Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3245/22.9T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CASO JULGADO
INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 576.º, N.º 2, 577.º, AL.ª I), 580.º, N.º 1, E 581.º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 27.º, N.º 1, AL.ª A), E 235.º DO CIRE
Sumário:
I – O processo de insolvência inicia-se com uma fase (de feição declarativa) que se destina a verificar se existe situação de insolvência e a declarar (ou não) tal insolvência e durante a qual o processo se desenrola apenas entre o devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é este a apresentar-se à insolvência.

II – Nessa a fase processual, em que se insere a sentença declaratória da insolvência, a única parte na ação é a própria devedora, se, como no caso, foi ela quem veio requerer a (sua) declaração de insolvência.

III – A existência de ação anterior de insolvência em que havia outros sujeitos, por a insolvência ter sido requerida por uma credora contra a aqui requerente/devedora e marido, cuja insolvência também foi declarada (quanto a ambos), não obsta à verificação positiva de identidade de sujeitos para efeitos de caso julgado, quanto àquela aqui requerente, que ficou vinculada ao caso julgado formado pela anterior decisão que decretou a sua insolvência.

IV – Em tal situação, é a causa de pedir de cada uma das ações que permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter são idênticos aos da anterior ação.

V – A pretensão é idêntica à já obtida na ação anterior se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido, situação em que ocorre caso julgado, mesmo que se verifique um agravamento da impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas (por via da existência de créditos vencidos posteriormente), determinando o indeferimento da petição da nova ação de insolvência, incluindo o pedido de exoneração do passivo restante.

Decisão Texto Integral: Apelação nº 3245/22.9T8LRA-A.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Leiria - Leiria - Juízo Comércio - Juiz 2

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Rua ..., ..., ..., veio requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, alegando, em resumo:

- Que não tem qualquer bem ou rendimento além do salário que aufere no valor de 705,00€;

- Que, em meados de 2018, correu termos outro processo de insolvência tendo recorrido a um empréstimo junto de seu irmão, BB, no valor de 60.000,00€ (valor reclamado pelos credores hipotecários) para pôr termo à aludida insolvência;

- Que, tendo ficado acordado o pagamento desse empréstimo em prestações mensais de 250,00€, não conseguiu cumprir o acordado;

- Que tem como credores o Instituto da Segurança Social, I.P; CC e DD e BB;

- Que o valor das obrigações decorrentes do seu passivo é superior aos rendimentos que aufere, não possuindo meios financeiros para solver as suas dívidas, encontrando-se, por isso, em situação de insolvência.

Notificada para juntar diversos elementos que estavam em falta, a Requerente juntou, designadamente, a relação dos seus credores nos seguintes termos:

1- Autoridade Tributária e Aduaneira, com sede na Travessa ... -2410-008 ..., débito no montante de 2.600,84€ (dois mil seiscentos e oitenta e quatro cêntimos), com vencimento em 31-08-2022.

2- Instituto da Segurança Social, I.P - Processo executivo, com plano prestacional 4920700, débito no montante de 2.020,00€ (dois mil e vinte euros), com vencimento em 01-02-2022.

3- EE e DD, Processo executivo n.º ...4..., que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., ... - Juízo de Execução - Juiz ..., débito no montante de 5.200,00€ (cinco mil e duzentos euros), com vencimento em 23-04-2014.

4- BB, casado com FF, residentes na no Largo ... – ... - ..., débito no montante de 32.550,00 € (trinta e dois mil, quinhentos e cinquenta euros), com vencimento em 26-05-2016.

Na sequência de despacho que assim o determinou, foi junta aos autos certidão da petição inicial, sentença de declaração de insolvência, lista de credores reconhecidos, sentença de verificação e graduação de créditos, auto de apreensão e mapa de rateio do proc. nº 1804/18.... que correu seus termos no Juiz ... do Juízo de Comércio ..., de onde resulta, designadamente:

- Que H..., S.A. requereu a declaração de insolvência da aqui Requerente e marido GG, tendo sido declarada tal insolvência por sentença proferida em 15/04/2019;

- Que, no âmbito desse processo de insolvência, foi apreendido o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...20;

- Que, no âmbito desse processo, foi reconhecido um crédito de H..., S.A. e um crédito da AT.

- Que, no âmbito desse processo, foi apresentada, em 20/07/2021, proposta de rateio final, onde se consignou como receita o produto da venda do imóvel apreendido e os termos da sua distribuição pelos credores.

Na sequência desses factos, foi proferida sentença – em 04/10/2022 – que declarou a insolvência da Requerente AA.

Discordando dessa decisão, os credores EE e mulher vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A – Porque, consta da p.i. de apresentação à insolvência e respectivos documentos que a acompanham, dos requerimentos apresentados pela Insolvente em 01.09.2022 (Ref. 43151932) e em 26.09.2022 (Ref. 43363097), das certidões das peças processuais acima identificadas do processo de insolvência nº 1804/18.... e da D. Sentença de que ora se recorre, que:

1- A ora Insolvente conjuntamente com o seu marido, foram declarados insolventes, por sentença proferida em 15.04.2019, no âmbito do processo nº 1804/18...., que correu seus termos no Juízo do Comércio ... - Juízo ... do Tribunal Judicial da Comarca ...,

2- insolvência esta que, lhe foi peticionada pela sociedade H..., S.A.,

3- e na qual, a ora Insolvente não peticionou a exoneração do passivo restante,

4- No âmbito daquele processo, foi apenas apreendido para a massa insolvente um único bem: prédio urbano, inscrito na matriz da União das Freguesias ..., ..., ... e ... sob o Art. ...55º e descrito na ... CRP ... sob o nº ...20,

5- tendo o mesmo sido encerrado no dia 27.10.2021, após conclusão do seu rateio final;

6- No dia 23.08.2022, a ora Insolvente apresentou-se à insolvência com pedido de exoneração do passivo restante, apresentação esta, a que deu origem aos presentes autos;

7- O único activo indicado pela Insolvente, é o seu vencimento mensal base no valor de 705,00€, que aufere ao serviço da sociedade E..., S.A.;

8- Indica ainda os seguintes credores:

a)- Autoridade Tributária e Aduaneira, com um crédito no montante de 2.600,84€, vencido em 31.08.2022;

b)- - Instituto da Segurança Social, I.P, com um crédito no montante de 2.020,00€, com vencimento em 01.02.2022 - conforme já referido em 5º, nº 8, alínea b) e 12º, alínea b) das presentes alegações, a data de vencimento deste crédito, nunca poderá ser o dia 01.02.2022, uma vez que esta é a data em que lhe foi deferido o pedido de pagamento da sua divida em prestações, o que significa que a data de vencimento deste crédito é a que a Insolvente foi citada do processo executivo contra si instaurado para proceder à restituição das prestações que lhe foram indevidamente pagas;

c)- EE e DD, com um crédito no montante de 5.200,00€, com vencimento em 23.04.2014;

d)- BB, com um crédito no montante de 32.550,00€, vencido a 26.05.2016,

B - deveria a Mma. Senhora Juíza "a Quo", ao invés de ter decretado a sua insolvência, ter indeferido liminarmente o pedido de declaração de insolvência, por considerar verificar-se a excepção dilatória de caso julgado,

C – uma vez que existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, entre a presente acção e o anterior processo de insolvência.

D – Porquanto:

- Há identidades de sujeitos, porque apesar dos créditos "ut supra" referidos, não terem sido reclamados, nem reconhecidos no anterior processo de insolvência, são considerados sujeitos processuais, dado que os mesmos já existiam à data do anterior processo de insolvência;

- Há identidade do pedido e da causa de pedir, porque a pretensão da Recorrida, ao ver declarada a sua insolvência nos presentes autos, é a mesma da já obtida na anterior acção, uma vez que, o passivo invocado nos presentes autos, já existia no anterior processo e a Insolvente também não adquiriu qualquer outro património, antes pelo contrário, razão porque a declaração da sua insolvência nos presentes autos, mais não é mais não é, do que a mera repetição ou reprodução da anterior insolvência.

F – Na verdade, aquilo que está verdadeiramente em causa nos presentes autos (já que a Insolvente não tem qualquer interesse real em ver novamente declarada a sua insolvência), é o pedido de exoneração do passivo restante, que a mesma não formulou no anterior processo e que pretende agora usufruir.

G - Contudo, porque a situação de insolvência que é invocada nos presentes autos e relativamente à qual se pede a exoneração do passivo, é a mesma que fundamentou a sua declaração de insolvência no âmbito do anterior processo,

H- era nesse processo que, deveria ter formulado o pedido de exoneração do passivo restante - saliente-se que o passivo invocado pela Insolvente nos presentes autos (sobretudo os créditos de maior valor, o dos ora Recorrentes e do irmão da Insolvente e certamente o do da Seg. Social) já existiam aquando do anterior processo de insolvência, logo, não é pelo facto dos mesmos não terem aí sido reclamados e reconhecidos, que não ficariam abrangidos pela exoneração concedida nesse processo.

I - Deverá assim, revogar-se a D. sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção de caso julgado e consequentemente declare nulo todo o processado.

A Insolvente apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência do recurso e formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se está (ou não) configurada a excepção de caso julgado.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1º- A Requerente nasceu a .../.../1963.

2º- A requerente é casada com GG, sob o regime da comunhão de adquiridos, mas encontra-se separada.

3º- A Requerente trabalha na sociedade E..., S.A. auferindo uma remuneração base de €705,00.

4º- A Requerente indica os seguintes credores:

- Autoridade Tributária e Aduaneira, com um crédito no montante de 2.600,84€;

- Instituto da Segurança Social, I.P com um crédito no montante de 2.020,00€;

- EE e DD com um crédito no montante de 5.200,00€;

- BB com um crédito no montante de 32.550,00€;

5º- A requerente alega que não é titular de quaisquer bens.

Importará ainda atender aos seguintes factos que estão documentados nos autos:

a) Por sentença proferida em 15/04/2019 no âmbito de processo de insolvência instaurado por H..., S.A., que correu termos sob o n.º 1804/18...., foi declarada a insolvência da aqui Requerente e de seu marido GG.

b) No âmbito desse processo de insolvência, foi apreendido o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...20 e foi reconhecido um crédito de H..., S.A. e um crédito da AT, tendo sido apresentada, em 20/07/2021, proposta de rateio final, onde se consignou como receita o produto da venda do imóvel apreendido e os termos da sua distribuição pelos credores.


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IV.

A questão suscitada no presente recurso prende-se com a excepção de caso julgado, sustentando os Apelantes que a insolvência não poderia ser declarada – como foi – por se mostrar configurada aquela excepção, uma vez que a Requerente/devedora já havia sido declarada insolvente no âmbito de processo que correu termos anteriormente (o processo n.º 1804/18...., acima referido).

Pensamos que assiste razão aos Apelantes.

Vejamos porquê.

É sabido que, ainda que também se possa impor na sua vertente positiva – por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas – o caso julgado também se impõe na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada. E, enquanto excepção que obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada (cfr. artigos 576º, nº 2, e 577º, alínea i), do CPC), o caso julgado pressupõe, conforme disposto no art.º 580.º, n.º 1, a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, pressupondo, portanto, a verificação da tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir) que é exigida pelo citado artigo 581º.

Ora, no caso, pensamos estar verificada essa tríplice identidade que é pressuposto do funcionamento da excepção do caso julgado.

A identidade de sujeitos ocorre, segundo dispõe o citado artigo 581º, nº 2, quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Relativamente a esta matéria, convém precisar que o processo de insolvência – nos termos em que está legalmente configurado – inicia-se com uma fase (a que poderemos chamar declarativa[1]) que se destina a verificar se existe situação de insolvência e a declarar (ou não) tal insolvência e durante a qual o processo se desenrola apenas entre o devedor e o credor requerente ou apenas com a intervenção do devedor quando é este que se apresenta à insolvência – cfr. artigos 27º a 35º – e, se terminar com uma sentença que indefira o pedido de declaração de insolvência, não haverá intervenção de outros credores. Assim, independentemente da qualificação da posição jurídica dos credores que virão a ter intervenção na fase processual posterior à declaração de insolvência – em que o processo se assume como execução universal com intervenção dos credores da insolvência –, a verdade é que esses credores não são partes na fase inicial do processo, com ressalva, naturalmente, daqueles que, nessa qualidade, tenham requerido a declaração de insolvência do devedor.

Assim e sendo essa a fase processual em que nos encontramos quando analisamos – como nos é pedido no presente recurso – a sentença que declarou a insolvência, é seguro afirmar que a única parte nesta acção é a própria devedora, uma vez que foi ela que veio requerer a declaração de insolvência e, tendo sido parte no processo inicial (onde também figurava como devedora), não há dúvida que existe identidade de sujeitos para efeitos de caso julgado.

É certo que na acção anterior havia outros sujeitos, já que a insolvência havia sido requerida por uma credora e também havia sido demandado o marido da aqui Requerente (cuja insolvência também era peticionada e também foi declarada).

Tal não obsta, porém, à constatação da identidade de sujeitos para efeitos de caso julgado.

Na verdade, a identidade de sujeitos que é pressuposto do funcionamento da excepção de caso julgado não corresponde a uma identidade física e numérica e, portanto, a mera circunstância de existirem outros sujeitos na anterior acção que não têm intervenção na posterior não obsta ao funcionamento da excepção de caso julgado entre os sujeitos que tiveram intervenção em ambas as acções. A identidade de sujeitos que é exigida para o funcionamento da excepção de caso julgado, significa tão só que o caso julgado apenas tem eficácia e apenas pode aproveitar em relação às pessoas (determinadas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica e não em termos físicos) que figuraram como partes na acção em que ele se formou, sendo, em princípio – e ressalvadas as excepções decorrentes da lei – ineficaz relativamente a terceiros, a quem não pode aproveitar nem prejudicar. 

Assim, porque a (única) parte nesta acção – a Requerente/devedora – também foi parte na anterior acção, tendo ficado vinculada ao caso julgado formado pela decisão ali proferida, impõe-se concluir que, no que à mesma respeita, existe a identidade de sujeitos que é pressuposto do funcionamento da excepção de caso julgado, não lhe sendo permitido – por a tal obstar o caso julgado – requerer nova declaração da sua insolvência (depois de esta ter sido declarada na anterior acção) caso essa pretensão (pedido e respectiva causa de pedir) seja idêntica à que foi formulada na acção anterior.

Concluindo-se – como concluímos – pela identidade de sujeitos, resta agora saber se também existe identidade de pedido e de causa de pedir.

Segundo o disposto no art.º 581.º do CPC, há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

É indiscutível que o efeito jurídico que se pretende obter nesta acção é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter – e foi efectivamente obtido – na anterior acção: a declaração de insolvência.

 Mas, conforme se disse no Acórdão de 03/12/2019, proferido no processo 562/19.9T8FND.C1 (relatado pela ora Relatora e subscrito pela ora 1.ª Adjunta)[2] – o que aqui se reafirma –, essa identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente e ocorrida em qualquer outro período temporal; ainda que formalmente idênticos, os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos. Será, portanto, a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta acção é idêntica àquela que já foi obtida na anterior acção.

Dispondo o artigo 3º, nº 1, que se considera em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência – ou seja, o facto jurídico de onde emerge essa pretensão – corresponderá ao complexo factual do qual resulta essa impossibilidade: o activo e o passivo vencido do devedor e demais circunstâncias que possam relevar para apurar se o devedor está ou não impossibilitado de cumprir aquelas obrigações. E ainda que o pedido de declaração de insolvência – quando formulado por qualquer legitimado que não seja o devedor – possa fundamentar-se apenas na verificação de um dos factos que são enunciados no art.º 20.º do CIRE, a causa de pedir não deixará de corresponder à concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que é evidenciada/presumida pelo facto em questão (sendo certo que, como é sabido, os factos em questão correspondem a factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência).

A causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponderá, portanto, à concreta impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas que se configure em determinado momento, seja ela invocada mediante alegação expressa dos factos que a evidenciam ou mediante alegação de um facto que, nos termos do art.º 20.º, a faz presumir.

Poder-se-á, portanto, dizer – como se disse no Acórdão de 03/12/2019 acima citado – que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo activo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse activo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento.

Importa, no entanto, clarificar a referida conclusão (como, aliás, já se fez em Acórdão – também relatado pela aqui relatora – proferido em 25/01/2022 no âmbito do processo n.º 660/21.9T8FND.C1), nos termos que passamos a reproduzir

É evidente que – como se disse no primeiro Acórdão – a pretensão de ver declarada a insolvência será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se o passivo existente for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Isso não significa, porém, que qualquer acréscimo de activo ou qualquer alteração do passivo deva conduzir necessariamente à conclusão de que estão em causa pretensões diferentes; importará ainda saber, nesse caso, se a alteração existente tem ou não a relevância bastante para concluir que está em causa uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do primeiro processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência. Ou seja, para que se possa concluir pela existência de uma nova e diferente situação de insolvência será necessário que a impossibilidade (agora existente) de satisfazer o passivo vencido seja uma realidade diferente daquela que existia aquando do primeiro processo por se reportar a um passivo e a um activo que, não obstante possam ser parcialmente coincidentes com os que existiam anteriormente, apresentam alterações com relevância bastante para concluir que não estamos perante um mero prolongamento ou agravamento da situação de insolvência que já foi declarada, mas sim perante uma situação de insolvência nova e diferente por se reportar a passivo e activo que divergem, em termos relevantes, daqueles que existiam aquando da primeira declaração de insolvência.

Aplicando essas considerações ao caso em análise, impõe-se concluir que a situação de facto invocada pela Requerente, na petição inicial, não traduz uma situação de insolvência diferente daquela que já foi declarada no processo n.º 1804/18...., sendo certo que não existiu qualquer alteração do activo e do passivo que tenha a relevância bastante para concluir que estamos perante uma nova e diferente situação de insolvência; a impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas que é agora invocada pela Requerente é a mesma que determinou a declaração de insolvência no processo referido, existindo apenas um agravamento dessa impossibilidade, configurando-se, por isso, identidade de pedido e de causa de pedir em ambas as acções.

Concretizemos.

A primeira acção foi instaurada por uma credora – a H..., S.A. – e o pedido de insolvência dos devedores nela formulado baseava-se nos factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, invocando-se o incumprimento das obrigações emergentes dos contratos celebrados com essa credora e a existência de penhoras a favor do MP, Segurança Social e Fazenda Nacional. 

Ao contrário do que aconteceu na anterior, a presente acção – que foi instaurada pela própria devedora – não se fundamenta no incumprimento do crédito da H..., S.A. (que não é aqui invocado) e não se fundamenta nos factos previstos nas alíneas a) e b) do referido art.º 20.º (nem o poderia ser, uma vez que o devedor não pode invocar esses factos para fundamentar o pedido de declaração da sua insolvência). O pedido aqui formulado fundamenta-se nos seguintes factos que traduzem a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas: a existência de um passivo do qual são credores o ISS, EE e DD e BB (cujos valores e datas de vencimento veio posteriormente indicar conforme se referiu supra), a inexistência de qualquer património ou rendimento, além do salário mensal de 705,00€ e a consequente impossibilidade de liquidar aquele passivo.

Essas divergências factuais no fundamento de cada uma das acções não equivalem, contudo, a diferentes causas de pedir.

Com efeito, apesar de a primeira acção se fundamentar nos factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do citado art.º 20.º (assentes, sobretudo, na falta de cumprimento das obrigações perante a H..., S.A.), a causa de pedir corresponderá, em bom rigor – conforme se disse supra –, à concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que era presumida pelo facto em questão (sendo certo que os factos em questão correspondem a factos-índices ou presuntivos da situação de insolvência) e essa impossibilidade (e consequente situação de insolvência) é a mesma que vem agora invocada pela Requerente.

Ainda que o crédito da H..., S.A. (que era invocado na primeira acção) não seja agora invocado (parte dele foi pago no âmbito da primeira insolvência, admitindo-se que o restante também tenha sido pago), a verdade é que a concreta impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que era indiciada pelas circunstâncias do incumprimento desse crédito reportava-se a todo o passivo que, então, existia e uma parte desse passivo – bem como a impossibilidade de o satisfazer – continua agora a ser invocado pela Requerente para fundamentar o pedido de insolvência e tal não poderá deixar de significar que, não obstante a redução do passivo e a redução do activo (tendo em conta que o activo existente foi vendido no âmbito do primeiro processo), a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que, à data, existia, não foi ultrapassada em momento algum (nada se alegou nesse sentido) e ainda perdura, sendo essa mesma impossibilidade que continua a ser agora invocada pela Requerente para fundamentar a sua pretensão, sendo certo que não existiu qualquer alteração do activo e do passivo que tenha a relevância bastante para concluir que estamos perante uma nova e diferente situação de insolvência em relação àquela que foi declarada no processo n.º 1804/18.....

No que diz respeito ao activo, não existiu qualquer acréscimo que possa ser liquidado e utilizado para satisfação dos direitos dos credores em termos de conferir utilidade a um novo processo de insolvência e que, como tal, tivesse aptidão para caracterizar a situação de insolvência hoje existente como realidade nova e diferente daquela que determinou o primeiro processo. Na verdade, a Requerente declara não possuir quaisquer bens ou rendimentos além do salário que aufere no valor de 705,00€ que, como parece evidente, não tem relevância. Por outro lado, apesar de dizer – nas respectivas contra-alegações – que, após a primeira declaração da insolvência, adquiriu o quinhão hereditário por óbito dos seus pais (cujo valor se desconhece), a verdade é que – como alegou na petição inicial – já não é titular desse quinhão e, portanto, não percebemos a relevância desse facto, sendo certo que o alegado acréscimo desse activo não terá sido suficiente – e já não o poderá ser – para satisfazer o seu passivo vencido e para ultrapassar a situação de insolvência em que se encontrava e foi declarada em 2019. 

O mesmo acontece com o passivo.

Na verdade, a grande maioria do passivo agora relacionado pela Requerente já existia à data da anterior declaração de insolvência. É o caso do crédito de EE e DD e o crédito de BB, no valor global de 37.750,00€. Por outro lado, a existência de créditos vencidos posteriormente – o crédito do ISS (no valor de 2.020,00€) e o crédito da ATA (no valor de 2.600,84€) – não basta, só por si, para concluir que estamos perante uma situação de insolvência nova e diferente da que anteriormente foi declarada. Na verdade, a maioria do passivo agora relacionado já existia à data da anterior declaração de insolvência e tal não poderá deixar de significar que a impossibilidade de o satisfazer que determinou a primeira declaração de insolvência ainda se mantém porque o activo então existente – e o que, eventualmente, tenha sido adquirido posteriormente - não permitiu a sua integral satisfação. A existência de novo passivo – que veio acrescer ao anterior e cujo valor nem sequer é significativo no contexto global do passivo que já existia – não tem relevância e aptidão para conferir à actual impossibilidade de satisfação do passivo um qualquer carácter de novidade e diferença relativamente à impossibilidade que existia e que fundamentou a primeira declaração de insolvência. A impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas e a consequente situação de insolvência que existia naquela data mantém-se e perdura actualmente e o mais que se pode dizer é que essa impossibilidade se agravou.  Não está em causa, portanto, uma realidade de facto diferente daquela que ocorria aquando do primeiro processo que configure uma situação de insolvência distinta e que, como tal, possa justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência; a situação de insolvência que é agora invocada pelo Requerente – traduzida na impossibilidade de satisfação das obrigações vencidas, tendo como referência o concreto passivo e activo actualmente existentes – é a mesma que existia aquando da primeira declaração de insolvência e é um mero prolongamento desta.

Concluimos, portanto, em face de tudo o exposto, pela identidade de sujeito, pedido e causa de pedir em ambas as acções e, consequentemente, pela existência de caso julgado. A impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que é agora invocada pela Requerente já existia aquando da primeira acção e a situação de insolvência emergente dessa impossibilidade já foi declarada pela sentença aí proferida em 2019 e, portanto, a devedora – ali declarada insolvente e vinculada ao respectivo caso julgado – não pode, por tal lhe ser vedado pela excepção de caso julgado, vir pedir nova declaração de insolvência. Tal pretensão só seria admissível e viável se ela se fundamentasse numa realidade fáctica diferente que configurasse uma situação de insolvência distinta (porque se reportava a momento temporal distinto e envolvia passivo ou activo diferentes e não coincidentes com os que existiam à data da anterior declaração de insolvência) e, como vimos, não é isso que acontece na situação dos autos.

Acrescente-se apenas que, ocorrendo a excepção de caso julgado em relação ao pedido de insolvência, o pedido de exoneração do passivo restante também não poderá ser admitido, uma vez que, como resulta do disposto nos artigos 235º e segs., a exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor, situação que aqui não se verifica uma vez que, conforme referimos, ocorre a excepção de caso julgado relativamente ao pedido de declaração de insolvência.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, revogar a sentença que declarou a insolvência da devedora AA, julgando-se verificada a excepção de caso julgado e indeferindo-se, com esse fundamento e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 27.º do CIRE, a petição inicial.


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V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a sentença que declarou a insolvência da devedora AA, julgando-se verificada a excepção de caso julgado e indeferindo-se, com esse fundamento e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 27.º do CIRE, a petição inicial.
Custas a cargo da Apelada sem prejuízo do apoio judiciário que lhe venha a ser concedido.
Notifique.

                              Coimbra, 24 de janeiro de 2023

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                    





[1] Seguindo a terminologia adoptada por Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 15.
[2] Disponível em http://www.dgsi.pt.