Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1721/11.8PBCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FALTA
FALTA JUSTIFICADA
FALTA INJUSTIFICADA
FALTA DO ARGUIDO
JULGAMENTO
Data do Acordão: 05/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA (3.º JUÍZO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 116.º E 117.º, DO CPP
Sumário: Na ausência de notificação ao arguido do despacho que incidiu sobre solicitações suas, no sentido, além do mais, de realização do julgamento na sua ausência, e não tendo o tribunal, perante a “justificação” atempadamente apresentada, diligenciado, por si ou através de convite dirigido ao requerente, para que este completasse/instruísse, com os elementos tidos por pertinentes, o pedido de justificação da falta à referida diligência processual, num caso em que tido indica estar-se perante um “quadro de necessidade” - foi invocada a impossibilidade de deslocação a tribunal, radicada em insuficiência económica, e junto “atestado” de “junta de freguesia” contendo declarações do próprio interessado -, de onde ressalta a «preocupação do faltoso em cumprir”, elementares razões de justiça, não contrariadas pelas normas, determinam que se considere justificada a falta.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 1721.11.8pbcbr – A do 3.º Juízo Criminal de Coimbra, por despacho de 14.10.2013, foi o arguido A... , na sequência de haver faltado na data designada para julgamento, condenado no pagamento de multa.

2. Inconformado com a decisão recorre o arguido, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

I. O Recorrente foi condenado na multa processual de 2Ucs nos termos do artigo 116.º/1 e 117.º/1, “a contrario sensu”, do C.P.P., conforme consta da Ata de Audiência de Discussão e Julgamento realizado no dia 14 de Outubro de 2013.

II. O Recorrente não pode concordar com a decisão do Tribunal a quo, uma vez que, tendo em conta a justificação apresentada em tempo, à qual juntou um Atestado da Junta de Freguesia do (...), deveria ter sido considerada justificada a falta dada pelo recorrente.

III. Basta a análise atenta dos documentos juntos com o presente Recurso, para se fazer prova da insuficiência económica do Recorrente e assim considerar justificada a falta dada no dia 14 de Outubro de 2013 aquando da realização da Audiência de Discussão e Julgamento.

IV. Ainda consideramos que bastava realmente o atestado da junta de freguesia junto aos autos a fls. 140, para justificar a falta dada pelo recorrente, uma vez que, deverá ser tido em conta o princípio do in dubio pro reo, no que se refere às declarações prestadas pelo recorrente ínsitas no Atestado da Junta de Freguesia do (...).

V. Declarações que se vêm a comprovar como verdadeiras, tendo em conta os documentos juntos com o presente recurso.

VI. Na sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou o disposto no artigo 117.º/1 do C.P.P., bem como a necessária aplicação do princípio in dubio pro reo.

VII. Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que deverá revogar o Douto Despacho aqui recorrido, devendo ser proferido Douto Acórdão que o altere, considerando justificada a falta dada pelo recorrente no dia, 14 de Outubro de 2013, na Audiência de Discussão e Julgamento, assim se fazendo inteira Justiça!

3. Por despacho de 10.12.2013 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

4. Ao recurso respondeu a Senhora Procuradora-Adjunta, concluindo:

«A decisão que condenou o arguido em multa, nos termos do disposto nos arts. 116.º, n.º 1 e 117.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, interpretou e aplicou correctamente a lei.

Não violou quaisquer normas legais, nomeadamente os citados arts. 116º, n.º 1e 117.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

E, por isso, não merece reparo».

5. Remetidos os autos à Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual acompanhando a resposta apresentada, em 1.ª instância, pelo Ministério Público, se pronunciou no sentido da improcedência do recurso [cf. fls. 27/28].

6. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP, reagiu o recorrente da forma constante de fls. 30/31, pugnando pela procedência do recurso.

7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].

No caso em apreço a questão que se coloca traduz-se, tão só, em saber se mal andou o tribunal a quo ao considerar injustificada a falta do arguido/recorrente, condenando-o, em consequência, em multa processual.

2. A decisão recorrida

É o seguinte o teor do despacho recorrido:

«Em relação à ausência do arguido, encontrando-se o mesmo regularmente notificado e não demonstrando que a mesma seja devida a facto que não lhe seja imputável, sendo manifestamente insuficiente, para a demonstração da sua total ausência de possibilidades económicas para se fazer deslocar o “atestado” junto a fls. 140, contendo o mesmo, no fundo, apenas, declarações do próprio arguido, julgando injustificada a falta, condeno o arguido na multa processual de 2 Ucs – artºs 116º, nº 1, e 117º, nº 1, “a contrario sensu”, do C.P.P.

(…)».

3. Apreciação

Dissente o recorrente da decisão que, julgando injustificada a sua falta à audiência de julgamento - no âmbito dos autos de processo comum singular n.º 1721/11.8pbcbr, no qual assumia a qualidade de arguido – o condenou na multa processual de duas Ucs.

Vejamos, então, o que resulta dos autos.

Com data de entrada de 09.10.2013, o ora recorrente, então na qualidade de arguido, dirigiu ao processo comum no seio do qual foi exarado o despacho em crise, requerimento do seguinte teor [transcrição parcial]:

«Ex.mo Senhor Dr. Juiz de Direito do 3.º Juízo Criminal de Coimbra

A..., arguido nos autos (…) vem nos termos dos artigos 117.º, 333.º e 334.º do CPP informar V/Exa. que não pode estar presente na data e hora agendada para a realização da audiência de discussão e julgamento, pelos seguintes motivos:

O Arguido encontra-se atualmente a residir em Lisboa, mais propriamente na Rua (...) Lisboa.

2.º O Arguido encontra-se a atravessar graves dificuldades económico-financeiras, que impossibilita a sua presença em Coimbra, nomeadamente neste foro judicial, no dia da audiência de discussão e julgamento.

3.º

O Arguido não tem dinheiro para comprar uma passagem num transporte público de ida e volta que possibilite a sua presença conforme anteriormente explicado. Assim,

4.º

Uma vez que, o Arguido apresentou contestação não concordando com os factos de que vem acusado e porque devido a uma impossibilidade de natureza económica, conforme demonstra o atestado de pobreza junto com o presente requerimento, não consegue estar presente na audiência de discussão e julgamento. Então,

5.º

Apesar da obrigatoriedade da sua presença regulada pelo artigo 332.º/1 do CPP, requer-se que o Arguido seja dispensado de estar presente, devido às razões anteriormente invocadas, nos termos do artigo 333.º do CPP e 334.º do CPP. Sendo certo que,

6.º

O Arguido, desde já dá o seu consentimento para que a audiência de discussão e julgamento se realize na sua ausência. No entanto,

7.º

Caso V/Exa, considere indispensável a presença do Arguido para que este seja ouvido pelo Tribunal, então requer-se nos termos do n.º 3 do artigo 332.º do CPP que sejam proporcionadas as devidas condições para a deslocação do Arguido no dia e hora agendado para a audiência de discussão e julgamento (…). No entanto,

8.º

O Arguido sugere que seja ouvido, se possível, através de vídeo-conferência no Tribunal Judicial respeitante à sua área de residência supra indicada no artigo 1.º do presente requerimento, dispensando assim a sua deslocação pessoal.

9.º

Para todos os efeitos deverá V/Exa. considerar a falta do Arguido justificada nos termos do artigo 117.º do CPP, não o condenando em multa.

(…)».

Ocasião em que fez juntar aos autos o «Atestado», datado de 08.10.2013, no qual, a Junta de Freguesia do (...) atesta «em face das declarações arquivadas nesta Junta e para fins: Insuf. Económica (…) que A... (…)

PARA EFEITO DE SER PRESENTE NO DEPARTAMENTO DE INVESTIGAÇÃO E ACÇÃO PENAL DE COIMBRA, A FIM DE COMPROVAR, SEGUNDO DECLARAÇÕES DO REQUERENTE, QUE O MESMO É O ÚNICO ELEMENTO DO SEU AGREGADO FAMILIAR. MAIS SE DECLARA QUE O MESMO NÃO TEM BENS NEM OUTROS RENDIMENTOS E NÃO AUFERE QUALQUER SUBSÍDIO.

(…)»

Sobre o dito requerimento incidiu o despacho judicial de 11.10.2013, no qual, em síntese, foi considerado não se mostrarem reunidos os requisitos previstos no artigo 334.º, n.º 2 do CPP para o julgamento, mediante requerimento/consentimento do arguido, na sua ausência, tão pouco se encontrar o sistema de videoconferência previsto para audição do mesmo, tendo, ainda, sido entendido não fundamentar o arguido «como devia (cfr. art.º 332.º, n.º 3, do Cód. de Processo Penal) a sua pretensão no sentido de o Tribunal lhe proporcionar as condições para a sua deslocação, limitando-se a referir que se encontra a atravessar graves dificuldades económico-financeiras, não esclarecendo, designadamente, quais as suas concretas fontes de rendimento e qual o concreto custo da viagem e respectivo meio de transporte», concluindo pelo indeferimento do requerido, relegando para momento oportuno a decisão sobre a eventual falta do requerente.

 

Com o devido respeito, não se nos afigura, perante os contornos do caso, encerrar a decisão um juízo prudencial/equitativo.

Com efeito, para além de não resultar dos autos haver o arguido/requerente sido notificado do despacho que incidiu sobre a sua pretensão, atempadamente apresentada, na qual, solicitando a justificação da falta na data designada para audiência de julgamento, comunicando a impossibilidade da sua comparência, em razão de uma situação de carência de meios económicos que lhe permitissem custear a deslocação, requeria, como forma de «contornar» o problema, que a audiência de julgamento tivesse lugar na sua ausência, que fosse ouvido por videoconferência ou que lhe atribuíssem os meios económicos capazes de fazer face à deslocação, o certo é que – invulgarmente, diga-se – a sua postura processual é reveladora da interiorização do dever que sobre ele impendia de comparecer em julgamento, conforme foi convocado.

Considerou, porém, o tribunal não constituir o Atestado da Junta de Freguesia apresentado prova bastante da dita carência de meios económicos, no essencial em função de ter sido lavrado com base nas declarações do arguido, ora recorrente.

Sem pôr em causa que - como na grande maioria dos casos - assim tenha sido, aspecto que encontra arrimo na lei, na medida em é o próprio declarante o responsável pelo conteúdo das mesmas, o que significa que o juízo de valor que os ditos atestados encerram é susceptível de ser livremente apreciado pelas entidades perante quem são apresentadas, não é menos verdade que, considerando insuficiente a prova apresentada, ficasse o tribunal impedido de dirigir ao requerente o convite para juntar os elementos de prova, adicionais, que tivesse por adequados – [cf. o acórdão do TRL de 09.03.99, no sentido de não tendo «o requerimento apresentado para justificação de falta sido acompanhado dos elementos de prova pode o tribunal ordenar a sua correcção talqualmente acontece com as petições irregulares ou deficientes» - CJ, T. III, p. 134]

Se assim é quando o motivo que surge a justificar a ausência se prende com motivos de saúde, não se vê que idêntico caminho não deva ser trilhado perante um pedido de justificação assente noutras razões, eventualmente, não menos sérias e, não raras vezes, «mais verdadeiras».

Sem constituir nosso propósito censurar o juízo de desvalor levado a efeito perante o dito «Atestado», porque ancorado nas declarações do próprio, não deixa de constituir um «paradoxo» que, com frequência, se assista em termos de decisão final à fixação dos factos concernentes à condição pessoal e económica do arguido sustentada, unicamente, nas declarações do próprio, assim como, não raro, se depare com a assimilação in totum - de não desprezíveis aspectos relacionados com o percurso de vida do arguido [incluídos nos relatórios sociais] - das respectivas declarações.

Concluindo, dir-se-á que não resultando haver o arguido sido notificado do despacho que incidiu sobre o conjunto de pretensões que dirigiu ao tribunal, no qual, além do mais, solicitava a realização do julgamento na sua ausência, não tendo, ainda, o tribunal, perante a «justificação» atempadamente apresentada, perante o juízo que formulou, traduzido na insuficiência da prova, para o efeito, apresentada, diligenciado, por si ou através de convite dirigido ao requerente, no sentido de completar/instruir com os elementos tidos por pertinentes o requerimento de justificação da falta, num caso em que tudo indica estar-se perante um «quadro de necessidade», onde ressalta «a preocupação do faltoso em cumprir» [cf. acórdão do TRC de 15.07.2009, proc. n.º 122/01.0TAVIS – B.C1], elementares razões de justiça, não contrariadas pelas normas, levam a que se considere justificada a falta, com a consequente revogação do despacho recorrido.

III. Decisão

Termos em que, na procedência do recurso, se julga justificada a falta do arguido, ora recorrente, dando-se sem efeito a correspondente condenação sofrida, assim se revogando o despacho recorrido.

Sem tributação.

Coimbra, 14 de Maio de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)