Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
522/01.6TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
PRESO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
RESIDÊNCIA
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32º CRP, 114º Nº 1, 119º C), 122º Nº 1, 196º Nº 3 CPP
Sumário: Tendo a notificação do arguido da data designada para julgamento sido enviada para a morada que indicara no termo de identidade e residência, mas estando este nessa altura detido à ordem do Estado Português na sequência de um pedido de extradição formulado às autoridades brasileiras, não cumpriu a notificação a sua função, o que importa a anulação do julgamento e do subsequente processado com ele relacionado.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



Por acórdão proferido nos autos supra identificados, decidiu o tribunal:

- Condenar o arguido JM..., enquanto autor de seis crimes de falsificação de documento, previstos e punidos pelo artigo 256º, nº1, alínea c) e nº3, do Código Penal (na redacção vigente à data da prática dos factos, isto é, na anterior à introduzida pela Lei nº59/2007, de 04/09), nas penas de um ano de prisão, um ano de prisão, dois anos de prisão, um ano e cinco meses de prisão, um ano e cinco meses de prisão e um ano e cinco meses de prisão;

- Absolver o arguido da prática desses crimes de falsificação na forma prevista e punida pelo artigo 256º, nº1, alínea a) e nº3, do Código Penal;

- Condenar o mesmo arguido, pela prática de dois crimes de burla previstos e punidos pelos artigos 217º e 218º, nº1, do Código Penal (na citada redacção), nas penas de cinco meses de prisão por cada um deles;

- Condenar o arguido, pela prática de quatro crimes de burla previstos e punidos pelos artigos 217º e 218º, nº2, alínea a), do mesmo normativo legal, nas penas de dois anos e dez meses de prisão, dois anos e dois meses de prisão, dois anos e quatro meses de prisão e dois anos e quatro meses de prisão.

- Efectuado o cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso no qual apresentou as seguintes conclusões (transcrição):



1 - Nas alíneas B) a G) foi dado como provado, e tais factos são indesmentivelmente atestados pelo teor dos documentos respectivos, que as Letras cujas assinaturas como aceitante se apresentam "falsificadas" se destinaram a reforma, a qual é em absoluto inconciliável com a apresentação a desconto mencionada no artº 23° e com a existência de entrega de quantias por parte do Banco ao seu cliente (arguido);


2 - Do exposto, resulta uma contradição insanável entre o dado como provado nas alíneas B) C) D) E) F) e G) e o constante dos artigos 23° e 25° do Douto Acórdão quanto ao desconto e à entrega de quantias ao arguido - ora, tal contradição não pode deixar de ser resolvida dando como assente o constante das alíneas B) a G), em face também dos dados fornecidos pelo processo, tendo o Acórdão em apreço incorrido em erro notório na apreciação da prova - com a consequência de não ser dada como não provada a existência de desconto e a entrega de quantias, factos em que assentou a decisão recorrida para dar como preenchidos os tipos legais de crime (pags. 16-17 ou fls. 901-902) e cuja falta põe em crise não só o fundamento da decisão como o preenchimento dos tipos legais de crime;


3 - Observado o Acórdão constata-se que os 6 documentos aqui em apreço se referem a reforma de Letras e não a Letras Originárias.


Tratando-se de reformas, e tendo as novas letras sido objecto de falsificação da assinatura do aceitante, a consequência é que a operação de reforma não produz efeitos;


No quadro da reforma, mesmo ocorrendo a falsificação, a Instituição bancária já recebeu parte do valor em débito e continua titular do direito sobre a Letra originária;


Mesmo que o aceite inicial fosse logo falso, é certo que a reforma não colocou o banco em situação pior do que aquela que já tinha e que o prejuízo ocorreu no momento da falsificação da letra originária e não da nova letra para reforma;


Por todo o exposto, com a entrega das letras descritas na acusação ao banco, em instância de reforma, o arguido não provocou qualquer prejuízo para os bancos e não os burlou, nessa época - a burla, a ter existido (mas disso não cura o presente processo), ocorreu no momento inicial dos descontos (de cada desconto);


O crime de burla pressupõe, desde logo, a intenção de obter um enriquecimento ilegítimo ou de causar um prejuízo e, no caso em apreço, tal intuito nunca se observou, justamente por a situação de reforma ser em absoluto insusceptível de obter um tal resultado.


À luz da mais singela experiência comum, tendo em consideração que os aceitantes são avisados pelos bancos para pagamento das letra em vencimento, não é minimamente verosímil que o arguido viesse a utilizar documentos que sabia serem falsificados para proceder, imagine-se, a pagamentos de valores de 2.000.000$00, 1.000.000$00, 1.000.000$00, 1.000.000$00, 1.000.000$00 e 1.000.000$00 referente às reformas das 6 letras constantes do Douto Acórdão - daí não se poder dar como provado que o arguido ao apresentar esses títulos, para reforma, junto das instituições bancárias tivesse conhecimento que as assinaturas aposta no lugar do aceite fossem falsificadas, se é que o são.


Por outro lado, tratando-se de situação de reforma de títulos já descontados, mesmo a ter existido falsificação, resulta da natureza da operação que ela não é compatível com o intuito de prejudicar e/ou obter enriquecimento, justamente porque, como já se sublinhou, nas reformas o arguido pagou e o banco recebeu e, intuitos que não conduzissem a estes resultados não seriam susceptíveis de serem atingidos -


Deste modo, o Tribunal "a quo" ao condenar o arguido pela pratica 6 crimes de falsificação de documento previsto e punido pelo art° 256, nº 1 alínea c) e n° 3 do C. Penal, e 6 crimes de burla previsto e punido 217° e 218 nº l e n° 2 al. a), com base na prova produzida, infringiu o disposto nesses mesmos artigos uma vez que os factos consumados a eles não se subsumem e ainda violou o are 127 do C. P. Penal, porquanto, e com o devido respeito pelo Tribunal recorrente, tal condenação não pode proceder face às regras da experiência comum, por os factos aí constantes não serem verosímeis face as mesmas regras, e aos factos que ele próprio deu como assentes.


4 - O recorrente no presente Acórdão ora recorrido, foi condenado pela prática de 6 crimes de falsificação de documento e seis crimes de burla pelo tribunal " a quo" por Acórdão de 19 de Dezembro de 2008


5 - O Douto Acórdão foi proferido com base na prova produzida em sede de audiência de julgamento que se realizou em sessão única no dia 28 de Novembro de 2008.


6 - Do exposto no Douto Acórdão provou-se que:


- O arguido não compareceu na audiência de julgamento, embora tenha prestado termo de identidade e residência.


- Não identificou devidamente o rol de testemunhas, apesar de haver sido convidado a fazê-lo, pelo que o seu rol não foi admitido.


- Que o arguido indicou a morada no seu termo de identidade e residência - Rua X...., Brasil.


- Não foi o arguido quem recepcionou a notificação da data de audiência de julgamento ( Cfr fls 853 dos autos)


.Em 23 de Agosto de 2007, a pedido do Estado Português o arguido ficou em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional Y...na Cidade Z....


A partir desta data - 23 de Agosto de 2007, nunca mais o arguido recebeu qualquer notificação do Tribunal ora recorrido.


Em 28/11/2008, procedeu-se ao julgamento no Tribunal ora recorrido com a ausência do arguido


Isto é o Estado Português, solicitou a prisão preventiva do arguido, sabia da sua concretização e, em simultâneo, a Justiça Portuguesa julgava o arguido na sua ausência, sem que o mesmo tivesse conhecimento de tal facto pela simples razão de se encontrar preso


Aliás, o aviso de recepção da notificação que marcava data para a audiência de julgamento para dia 10/11/2008, e datado de 21/10/2008, foi enviado para a sua morada constante do T.I.R., e terá sido, presume-se, assinado pelo porteiro do condomínio, que nunca o fez chegar ao estabelecimento prisional onde se encontrava o arguido.


Na verdade, o arguido desde que foi preso em 23 Agosto de 2007, nunca mais recebeu qualquer notificação do Tribunal" a quo", desconhecendo, de todo, as datas para a realização da audiência de julgamento, ou de outras de que devesse ter tido conhecimento.


Motivo pelo qual o arguido não compareceu à audiência de julgamento nem aperfeiçoou o rol de testemunhas conforme havia sido requerido pelo tribunal" a quo"


Além de que, o seu mandatário que também desconhecia ao tempo a sua prisão, veio a renunciar ao mandato muito antes da audiência de julgamento, tendo sido nomeado defensor oficioso, que, pelos motivos acima aduzidos, nunca com ele contactou.


O arguido encontra-se a cumprir pena no estabelecimento prisional da Guarda desde 2009


7 - Constituição da Republica estabelece no seu art 32° nº 1 uma clausula geral de garantia a conferir ao arguido, instituindo que " O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo e recurso" especificando no seu n °2 em que consistem essas mesmas garantias.


Uma delas é o direito de presença do arguido na audiência de julgamento, que apenas pode ser afastado em casos excepcionais


Por sua vez o art° 20° nº 4 da Constituição também se assegura que " Todos têm direito a que uma causa em que intervenham sejam objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo"


A noção de processo equitativo tem igualmente consagração na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (C.E.D.H), através do seu art° 6°, segundo o qual


"Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente 0.0 ", referindo-se o seu nº 3 que


" O acusado tem no mínimo os seguintes direitos: Dispor do tempo e dos meios necessários para preparação da sua defesa" (b)), a "Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação" d») o que faz incutir que o mesmo tem direito de estar presente no decurso da audiência de julgamento


Isto significa que, mormente no âmbito do processo penal, que o acusado deve dispor de um processo equitativo, o que só é possível se lhe forem conferidas as devidas oportunidades para o mesmo se poder defender, não o colocando, de forma directa ou indirecta, numa posição de desvantagem face aos seus oponentes.


Este direito a um processo equitativo, implica um tratamento leal de todos os sujeitos processuais, mormente do acusado, por parte do tribunal conferindo-se a este a possibilidade de proceder a um efectivo controlo dos procedimentos que lhe dizem respeito de modo a assegurar todas as garantias de defesa.


Por outro lado, resulta do art° 119° al. c) que " A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos que a lei exigir a respectiva comparência" é uma nulidade que assume natureza insanável.


Trata-se de resto de um dos seus direitos processuais gerais, tal como decorre do art° 61 ° nº 1 alínea a), onde se diz que" O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, dos de: Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disserem respeito"


Um desses casos por imposição do art° 332° nº 1, do CPP, é precisamente a presença do arguido na audiência de julgamento, muito embora se ressalve as situações contempladas no art° 333°, nº 1 e 2 e 334° nº 1 e 2


Tais excepções, surgiram da necessidade de estabelecer uma concordância prática entre o direito de assegurar ao arguido as suas garantia de defesa, no caso a sua presença na audiência de julgamento, com premência de um Estado de Direito Democrático em realizar a justiça através dos Tribunais, sendo ambas matrizes constitucionais, consagradas respectivamente nos art 32° e 202° da CRP.


Foi isso que levou o legislador, com a Lei Constitucional n° 197, através do seu art° 15° , a aditar o já referido nº 6 ao art° 32° da CRP, preceituando que" A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais incluindo a audiência de julgamento"


Urna dessas situações em que se permite o julgamento na ausência do arguido é segundo o citado art° 333° nº 1, quando o mesmo "regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o inicio da audiência" sendo certo que" o presidente torna as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o inicio da audiência


8 - No caso em apreço, e corno se pode constatar da acta de audiência de julgamento o Tribunal " a quo" não tornou as necessárias providência para que o arguido fosse presente a julgamento, pois que o mesmo, nessa ocasião, encontrava-se preso num estabelecimento prisional no Brasil a fim de ser extraditado para Portugal a pedido do Estado Português.


Acresce que, quando foi expedida a notificação com a data de julgamento para a sua residência, o arguido já se encontrava preso, motivo pelo qual o mesmo só poderia comparecer em tribunal mediante comunicação deste ultimo às entidades competentes para a sua apresentação.


É isso que se infere por maioria de razão do disposto nos art° 111 ° nº 1 al b), 112° e 114. todos do C.P.P.

Juntou parecer que se transcreve:

…/…

Respondeu o Ministério Público defendendo a manutenção da decisão recorrida.


O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.


Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.


No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal não houve resposta.


Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.


Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.
É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).
Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:
- Nulidade resultante de o julgamento ter decorrido sem que o arguido tenha sido notificado para o mesmo
- Vícios da sentença
- Integração jurídica dos factos

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

“A)


1. O arguido e sua mulher, MF…, desde Setembro de 1997, eram os únicos sócios de Y…, Lda., cuja gerência esteve atribuída a ambos e, a partir de Abril de 1999, passou a pertencer apenas ao primeiro.


2. Essa sociedade teve sede na Rua …, ..., em Coimbra; por decisão transitada em julgado em 25/09/2000, foi declarada a sua falência.


3. Em data não concretamente apurada, situada entre o ano de 1996 e os primeiros meses do ano de 1998, entre a referida empresa Y…, Lda., representada pelo arguido, e a sociedade XX…, Lda., com sede na Marinha Grande, representada pelo seu então sócio e gerente, foi estabelecida uma relação comercial, que envolveu a emissão de uma letra de câmbio, aceite pela sociedade XX…, Lda. e assinada por aquele seu gerente.


B)


4. Posteriormente, com data de 02/11/1998, foi emitida uma outra letra de câmbio, na qual foi aposta a quantia de Esc.2.000.000$00 e a data de vencimento de 02/01/1999; nela figura como sacador o arguido e como aceitante XX…, Lda.; sobre o carimbo com a menção do nome desta empresa, seguido da indicação “a gerência”, aposto no local destinado à assinatura do aceitante, foi manuscrito o nome P..., por pessoa diversa deste e que não foi possível identificar.


5. Esse título destinou-se a reformar uma outra letra, no valor de Esc.4.000.000$00, foi entregue no Banco ... e não foi pago na data do seu vencimento.


C)


6. Com data de 06/11/1998, foi preenchida uma outra letra, com a importância de Esc.2.000.000$00, com data de vencimento de 06/01/1999.


7. O arguido apresentou-a no Banco ..., para reforma de uma outra letra, no valor de Esc.3.000.000$00.


8. Dessa letra consta como sacador o arguido e, no local destinado à assinatura do aceitante, foi aposto o nome manuscrito de PJ..., por pessoa não identifica e sem o conhecimento ou consentimento deste.


9. Tal letra não foi paga na data do seu vencimento.


D)


10. Com data de 09/11/1998, sem o conhecimento ou o consentimento de PJ..., foi emitida uma letra de câmbio, da qual constava a importância de Esc.10.000.000$00, como data de vencimento 02/03/1999 e em que figurava como sacadora Y…, Lda.


11. Nessa letra, sobre o carimbo da referida sociedade Y…, Lda., a gerência, encontra-se aposta uma rubrica; no local destinado à assinatura do aceitante, foi aposto o nome manuscrito PJ..., por indivíduo que não possível identificar.


12. Assim preenchida, o arguido apresentou essa letra a desconto numa agência de Coimbra do ..., S.A.; dado não haver sido paga na data do seu vencimento, foi lavrado protesto em 07/07/1999, no Primeiro Cartório Notarial de Coimbra.


E)


13. Datada de 14/12/1998, foi emitida uma outra letra de câmbio, no valor de Esc.3.000.000$00 e vencimento em 14/02/1999, que o arguido entregou no Banco ..., para reforma de outra letra, esta no montante de Esc.4.000.000$00.


14. Daquela letra consta, como sacadora, Y..., Lda.; como aceitante, figura a empresa XX…, Lda., sobre cujo carimbo, do qual consta ainda a menção “a gerência”, foi aposto, por pessoa não identificada, o nome manuscrito P....


F)


15. Com data de 29/01/1999, foi preenchida uma outra letra de câmbio, no valor de Esc.4.000.000$00, com vencimento em 29/03/1999, para reforma de uma outra letra, no valor de Esc.5.000.000$00, a qual foi entregue pelo arguido no Banco ....


16. Nessa letra, figura como sacadora Y..., Lda. e como aceitante PJ..., cujo nome manuscrito consta do local destinado à assinatura do aceitante.


17. Essa letra não foi paga integralmente na data do seu vencimento,


G)


18. Com data de 07/03/1999, foi emitida uma letra de câmbio, no valor de Esc.4.500.000$00 e com vencimento em 10/06/1999, para reforma de uma outra letra no montante de Esc.5.500.000$00, da qual figurava como sacadora Y..., Lda. e, no local destinado à assinatura do aceitante, foi colocado o carimbo de XX…, Lda., “a gerência” e, sobre o mesmo, foi aposto, por pessoa não identificada, o nome manuscrito P....


19. O arguido entregou esse título no Banco ..., não o tendo pagado integralmente na data do seu vencimento.


H)


20. XX…, Lda. e PJ... foram instados, pelas instituições bancárias portadoras das aludidas letras, a pagar as quantias por elas tituladas que ficaram em dívida, que, no total, perfaziam cerca de Esc.20.000.000$00.


21. PJ... e a empresa XX…, Lda., a partir de data não concretamente apurada, deixaram de conseguir obter financiamentos junto de instituições bancárias.


I)


22. Os nomes manuscritos P... ou PJ... constantes das letras acima referidas em B), C), D), E), F) e G), datadas, respectivamente, de 02/11/1998, 06/11/1998, 09/11/1998, 14/12/1998, 29/01/1999 e 07/03/1999, nos locais destinados à assinatura do aceitante, não foram apostos pelo punho daquele, mas antes por outra pessoa, que não foi possível identificar.


23. O arguido, ao apresentar aqueles títulos, para desconto, junto das instituições bancárias acima identificadas tinha conhecimento desse facto, bem como que os mesmos não tinham subjacente qualquer relação comercial.


24. Actuou com o intuito de fazer crer aos funcionários das mencionadas instituições bancárias que aquelas letras tinham sido assinadas por PJ... (nuns casos, em seu nome e, nas outras situações, como gerente da aludida sociedade XX..., Lda.) e que a aposição daquelas assinaturas correspondia à vontade de realizar o aceite das mesmas letras de câmbio.


25. Procurou, desse modo, obter junto das aludidas instituições bancárias a entrega das quantias em dinheiro tituladas por aquelas letras, o que conseguiu, as quais não reembolsou na sua totalidade.


26. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei.


J)


27. Do certificado de registo criminal do arguido consta o seguinte:


- Foi condenado, no âmbito do processo comum nº30/00.2TATND do 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, por sentença proferida em 23/02/2002, enquanto autor de crime de ameaça, praticado em 01/11/1999, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de €5, a qual se encontra extinta pelo pagamento;


- Foi condenado, por acórdão proferido, em 21/12/2006, no domínio do processo comum nº121/00.0TACBR da 2ª Secção da Vara Mista do Tribunal Judicial de Coimbra, pela prática, em 1999, de 28 crimes de burla qualificada e de 43 crimes de falsificação de documento, na pena única de nove anos de prisão.”

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):

“Não se provaram quaisquer outros factos constantes da acusação ou da contestação, com relevância para a decisão da causa, designadamente, que:


a) - Tenha sido o arguido a preencher as letras acima mencionadas, em sede de factos assentes, e, designadamente, que tenha sido ele a apor nelas a assinatura de PJ... ou pedido a “alguém” que o fizesse;


b) - A pessoa que apôs, nessas letras, o nome manuscrito PJ... ou P... tenha procurado imitar a assinatura que, habitualmente, era feita por este;


c) - Da letra referida em D) conste como aceitante XX…, Lda.;


d) - O arguido haja assinado o seu nome, nessa letra e na letra mencionada em E), sobre o carimbo da sociedade Y..., Lda.;


e) - Esteja pendente no Tribunal da Comarca de Coimbra uma execução, instaurada contra PJ..., para pagamento da letra com o valor de Esc.10.000.000$00, sacada por Y..., Lda. e datada de 09/11/1998;


f) - O valor total das quantias tituladas pelas letras que não foi pago pelo arguido ascenda a €25.500,00;


g) - Tenha sido, exclusivamente, em virtude do comportamento do arguido que PJ... e a empresa XX..., Lda. ficaram com “aponte no sistema informático dos bancos” e se hajam visto impedidos “de obterem financiamentos e efectuarem outras operações bancárias”;


h) - Quando residia em Portugal, o arguido haja desenvolvido e mantido actividade empresarial como sócio e sócio-gerente de diversas empresas e assim tenha estabelecido “ligações com variadíssimas pessoas ligadas ao meio empresarial e financeiro”;


i) - Seja pessoa de grande dinamismo;


j) - Não se haja aproveitado das suas amizades e relações, nomeadamente, a do queixoso, em benefício próprio;


l) - Seja falso que o arguido tenha feito constar o nome do queixoso/ofendido de letras que usava na sua actividade empresarial, sem o conhecimento ou consentimento deste;


m) - Seja falso que tenha forjado a assinatura daquele;


n) - O arguido, “quiçá pela sua boa imagem, espírito dinâmico e empreendedor, ou por as entidades bancárias considerarem as suas ideias válidas e merecedoras de confiança”, tivesse facilidade em obter empréstimos junto de entidades bancárias mediante a subscrição de títulos de crédito ou não;


o) - Tais entidades bancárias entregassem, por conta do desconto de quaisquer letras ou da sua reforma, as quantias nelas apresentadas;


p) - Os montantes que o arguido obtinha com desconto de letras ou com a sua reforma fossem utilizados no exercício da sua actividade empresarial, nomeadamente com a sociedade Y…, Lda.;


q) - Tenha sido o aqui denunciante, “bem como algumas das testemunhas arroladas pelo M.P.”, que “vendo a facilidade com que o arguido se movia nos meios financeiros, as boas relações que mantinha” e a “saúde financeira da sua empresa”, hajam contactado o arguido com o objectivo de este por eles interceder junto dos seus conhecidos com vista à obtenção de empréstimos para as suas empresas ou para os próprios com vista ao desenvolvimento de actividades empresariais;


r) - O arguido tenha a tal anuído, depois de alguma insistência;


s) - Haja sido nesse contexto que foram emitidas diversas letras de câmbio sacadas pelo arguido em nome da sua empresa e aceites pelo aqui denunciante, em nome próprio ou como legal representante da sociedade XX..., Lda.;


t) - As quantias assim obtidas tenham sido entregues ao denunciante, que “com esse fundo de maneio realizava diversos negócios e mais tarde as pagava ao arguido na sua data de vencimento que assim liquidava a dívida da sua empresa para com o banco” ou “sugeria que fossem as mesmas apresentadas para reforma, pagando-as assim parcialmente”;


u) - Nas letras referenciadas nestes autos, os saques tenham sido “de favor”;


v) - “Enquanto o ofendido cumpriu com o que se havia comprometido tudo correu bem”, havendo “o problema” surgido quando, a determinada altura este começou a não pagar ou a pagar com atraso;


x) - Haja sido essa situação que originou a falência da empresa do arguido, provocando-lhe “sérios danos patrimoniais e psicológicos” e deixando-o, inclusive, sem meios de subsistência, tendo sido este facto que motivou a sua saída do País, para procurar “local onde pudesse ganhar o seu sustento” e “não com o objectivo de se furtar à actuação das autoridades”;


z) - O arguido se encontre “socialmente bem inserido, desenvolvendo actividades empresariais, não tendo quaisquer questões com a justiça brasileira”;


aa) - “Sintomático desta situação”, sejam “os não despiciendos, públicos e notórios acréscimos patrimoniais que o ofendido teve no período a que se reportam os factos constantes da presente acusação/pronúncia, aferíveis até por manifestos sinais exteriores de riqueza, que, desconfia o arguido, não terão inclusive sido objecto de declaração na respectiva declaração de rendimentos”;


ab) - “Face às estritas normas, procedimentos e práticas bancárias a que se encontram sujeitos os funcionários das agências bancárias a operar em Portugal, uma actuação como a descrita na acusação/pronúncia seria absolutamente impossível”;


ac) - O ofendido sempre tenha sido “notificado das diversas vicissitudes que afectaram tais títulos, reformas, protestos, e sempre para a sua morada nunca tendo contestado a validade dos aceites ou alegado perante quem quer que fosse a sua falsidade”;


ad) - “Só agora, e vendo-se face à iminência do cumprimento das suas obrigações se lembrou do presente estratagema, sendo que não foi o primeiro, aliás esta vem sendo uma acção concertada por parte de ex-parceiros comerciais do arguido”.”

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):


…/…


******
A primeira questão a apreciar prende-se com o facto de o arguido não ter estado presente na audiência de discussão e julgamento.

Vejamos:

O arguido prestou termo de identidade e residência nos presentes autos e deu como morada a Rua ..., Brasil.
A notificação para julgamento foi remetida para esta morada.
Não compareceu à audiência marcada para 28 de Novembro de 2008, tendo a mesma sido realizada na sua ausência e também não compareceu à audiência para leitura do acórdão, que se realizou em 19 de Dezembro de 2008.
Temos assim que, em princípio, a realização do julgamento na sua ausência estava de acordo com o disposto no artº 333º, nº 1 do Código de Processo Penal[ Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem ] uma vez que havia sido notificado para o mesmo na morada que indicara no termo de identidade e residência (artº 196º, nº 3, alíneas c. e d).
Acontece porém, que, conforme resulta dos autos (fls. 1059/1065), o arguido, ora recorrente, está detido à ordem do Estado Português desde 23 de Agosto de 2007, o que aconteceu na sequência de um pedido de extradição formulado às autoridades brasileiras.

Quid juris?

Estabelece a Constituição da República Portuguesa no artº 32º que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa” (nº 1), “tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório” (nº 5) e que “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento” (nº 6). Acrescenta o artº 20º, nº 4 que “todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.
Significa isto que, para além do mais, no âmbito do processo penal em geral, e na audiência de julgamento em particular, deve o arguido dispor de um processo equitativo, o que só poderá acontecer se lhe forem asseguradas as necessárias garantias de defesa, ou seja, se funcionar em absoluto o princípio do contraditório.
Como explica o Tribunal Constitucional no Acórdão 172/92, de 6 de Maio de 1993[ BMJ nº 427, pág. 57], “o processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização de seu jus puniendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercido do poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta.
Tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório e pela percepção directa e pessoal do juiz (princípio da oralidade e da imediação).
O sentido essencial do princípio do contraditório está em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar”.
Ora, o princípio do contraditório só se concretiza em sede de audiência de discussão e julgamento se o arguido souber da existência da mesma e se puder estar nela presente.
Qualquer obstrução externa à concretização destes direitos constitui violação daquele princípio e por isso, o Estado está obrigado a assegurar que os mesmos se materializem.
É neste âmbito que surgem os normativos dos artºs 119º, alínea c., e 332º, 333º e 334º, em que o primeiro comina com nulidade insanável a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a sua comparência.
E um desses casos é precisamente, como decorre do artº 332º, nº 1, na audiência de julgamento.
No entanto, porque se torna necessário equilibrar o direito/dever do arguido em estar presente na audiência de julgamento com a obrigação de um Estado de Direito Democrático em realizar a justiça através dos Tribunais, surgem, no seguimento do disposto no nº 6, do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, as excepções previstas nos nºs 1 e 2 dos artºs 333º e 334º.
Mas mesmo quando se verificam estas excepções, o Estado cria condições para que o arguido mantenha o direito/dever de estar presente para exercer um efectivo direito de defesa. É o que resulta dos nº 3 dos artº 333º e 334º.
Ora, perante a importância que se reveste a presença do arguido em audiência, é obrigação do Estado conceder-lhe todos os meios para que tal aconteça, mormente, convocando-o para a mesma.
Tal convocação efectua-se através de notificação, a qual consiste num procedimento que se caracteriza pela função instrumental de dar conhecimento a um interessado de um certo acto processual ou então para convocar alguém para comparecer numa certa diligência (artº 228.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), pelo que uma notificação só cumpre a sua função chega ao efectivo conhecimento do destinatário ou, pelo menos, é susceptível de ser por si conhecida, nos termos em que se encontra legalmente regulamentada.
E é aqui que a notificação do arguido para julgamento trás dificuldades.
Como acima se disse, a mesma foi enviada para a morada constante do termo de identidade e residência, pelo que, atento o disposto no artº 196º, nºs 2 e 3, alíneas c. e d., estaria notificado para julgamento e, consequentemente, que bem andara o tribunal ao realizar a audiência na sua ausência apenas representado por defensor.
Acontece porém que, para além de haver dúvidas de que haja sido devidamente cumprido o disposto no artº 113º, nº 3 — a entrega da carta competiu aos serviços de correio brasileiros que seguiram os seus próprios trâmites —, o certo é que a notificação foi remetida num momento em que o Estado Português sabia que o arguido já aí não residia, uma vez que se encontrava preso desde 23 de Agosto de 2007, na sequência de um pedido de extradição que formulara às autoridades brasileiras.
Ou seja, sem que se possa falar sequer de que o arguido haja incumprido o disposto no artº 196º, nº 3, alínea c. in fine — não há uma verdadeira mudança de residência dependente da sua vontade, que é a razão que está na origem da norma —, o Estado Português convocou-o para julgamento através da notificação para um local onde, como tinha a obrigação de saber, ele já não residia.
É certo que o tribunal não tinha conhecimento desta conjuntura quando enviou a notificação, mas isso em nada altera a situação, uma vez que foi o próprio Estado que, emaranhado nas teias da burocracia que ele próprio desenvolve, não criou as condições para que esse conhecimento estivesse ao alcance do Órgão Tribunal, que era a entidade competente para levar a cabo a mesma. E disso não tem o arguido culpa.
Aliás, o próprio Estado reconhece que, estando alguém preso as regras da notificação têm que sofrer alterações: é o que resulta do nº 1, do artº 114º, onde se determina que “a notificação de pessoa que se encontrar presa é requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado”.
Esta excepção, que é obviamente fruto do reconhecimento da situação especial em que se encontra o notificando, revela que nos casos em que o notificando se encontra preso, o nº 2 do artº 196º não tem aplicação.
No caso em análise, não temos elementos que permitam concluir que à data da notificação para julgamento o arguido já se encontrava num estabelecimento prisional em Portugal, mas sabemos que estava detido à ordem do Estado Português e por isso, que este tinha pleno conhecimento de que o local em que se encontrava não correspondia ao domicílio indicado no termo de identidade e residência.
Por isso, não podemos concluir que tenha sido violado o disposto no artº 114º, nº 1, mas sabemos, sem qualquer margem de erro, que a notificação foi remetida para um local onde o Estado Português já sabia que o arguido não se encontrava.
Por isso, não cumpriu a notificação a sua função, que, no caso, seria a de dar conhecimento ao arguido da data para o seu julgamento e de convocá-lo para nele comparecer.
Assim, não tendo o arguido estado presente na audiência de julgamento donde resultou o acórdão condenatório de que agora recorre, dúvidas não existem de que estamos perante a nulidade prevista na alínea c., do artº 119º, o que importa a anulação do julgamento e do subsequente processado com ele relacionado (artº 122º, nº 1).
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Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação das demais questões trazidas ao recurso.
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Nesta conformidade, acorda-se em dar provimento ao recurso e, consequentemente:
1) Declara-se nulo o julgamento efectuado na ausência do arguido, bem como todo o processado posterior que com ele está relacionado
2) Determina-se a realização de novo julgamento nos termos legais
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Sem tributação.
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LUÍS RAMOS (RELATOR)
CALVÁRIO ANTUNES