Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1607/13.1TBVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: NACIONALIDADE
AQUISIÇÃO
VONTADE
UNIÃO DE FACTO
PRAZO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU – VISEU – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 3º, Nº 3 DA LEI DA NACIONALIDADE (LEI Nº 37/81, DE 03/10, NA REDACÇÃO DA LEI ORGÂNICA Nº 2/2006, DE 17/04).
Sumário: I – Pela chamada Lei da Nacionalidade – Lei nº 37/81, de 03/10, na redação e republicação em anexo à Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04 (e que apenas sofreu alteração no seu artº 6º, nº 7, por força da Lei nº 43/2013, de 3/07, e da Lei Orgânica nº 1/2013, de 29/07) – a aquisição da nacionalidade pode derivar ou também ser obtida por “efeito de vontade”, em relação ou por parte do estrangeiro casado há mais de três anos com um nacional português, desde que emita declaração para o efeito na constância do matrimónio; e também por parte de estrangeiro que, á data dessa declaração, viva em união de facto há mais de três anos com um nacional português, desde que obtenha previamente o reconhecimento dessa situação em acção cível a propor para o efeito – artº 3º, nºs 1 e 3 da dita Lei da Nacionalidade.

II – Ou seja, a comunhão de vida entre um estrangeiro e um(a) cidadão/cidadã nacional, que perdure por mais de três anos, estando casados entre si ou apenas em união de facto entre si, permite a aquisição, por esse estrangeiro, da nacionalidade portuguesa, por mero efeito da sua vontade expressamente declarada.

III - Apenas em caso de união de facto necessita de que seja reconhecida tal situação via judicial, pois que no casamento tem o próprio assento como prova documental bastante.

Decisão Texto Integral:            
Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I

            Na comarca de Viseu – Viseu – Secção Cível, em 17/05/2013 M... e A..., residentes na Avenida ..., instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra o Estado Português, pedindo que seja declarado que os Autores vivem, desde finais de 2004, em condições análogas às dos cônjuges, com vida e economia em comum, reconhecendo-se, por isso, a sua união de facto há mais de três anos, a fim de a Autora adquirir a nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3º da Lei nº 37/81, de 03.10.

Para tanto alegaram, em resumo, que a Autora tem nacionalidade brasileira, é natural de João Pinheiro / Minas Gerais, Brasil, nasceu em 23/11/1979, é filha de ..., e é divorciada.

Que o Autor tem nacionalidade portuguesa, é natural de Tete, República de Moçambique, nasceu em 09/05/1957, é filho de ..., e é divorciado.

Que em meados 2004 a Autora veio viver para Portugal, para a cidade de Viseu, onde conheceu o seu actual companheiro, o Autor, e que desde finais de 2004 que a Autora e o Autor vivem em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa, como se cônjuges fossem.

Que desde essa data sempre residiram juntos: inicialmente residiam no ...

Que em 06 de Maio de 2009 os Autores contraíram casamento entre si, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos, e que após o casamento os Autores passaram a residir no ...

Que em Julho de 2010 os Autores requereram junto da Conservatória do Registo Civil de Viseu o seu divórcio, por mútuo consentimento, que foi decretado por decisão proferida em 05 de Julho de 2010.

Que não obstante se terem divorciado, os Autores mantiveram, e mantêm actualmente, a sua relação familiar, social, afectiva e sexual, residindo juntos desde finais de 2004.

Que desde essa data tomam as refeições em conjunto, partilham a mesma cama e contribuem ambos para as despesas da casa.

Que ao longo destes oito anos os Autores passeavam e saiam juntos, tal como nos dias de hoje o fazem, tendo o mesmo círculo de amigos e vizinhos, compartilhando essa relação afectuosa e marital com a família de ambos.

Que contribuem ambos para a economia do casal, para as despesas da casa, auxiliando-se mutuamente e relacionando-se como se marido e mulher fossem.

Que a Autora tem interesse e tem vontade de ser portuguesa, o que lhe é permitido pelo artº 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 3/10, o que deve ser reconhecido na presente acção, como se pede.  


II

O Ministério Público, em representação do Estado Português, apresentou contestação, onde impugnou todos os factos não documentados, por alegado desconhecimento, e onde pede que a acção seja julgada de acordo com o respectivo mérito.

III

Foi dispensada a realização da audiência prévia e foi proferido despacho saneador, tendo aí sido fixados o objeto do litígio e os temas de prova – fls. 39 a 41.

Os autos prosseguiram para julgamento, o qual se realizou com a gravação da prova testemunhal produzida.

Proferida a sentença, nela foram definidos os factos dados como provados e os factos tidos como não provados, com indicação da respectiva fundamentação.

Na decisão de mérito foi a acção julgada improcedente, por não provada.


IV

            Dessa sentença interpuseram recurso os Autores, em cujas alegações formulam as seguintes conclusões:

...           


V

            Contra-alegou o Digno Magistrado do Ministério Público junto da Instância Local, Secção Cível, da Comarca de Viseu, onde também formula as seguintes conclusões:

...


VI

            No Tribunal recorrido foi admitido o recurso interposto, como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, sendo como tal aceite nesta Relação.

            Nada obsta a que se conheça do seu objecto, o qual se pode resumir à apreciação da questão de se saber se deve ou não ser reconhecido e declarado que a Autora vive em união de facto com o Autor, desde finais de 2004, para efeitos de a Autora poder adquirir a condição/nacionalidade portuguesa.  

            Não está em discussão a matéria de facto dada como provada e como não provada, a qual não é objecto de impugnação, razão pela qual se enuncia tal matéria, tal como consta da sentença recorrida:

FACTOS PROVADOS:

1. A Autora tem nacionalidade brasileira, é natural de João Pinheiro/Minas Gerais, Brasil, onde nasceu em 23/11/1979, é filha de ... e é divorciada.

2. O Autor tem nacionalidade portuguesa, é natural de Tete, República de Moçambique, nasceu em 09/05/1957, é filho de ... de Almeida e é divorciado.

3. Em data não concretamente apurada a Autora veio viver para Portugal, para a cidade de Viseu, onde conheceu o seu actual companheiro, o Autor.

4. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2006, que os Autores vivem em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa e desde essa altura que sempre residiram juntos.

6. Inicialmente residiam no ...

7. Em 06 de Maio de 2009 os Autores contraíram casamento entre si, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos.

8. Após o casamento os Autores passaram a residir no ...

9. Em Julho de 2010 os Autores requereram junto da Conservatória do Registo Civil de Viseu o seu divórcio por mútuo consentimento, que foi decretado por decisão proferida em 05 de Julho de 2010, transitada em julgado na mesma data.

10. Não obstante se terem divorciado, os Autores mantiveram, e mantêm actualmente, um relacionamento amoroso, afectivo e sexual.

11. E continuaram a residir juntos, a tomar as refeições em conjunto e a partilhar a mesma cama.

12. Houve alturas em que ambos contribuíam para as despesas da casa onde residiam, sendo que actualmente é o Autor quem suporta tais despesas, em virtude de a Autora se encontrar desempregada.

13. Desde pelo menos a altura mencionada no ponto 4 que os Autores passeiam e saem juntos.

14. Tendo o mesmo círculo de amigos e vizinhos.

15. A presente acção foi instaurada em 16 de Maio de 2013.

Assim, pela chamada Lei da Nacionalidade – Lei nº 37/81, de 03/10, na redação e republicação em anexo à Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04 (e que apenas sofreu alteração no seu artº 6º, nº 7, por força da Lei nº 43/2013, de 3/07, e da Lei Orgânica nº 1/2013, de 29/07) – a aquisição da nacionalidade pode derivar ou também ser obtida por “efeito de vontade”, em relação ou por parte do estrangeiro casado há mais de três anos com um nacional português, desde que emita declaração para o efeito na constância do matrimónio; e também por parte de estrangeiro que, á data dessa declaração, viva em união de facto há mais de três anos com um nacional português, desde que obtenha previamente o reconhecimento dessa situação em acção cível a propor para o efeito – artº 3º, nºs 1 e 3 da dita Lei da Nacionalidade.

            O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 605/2013, Processo nº 156/2012, publicado no D.º R.ª, 2ª série – nº 225 – de 20/11/2013, julgou tal norma constitucional, a propósito de uma acção idêntica à presente.

            Aí se escreve, a este respeito, o seguinte fundamento: “... No domínio da aquisição da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, a alteração mais significativa (resultante da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04) é aquela que agora consta do nº 3 do artº 3º da Lei nº 37/81. De acordo com a redação actual do preceito, ‘o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível’ ”.

            Quer isto dizer que, a partir de 2006 a união de facto entre estrangeiro e nacional português passou a ser rigorosamente equiparada ao casamento, no que ao regime da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade diz respeito. Na verdade, verificada que seja a constância da união de facto por período superior a três anos – período esse que é idêntico ao que é previsto para a duração do casamento, nos termos do nº 1 do artº 3º -, basta a mera declaração do interessado para desencadear o processo de aquisição da nacionalidade portuguesa. O mesmo sucede com o casamento, uma vez que o estrangeiro (casado há mais de três anos com nacional português) pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração de vontade feita na constância do matrimónio (artº 3º, nº 1, da Lei nº 37/81). Em ambas as circunstâncias (casamente ou união de facto) a comunhão de vida com nacional português é um pressuposto de facto que permite a aquisição de nacionalidade por declaração de vontade: quem viva more uxorium com cidadão ou cidadã nacional, ou quem com ele ou ela esteja casado, pode, se quiser e se o declarar como tal, tornar-se também membro da comunidade política portuguesa através do vínculo da nacionalidade”.

            Ou seja, a comunhão de vida entre um estrangeiro e um(a) cidadão/cidadã nacional, que perdure por mais de três anos, estando casados entre si ou apenas em união de facto entre si, permite a aquisição, por esse estrangeiro, da nacionalidade portuguesa, por mero efeito da sua vontade expressamente declarada.

            Apenas em caso de união de facto necessita de que seja reconhecida tal situação via judicial, pois que no casamento tem o próprio assento como prova documental bastante.

            O que efectivamente se traduz na sobredita afirmação do Tribunal Constitucional de que “... a partir de 2006 a união de facto entre estrangeiro e nacional português passou a ser rigorosamente equiparada ao casamento, no que ao regime da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade diz respeito.”.

            No presente caso, temos provado que:   

4. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2006, que os Autores vivem em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa e desde essa altura que sempre residiram juntos.

6. Inicialmente residiam no ...

7. Em 06 de Maio de 2009 os Autores contraíram casamento entre si, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos.

8. Após o casamento os Autores passaram a residir no ...

9. Em Julho de 2010 os Autores requereram junto da Conservatória do Registo Civil de Viseu o seu divórcio por mútuo consentimento, que foi decretado por decisão proferida em 05 de Julho de 2010, transitada em julgado na mesma data.

10. Não obstante se terem divorciado, os Autores mantiveram, e mantêm actualmente, um relacionamento amoroso, afectivo e sexual.

11. E continuaram a residir juntos, a tomar as refeições em conjunto e a partilhar a mesma cama.

12. Houve alturas em que ambos contribuíam para as despesas da casa onde residiam, sendo que actualmente é o Autor quem suporta tais despesas, em virtude de a Autora se encontrar desempregada.

13. Desde pelo menos a altura mencionada no ponto 4 que os Autores passeiam e saem juntos.

14. Tendo o mesmo círculo de amigos e vizinhos.

15. A presente acção foi instaurada em 16 de Maio de 2013.

            Ou seja, sabemos e está provado que desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2006, que os Autores vivem em comunhão de vida entre si, comungando o mesmo leito e mesa e desde essa altura que sempre residiram juntos; e embora tenham casado em Maio de 2009, fizeram-no um com o outro, não com terceiros, pelo que continuaram unidos entre si, agora já não apenas de facto, mas como casados entre si, o que é um vínculo legalmente superior à mera união de facto.

               E se é certo que volvidos cerca de 4 anos se divorciaram, no entanto continuaram a viver juntos, isto é em união de facto um com o outro, ou seja, fazendo a mesma vida tipo marido e mulher que faziam desde 2006, residindo juntos e fazendo a vida que até então faziam como marido e mulher, o que tem-se prolongado até ao presente, segundo parece, pois que nos pontos 12, 13 e 14 da matéria de facto é dito que actualmente é apenas o autor quem suporta as despesas familiares, dado o facto da e autora estar desempregada, e que continuam a viver e a pessear juntos, tendo o mesmo círculo de amigos.

            Ou seja, em 2010 a Autora já podia ter adquirido a condição de nacional do Estado Português, por mero efeito de declaração de vontade nesse sentido – nº 1 do artº 3º da Lei da Nacionalidade -, e continua a poder fazê-lo no presente, por efeito do nº 3 desse mesmo preceito, pois que vive em união de facto e também como casada sempre com o mesmo cidadão nacional, desde 2006, portanto há mais de 3 anos.

            Não se pode entender, pois, que a circunstância de se ter divorciado em Julho 2010 possa consituir um impedimento a essa faculdade (de aquisição da nacionalidade portuguesa), por mero efeito da sua vontade, já que a Autora sempre viveu com o mesmo cidadão nacional desde 2006, casada ou não com ele, com quem continua a viver.

            Não se pode, pois, julgar improcedente a presente acção apenas com o argumento de que em Maio de 2013 – data de propositura da acção - ainda não tinham decorrido três anos desde a data do seu divórcio, o que se completaria logo em Julho seguinte, uma vez que esse divórcio ocorreu entre as mesmas partes que também são partes nesta acção e uma vez que à data do julgamento – em Maio de 2014 – se verificou e se deu como provado que essa união de facto perdurava e sem interrupções.

            Razão pela qual cumpre reconhecer e declarar que os Autores vivem um com o outro desde data não apurada do ano 2006, quer enquanto casados entre si quer apenas como unidos de facto, mas sempre em condições análogas às dos cônjuges, com vidas em comum, o que permite à Autora adquirir a nacionalidade portuguesa, nos termos do artº 3º da Lei nº 37/81, de 03/10.

            Aliás, nos termos do artº 1º da Lei nº 7/2001, de 11/05, na redacção da Lei nº 23/2010, de 30/08, “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, ..., vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de doios anos”, sendo que uma união de facto se dissolve com o casamento de um dos seus membros – artº 8º, nº 1, al. c) -, o que permite concluir que uma união de facto não deixa de o ser com o casamento entre si de ambos os unidos, apenas se transformando essa união de facto em algo mais “juridicamente”, ou seja em casamento, mas sem se perder o conceito de união de facto, já que este conceito abarca em si mesmo a vivência em condições análogas às dos cônjuges.

            França Pitão, in “União de Facto no Direito Português (a propósito da Lei nº 135/99, de 28/08)” refere que “... a união de facto, como o próprio nome indica, é apenas e tão só uma situação de facto constatada pela realidade social em tudo semelhante ao casamento, mas que não obedeceu ás formalidades que a lei estabelece para a validade deste” – pg. 14.

            “Pode afirmar-se, com alguma segurança, que a diferença entre união de facto e casamento assenta no facto de que este se realiza dentro de um quadro legal pré-definido, enquanto a união de facto se realiza fora desse quadro legal “- pg. 26.                       

            Donde se poder e dever concluir que se impõe a procedência do presente recurso, com a revogação da sentença recorrida e com a consequente procedência da acção e o proferimento de declaração de que a aqui Autora vive em união de facto com o também aqui autor desde data não apurada de 2006, com o qual ainda foi casada entre 6/05/2009 e 5/07/2010, para efeitos do disposto no artº 3º da Lei nº 37/81, de 03/10, na redacção da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04.  


VII

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, julga-se procedente a presente acção, proferindo-se a declaração de que a aqui Autora, M..., vive em união de facto com o também aqui autor, A..., supra identificados, desde data não apurada de 2006, com o qual ainda foi casada entre 6/05/2009 e 5/07/2010, declaração esta proferida para efeitos do disposto no artº 3º da Lei nº 37/81, de 03/10, na redacção da Lei Orgânica nº 2/2006, de 17/04.

            Custas da acção pelos autores (artº 535º NCPC). Sem custas o presente recurso.


***

                                               Tribunal da Relação de Coimbra, em 05/05/2015

Jaime Carlos Ferreira (Relator)

Jorge Arcanjo

Teles Pereira