido fez, fê-lo para alcançar aquele fim ilícito”; ponto 14 RC de fls 258; ponto 15 pelo que consta do relatório social; ponto 16 declarações de F....
Os não provados porque nenhuma testemunha a eles se referiu e não há nos autos qualquer outro elemento de prova, nomeadamente documental que permita resposta diferente.

                                                    *
1. Entremos então na apreciação da primeira questão suscitada no recurso (que tem a ver com as invocadas nulidades do acórdão), embora com a alteração da ordem por que tinha sido apresentadas (por uma questão de metodologia prática), e que consiste em saber se o acórdão recorrido é nulo pelo facto do arguido ter sido condenado por factos diversos dos constantes da acusação/pronúncia sem que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal, em violação do artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal.
Alega o recorrente, a acerta altura, que “apesar do tribunal nos termos do artigo 358º nº 3 ter dado a palavra ao arguido, a verdade é que não concretizou em que consistia a alteração da matéria factual que conduziu à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação (…) designadamente quanto aos pontos 6, 7, e 9 dos factos dados como provados em contraponto com os pontos 7º, 8º , 10º e 11º da acusação.”
Desde já adiantamos inexistir razão ao recorrente quanto à nulidade invocada, uma vez que apenas de alteração da qualificação jurídica dos factos acusados se tratou, e não, propriamente, de alteração de factos.
Vejamos o que dispõem os arts 379º nº 1 b), 358º e 359º todos do Código de Processo Penal.
Artigo 379.º
Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença:
a) (…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
Artigo 358.º
Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.
Artigo 359.º
Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.
3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
Teçamos algumas considerações, ainda que muito telegráficas, acerca da alteração substancial e não substancial dos factos.

Como é sabido, o processo penal português tem estrutura acusatória (cfr. artigo 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa), sendo o seu objecto delimitado pela acusação ou pela pronúncia, quando a houver. São os factos descritos nessa peça processual que delimitam o thema decidendum, daí resultando para o arguido a garantia de que, ressalvadas as excepções previstas na lei e dentro dos condicionalismos por esta fixados, não poderá ser julgado e condenado por outros factos que não aqueles de que tomou prévio conhecimento.

Vejamos então os regimes legais da alteração substancial e da alteração não substancial de factos:

Quanto à alteração substancial de factos rege o art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos é, pois, uma alteração dos “factos”, do pedaço da vida que consta da acusação ou da pronúncia. Dessa alteração dos “factos”resulta a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
A alteração não substancial dos factos, representando embora uma modificação dos “factos” que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Quer na situação de alteração não substancial dos factos, quer na da alteração substancial dos factos, o arguido tem o “direito a ser ouvido”, no sentido de lhe dever ser dada oportunidade efectiva de discutir e tomar posição sobre decisões relativas a essas questões, particularmente as tomadas contra ele.
Com efeito, a propósito da alteração não substancial de factos, estabelece o nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal: “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa” (sublinhado nosso).
Esta última norma é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (cfr. o nº 3 do mesmo artigo 358º). Na verdade, qualquer que seja a qualificação jurídica que se faça dos factos trazidos a julgamento, ela jamais implicará uma alteração substancial, na medida em que o objecto do processo se mantém. A propósito do tema, escreve Frederico Isasca (in “Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português”, pag. 107), citando Carnelutti: se o juiz entende que a qualificação dos factos feita pela acusação é errada, ao corrigi-la não modifica os factos mas apenas a sua valoração, acrescentando logo de seguida que entender o contrário seria confundir vinculação temática com qualificação jurídica”.
Por isso, da alteração substancial ou não dos factos, se distingue a alteração da qualificação jurídica dos factos, a que alude o art. 358.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Por fim, importa aqui consignar, repetindo, que o art. 379.º, n.º 1, do Código de Processo Penal , estatui designadamente que, é nula a sentença:
 « b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.» (sublinhado nosso).
Segundo parece dar a entender o recorrente o tribunal a quo procedeu a uma alteração dos factos da acusação/pronúncia sem que tivesse dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 1 do Código de Processo Penal. E para demonstrar essa alteração traz à colação os factos dados como provados sob os pontos 6, 7 e 9 em contraponto com os factos 7º, 8º, 10º e 11º da acusação/pronúncia.
Todavia, salvo o devido respeito por opinião contrária, existe identidade naturalística entre os factos que constavam da acusação/pronúncia e os factos que foram dados como provados na sentença recorrida.
A diferença de factualidade no acórdão recorrido, relativamente à acusação/pronúncia, como passaremos a ver (por comparação entre a acusação/pronúncia e o acórdão) está apenas numa melhor explicitação ou pormenorização dos factos que, tendo por base o que constava da acusação, foram dados como provados.

E para melhor ser feita essa comparação coloquemos na tabela que segue, lado a lado, os factos da acusação/pronúncia (que ficarão à esquerda) e os factos que no acórdão recorrido foram dados como provados (que ficarão à direita), sendo certo que, por uma questão de enquadramento espácio-temporal subjacente aos mesmos teremos, necessariamente, também mencionar o ponto 5º quer da acusação/pronúncia quer dos os factos dados como provados no acórdão recorrido:

Acusação/pronúncia                                                      Acórdão

5º - No período compreendido entre 23 de Fevereiro de 2009 e o mês de Junho de 2009, altura em que a sua companheira E...se encontrava ausente de casa, juntamente com o filho recém-nascido de ambos, G..., o arguido, sendo próximo da família da menor B..., intensificou o tempo de contacto com esta, sendo, nesse período, frequentes as deslocações da menor para casa do arguido.

5).- No período compreendido entre 23 de Fevereiro de 2009 e o mês de Junho de 2009, altura em que a sua companheira E...se encontrava ausente de casa, juntamente com o filho recém-nascido de ambos G..., o arguido sendo próximo da família da menor B..., intensificou o tempo de contacto com esta, sendo nesse período, frequentes as deslocações da menor para casa do arguido.

7º- No período temporal referido em 5° e em datas não concretamente apuradas, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido no interior da casa deste, o arguido chamou-a por diversas vezes para o seu quarto e aí pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, chegando, por uma vez, a ejacular para cima do corpo da menor.

6).- Entre 23 de Fevereiro de 2009 e Junho de 2009, em data não concretamente apurada, quando a menor se encontrava sozinha com o arguido em casa deste, o arguido chamou-a pelo menos uma vez, para o seu quarto e pediu à menor B... que lhe mexesse no pénis, ao mesmo tempo que se masturbava, ejaculando para cima do corpo da menor, após o que lhe disse “se dissesse (o que se tinha passado) à avó ele (arguido) não lhe dava mais salgados e lhe batia.

8º Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e em data não concretamente apurada, o arguido, estando já despido, despiu também a menor e quando a mesma se encontrava inclinada para a frente agarrou-a com força, puxou-a na sua direcção e introduziu-lhe o pénis erecto no ânus e, em seguida e depois de introduzir um dedo na vagina da menor, procurou aí introduzir o pénis, não o tendo conseguido.

7).- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e em data não concretamente apurada, o arguido já despido, despiu também a menor e quando esta se encontrava de costas para o arguido, este agarrou-a, puxou-a na sua direcção e tentou introduzir o pénis erecto no ânus da menor.

10°- Depois dos contactos descritos em 7° e 8°, e sempre que a menor pretendia regressar para casa da avó paterna, o arguido agarrou, nessas diversas ocasiões, numa faca e, dirigindo-se à menor, avisou que a mataria, caso a mesma contasse à avó o que tinha acontecido entre ambos.

11°- Era frequente o arguido, quando estava no interior da sua casa e na presença da menor, exibir filmes pornográficos na televisão existente no seu quarto.

9).- Pelo menos uma vez, em data não apurada, no interior da casa do arguido, este, na presença da menor, entre cinco e dez minutos, exibiu um filme, onde uma mulher mexia no pénis de um homem e o arguido dizia “é assim que tens que fazer”.

Por outro lado, e com interesse para a questão, importa ainda referir que no acórdão recorrido, entre outros, foi dado como não provado que o arguido:

“-- tivesse introduzido o pénis e que depois de introduzir um dedo na vagina da menor, procurasse introduzir o pénis na vagina;”

Ou seja, da comparação entre os supra referidos factos da acusação/pronúncia com os factos dados como provados, constata-se:

- que os factos dados como provados representam um “minus” em relação aos da acusação/pronúncia (caso do acusado facto 7º e o dado como provado facto 8, conjugado com o mencionado facto não provado);

- que o acrescento na parte final do provado facto 6º, comparado como o acusado facto 7º, apenas pode ser visto, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto se passou entre arguido e ofendida, tanto mais que o ponto 10 da acusação já aludia a um desses contextos e à alegada “ameaça” de morte caso a menor fosse dizer à avó;

- que os pormenores mencionados no facto 9º da matéria de facto dada como provada, em comparação com o acusado facto 11º, sem relevo para a decisão da causa (mormente ao nível do respectivo enquadramento jurídico) apenas podem ser vistos, e não mais do que isso, como uma melhor concretização/explicitação do que naquele contexto se passou entre arguido e ofendida, sendo certo que até, de forma evidente, apontam no sentido de uma menor frequência das situações de exibição de filmes e, necessariamente, de um menor período de tempo dessa visualização.
Ora, na parte em que os factos dados como provados representam um “minus” em relação aos que constavam da acusação, não estamos, sequer, perante alteração não substancial de factos. Com efeito, quando a essa questão podemos citar, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 03/04/1991 (in CJ Ano XVI, Tomo II, pag 17) que diz expressamente: “Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação ou da pronúncia, para efeitos do artigo 358º do Código de Processo Penal, quando os factos considerados provados representam um minus relativamente àqueles”. E no mesmo sentido, o mesmo STJ, no seu acórdão de 12/11/2003 (proc. 1216/03-3ª SASTJ, nº 75, 93), volta a dizer: “Não há alteração, substancial ou não, dos factos da acusação, quando os factos provados representam um minus relativamente àqueles, não sendo sequer necessária, nestes casos, a comunicação a que alude o artigo 358º do Código de Processo Penal”.

E neste mesmo sentido também se pronunciam, entre outros, o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no  "Comentário do Código de Processo Penal", Univ. Católica Editora, 4ª Edição, 2011, a páginas 930 e o Cons. Maia Gonçalves, no “Código de Processo Penal anotado”, Almedina, 17ª Edição, 2009, pág. 815.

Por outro lado, como tivemos oportunidade de dizer, os pequenos acrescentos ou menções constantes nos demais factos dados como provados e postos em crise pelo recorrente, apenas servem para concretizar/contextualizar/explicitar/precisar os termos da acção típica neles constante, sendo que dos mesmos não se descortina o necessário “relevo para a decisão da causa” (exigido no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal) para que se impusesse a comunicação a que alude tal preceito legal. São pois acrescentos ou pormenores que, em si mesmos, não assumem relevo para a decisão da causa, mas que apenas servem para esclarecer/pormenorizar/concretizar/enquadrar os demais factos da acção típica em que se inserem.

E quanto a esta questão tem interesse trazer à colação o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23.05.2012 (in www.dgsi.pt, relator Jorge Jacob) quando a dado passo refere:Se o tribunal da condenação dá como assentes factos que já constavam da acusação ainda que conferindo-lhes um encadeamento diverso, desde que este lhes não retire a identidade naturalística, não ocorre qualquer alteração relevante da matéria de facto, pelo que nem sequer se torna necessário proceder à comunicação pressuposta pela alteração não substancial. Do mesmo modo, se o tribunal descreve os mesmos factos por outras palavras, ou confere maior pormenor ao relato apenas para precisar os termos da acção mas sem acrescentar nada de novo à descrição da acção típica relevante, não ocorre alteração substancial ou não substancial da matéria de facto. A bitola para se aferir da relevância da alteração fáctica será sempre a identidade do objecto do processo e o fair trial pressuposto por um processo penal justo, que não são afectados quando nada de novo se acrescenta à descrição da acção típica.

Por isso, e porque nenhuma das divergências assinaladas pelo recorrente se enquadra no âmbito no nº 1 do artigo 358º do Código de Processo Penal, não era exigível, nem se justificaria qualquer comunicação de tal alteração pretendida pelo ora recorrente.

E embora esta questão não tenha sido directamente colocada pelo recorrente, da análise dos autos, constata-se que o arguido vinha pronunciado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 30.°, n.ºs 2 e 3, 79.°, 171.°, n.ºs 1 e 2, e 177.°, n.º 1, alínea b), do Código Penal e de um crime de coacção agravada, na forma continuada. previsto e punido pelos artigos 30.°, n.ºs 2 e 3, 79.°, 154.°, n.º 1, e 155.°, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, sendo que após a realização da audiência de julgamento veio a ser condenado: por dois crimes de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 1 do Código Penal; por um crime de abuso sexual de crianças p p pelo artº 171 nº 3 al a) do Código Penal; e por dois crimes de coacção p p pelo artº 154 nº 1 do Código Penal

Todavia, em relação a essa questão, e por considerar que os factos imputados ao arguido na acusação/pronúncia deveriam ter uma qualificação jurídica diversa daquela que constava da acusação pronúncia, como consta da acta de fls. a 712 a 714, previamente à leitura do acórdão, o Mmo Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho:

O Ministério Público acusa o arguido A... da prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças e um crime continuado de coação agravada.

Após a produção de toda a prova o Tribunal entende que, e a provarem-se os factos imputados ao arguido, poderão existir mais do que um crime de abuso sexual de criança, e mais do que um crime de coação agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação não refere circunstancias exteriores que facilitassem de algum modo a prática deste comportamento mais do que uma vez.

Assim sendo, poderá ocorrer uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

Ao abrigo do disposto no artigo 358°, n.º 3 do Código Processo Penal, dá-se a palavra ao Ilustre Mandatário do arguido para requer o que entender por bem. Notifique.”

                                                      *

E dessa mesma acta imediatamente consta o seguinte que se passa também a transcrever:

“Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo sido dada a palavra ao Ilustre Mandatário nos termos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal.

                                                      */*/*

Neste momento, pelo Ilustre Mandatário do arguido foi dito nada ter a requerer.

                                                      */*/*

Após, o Mm. Juiz Presidente procedeu à leitura do acórdão (…)”.

Muito embora, convenhamos, o atrás citado despacho não seja um primor de clareza ou transparência quer quanto ao concreto número de crimes que podiam estar em causa quer quanto às disposições legais atinentes aos mesmos, o certo é que, com tal despacho, o Mmo Juiz Presidente do Tribunal a quo chamou a atenção da defesa para a eventualidade de alteração da qualificação jurídica dos factos que eram imputados ao arguido na acusação/pronúncia, considerando que podiam existir mais do que um crime de abuso sexual de criança e mais do que um crime de coacção agravada, não estando assim o comportamento do arguido integrado no conceito de crime continuado, até porque, a acusação/pronúncia, efectivamente, não mencionava circunstâncias exteriores que, de algum modo, pudessem facilitar prática deste comportamento mais do que uma vez.

E apesar dessa, quanto a nós, algo deficiente clareza do despacho, o certo é que, depois de lhe ter sido dada a palavra nos termos do artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal, pelo Ilustre Mandatário do arguido foi dito nada ter a requerer.

Esta afirmação de que nada ter a requerer para além de se traduzir a ausência de reacção perante tal despacho, também implicitamente demonstra que tal despacho foi devidamente compreendido pois, caso tal não ocorresse, certamente que seria pedida a palavra para pedir esclarecimentos quanto ao sentido e/ou alcance do despacho que acabava de ser proferido.

Ora, vista a referida acta, nada foi requerido nem nenhum esclarecimento foi pedido por parte de qualquer sujeito processual, mormente pela defesa do arguido.

E se algo não percebia deveria, logo, ter solicitado esclarecimentos.

 Percebendo ou não, o ilustre mandatário do arguido prescindiu de um direito que sabia qual era.

Ou seja, e no que à comunicação da possível alteração da qualificação jurídica dizia respeito, ao tomar aquela posição e não arguindo qualquer nulidade ou irregularidade nem pedindo qualquer esclarecimento por forma a obter despacho mais esclarecedor, deixou o ora recorrente precludir o seu direito de impugnar tal despacho, sendo que o recurso de tal despacho – a haver nulidade (que sempre já estaria sanada pelo decurso do tempo) - deveria ter sido interposto de imediato, nos termos do disposto no artigo 120º, nº 3, al. a) do Código de Processo Penal, e ser objecto de recurso interlocutório.

Por isso, por ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 358º nº 3 do Código de Processo Penal (conforme o demonstra a mencionada acta) e por nada ter sido requerido pela defesa na sequência da aventada alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação/pronúncia, sob este prisma, também não ocorre a causa de nulidade a que se reporta o artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal.

Em conclusão, não se verificando a apontada nulidade a que se reporta o artigo 379º nº 1 b) do Código de Processo Penal, terá necessariamente que improceder esta pretensão do recorrente.

B) Passemos agora a analisar se o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação/exame crítico das provas (artigos 374º nº 2 e 379º nº 1 a), ambos do Código de Processo Penal);
A sentença, expressando a decisão do tribunal (quando este conhece a final do objecto do processo e que toma a forma de acórdão quando proferida por um tribunal colectivo – cfr. artigo 97º nºs 1 a) e 2 do Código de Processo Penal), começa por um relatório ao qual se segue a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam as demais disposições citadas sem menção do origem), culminando com o dispositivo que contém, entre outros itens (mencionados nas alienas do nº 3 do mesmo artigo 374º), as disposições legais aplicáveis [ nº 3 alínea a)], a decisão condenatória ou absolutória [nº 3 alínea b)], a indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime [ nº 3 alínea c) ].
Nos termos do artigo 379º do mesmo diploma legal, é nula a sentença que [n.º 1, alínea a)] não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º (e antes sumariamente enunciadas), que [n.º 1, alínea b)] condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º, ou quando [n.º 1, alínea c)] o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; [n.º 2] as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.
A nulidade, por falta de fundamentação, é a prevista nos arts. 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP. Omissão que contraria também a exigência do art.º 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Suscitada que foi a questão da nulidade da sentença/acórdão por falta de fundamentação e de exame crítico das provas, debrucemo-nos então mais detalhadamente sobre tal questão.
A fundamentação é conatural aos actos decisórios, despachos e sentenças. As decisões finais ou despachos que não sejam de mero expediente, mas com repercussão em direitos dos destinatários, só se legitimam e podem ser compreendidas com a respectiva fundamentação. Por isso se diz que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático. Acresce que só a fundamentação possibilita o exercício de um efectivo direito de recurso.
A imposição do dever de fundamentação, tem assento constitucional no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa no qual é dito que: ”As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, sendo que o artigo 97º n.º 5 do Código de Processo Penal nos diz que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
E concretizando o dever de fundamentação, relativamente aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal que: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência - ver, neste sentido, o Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 - 5.ª Secção.
A sentença cumpre o seu dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários são esclarecidos sobre a base jurídica fáctica das reprovações contra eles dirigidas. Segundo o enunciado da Lei não se pode abdicar de uma enunciação, ainda que sucinta mas suficiente, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão  (vide Ac. do STJ de 29/01/2007, proc. 3193/06, 3ª secção, in Sumários de Ac. do STJ).
As exigências de fundamentação das decisões constituem um factor de legitimação do poder jurisdicional, visando a desejável adesão do seus destinatários directos e da comunidade em geral, e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção. Aquele nº 2 do artigo 374º não se satisfaz nem se basta, no que se refere aos meios de prova em que se baseou a decisão proferida sobre matéria de facto, com a sua enumeração. Não basta mostrar os meios de prova através do seu elenco – é preciso demonstrar por que razão se chegou a determinado resultado. Exige-se, por isso mesmo, o seu exame crítico, com indicação dos motivos pelos quais foram valorados no sentido em que o foram, ou seja, as razões que estão na base da convicção formada, de modo a permitir avaliar se o processo de formação dessa convicção obedeceu às regras da lógica e da experiência e está de acordo com os conhecimentos científicos.
Já no âmbito da versão do nº 2 do artº 374º do CPP anterior à da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, onde não constava expressamente a actual exigência do «exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal», Germano Marques da Silva afirmava ser unânime o entendimento da doutrina no sentido de que «esta exigência de fundamentação (...) não se satisfaz com a mera enumeração dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, nem sequer daqueles que serviram para fundamentar a decisão que fez vencimento» (Curso de Processo Penal, III, 1994, página 289).
Mais explícito, Marques Ferreira, no âmbito da mesma versão da norma, escreveu:
«Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (...) nem os meios de prova (...), mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência» (Meios de Prova, Jornadas de Direito Processual Penal, 1991, páginas 229-230).
No mesmo sentido decidiu o Tribunal Constitucional, por exemplo, nos acórdãos nºs 172/94, DR, II série, de 19/07/1994, onde se escreveu que «a decisão sobre matéria de facto tem de estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado», e 680/98, DR, II série, de 05/03/1999, que julgou inconstitucional a norma do nº 2 do art. 374º «na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões em matéria de facto se basta com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância».
Actualmente, face à nova redacção do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal (decorrente da Lei nº 59/98 de 25 de Agosto), com o aditamento à redacção do preceito “exame crítico das provas” – é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas (ver neste sentido também o Ac. do STJ de 07/07/1999, in CJ, Acs. do STJ. VII, tomo 2 pag 246).
Foi esta referida Lei nº 59/98 de 25 de Agosto que aditou tal exigência do exame crítico das provas, sendo certo que a revisão de 2007, operada através da Lei nº 48/2007, de 29 de Setembro, não introduziu alterações nesta matéria.
Pois bem, o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareçaquais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma decisão e não outra”, conforme resulta do Ac do STJ de 01/03/2000, in www.dgsi.pt).
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, tal exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo essencial que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que ser viu de base ao respectivo conteúdo da mesma.
A fundamentação da decisão tem de claramente expressar o processo de raciocínio que conduziu o juiz a proferir a decisão, isto é, para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do artigo 374º nº 2 reclama do julgador o exame crítico das provas que consiste na sua descrição e no respectivo juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte probatório.
Sendo entendido, como é, que o princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no art. 127º, do Código de Processo Penal, não se confunde com arbitrariedade ou juízos puramente subjectivos, sem qualquer ponto de contacto com a realidade, sendo balizado pelas regras de experiência comum, da lógica ou regras científicas, o exame crítico da prova é imposto pela necessidade de evidenciar, explicitar e reconstituir a matéria racional que conduziu à formação da convicção do tribunal, designadamente a credibilidade atribuída a cada meio probatório produzido na audiência e respectivos fundamentos, levando-o a proferir decisão em determinado sentido, sendo insuficiente para o efeito a mera referência ou enumeração dos mesmos, verificando-se nulidade não só nas hipóteses de total omissão de motivação mas também quando a fundamentação da convicção do tribunal for insuficiente para efectuar uma reconstituição do iter que conduziu a considerar cada facto provado ou não provado.
Assim, acompanhados por abundante jurisprudência do STJ, a motivação não terá que revestir a forma de uma “assentada” das declarações e depoimentos produzidos em audiência mas deverá ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superar o exame do processo lógico ou racional, que lhe subjaz, pela via de recurso, e, extraprocessualmente, deverá assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e na própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade – vide Ac. do STJ de 18.12.1991, BMJ, nº 412, Pag. 383.
Havendo exteriorização clara e inequívoca do raciocínio seguido pelo tribunal na formação da convicção e sendo aquele consentâneo com as regras de normalidade do acontecer, terá que concluir-se pela adequação e suficiência do exame crítico da prova, independentemente da sua maior ou menor extensão ou profundidade de análise.
Pois, é unanimemente aceite que a aplicação do direito ao caso concreto pressupõe sempre uma dimensão subjectiva, um papel criador do juiz, mas a motivação impossibilita a conversão da subjectividade em voluntarismo, individualismo ou arbítrio, buscando o reconhecimento da decisão através de uma objectivação consistente na capacidade de se impor aos outros, por via da persuasão e razoabilidade.
Em resumo, “ a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constituiu a enunciação das razões de ciência reveladas e extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (de um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (cfr., neste sentido, Ac do STJ de 31/10/2007, Processo nº 3280/07, 3ª Secção).
E na sequência do acabado de referir, é unanimemente aceite que a aplicação do direito ao caso concreto pressupõe sempre uma dimensão subjectiva, um papel criador do julgador, mas a motivação impossibilita a conversão da subjectividade em voluntarismo, individualismo ou arbítrio, buscando o reconhecimento da decisão através de uma objectivação consistente na capacidade de se impor aos outros por via da persuasão e da razoabilidade; ou seja, ao fim e ao cabo tudo com a finalidade de procurar uma decisão compreensível e compreendida, legítima e legitimada com total transparência para poder e dever ser legitimamente imposta e/ou acatada.
                                                     
Tecidas esta considerações e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada no acórdão recorrido, afigura-se-nos manifestamente insuficiente a fundamentação que a mesma contém, quanto ao processo de raciocínio levado a cabo pelo tribunal a quo, no que toca aos factos provados, isto é, a motivação da matéria de facto evidencia uma patente falta de exame crítico, já que não é possível reconduzir ou acompanhar racionalmente as razões probatórias que determinaram a formação da convicção pelo tribunal a quo, constatando-se uma enunciação de meios probatórios sem se dizer qual a sua relevância (em termos de análise crítica dos mesmos) para a demonstração dos concretos factos provados.
Na realidade, no acórdão recorrido, em sede de fundamentação da decisão em matéria de facto (motivação), e salvo o muito devido respeito por quem o elaborou, em vários pontos podemos encontrar apenas o resumo daquilo que, por algumas testemunhas (em especial pela menor B...) foi afirmado durante a audiência de julgamento e uma referência a documentos, sendo que em relação às testemunhas ali mencionadas não foi evidenciado/demonstrado o porquê, ou melhor, o raciocínio do julgador que levou a dar como provados determinados factos e não outros e a mencionar os depoimentos de umas testemunhas e não de outras, a que acresce que, de sobremaneira, a total ausência de demonstração/concretização da credibilidade ou motivos para ter dado credibilidade ou assentado/formado a sua convicção no depoimento das testemunhas ali referidas e não em outras.
Há pois uma completa ausência de exame crítico das provas.
Não se vislumbra qual o raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo tribunal a quo.
Entre outras questões, e a título de exemplo, qual o motivo pelo qual o tribunal, no essencial, levou a formar a sua convicção no que a “ B... disse…“, no que “disse a B...…”, no que a “ E...disse…” ou no que a “menor relatou…”, ou até, em relação ao ponto 16 refere “ponto 16 declarações de F...”?
Desde logo em relação a estas testemunhas, fica-se sem saber concretamente qual a razão/justificação/motivo por que o tribunal formou a sua convicção com base no que disseram ou declararam as referidas testemunhas. Os seus depoimentos foram credíveis? Foram prestados de forma a garantir essa mesma credibilidade e/ou isenção. Se o foram, em que termos se pode sustentar/valorar/demonstrar essa credibilidade, porventura em contraponto com o depoimento quiçá divergente, ou mesmo antagónico, de outras testemunhas que pudessem ter deposto sobre os mesmos factos ou apresentado uma diferente versão sobre os mesmos factos? Desde logo sobre estas questões atinentes ao exame crítico da prova é omisso o acórdão recorrido.
É que, importa não esquecer que o já referido “dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto”, exige que o tribunal explicite o processo lógico e racional que seguiu na apreciação da prova que fez (que seja transparente, que se perceba o juízo decisório que fez sobre as provas submetidas à sua apreciação, explicando os motivos pelos quais determinadas provas e não outras - por exemplo de sentido contrário - o convenceram).
E, quando está em causa o conhecimento amplo da matéria de facto (como sucede neste caso quando no recurso também é invocado o erro de julgamento), assume particular importância, o dever de fundamentação da sentença, previsto no nº 2 do art. 374º do CPP.
Neste caso, lendo e relendo a fundamentação de facto do acórdão sob recurso, não se percebe (nem se descortina) qual foi raciocínio seguido pelos julgadores para se apoiarem ou convencerem no que disseram ou relataram as referidas testemunhas.
As referências genéricas feitas a propósito das declarações das testemunhas assinaladas, não permitem deduzir qual foi o raciocínio do julgador, nem tão pouco equivalem ao exame crítico das provas.
Em suma: quando omitiu o exame crítico das provas produzidas em audiência de julgamento, o julgador não explicitou o processo de valoração que deveria ter feito, não se percebendo, por isso, o respectivo juízo decisório.
Daí que, este tribunal, fique sem saber qual foi o processo lógico e racional que o tribunal a quo seguiu na apreciação da prova que fez para chegar à fixação da matéria de facto que teve por assente.
Ora, o Tribunal da Relação só estará habilitado a fazer um juízo sobre se as provas indicadas pelo recorrente impõem ou não decisão diversa da recorrida (art. 412º, nº 3, alínea b), do CPP) se conhecer cabalmente o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal a quo se formasse no sentido dos factos que deu como provados. Sem que tal trajecto intelectual seja vertido na sentença/acórdão é impossível ao tribunal de recurso sindicar se o tribunal a quo violou ou não os limites da livre apreciação da prova ou as regras da experiência comum na sua apreciação.
Do que acima se expôs já se percebe que, sem o referido exame crítico das provas produzidas e na falta de enunciação do juízo decisório sobre as provas apreciadas pelo tribunal a quo fica condicionado o exercício do direito de recurso e impossibilitada a própria sindicância pelo tribunal superior, nomeadamente, quando é discutida a decisão sobre a matéria de facto ou ainda quando a mesma é impugnada nos termos do art. 412º, nº 3 e nº 4 do CPP.
Por conseguinte, olvidando o acórdão recorrido o exame crítico das provas exigido pelo nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, por força do que dispõe o artigo 379º nº 1 a) do mesmo diploma legal, o referido acórdão é nulo por falta de fundamentação nos termos supra referidos, pelo que se impõe a prolação de novo acórdão (pelo mesmo tribunal a quo) no qual seja suprida a assinalada falta de exame crítico das provas.
Prejudicado fica, pois, o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.

                                                      *

III. DISPOSITIVO

Nestes termos, decide-se declarar a nulidade parcial do acórdão do tribunal a quo, na parte relativa à motivação acima descrita, devendo proceder-se a elaboração de nova decisão final que observe o supra exposto, quanto à fundamentação da decisão de facto.

Sem custas.

                                          *


 (Luís Coimbra - Relator)

 (Cacilda Sena)