Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3609/08.0TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: EXCEPÇÕES
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 06/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 264º/1 DO CPC E ARTº 595º/1 DO CC
Sumário: 1 – Compete à parte que invoca uma excepção, a alegação dos factos em que a mesma se baseia.

2 – Da circunstância de um testemunha afirmar ser casada com uma das partes não se pode concluir nem pelo casamento, nem pela preterição de litisconsórcio necessário passivo.

3 – A obrigação de pagamento do preço de mercadorias nasce com a negociação com vista á entrega das mesmas e consolida-se com tal entrega.

4 – Não é responsável pelo pagamento do preço a parte, relativamente à qual, não se provou ter negociado aquela entrega ou ter-se, de alguma forma, obrigado ao pagamento.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A..., R. na acção, residente ..., interpôs recurso da sentença que a condenou a pagar a quantia de 18.299,65 e juros, clamando pela sua absolvição, da instância por preterição de litisconsórcio necessário, ou do pedido.

   Formula as seguintes conclusões:

   A – Estamos perante preterição de litisconsórcio necessário passivo, havendo uma incorrecta aplicação (ou não aplicação) do Artº 28ºA/1 e 3 do CPC, bem como excepção dilatória, nos termos do Artº 493º/2 e 494º do CPC que deverá dar lugar à absolvição da instância, o que muito respeitosamente e fundamentadamente, se invoca e se pede.

   B – Estamos perante um litisconsórcio necessário passivo por quatro ordens de razão, distintas entre si e que cada uma, de per si, justificariam autonomamente a compreensão do invocado litisconsórcio: a) a casa está a ser construída, mas irá com certeza estar pronta, habitável e habitada como morada de família da A. com a testemunha, antes do trânsito em julgado da presente acção, sendo de aplicar o Artº 28ºA/3 do CPC; b) por outro lado, olvidou a Mª Juíza do Tribunal a quo que sempre estaríamos perante uma acção que tem por objecto directa, ou indirectamente, a casa de morada de família, pois trata-se de fornecimento de materiais para esta; c) ainda olvidou a Mª Juíza que também estamos perante uma acção de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que, só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, pois a A. alega que tais materiais estão na obra – como erradamente, a douta sentença afirma – sendo que tal obra, ou a sua edificação, é um bem comum do casal; d) eventualmente em sede executiva, a A. irá executar os bens comuns do casal.

   C – No caso concreto houve uma incorrecta aplicação do Artº 559º do CC, pois nunca deveria – por tudo, aliás, ser a R. condenada a pagar seja o que fosse, mas, até se o fosse, só poderia ser a sua responsabilidade solidária ou subsidiária, concomitante com o empreiteiro, pois nunca houve uma declaração expressa de exoneração do credor.

   D – Foram incorrectamente julgados os seguintes pontos, constantes da sentença: 2 (1º a 15º), 3 (16º), 4 (17º) e 5 (17º).

   E – Não resulta provado, porque não se sabe, se tais materiais constantes concretamente nas facturas foram entregues e encontram-se na obra: nenhuma testemunha os especifica e nenhuma testemunha afirma tal entrega.

   F – Não resulta provado que a R. alguma vez, algum dia, se tenha obrigado a pagar tal encomenda, pois nenhuma testemunha afirma ter ouvido tal compromisso, antes pelo contrário, foi o empreiteiro que encomendou (sendo um fumus juris de quem assume o compromisso de pagar) e foi o empreiteiro que se obrigou a pagar (conforme presenciou pessoalmente a testemunha E... e as outras).

   G – A R. nunca negociou, nem contratou, nem tão pouco teve conhecimento dos materiais, quantidades, especificações, preços.

   H – A R. quis uma telha melhor do que aquela que o empreiteiro tinha negociado e contratado e obrigado apagar á A., e a R. pagou essa diferença, mas não se pode exigir o dinheiro dos materiais das facturas porque quem encomendou e se obrigou a pagar foi o empreiteiro, pelo contrato chave na mão, que celebrou com a R., tanto que recebeu o dinheiro por tais materiais e pelo contrato de compra e venda que celebrou com a A..

   I – Sem qualquer fundamento legal – perdoe-se – a sentença proferida em 1ª instância exige um duplo pagamento da R., sem qualquer obrigação disso.

   J – A R. pode ser melhor pagadora, em termos de solvência, do que o empreiteiro, compreendendo-se a intenção da A., mas não lhe pode ser exigido tal pagamento, porque não é devedora.

   L – Assim decorre necessariamente das testemunhas B... , G... , C.... , D... , E... e F..., conforme anterior transcrição, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

 H..., SA., A. na acção, sedeada na ...., contra-alegou.

   Pugnou pela manutenção da sentença, alegando, em síntese, que não existe preterição de litisconsórcio porque não há casa de morada de família, não se discutindo direitos dos cônjuges, que ficou provado que a A. se obrigou perante si a garantir pessoalmente o pagamento dos materiais e, quanto à impugnação da matéria de facto, que resulta dos autos que todos os depoimentos foram devidamente sopesados, sendo a decisão insindicável, sustentando-se a matéria de facto nos depoimentos de B..., G... e I....


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   Para cabal compreensão, façamos um resumo do processo.

   H..., S.A., intentou a presente acção declarativa contra A..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 19.228,49, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.

   Alega, para o efeito, que, no exercício da sua actividade comercial, forneceu à Ré e esta recebeu as mercadorias constantes das facturas juntas aos autos, no valor de € 27.122,48. A este valor tem de ser deduzida a quantia de € 8.302,62 entregue pela Ré por conta das referidas facturas e o valor de € 520,21, referente a seis notas de crédito. Apesar de várias tentativas de cobrança realizadas pela A. junto da Ré, esta nada mais pagou por conta do montante em débito ou dos respectivos juros legais de mora.

   A Ré, na sua contestação, defende nada ter encomendado ou comprado à A.. Celebrou um contrato de empreitada com a sociedade I..., Construções, Lda, para a construção de uma moradia, nos termos do qual o preço acordado incluía todos os materiais a utilizar na obra. E terá sido esta sociedade quem encomendou à A. os materiais a que correspondem as facturas apresentadas. O cheque pago pela Ré à A. da sua conta pessoal corresponde à diferença entre o preço das telhas contratadas com a empreiteira (telhas ...) e as telhas, mais caras (telhas ...), pelas quais optou mais tarde.

   Procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, não tendo sido objecto de reclamação as respostas aos quesitos.

   Veio a ser proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 18.299,65, acrescida de juros de mora vencidos até à propositura da acção no valor de € 928,84, e dos vincendos, à taxa legal para os juros comerciais, a partir de então e até integral pagamento.


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   Das conclusões supra exaradas, extraem-se três questões a decidir:

   1ª – Houve preterição de litisconsórcio necessário?

   2ª – A matéria de facto revela-se incorrectamente julgada?

   3ª – A R. não negociou com a A.?


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   Por razões de lógica processual, comecemos pela 2ª questão, o erro de julgamento da matéria de facto.

   No cumprimento do ónus decorrente do disposto no Artº 685º-A/1 do CPC, a Recrte. indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, bem assim, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão.

   Trata-se de avaliar os depoimentos proferidos pelas testemunhas B..., G..., C..., D..., E... e F... e as respostas dadas pelo Tribunal a quo á matéria que integrava os quesitos 1º a 18º (pontos nº 2 a 5 da sentença).

   Conforme supra exposto, a Recrdª contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão com base nos depoimentos das testemunhas B..., G... e I....

   Os poderes de reapreciação da matéria de facto pela Relação estão circunscritos à reapreciação dos concretos meios probatórios invocados, dispondo, contudo, a mesma da possibilidade de valorar de forma diversa da da 1ª instância, os meios de prova sujeitos à sua livre apreciação, como é o caso dos depoimentos testemunhais.

   A prova nos autos decorreu também de vária documentação junta, documentação essa cuja análise terá de efectuar-se.

   Indagava-se nos quesitos em referência o seguinte:

   A A., no exercício da sua actividade, forneceu à Ré e esta recebeu, as mercadorias constantes das seguintes facturas: nº 3039... (1º), nº 3151... (2º), nº 3161... (3º), nº 115... (4º), nº 134... (5º), nº 142... (6º), nº 187... (7º), nº 222... (8º), nº 331... (9º), nº 582... (10º), nº 591... (11º), nº 592... (12º), nº 1753... (13º), nº 1921... (14º), nº 2030... (15º)[1]?

   Por conta da mercadoria que adquiriu à A. constante das facturas aludidas em 1) a 15), a Ré entregou à A. a quantia de € 8.302,62 (16º)?

   A A. sobre as referidas facturas emitiu as notas de crédito juntas a fls. 25 a 29, no valor de € 520,21 (17º)?

   A. e Ré acordaram que as facturas aludidas seriam pagas na data que nelas consta (18º)?

   Com excepção dos quesitos 16º a 18º, que mereceram resposta de provado, todos os demais, respondidos em conjunto, obtiveram resposta de “provado apenas que a A., no exercício da sua actividade, forneceu à Ré, por encomenda do empreiteiro da obra desta, mas mediante prévio compromisso da Ré de as pagar, as mercadorias constantes das seguintes facturas: 1) nº 3039...”.

   Exarou-se na decisão respectiva que “relativamente aos quesitos 1º a 15º, conjugados os depoimentos das várias testemunhas entre si, e estes com os documentos juntos aos autos, mereceram-nos maior credibilidade os depoimentos das testemunhas B... e G..., que depuseram de forma clara, precisa, e que explicaram de forma plausível porque motivo a A. nunca forneceria os materiais se a R. não se tivesse obrigado a pagá-los. Por outro lado é estranho que a R. tivesse recebido as 15 facturas e se limitasse a fazer telefonemas, a partir de determinada altura, a pedir que as mesmas fossem emitidas em nome do empreiteiro, sem nenhum contacto por escrito ou pessoal (até Setembro de 1008) com a A.. Por outro lado, o marido da R., no final do primeiro semestre de 2008, quando já tinham sido emitidas e enviadas a maior parte das facturas, esteve simultaneamente com o Sr. I...e com o Sr.L... na obra e também nada referiu acerca das facturas.” Quanto aos quesitos “16º, 17º e 18º, o Tribunal fundou a sua convicção no depoimento das testemunhas B... e G..., cuja razão de ciência é a já indicada”.

   Conforme decorre do que dispõe o Artº 685ºA/1-b) do CPC, impugnada a matéria de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição, os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida.

   Daqui decorre que da alegação há-de poder concluir-se, qual é, afinal, a resposta que o recorrente pretende que o tribunal profira.

   Pretende a Recrte. que não se provou se os materiais constantes das facturas foram entregues e se encontram na obra, se alguma vez se obrigou a pagar tal encomenda, que nunca negociou ou teve conhecimento dos materiais.

   Significa isto que a Recrte. propõe (1) respostas restritivas aos quesitos 1º a 15º, com supressão do segmento “forneceu à R.... mediante compromisso de a R. as pagar, as mercadorias constantes das facturas... e (2) resposta de não provado relativamente aos quesitos 16º e 18º.

   Quanto ao quesito 17º, a A. nada propõe, pelo que, nessa parte, não conheceremos do objecto do recurso.

   Vejamos, então.

   Antes, porém, de entramos na apreciação da questão em análise, cumpre assinalar que a resposta aos quesitos 1º a 15º se revela excessiva.

   Conforme expusemos, indagava-se se a A. forneceu à R. e esta recebeu, as mercadorias a que se reportam as várias facturas.

   Veio a responder-se que a A. forneceu à R., por encomenda de terceiro, e mediante prévio compromisso daquela em pagar, as ditas mercadorias.

   Caracterizou-se, assim, uma realidade substancialmente distinta, que está muito para além do que se alegava.

   O Artº 264º do CPC consagra o princípio do dispositivo, do qual resulta, entre outras, que cabe ás partes a alegação dos factos que integram a causa de pedir, e que o juiz só pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo dos que não carecem de alegação e prova, e dos instrumentais que lhe advenham ao conhecimento por via da instrução e prova.

   Não se tratando, no caso concreto, de nenhuma das excepcionadas situações, mas antes da carrear para os autos matéria fáctica cuja interpretação levará á caracterização de um negócio distinto daquele que vinha alegado, a resposta, nessa parte (a que sublinhámos), terá que considerar-se não escrita.

   Caso contrário, violar-se-ia o disposto no Artº 664º do CPC, de acordo com o qual o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes.

   Resta, assim, em face do recurso, analisar a prova a fim de aferirmos se a mesma é suficiente para formular a convicção na parte restante, ou seja, se a A. forneceu á R. as mencionadas mercadorias. Do mesmo passo, analisar-se-á a prova para aferir do bem ou mal fundado das demais respostas.

   Comecemos pelos documentos.

   Mostram-se juntas 15 facturas, da autoria da A., relativas a materiais como telhas, remates, telhões, tijolo, paletes, areia, ferro, brita, cimento, pirâmide, etc.. Todas estas facturas foram emitidas tendo como destinatário a R. (fls. 124 e ss.).

   Também existem 5 notas de crédito relativas a paletes e telha, emitidas pela A. em nome da R. (fls. 141 e ss.).

  Com relevo para a decisão, está também junto um documento que titula um acordo entre a R. e I..., Construções, Ldª, referente à construção da casa em discussão nos autos que menciona, entre outros, que o preço pretendido inclui “todos os materiais a utilizar na construção da moradia, assinalados no respectivo caderno de encargos” (fls. 81).

   Consta ainda dos autos um caderno de encargos relativo à construção de moradia uni familiar, anexo e muro (alvoramento).

   No que concerne aos depoimentos das testemunhas, apenas o de I... é cheio de hesitações, não revelando absoluta segurança.

   As testemunhas B... e G...puderam confirmar, sem que haja razão para delas duvidar, que os materiais reportados nas facturas foram entregues na obra da R..

   Relatam também um acordo entre a R., o administrador da A. e o construtor I..., segundo o qual a A. forneceria telha para a obra se a R. lha pagasse directamente, visto o construtor manter dividas para consigo, o que a R. terá aceite. Contudo, nenhuma delas assistiu â reunião que terá levado ao acordo, baseando-se na palavra do mencionado administrador e na circunstância de ele ter telefonado á 1ª a indagar acerca da possibilidade de fazer um desconto á R., ao que esta respondeu que só seria possível se houvesse pronto pagamento, e na de o mesmo ter comparecido na empresa e dado instruções para fornecimento.

   Porém, e concomitantemente, a testemunha B...é elucidativa quando afirma que quem fez encomendas foi o Sr. I...e que este é que pediu orçamento para telha, explicitando, todavia, que o orçamento lhe foi entregue com a advertência de que o acordo de fornecimento teria que ser directamente com dono da obra.

   Do mesmo modo, a testemunha G...afirmou que as encomendas eram feitas por I...e foram entregues na obra.

   Ambas as testemunhas presenciaram o pagamento da quantia de oito mil e tal euros por parte da R., visto o mesmo ter ocorrido na empresa.

   O I... explicou, ente as suas hesitações, que ao fazer o orçamento para a A., previu uma telha que, depois não foi a escolhida por esta. Daí que tivesse acordado com a mesma que ela pagaria a diferença entre o valor orçado e o valor da telha pretendida directamente à empresa fornecedora. Todavia, também diz que acordaram os três (R., A. e ele próprio) em que a R. pagaria a telha à H....

   Com um tal depoimento ficamos sem saber o concreto acordo que foi efectuado, muito embora tudo indique que algumas conversações terão sido mantidas, até porque o administrador da A foi visto por várias vezes na obra da R..

   Relevante é o depoimento do marido da R., C..., segundo o qual celebraram com I...um contrato com vista á construção da moradia, “com chave na mão”, ou seja, casa totalmente pronta, que não tinham conhecimentos acerca de materiais e, por isso, fizeram tal opção. Esclareceu ainda que no orçamento previa-se uma determinada telha e que depois optaram por outra, mais cara. Ao regularizarem a 4ª fase de pagamentos ao Sr. I..., este pediu-lhes que emitissem, directamente em nome da A., um cheque, no valor de oito mil e tal euros com vista ao pagamento da diferença entre o valor da telha aplicada e da orçada. E assim fizeram.

   Certamente por isso, as testemunhas B..... e G...presenciaram o pagamento da dita quantia.

   Da conjugação de todos depoimentos resulta uma primeira certeza – a haver pagamento directo à A. (e, como se verá adiante não se pode adquirir esta certeza) o único material relativamente ao qual se falou que a R. pagaria directamente à A. seria telha.

   Ora, as facturas, conforme referimos mencionam vários outros materiais que não se percebe como é que a R. teria encomendado, visto ter celebrado um contrato com vista á construção de uma moradia, cujo preço incluía todos os materiais.

   A explicação avançada por C... (em sintonia, aliás, com o que se alegava na contestação) parece, pois, legítima.

   Mas, também a testemunha E... (tio) mencionou saber da opção por telha diversa, dizendo que ao Sr. I...seria devida a verba orçamentada e que a A...pagaria a diferença á empresa vendedora. Também adiantou que o I... admitiu perante si ter recebido o valor relativo á telha que orçamentou.

   No que concerne às demais testemunhas, nada de relevo há a registar.

   Assim, certo é que a R. forneceu materiais para a obra da A. e que tais materiais são aqueles a que se reportam as facturas constantes dos autos.

   Esta é, porém, a única certeza decorrente da prova.

   Nenhum elemento existe que nos possa dar a segura convicção de que a A. e a R. acordaram no pagamento das facturas nas datas que nelas constam ou que tivessem celebrado algum acordo de fornecimento.

   A este propósito diga-se aliás, que não deixa de ser curioso que a testemunha B...afirme que o acordo previa um desconto de pronto pagamento, e, todavia, nenhuma factura menciona qualquer desconto. Além disso, a testemunha G...relata que elaborou carta a pedir pagamento em Março ou Abril de 2008, e o grosso da facturação data de Dezembro de 2007. Se efectivamente tivesse sido celebrado algum acordo com a cláusula de pronto pagamento, não se perceberia esta atitude.

   Acresce às nossas dúvidas a circunstância de não existir um recibo relativo á quantia paga. Dele poderíamos, eventualmente, extrair a que concretas facturas se reporta. É que nenhuma das facturas se cifra em tal montante ou tem uma tal quantia inscrita. Se o valor dos oito mil e tal euros fosse uma entrega por conta, não seria comum que se cifrasse, como alegado, em 8.302,62€.

   Da análise que efectuamos da prova resulta-nos, assim, a seguinte convicção:

   Quesitos 1º a 15º – Provado apenas que a A., no exercício da sua actividade, forneceu à obra da Ré, as mercadorias constantes das seguintes facturas: 1) nº 3039, datada de 07/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 22.381,65; 2) nº 3151, datada de 26/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 408,07; 3) nº 3161, datada de 27/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 29,71; 4) nº 115, datada de 17/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 678,54; 5) nº 134, datada de 21/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 14,16; 6) nº 142, datada de 22/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 213,79; 7) nº 187, datada de 25/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 231,44; 8) nº 222, datada de 31/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 6,35; 9) nº 331, datada de 11/02/2008, do montante, IVA incluído, de € 69,88; 10) nº 582, datada de 06/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 101,69; 11) nº 591, datada de 07/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 1.330,55; 12) nº 592, datada de 07/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 52,27; 13) nº 1753, datada de 18/07/2008, do montante, IVA incluído, de € 80,16; 14) nº 1921, datada de 10/08/2008, do montante, IVA incluído, de € 525,70; 15) nº 2030, datada de 28/08/2008, do montante, IVA incluído, de € 998,52.

   Quesito 16º – Provado que a R. entregou á A. a quantia de 8.302,62€.

   Quesito 18º – Não provado.


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   É a seguinte a matéria de facto cuja prova se obteve:

   1 – A A. é uma sociedade que visa a comercialização de materiais de construção (A).

   2 - A A., no exercício da sua actividade, forneceu à obra da Ré as mercadorias constantes das seguintes facturas: 1) nº 3039, datada de 07/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 22.381,65; 2) nº 3151, datada de 26/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 408,07; 3) nº 3161, datada de 27/12/2007, do montante, IVA incluído, de € 29,71; 4) nº 115, datada de 17/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 678,54; 5) nº 134, datada de 21/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 14,16; 6) nº 142, datada de 22/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 213,79; 7) nº 187, datada de 25/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 231,44; 8) nº 222, datada de 31/01/2008, do montante, IVA incluído, de € 6,35; 9) nº 331, datada de 11/02/2008, do montante, IVA incluído, de € 69,88; 10) nº 582, datada de 06/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 101,69; 11) nº 591, datada de 07/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 1.330,55; 12) nº 592, datada de 07/03/2008, do montante, IVA incluído, de € 52,27; 13) nº 1753, datada de 18/07/2008, do montante, IVA incluído, de € 80,16; 14) nº 1921, datada de 10/08/2008, do montante, IVA incluído, de € 525,70; 15) nº 2030, datada de 28/08/2008, do montante, IVA incluído, de € 998,52 (1º a 15º).

   3 – A Ré entregou à A. a quantia de € 8.302,62 (16º).

   4 – A A. sobre as referidas facturas emitiu as notas de crédito juntas a fls. 25 a 29, no valor de € 520,21 (17º).


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   Cabe agora analisar a primeira das enunciadas questões – a preterição de litisconsórcio necessário passivo.

   Pretende a Recrte. que estamos perante preterição de litisconsórcio necessário passivo, porquanto (a) a casa está a ser construída, mas irá com certeza estar pronta, habitável e habitada como morada de família da A. com a testemunha, antes do trânsito em julgado da presente acção, sendo de aplicar o Artº 28ºA/3 do CPC; (b) por outro lado, sempre estaríamos perante uma acção que tem por objecto directa, ou indirectamente, a casa de morada de família, pois trata-se de fornecimento de materiais para esta; (c) também estamos perante uma acção de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que, só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, pois a A. alega que tais materiais estão na obra, sendo que tal obra, ou a sua edificação, é um bem comum do casal; (d) eventualmente em sede executiva, a A. irá executar os bens comuns do casal.

   É com alguma ligeireza que se invoca esta excepção. Vejamos porquê.

   A presente acção foi interposta contra a R., que não invocou nenhuma excepção.

   Ocorre, porém, que na sequência da produção de prova, a testemunha C... declarou que era marido da R..

   É então que o ilustre mandatário desta pede a palavra para invocar a excepção que nos ocupa, alegando que “aquando do depoimento da testemunha Dr. C..., este expressamente declarou que é casado em regime de comunhão de adquiridos com a R. e que o início da construção da moradia em causa ocorreu na constância do matrimónio” e que “neste momento é vontade real do casal vir a ser aquela a sua morada casa de família”.

   Observado que foi o contraditório, o Tribunal a quo veio a proferir decisão mediante a qual julgou a excepção improcedente.

   É desta decisão que vem interposto recurso.

   Conforme decorre do que dispõe o Artº 264º/1 do CPC, às partes cabe alegar os factos em que se baseiam as excepções que invoquem.

    Ora, nenhum facto foi alegado pela R. que permita, sequer, por a hipótese de conhecer de alguma excepção.

   A invocação da excepção parte do pressuposto de que a R. é casada, facto que a mesma não alegou, limitando-se a invocar que uma testemunha declarou ser casado consigo, o que não é, manifestamente, o mesmo.

   Também nenhum documento foi junto com vista à prova de uma tal realidade e, conforme é sabido, a prova do casamento carece de documento para o efeito.

   A tudo acresce que não basta ser casado para demandar a aplicação do regime consignado no Artº 28º-A do CPC. Impõe-se também a alegação e prova do regime de bens respectivo.

   Por outro lado, ainda, na presente acção formula-se pedido de condenação da R. no pagamento de determinada quantia, assente numa pretensa relação de comércio estabelecida entre a mesma e a A..

   Destes factos não se infere em que medida teria lugar a aplicação do disposto no Artº 28º-A do CPC.

   Termos em que, sem necessidade de outros considerandos, improcede a questão em análise.


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   Podemos, assim, deter-nos sobre a última das questões suscitadas no recurso, a saber, se a R. não negociou com a A., o que passa por saber que tipo de relação se terá estabelecido entre ambas.

   A sentença recorrida qualificou o negócio como de assunção de dívida, integrando os factos no disposto no Artº 595º/1-b) do CC.

   A Recrte. insurge-se alegando que nunca negociou, nem contratou com a A., inexistindo qualquer assumpção de dívida pela sua parte.

   Neste ponto a R. tem toda a razão.

   Não só um tal negócio não foi sequer invocado pela A., como dos factos cuja prova se obteve não se pode concluir por alguma assunção de dívida.

   A presente acção estruturou-se de modo a enquadrar a situação numa típica relação de fornecimento que, é, a final, uma compra e venda com a particularidade de ocorrência de prestações periódicas de coisas.

   A transmissão, a título singular, de uma divida, pressupõe a existência de uma dívida e um negócio de transmissão subsequente.

   Na verdade, e como decorre do que dispõe o Artº 595º/1 do CC, tal situação pode verificar-se por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor ou por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.

   Ora, da acção não resultam, como não resultavam antes da reapreciação da matéria de facto, quaisquer factos dos quais se possa extrair um negócio deste género.

   O que resulta dos autos é que a A., no exercício da sua actividade, forneceu à obra da Ré, diversas mercadorias, facturadas a um determinado preço.

   Desconhece-se, contudo, quem se obrigou a pagar o preço, ou quem pediu as mercadorias.

   Um contrato é, necessariamente, um encontro de vontades (Artº 232º do CC).

   No caso concreto não se obteve prova que permita concluir que vontades se manifestaram e se encontraram de forma a concluir um determinado negócio.

   Diga-se em abono da verdade que da petição inicial já não constava qualquer facto que permitisse concluir pela existência de algum negócio entre A. e R., visto aquela se ter limitado a alegar que forneceu á R. e esta recebeu as mercadorias, sem que as tivesse pago. Só na resposta á contestação a A. vem invocar um contrato com a R.! E fá-lo porque esta alegou que nada contratou e quem encomendou os materiais das facturas foi uma sociedade construtora, explicando a razão pela qual fez, ela própria, um pagamento directo á A..

   A procedência da acção pressupunha, pois, a prova da relação de comércio estabelecida entre ambas as partes (Artº 243º/1 do CC).

   Dada a exiguidade da matéria de facto cuja prova se obteve, nenhuma responsabilidade pelo pagamento das mercadorias entregues na obra da R. se lhe pode impor, porquanto, conforme decorre do que dispõe o Artº 516º do CPC, a dúvida sobre a realidade de um facto, resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

   Assim, na procedência do recurso, impõe-se a absolvição da R. do pedido.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar a sentença, absolvendo a R. do pedido formulado na acção.

   Custas pela Recrdª.

   Notifique.


[1] A cada número de factura segue-se a respectiva data, montante e a expressão IVA incluído.