Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1198/08.5TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
DEVER DE INFORMAR
DECLARAÇÃO INEXACTA
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 04/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA VARAS MISTAS 1ª S
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.427, 429 C. COMERCIAL, 227 CC
Sumário: 1. O artigo 429º do Código Comercial prevê um regime de anulabilidade, e não de nulidade, do contrato de seguro, baseado em declarações falsas, inexactas, reticentes ou omitidas pelo segurados, quando as mesmas sejam susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato e dos respectivos termos.

2. No processo de formação do contrato de seguro, recai sobre o tomador o dever de informar a seguradora de todos os factos ou circunstâncias que conheça e possam influenciar esta na decisão de celebrar ou não o contrato ou na definição das condições contratuais.

3. Tratando-se de seguro do ramo Vida, essa informação reporta-se ao estado de saúde do tomador do seguro, a qual é prestada normalmente através das respostas dadas ao questionário elaborado e fornecido pela seguradora.

4 A invalidade do contrato de seguro não se basta, porém, com a existência de declarações inexactas ou reticentes, sendo ainda indispensável que se demonstre a sua influência sobre a existência do contrato de seguro ou sobre a definição das respectivas condições (designadamente, fixação do prémio), cujo ónus da prova impende sobre a Seguradora.

5. Não se exige o dolo do declarante, relativamente às suas declarações inexactas ou reticentes, para que a anulação do contrato possa operar: o dolo só adquire relevância no contexto do § único do artigo 429º do Código Comercial.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

1. M (…), viúva, auxiliar de farmácia, contribuinte fiscal n.º (...), residente na Rua (...), Coimbra, intentou acção declarativa, em processo comum e sob a forma ordinária, contra “G (…)– Companhia de Seguros, S.A.”, pessoa colectiva n.º (...), com sede na Avenida (...) Lisboa, pedindo a condenação da Ré:

a) A pagar ao “Banco (…), SA” a quantia de € 86.025,24 (oitenta e seis mil e vinte e cinco euros e vinte e quatro cêntimos) correspondente ao valor em débito à data do falecimento de L (…) (22-07-2007).

b) A pagar à Autora a quantia de € 6.265,67 (seis mil e duzentos e sessenta e cinco euros e sessenta e sete cêntimos) que esta despendeu desde a data do falecimento do seu marido até 09 de Junho de 2008, relativo ao pagamento:

a. Prestações bancárias ao “Banco (…), SA”;

b. Prémios de seguro mensais relativos ao seguro multirriscos habitação “Génesis Lar Plus”, pagos à Companhia de Seguros “G (…)is”.

c. A pagar à Autora o montante de €540,00 (quinhentos e quarenta euros) a título de prémio de seguro que esta despendeu e pagou à Ré desde a data do decesso do seu marido, valor computado até à data de 01.08.2008;

c) A pagar à Autora as prestações bancárias que esta pagou ou venha a pagar ao “Banco (…) SA” desde 09 de Junho de 2008, reservando e relegando para liquidação e execução de sentença o concreto apuramento dos valores pagos pela Autora;

d) A pagar à Autora os prémios de seguro mensais relativos ao seguro multirriscos habitação “Génesis Lar Plus” que esta pagou ou venha a pagar à seguradora G (…)” desde a data de 09 de Junho de 2008 e que esta venha a pagar à Ré, reservando e relegando para liquidação e execução de sentença o concreto apuramento dos valores despendidos;

e) A pagar à Autora os juros de mora, computados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;

f) A pagar todas as despesas do processo, incluindo custas de parte e procuradoria condigna.

Para tanto alegou, em síntese, que para aquisição de um imóvel que identifica no artigo 1º da Petição Inicial, solicitou, com L (…), junto do Banco (…), S.A., um empréstimo bancário, o qual lhes foi concedido, no montante de €85.293,00, pelo prazo de 288 meses, ao abrigo do Regime Bonificado de Crédito à Habitação. A tal operação bancária foi associado, como reforço da garantia exigida pela entidade bancária e nos termos da cláusula oitava do documento complementar que faz parte da escritura pública, a subscrição da apólice de seguro de vida n.º 0320.50017433.000, perante a Companhia de Seguros “G (…) – Companhia de Seguros, S.A.”, cobrindo o risco de falecimento e de invalidez total e permanente, do qual foi beneficiário a referida instituição bancária.

Em 22 de Julho de 2007 ocorreu a morte de L (…), devida a causas naturais, pneumonia, falência respiratória total, da qual foi a Ré informada pela Autora, objectivando desencadear a cobertura do contrato de seguro de vida celebrado, recusando-se a Ré, no entanto, a assumir o pagamento das prestações em dívida à data do decesso do marido da Autora.

Alega, ainda, que tem assegurado o pagamento de todas as prestações acordadas com a entidade bancária desde a ocorrência do decesso do seu marido e o pagamento à Ré de todos os prémios de seguro associados ao mútuo.

            Regularmente citada, contestou a Ré G (…), Companhia de Seguros, S.A., invocando a excepção da ilegitimidade da Ré, aceitando a celebração do referido contrato de seguro de vida e o âmbito do mesmo, com inicio de vigência a 01 de Agosto de 2002.

            Pugna a Ré pela improcedência da acção, pedindo que o contrato seja considerado “nulo” em virtude de o falecido ter prestado, ao tempo da subscrição do respectivo contrato (08.07.2002), informações incorrectas, incompletas e omissas sobre o seu estado de saúde, as quais seriam relevantes para a aferição e determinação do risco a suportar pela seguradora.

            Alega ainda que caso o falecido não tivesse prestado informações falsas, a Ré nunca teria aceite o seguro nas condições em que o fez.

            A Autora M (…), devidamente notificada da contestação apresentada pela Ré, apresentou réplica na qual pugna pela improcedência da excepção da ilegitimidade da Ré, alegando, no mais, que L (…) quando subscreveu com a Ré o contrato de seguro desconhecia ser portador de qualquer uma das doenças aludidas nos autos, as quais apenas foram conhecidas por via do internamento hospitalar e, posteriormente, com o decesso deste.

Foi elaborado despacho saneador, no qual as partes foram consideradas legítimas, sendo, assim, julgada improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade invocada pela Ré, tendo ainda sido seleccionada a matéria de facto considerada relevante à apreciação do mérito da causa, sem reclamação.

            Na sequência de requerimento apresentado pela Ré a fls. 292 a 294, no sentido de se proceder à ampliação da base instrutória, por despacho constante de fls. 301 foi ordenado aditamento de dois quesitos àquela peça processual

            Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que se proferiu decisão sobre a matéria de facto a ele submetida, que igualmente não foi objecto de reclamação.

            Ambas as partes usaram da faculdade de alegarem por escrito: a fls. 394 – 398, a Ré, mantendo a posição manifestada na sua contestação, pugnando pela anulabilidade do contrato de seguro, e consequente improcedência da acção; a fls. 400-403, a Autora, pugnando pela total procedência dos pedidos por si formulados.

No final, foi proferida sentença, que julgou totalmente improcedente a acção, absolvendo a Ré dos pedidos contra si formulados pela Autora.

 2. Por não se conformar com tal decisão, dela interpôs a Autora recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

(…)

            A apelada contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente:

- Se o marido da Autora, com a proposta de seguro prestou declarações falsas, reticentes ou omitiu factos relativos ao seu estado de saúde;

- Na afirmativa, as consequências legais.

III. FUNDAMENTOS DE FACTO

Pela primeira instância foram julgados provados os seguintes factos:

1) No dia 30 de Agosto de 2002, no Primeiro Cartório Notarial de Competência Especializada de Coimbra, foi celebrada escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca relativa à fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente à habitação no segundo andar direito (lado sul), posterior centro, do prédio misto situado em (...), freguesia de (...), concelho de Coimbra, inscrito na competente matriz urbana sob o artigo 4301 e na matriz rústica sob o artigo (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob a ficha número (...)/ (...).

2) Outorgaram como vendedores (…) e como compradores L (…) e a Autora M (…), estes casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos.

3) O imóvel destinou-se exclusivamente à habitação própria e permanente dos outorgantes compradores.

4) Para aquisição do imóvel L (…) e M (…) solicitaram ao “Banco (…) S.A.” um empréstimo bancária no montante de €85.293,00 (oitenta e cinco mil duzentos e noventa e três euros), pelo prazo de 288 (duzentos e oitenta e oito) meses, ao abrigo do Regime Bonificado de Crédito à Habitação.

5) Foi acordado que o capital e juros remuneratórios seriam pagos em 288 (duzentos e oitenta e oito) prestações, através do débito da conta Depósitos à Ordem de que L (…) e M (…)  , mutuários, eram titulares.

6) Para garantia do pagamento da quantia mutuada pelo Banco (…)S.A., cobrindo o risco de falecimento e de invalidez total e permanente dos mutuários, L (…) em 31 de Julho de 2002, subscreveu com a companhia de seguros ora ré, contrato de seguro a que corresponde a apólice de seguro n.º 0320.50017433.000.

7) Sendo Condições Especiais:

g) Seguro de Vida na modalidade Temporário a Prémio Anual Renovável: a companhia obriga-se a pagar o capital seguro, após o falecimento da Pessoa segura, se esta ocorrer antes de findo o contrato; o prémio é pago anualmente, em cada data aniversária da apólice e pagável durante o prazo do contrato, cessando, porém, com a morte da Pessoa Segura.

h) E Condições Particulares:

Beneficiários em caso de morte: beneficio irrevogável a favor do Banco (…), S.A., até ao montante em dívida, no máximo de €99.508,00 euros; o remanescente a pagar ao cônjuge; na sua falta, os herdeiros legais.

8) L (…) faleceu no Centro Hospitalar de Coimbra em 22 de Julho de 2007, pelas 02:00 horas.

9) Do Certificado de Óbito n.º (...), averbado sob o n.º (...), na data de 23.07.2007, referente ao processo n.º (...), Maço 1, ano 2007 da Conservatória do Registo Civil de Coimbra, consta como causa da morte, que L (…) faleceu, na parte formulário «causa directa, traumatismo ou complicação que levou directamente à morte», de: «pneumonia (palavra ilegível) e (palavra ilegível) (palavra ilegível)»;

Na parte do formulário «Devida ou consecutiva a»:«síndroma de imunodeficiência adquirida»

«Devido a causas naturais, mais precisamente devido a uma pneumonia».

Na parte do formulário «Outros estados mórbidos, factores ou estados fisiológicos (gravidez) que contribuíram para o falecimento, mas não mencionados na Parte I»:«Sífilis (palavra ilegível)».

10) Na sequência do falecimento de L (…), a Autora informou a Ré do decesso do seu marido e declarou a esta que pretendia que Ré liquidasse integralmente o montante do empréstimo à data do falecimento e em 23 de Agosto de 2007 enviou à Ré carta registada com aviso de recepção comunicando outra vez o falecimento do seu marido e juntou o Certificado de Óbito com causa de morte.

11) Em 13 de Dezembro de 2007 a Ré enviou à Autora comunicação escrita com o seguinte teor:« (…) informamos que, lamentavelmente, somos forçados a recusar o pagamento do capital de risco pelo facto de terem sido prestadas falsas informações na proposta de seguro que deu origem à emissão do contrato e que passamos a informar:

- A proposta em questão foi preenchida pelo Sr. L (…) no dia 08 de Julho de 2002, sem indicação de qualquer problema de saúde relevante;

 - No entanto, verificámos agora, na documentação que nos chegou, que havia sido diagnosticado, ao Senhor, a patologia de Diabetes em Maio de 2002;

(…)

Desta forma, e de acordo com as condições gerais contratuais da apólice, cláusula n.º 2, vemo-nos obrigado a considerar o contrato nulo e sem qualquer efeito desde o seu início, ou seja, desde 01.08.2002».

Nada pagou ao Banco (…).

12) Em comunicação escrita datadas de 20 de Novembro de 2007, o médico de família de L (…) , o Ex.mo Sr. Dr. (…), a prestar serviço no Centro de Saúde de Santa Clara, em Coimbra, informou a ora Ré que ao falecido «… foi-lhe diagnosticado hiperglicemia (glicemia 147 mg/dl) em análises e rotina efectuadas em Maio de 2002, tendo sido controlado só com dieta até Março de 2007, altura em que apresentou valores de glicemia mais elevados (189 mg/dl), tendo então sido medicado com Metformia 1000 mg (2 id), o qual mantinha à data do internamento em Julho de 2007».

13) Em 2 de Janeiro de 2008 o mesmo médico remeteu à Ré a informação que consta do documento n.º 11 junto com a petição.

14) O aludido contrato de seguro foi celebrado nos referidos termos e condições, tendo por base a Proposta de Seguro, preenchida e assinada L (…) em 08 de Julho de 2002, conforme documentos n.º 2 e 3 juntos com a contestação. E um questionário que foi preenchido e assinado pelo médico que acompanhava o falecido, também em 08 de Julho de 2002, conforme documento n.º 4 junto com a contestação.

A Proposta de Seguro é composta, designadamente, por um questionário que foi respondido pela Pessoa Segura, que contém logo no seu início:

Advertência: (…) Declarações falsas, inexactas, reticentes ou omitidas quer no que respeita a dados de fornecimento obrigatório, quer facultativo, são da responsabilidade do cliente e tornam o contrato nulo».

No final do mesmo questionário consta: «Confirmo que as declarações são verdadeiras, exactas e completas (…)», vide doc. n.º3.

E termina com a assinatura do falecido marido da Autora.

15) O marido da Autora respondeu ao questionário apresentado pela Ré para efeitos de celebração do contrato de seguro em causa nestes autos da seguinte forma: À pergunta sobre se sofre ou sofreu de perturbações de saúde (por exemplo: hipertensão, diabetes, distúrbios respiratórios, cardíacos, renais, gástrico, neurológicos, psíquicos, da pele?), respondeu «Não».

À pergunta sobre se já foi sujeito a exames especiais, a Pessoa Segura respondeu «Sim», especificando «Algumas vezes fiz análises apenas como prevenção».

À pergunta sobre se toma medicamentos actualmente, respondeu «Não».

À pergunta sobre se nos últimos 5 anos esteve internado em algum hospital, clínica, estabelecimento de cura, respondeu «Não».

À pergunta sobre se nos últimos 5 anos esteve submetido a algum tratamento, respondeu «Não».

À pergunta sobre se faz ou fez uso de substâncias estupefacientes, consumo imoderado de álcool ou tabaco, respondeu «Não».

À pergunta sobre se tem deformações físicas congénitas ou traumáticas, respondeu «Não».

16) No questionário médico que foi entregue à Ré juntamente com a proposta de seguro, é o documento n.º 4 da contestação.

17) O valor em débito ao Banco (…), S.A, à data do falecimento de L (…) (22.07.2007) cifrava-se em €86.025,24 (oitenta e seis mil e vinte e cinco euros e vinte e quatro cêntimos).

18) Em 27 de Setembro de 2007 a Autora tinha a seu encargo o pagamento ao Banco (…) uma prestação relativa ao crédito habitação de €518,76 (quinhentos e dezoito euros e setenta e seis cêntimos).

19) Depois do decesso do seu marido, até à data de 01.08.2008, a Autora pagou à Ré o montante de €540,00 (quinhentos e quarenta euros).

20) De capital, juros e seguros, desde 22.07.2007 até 09.06.2008, a autora pagou ao Banco (…), SA, relativamente ao empréstimo com o n.º 31.0267.00960027030, (no montante de €14.215,00) um total de €1.168,31 (mil cento e sessenta e oito euros e trinta cêntimos) e desde 09.06.2008 até à presente data, um total de €2.249,10 (dois mil duzentos e quarenta e nove euros e dez cêntimos), e relativamente ao empréstimo, com o n.º 31.0267.00960027022, (no montante de €85.293,00), desde 22.07.2007 até 09.06.2008, a Autora pagou um total de €5.397,31 (cinco mil trezentos e noventa e sete euros e trinta e um cêntimos) e desde 09.06.2008 até à presente data, um total de €9.791,79 (nove mil setecentos e noventa e um euros e setenta e nove cêntimos).

21) Foi com base nas respostas do segurado e seu médico que a Ré avaliou o risco do contrato, fixou o valor dos respectivos prémios, e decidiu contratar.

22) O falecido marido da autora quando faleceu padecia de sífilis que se havia desenvolvido em neurosífilis.

23) Se o falecido marido da autora tivesse respondido no questionário que consta do doc. 3 da contestação que era diabético, tinha HIV/Sida, sífilis ou neurosífilis a ré não teria aceite o seguro nas condições em que o fez ou não teria aceite o seguro.

24) A constatação da Sífilis ou HIV conduziriam individualmente consideradas à não aceitação do seguro e a constatação da diabetes, poderia conduzir ou não à aceitação do seguro.

25) A constatação de Asma, de gastrite atrófica e alergia a medicamentos/alimentos poderia levar à submissão do marido da autora a exames complementares.

26) Dependendo dos resultados poderia levar a contratar em condições diversas das contratadas (com eventual agravamento do prémio) ou à não contratação.

27) No dia 8 de Julho de 2002, foi efectuado controle de glicemia capilar ao falecido marido da Autora, tendo apresentado o valor de 119mg/dl, que não conduziu nessa data a diagnóstico de diabetes por parte do médico assistente daquele.

28) Em análise de rotina efectuada em 10 de Maio de 2002 o falecido marido da autora apresentou um valor de glicemia isolado de 147mg/dl, o qual não foi considerado pelo médico que o seguia como diagnóstico de diabetes, mas considerando que se tratava de um valor um pouco superior ao normal aconselhou o falecido L (…) a ter cuidados alimentares, e que em novo controle de glicemia capilar feito em 8 de Julho de 2002, apresentou um valor de 119 mg/dl.

29) O documento n.º 6, de folhas 164, denominado “relatório médico” e “relatório clínico”, a folhas 165, junto com a contestação, foi elaborado pelo médico que o assina, Dr. (…).

30) O documento n.º 7, de folhas 167, denominado “relatório do médico” junto com a contestação foi elaborado pelo médico que o assina, Dr. (…)

31) O documento n.º 8, de folhas 169, intitulado “Informação Clínica do Sr. L (…)” junto com a contestação, foi elaborado pelo médico que o assina, Dr. L (...).

32) Em 08 de Julho de 2002, o falecido marido da autora sabia que tinha uma gastrite.

33) Na endoscopia que efectuou em Junho de 2002 o falecido marido da autora apresentava uma gastrite atrófica, tendo-lhe sido prescrita em Junho de 2002 medicação pelo médico de família, em consequência dessa patologia. 

           

                        IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Contrato de seguro é aquele pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco. Constitui, pois, um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
Trata-se de um contrato consensual, porque a sua celebração pressupõe apenas o simples acordo das partes, mas formal, porquanto a sua validade depende da sua redução a escrito (formalidade ad substantiam), traduzida na apólice a que se reporta o artigo 426º, proémio, do Código Comercial, não podendo a declaração negocial valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência[3].
É essencialmente regulado pelas estipulações constantes da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do Código Comercial, como resulta do seu artigo 427º[4].
            Como em qualquer contrato, as partes outorgantes do contrato de seguro devem em todo o seu processo formativo agir de boa fé.
“Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”[5].
Este preceito prevê a responsabilidade por culpa na formação do contrato, a chamada culpa in contraendo, devendo a expressão “formação” ser tomada em sentido amplo, “de maneira a abranger todo o processo genético do acordo. Trata-se de uma responsabilidade pré-contratual. Quer não chegue a concluir-se qualquer contrato porque um dos interessados rompe arbitrariamente as negociações, quer se conclua um contrato que todavia se mostra ferido de invalidade por culpa de uma das partes, o lesado tem direito à indemnização por danos negativos, ou seja, os danos que não teria sofrido se não entrara em negociações ou não celebrara um contrato nulo ou anulável[6], de tal forma que “nas fases anteriores à celebração do contrato, isto é, na fase negociatória e na fase decisória, o comportamento dos contraentes terá de pautar-se pelos cânones da lealdade e da probidade; apontam-se, pois, aos negociadores certos deveres recíprocos e, ao lado destes, ainda, em certos casos, o de contratar ou prosseguir as negociações iniciadas com vista à celebração de um acto jurídico”[7].
Ou seja, como escreveu Menezes Cordeiro[8], cada uma das partes deve, em relação à outra parte, actuar de forma necessária a que se chegue “à conclusão honesta do negócio”.
O contrato de seguro é justamente considerado um contrato de boa fé - baseia-se nas declarações prestadas pelo segurado, referindo-se alguns autores  a uma uberrimae bona fede, máxima boa fé, considerando-o o elemento peculiar do contrato de seguro[9].
            Dispõe o artigo 429º do C. Comercial: “toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo”.
            Por declarações inexactas entendem-se aquelas que traduzem factos ou circunstâncias que não correspondem à verdade, enquanto a reticência consiste em silenciar o que sabia e se tinha o dever de dizer[10].
            Apesar da terminologia usada pelo artigo 429º do C. Comercial, discutiu-se na doutrina e na jurisprudência a natureza do vício a que o normativo se refere: se é nulidade (conforme resulta do seu elemento literal) ou se, pelo contrário, se trata de mera anulabilidade, tendo-se sedimentado o segundo entendimento, que, essencialmente, defende que o grau de gravidade das declarações inexactas e os interesses em jogo não justificam o recurso a um vício tão severo como a nulidade[11].
            Com efeito, o regime mais severo da nulidade assenta na defesa de interesses públicos, enquanto o vício da anulabilidade na infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses particulares, sendo indiscutível que o artigo 429º do C. Comercial visa indiscutivelmente a tutela de meros interesses particulares[12].
Hoje é pacífico o entendimento de que o artigo 429º do Código Comercial prevê um regime de anulabilidade e não de nulidade[13].
            Como escreveu José Vasques[14]: “o artigo 429° do Código Comercial constitui um afloramento do erro vício da vontade: o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável […], desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro (artigos 251 e 247 do Código Civil). Trata-se, assim, de situação em que a seguradora se decide perseguir a função económico-social do negócio partindo de um conhecimento erróneo ou de uma previsão enganosa”.
             No caso em apreço, está-se em presença de um contrato de seguro de vida, verdadeiro contrato a favor de terceiro, tendo como tomador/promissário o falecido marido da Autora, como promitente a Ré Seguradora e como beneficiário o Banco mutuante.
Com efeito, como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo Banco (…), S.A. à Autora e seu marido, L (…), cobrindo o risco de falecimento e de invalidez total e permanente dos mutuários, em 31 de Julho de 2002 o referido L (…) celebrou com a Ré, ora apelada, o contrato de seguro a que corresponde a apólice n.º 0320.50017433.000.
Ao contrato de seguro em causa foram apostas, como Condições Especiais, “Seguro de Vida na modalidade Temporário a Prémio Anual Renovável: a companhia obriga-se a pagar o capital seguro, após o falecimento da Pessoa segura, se esta ocorrer antes de findo o contrato; o prémio é pago anualmente, em cada data aniversária da apólice e pagável durante o prazo do contrato, cessando, porém, com a morte da Pessoa Segura” e Condições Particulares: “Beneficiários em caso de morte: beneficio irrevogável a favor do Banco (…), S.A., até ao montante em dívida, no máximo de €99.508,00 euros; o remanescente a pagar ao cônjuge; na sua falta, os herdeiros legais”.
O aludido contrato de seguro foi celebrado nos referidos termos e condições fixadas na respectiva apólice tendo por base a Proposta de Seguro, preenchida e assinada por L (…), em 08 de Julho de 2002, acompanhada de questionário que, no seu início, continha a seguinte: “Advertência: (…) Declarações falsas, inexactas, reticentes ou omitidas quer no que respeita a dados de fornecimento obrigatório, quer facultativo, são da responsabilidade do cliente e tornam o contrato nulo” e, no final, a seguinte menção: “Confirmo que as declarações são verdadeiras, exactas e completas (…)”.
O marido da Autora e ora apelante preencheu o referido questionário, respondendo às questões nele colocadas, após o que, no final, procedeu à sua assinatura.
O mesmo, à pergunta sobre se sofria na altura, ou já sofrera, de perturbações de saúde (por exemplo: hipertensão, diabetes, distúrbios respiratórios, cardíacos, renais, gástrico, neurológicos, psíquicos, da pele?), respondeu “Não”.
À pergunta sobre se já fora sujeito a exames especiais, respondeu “Sim”, acrescentando: “Algumas vezes fiz análises apenas como prevenção”.
E respondeu negativamente à pergunta sobre se tomava então medicamentos.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2011[15], “…estão em causa as respostas a um “questionário”, repositório das declarações da pessoa segura, declarações em que a seguradora deve confiar e em função das quais aceita ou não o contrato e fixa as respectivas condições”.
De facto, é por meio desse questionário que a seguradora define as condições para o assumir do risco que o contrato de seguro visa acautelar e é com base nas respostas obtidas que forma a sua vontade de aceitar ou não esse risco, e, aceitando-o, as respectivas condições.
As respostas a tal questionário integram-se, pois, no processo formativo do contrato, delas dependendo não só os termos contratuais, mas, mais do que isso, a própria decisão de concluir o mesmo.
As exigências de boa fé na formação do contrato impõem respostas exactas e verdadeiras ao referido questionário.
Não obstante a advertência contida no proémio do questionário que acompanhou a proposta de seguro, o falecido marido da ora apelante negou, nas respostas dadas às respectivas perguntas, a existência, passada ou contemporânea, de perturbações de saúde, e a toma de medicamentos, não podendo ignorar que isso não correspondia à verdade.
Na verdade, o marido da Autora em Junho de 2002 efectuou endoscopia - e, deste modo, também falseou a resposta fornecida à pergunta se já fora sujeito a exames especiais - que revelou que o mesmo sofria de gastrite atrófica, tendo, por essa altura, lhe sido prescrita terapêutica para a referida patologia.
Ou seja: em 8 de Julho de 2002, quando subscreveu a proposta de seguro com o questionário que a acompanhava, o marido da Autora, apesar da expressa advertência escrita inserida no mencionado questionário para as consequências de declarações falsas, inexactas, reticentes ou omitidas, negou a existência da doença gástrica de que já então padecia, a realização de exame de especialidade a que se submetera - endocospia -, na sequência do qual lhe foi diagnosticada aquela patologia, e a existência de terapêutica prescrita pelo seu médico de família.
Nessa data, o marido da Autora sabia que sofria de gastrite.
Enfatiza a recorrente o facto do seu falecido marido desconhecer então que a gastrite que o afectava era de natureza atrófica. Tal desconhecimento, a existir, não o isentava do dever de mencionar que padecia de gastrite, nem retira às declarações prestadas, quanto à existência de perturbações de saúde, a falsidade de que enfermam. Sabendo que sofria de gastrite, devia tê-lo mencionado nas respostas que prestou ao questionário, cabendo então à seguradora determinar se achava tal informação suficiente ou se carecia de informações complementares para formar a sua vontade de contratar ou não, ou as condições a que devia subordinar o contrato.
Como salienta Moitinho de Almeida[16], sobre o tomador do seguro recai “o dever de declaração do risco, pois, se não completar a declaração realizada por quem fez o seguro, tendo conhecimento de factos ou circunstâncias que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato, perde o direito à prestação do segurador. Deve, porém, entender-se que este dever só recai sobre o segurado se este tiver conhecimento do seguro e da omissão ou inexactidão da declaração de risco do tomador, pois de outro modo é impossível o cumprimento”, tendo, por conseguinte, “a obrigação de declarar o que deve conhecer, em termos de normalidade de vida”[17].
O dever de informação de factos ou circunstâncias de que depende a avaliação do risco recai, pois, sobre quem se propõe à celebração do contrato de seguro. É com base nas suas declarações, que confiadamente a seguradora tem como exactas e verdadeiras face ao imperativo de boa fé com que os contratantes devem actuar nas suas negociações, que esta forma a sua vontade negocial. Como destaca o Acórdão desta Relação de 10.05.2011[18], “recai sobre o segurado, no momento da formação do contrato, a obrigação de comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso do seguro do ramo Vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a segurar, informação normalmente obtida através do questionário fornecido pela seguradora”.
Retenha-se, pela sua relevância, o que se deixou expresso no Acórdão desta Relação de 21.09.2010: “o questionário tem, pois, neste como em todos os seguros, um valor verdadeiramente estratégico no processo de formação do contrato (neste caso, no processo que conduz à referenciação subjectiva do contrato, destinado a um determinado grupo em abstracto, àquela pessoa em concreto como integrante desse grupo).
Este elemento – a relacionação entre a informação recolhida e a determinação dos factores probabilisticamente relevantes para a aferição actuarial do risco (…) é caracterizado do seguinte modo por Margarida Lima Rego: “[…]
[A] probabilidade será normalmente a extrapolação de um juízo de frequência relativa, que pode ser meramente lógico-matemático (probabilidade a priori) ou resultar da análise estatística de uma pluralidade de casos análogos e independentes observados (probabilidade a posteriori). No mundo dos seguros, tal como no dia-a-dia, a grande maioria das vezes estaremos a lidar com esta última modalidade de juízos de probabilidade. Ora, numa como na outra, a análise do risco funciona com base na chamada lei dos grandes números – princípio geral de matemática, e mais especificamente da probabilidade e da estatística, segundo o qual a frequência de determinados resultados tende a estabilizar com o aumento do número de casos observados, aproximando-se cada vez mais dos valores previstos. Dada a lei dos grandes números, a exposição do segurador ao risco – o grau de indeterminabilidade do resultado agregado do risco individual de todos os indivíduos por este segurados – é inferior à soma das exposições ao risco de todos eles – o grau de indeterminabilidade de cada um dos resultados individuais. […]
[O] prémio a pagar em cada caso concreto será calculado, ou deverá sê-lo, tanto quanto possível, em função da probabilidade de ocorrência do sinistro e do grau de intensidade das suas possíveis consequências patrimoniais negativas – ou seja, em função do risco individual ou elementar medido na perspectiva neutra do segurador. […] Poderá dizer-se que as seguradoras procuram recorrer, sucessivamente, a duas práticas diversas, na avaliação do risco: (i) a definição rigorosa dos grupos de risco em que se baseiam; (ii) o ajustamento do coeficiente aplicado dentro de cada grupo de acordo com as circunstâncias particulares de cada caso. […]”

Assim se compreende o carácter fulcral, na lógica de funcionamento de um contrato de seguro, da informação obtida pela seguradora do beneficiário.
A consequência, relativamente ao contrato, da existência de desvalores não atribuíveis à seguradora nessa recolha de informação, enquanto elemento induzido pelo próprio beneficiário ou por quem faz o seguro no decurso desse procedimento preliminar conducente à celebração final do contrato (…) é óbvia e afecta toda a lógica interna do contrato, pondo em causa os próprios fundamentos da decisão de contratar pela seguradora ou os termos contratuais em que essa decisão assentou e se concretizou. O negócio assentará, nestes casos, relativamente à seguradora, numa base falsa, porque não correspondente à realidade. Torna-se intuitivo, com efeito, que segurar o risco de vida, mediante a contrapartida de determinado prémio, de uma pessoa que não esteja afectada pela doença do alcoolismo, é substancialmente diferente (em termos de relação prémio-risco) que segurar uma pessoa que o esteja. Só um enviesamento argumentativo falseador das probabilidades nos poderá conduzir à afirmação contrária. O cálculo da relevância probabilística do risco pela seguradora foi, enfim, falseado, exprimindo uma errada percepção da realidade”.
O facto da proposta de seguro ser acompanhada de questionário subscrito por médico que acompanha o tomador do mesmo não isenta este da obrigação de fornecer, por ele próprio, a informação de que carece a seguradora para proceder à avaliação do risco coberto pelo aludido contrato.
Não colhe, deste modo, o argumento sustentado pela recorrente de que, tendo, com a proposta de seguro, sido junta pelo seu falecido marido informação clínica de onde consta a existência da gastrite de já padecia, este não tenha omitido a referida patologia, e que a seguradora dela tinha conhecimento, tanto mais que a referida menção foi vertida em documento manuscrito cuja legibilidade, se não impossível, é seguramente de difícil apreensão.
Não se exige o dolo do declarante, relativamente às suas declarações inexactas ou reticentes, para que a anulação do contrato possa operar: o dolo só adquire relevância no contexto do § único do artigo 429º do Código Comercial.
É igualmente inexigível o nexo de causalidade naturalística entre o facto omitido ou reticente e o sinistro, “tal como se não exige a verificação deste, como não releva qualquer análise feita com base em acontecimentos posteriores à subscrição da proposta, na qual as declarações são feitas”[19].
Incidindo sobre a formação do contrato de seguro, as declarações inexactas ou omissas impedem a formação da vontade real da parte contrária uma vez que esta decide conclui-lo e definir os respectivos termos contratuais com base em factos ou circunstâncias ignoradas, por falseadas ou omitidas.
Continua relevante e actual a doutrina do Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2001, de 21 de Novembro de 2001[20], hoje valendo como Acórdão Uniformizador, ao defender que “sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. A avaliação do que sejam declarações inexactas, ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feito caso a caso.”
A invalidade do contrato de seguro não se basta, porém, com a existência de declarações inexactas ou reticentes: é ainda indispensável que se demonstre, tarefa com a qual é onerada a seguradora, a sua influência sobre a existência do contrato de seguro ou sobre a definição das respectivas condições (designadamente, fixação do prémio)[21].
Como é pacificamente entendido, “não é necessário que as declarações ou omissões influam efectivamente sobre a celebração ou condições contratuais fixadas, bastando que pudessem ter influído ou fossem susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato”[22].
A seguradora aceitou celebrar o contrato de seguro e segundo as condições contratuais nele determinadas no pressuposto enganoso de que o proponente era pessoa saudável, não padecendo de qualquer enfermidade.
O conhecimento de que o marido da Autora sofria, aquando da apresentação da proposta do contrato de seguro, de gastrite atrófica poderia, antes de celebrado o contrato, levar a seguradora, ora apelada, a submetê-lo a exames complementares e, dependendo dos resultados dos mesmos, a contratar em condições diversas (com possível agravamento do prémio), ou mesmo a não contratar sequer[23].

E compreende-se que assim seja: a existência de gastrite atrófica[24] constitui circunstância com influência para a determinação do risco, que surge acrescido em virtude da sua existência. Como se anota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.05.2008, citado, “consoante o conteúdo das respostas ao questionário sobre o estado de saúde do potencial segurado, a seguradora decide se, em definitivo, apresenta uma proposta de seguro e, na hipótese afirmativa, as condições que propõe para que seja celebrado o contrato de seguro, sendo que só então, nessa segunda fase, poderemos dizer que estamos perante um contrato de adesão.

Como tal, tinha o marido da Autora o dever de informar a seguradora, com verdade, da doença que o afectava e cuja existência o mesmo bem conhecia.
Sublinha Moitinho de Almeida,[25] que “uma falsa declaração concernente ao risco pode influir na balança de ambas as prestações, levando à fixação de um prémio inferior ao que seria estabelecido conhecida a realidade, ou mesmo determinando a aceitação pelo segurador de um contrato que de modo algum não aceitaria”, adiantando o mesmo autor: “o questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado e não parece justo, assim, que possa redundar em prejuízo daquele”.
Concluindo-se, assim, que o marido da Autora forneceu, aquando da apresentação da proposta de seguro, dados falsos quanto à sua condição de saúde, omitindo que sofria de doença, cuja existência conhecia, susceptível de influenciar a seguradora na decisão de contratar e na definição das condições contratuais, no caso de aceitar celebrar o contrato de seguro, mostram-se reunidos os pressupostos de que o artigo 429º do Código Comercial faz depender a anulabilidade do contrato.
Por tudo quanto fica dito, é manifesta a inexistência do abuso de direito invocado pela recorrente.

Não merece, por conseguinte, censura a sentença recorrida, improcedendo as conclusões recursivas.


*

Síntese conclusiva:

- No processo de formação do contrato, sobre o tomador do seguro recai o dever de informar a seguradora de todos os factos ou circunstâncias que conheça e possam influenciar esta na decisão de celebrar ou não o contrato ou na definição das condições contratuais.

- Tratando-se de seguro do ramo Vida, essa informação reporta-se ao estado de saúde do tomador do seguro, a qual é prestada normalmente através das respostas dadas ao questionário elaborado e fornecido pela seguradora.

- Sanciona a lei com a anulabilidade do contrato de seguro as declarações falsas, inexactas, reticentes ou omitidas pelo segurados quando as mesmas sejam susceptíveis de influir nas condições de aceitação do contrato e dos respectivos termos.


*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando improcedente a apelação, confirmar a sentença recorrida
Custas pela apelante, levando-se em conta o benefício do apoio judiciário concedido.
Judite Pires ( Relatora )
Carlos Gil
Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., na redacção anterior à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Art.º 664º do mesmo diploma.
[3] Cf. Acórdão Relação do Porto, 25.03.2004, processo nº 0430103, www.dgsi.pt.
[4] Como faz notar a sentença recorrida, ao caso é aplicável o sistema normativo constante do Título XV, artigos 425º a 462º do Código Comercial, entretanto revogado pelo Decreto-Lei nº 78/2008, de 16.04, uma vez ter o contrato sido celebrado antes da entrada em vigor deste diploma.
[5] Artigo 227º, nº1 do Código Civil.
[6] Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 3ª ed., 58.
[7] Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 3ª ed., 221 a 224.
[8] “Da Boa Fé no Direito Civil”, I, pág. 583.
[9] Cf. Joaquín Garrigues, “Contrato de Seguro Terrestre”, Madrid, 1983, pág. 45.
[10] Cf. Joaquim Garrigues, ob. cit., págs. 94-95, e ainda Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.12.2008, processo nº 08A3737, www.dgsi.pt.
[11] Cf., nomeadamente, Moitinho de Almeida, “Contrato de Seguro”, pág. 61, Acórdão da Relação de Lisboa, 28.02.91, Colectânea de Jurisprudência, 1992, t. I, pág. 172, Acórdão da Relação do Porto, 25.03.2004, Acórdão STJ, 22.06.2004, Acórdão Relação de Coimbra, 23.11.2004,  todos em www.dgsi.pt.
[12] Cf. Manuel de Andrade, “Teoria Geral …”, II, pág. 416, Mota Pinto, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, pág. 358, Acórdão Relação do Porto, 14.06.88, Colectânea de Jurisprudência, XIII, t. 3, pág. 239.
[13] Entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2011, processo nº 2617/03.2TBAVR.C1.S1, de 02.12.2008, processo nº 08A3737, de 27.05.2008, processo nº 08A1373, da Relação de Coimbra, de 10.05.2011, processo nº 1002/08.4TBTNV.C1, de 21.12.2010, processo nº 1638/07.0TBMGR.C1, de 21.09.2010, processo nº 337/08.0TBALB.C1.
[14] “Contrato de Seguro”, 1999, págs. 379 a 380.
[15] Processo nº 2617/03.2TBAVR.C1.S1, www.dgsi.pt.
[16] Ob. citada, pág. 65.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.12.2008, já mencionado.
[18] Processo nº 1002/08.4TBTNV.C1, www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2011, citado.
[20]Diário da República, I A, de 27/12/2001.
[21] Cfr., entre outros, Acórdão desta Relação de 10.05.2011, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.12.2008 e de 06.07.2011, todos eles já mencionados, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.02.2012, processo nº 575/07.3ICGMR.G1, e toda a jurisprudência nele, a propósito, citada; José Vasques, ob. cit., pág. 225.,
[22] Citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.07.2011; no mesmo sentido, Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 27.05.2008, processo nº 08A1373, www.dgsi.pt.
[23] Pontos 25º e 26º dos factos provados.
[24] Na gastrite atrófica auto-imune, também denominada Anemia Perniciosa, há uma atrofia da mucosa gástrica em que desaparecem as células que produzem o factor intrínseco, indispensável para que a absorção de vitamina B12 se faça no intestino delgado. Grande parte dos pacientes portadores desta doença apresenta anticorpo anti-célula parietal que pode desempenhar papel importante na destruição das células parietais. A doença pode apresentar um quadro de anemia e neuropatia por deficiência de Vitamina B12., podendo levar a lesões neurológicas graves. Os pacientes com gastrite atrófica invariavelmente desenvolvem áreas de metaplasia intestinal do tipo intestinal ou pilórica e apresentam risco de desenvolver neoplasia gástrica em três a cinco vezes superior aos indivíduos-controles.
O tratamento é eminentemente de suporte, com reposição de vitamina B12 e seguimento periódico destes doentes para rastrear neoplasia gástrica.
[25] Ob. cit., págs. 73 e segs.