Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
128/17.8YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
CONFIRMAÇÃO
Data do Acordão: 12/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA PENAL ESTRANGEIRA
Decisão: PARCIALMENTE REVISTA E CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 229.º E 234.º DO CPP; LEI N.º 144/99, DE 31 DE AGOSTO
Sumário: I - A revisão e confirmação de sentença penal estrangeira é um processo específico para a produção de eficácia em Portugal das sentenças estrangeiras, ou seja, para a possibilidade de serem executadas em Portugal.

II - O primeiro pressuposto da revisão e confirmação de sentença penal estrangeira é a existência de lei, tratado ou convenção que preveja ou admita a possibilidade dessa sentença poder ter eficácia em Portugal, isto é, na ordem jurídica portuguesa.

III - O segundo pressuposto é que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa.

IV - A legislação portuguesa não prevê a existência de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, pelo que a detenção de “instrumentos” (frasco, recipiente de vidro, tubo de aspiração e palhinhas) pelo requerido para utilizar no consumo de produtos estupefacientes não é punível entre nós.

V- Nesta parte, não pode ser confirmada a decisão judicial, devendo dela expurgar-se a condenação pelo crime de detenção indevida de utensílio.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

      Relatório

            O Ex.mo Procurador Geral-adjunto neste Tribunal da Relação instaurou o presente processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, nos termos dos artigos 236.º do Código de Processo Penal e 3.º e 6.º da Resolução da AR n.º 80-B/99, que aprova, para assinatura, o Acordo entre o Governo de Portugal e o Governo de Macau sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, mantido em vigor pelo art.10, n.º 2 do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a Região Administrativa Especial de Macau, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º19/2002 de 16/3, e 99.º, n.º 4 e 123.º, n.º 1, da Lei 144/99, de 31/08, com vista à transferência para Portugal do cidadão português A... A... , filho de (...) e de (...) , casado, nascido a 14 de Julho de 1955, em Macau, atualmente detido, em cumprimento de pena, no Estabelecimento Prisional de Macau, em (...) , Macau.

Alegou, em síntese, para a revisão e confirmação de três decisões penais condenatórias macaenses: 

1- Por decisão de 16 de Fevereiro de 2011, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n ° CR3-10-0153-PCC, transitada em julgado, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, já que, em 6 de Janeiro de 2010, detinha, para venda e consumo, 33.3451 gramas de Ketamina, 8.813 gramas de Metanfetamina e substâncias que continham Nimetazepam, p. e p. pelo art.8.°, n.º1 da Lei 17/2009 de 10/8, da Região Administrativa Especial de Macau, na pena de 7 anos e 8 meses de prisão, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.14.º da mesma Lei, na pena de 45 dias de prisão e de um crime de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.15.°, também desta Lei, na pena de 45 dias de prisão e, em cúmulo jurídico destes três crimes, na pena de 7 anos e 9 meses de prisão.

2- Por decisão de 11 de Janeiro de 2013, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n ° CR4-12-0195-PCC, transitada em julgado em 21/1/2013, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.11.º, n.º l da citada Lei, na pena de 2 anos de prisão, pela venda, em 12 de Novembro de 2009, de 0,639 gramas e de 0,834 gramas de Ketamina, a qual foi cumulada com a pena anterior, sendo condenado na pena de 8 anos e 9 meses de prisão. E,

3- Por decisão de 3 de Julho de 2015, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n.º CR2-14-0010-PCC, transitada em julgado, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.311.º do CP de Macau, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, por factos praticados a 6 de Janeiro de 2010, antes de ter sido efetuada a busca que verificou a detenção dos produtos supra mencionados pelos quais foi condenado como referido em 1, sendo o requerido detido nessa data, dando entrada no dia 7/1/2010 no aludido EP, onde ainda se encontra a cumprir pena, tendo esta última pena sido cumulada com as anteriores e aplicada a pena única de 9 anos e 2 meses de prisão.

4- Os Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, República Popular da China, são os competentes, para o julgamento e condenação do Requerido, tanto pela lei macaense, como pela lei portuguesa.

5- As decisões revidendas, em traços gerais e exceção feita à incriminação da detenção de utensílios mencionada no ponto 1, não contêm disposições contrárias ao ordenamento jurídico português, embora a qualificação e punição seja diferente como infra se referirá, havendo assim que proceder às alterações necessárias, nos termos do art.237.º, n.ºs 1 b) e 3 do CPP e 11.º do aludido Acordo de Transferência.

6- Assim, em relação à primeira decisão, acima relatada em 1, como se referiu e tendo em conta a sua não incriminação, não pode ser confirmada a punição pelo uso de utensílio, o mesmo sucedendo quanto ao consumo de estupefaciente, que apenas o poderá ser em termos contraordenacionais, nos termos dos art.ºs 2.º e 16.º, n.º1 da Lei 30/2000 de 29/11, e unicamente no que respeita à Metanfetamina e Nimetazepam, pois a Ketamina não consta da Lista Anexa ao DL 15/93 de 22/1, sendo, só a partir de 18/4/2013, punida a sua detenção e consumo, com coima, nos termos dos art.ºs 3°, 4°, 10° e 19° do DL 54/2013 de 17/4, pois consta da lista anexa à Portaria 154/2013, da mesma data, sob o n.º 159, não sendo proibida à data dos factos, não podendo pois ser também confirmada a decisão quanto ao tráfico deste produto, visto o disposto no art.2.° do RGCO.

7- Nestes termos deverá ser confirmada esta decisão, no que respeita ao tráfico dos produtos antes aludidos e também proibidos e punidos na lei portuguesa pelo art.21.º do DL 15/93 de 22/1, ou seja, a punição de 7 anos e 8 meses de prisão.

8- O que se afirmou em 6 relativamente à Ketamina impõe a não confirmação da segunda decisão, relatada em 2, de 11/1/2013, ou seja, o tráfico punido com dois anos, por factos de 12 de Novembro de 2009.

9- Por último, os factos por cuja prática o requerido foi penalmente responsabilizado, na terceira decisão, supra referida em 3, estavam e estão criminalizados na lei portuguesa, também como crime de resistência e coação sobre funcionário, no art.347.º do CP, devendo assim confirmada a punição de 1 ano e 3 meses e prisão, na qual foi condenado.

10- Importando efetuar o cúmulo jurídico das penas aplicadas que deverão ser confirmadas, que somam 8 anos e 11 meses, porque os factos ocorreram na mesma data, sendo a resistência efetuada para se opor à fiscalização de que ia ser alvo, sendo o requerido primário, parece-me que a pena única se deverá situar um pouco acima dos 8 anos, ficando nos 8 anos e 2 meses.

11- Não foi o requerido objeto de procedimento criminal em Portugal quanto aos crimes cuja punição deverá ser confirmada.

12- Nos tribunais macaenses o requerido foi assistido por defensor.

13 - O Requerido, que deseja e pretende ser transferido para Portugal, é cidadão português e teve a última residência conhecida em Portugal, na x (...) Leiria, onde reside uma sua irmã que se dispõe a acolhê-lo e apoiá-lo e que já o fez anteriormente, podendo operar-se em Portugal, com maior facilidade, a sua reinserção social.

14- O Governo da Região Administrativa Especial de Macau dá o seu parecer favorável à transferência do Requerido para Portugal.

15- E o Governo Português, por despacho, de 2 de Maio de 2017, de Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, concedeu o seu acordo à transferência para Portugal do requerido cidadão português, A... a fim de, em Portugal, cumprir o remanescente das penas de prisão em que foi condenado em Macau, pelos referidos crimes de tráfico de estupefacientes e resistência e coação sobre funcionário.

16- As referidas decisões penais macaenses, para poderem ser executadas em Portugal, necessitam de prévia revisão e confirmação por um tribunal português.

17- O Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos dos art°s. 235.º, n.º1 do CPP, e 99.º, n.º 4 e 123.º, n.º1, da Lei 144/99, de 31/08, é material e territorialmente competente para a presente revisão de sentença.

18- Tendo, por outro lado, o Ministério Público, nos termos dos art.ºs. 236.º do CPP, e 99.º, n.º4 e 123.º, n.º1, da citada Lei 144/99, legitimidade para formular e deduzir o presente pedido.

19- O qual tem fundamentação legal nos normativos constantes da citada Lei n.º 144/99, nomeadamente nos seus art.ºs 96.º, n.º 1, 98.º, 99.º, 100.º, n.º1, 115.º, n.º s 1 e 4, 118.º, n.º 3 e 123.º, n.º 1, bem como nos art.ºs 234.º a 240.º do CPP, e o disposto na Resolução da AR n.º 80-B/99 de 16/12, que aprova, para assinatura, o Acordo entre o Governo de Portugal e o Governo de Macau sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, mantido em vigor pelo art.10, n.º 2 do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a Região Administrativa Especial de Macau, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º19/2002 de 16/3, tendo a Exm.ª Senhora Ministra da Justiça Portuguesa, por despacho de 2 de Maio de 2017, concordado, aceite e considerado admissível o pedido do cidadão português A... , para cumprimento, em Portugal, do remanescente das penas de prisão em que foi condenado em Macau, pelos referidos crimes de tráfico de estupefacientes e resistência e coação sobre funcionário, por decisões, transitadas em julgado, proferidas pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, nos processos n ° CR3-10-0153-PCC e CR2-14-0010-PCC, à ordem dos quais se encontra detido no Estabelecimento Prisional de Macau, em (...) .

            Conclui que deverão declarar-se revistas e confirmadas as decisões de 16/02/2011 e 3/07/2015, transitadas em julgado, constantes do expediente junto, e proferidas pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, que condenaram o cidadão português, A... , nas penas de prisão acima referidas, com os ajustamentos supra expostos neste requerimento, nos termos dos artigos 98.º e 101.º, n.º 1 da Lei n.º 144/99, de 31/08 e 237° n.ºs 1 b) e 3) do CPP (não incriminação, diferente qualificação e não incriminação), efetuando novo cúmulo jurídico na sequência do que deverá determinar-se a situação prisional do requerido, a esclarecer posteriormente, aqui ou na 1 a Instância, para onde será remetido o processo, após trânsito em julgado do acórdão, que vier a ser proferido.

Instruiu o pedido com, designadamente, um ofício do Governo da Região Administrativa Especial de Macau - Direção dos Serviços Correcionais de Macau; um pedido de transferência do recluso para Portugal; cópias certificadas do assento de nascimento deste, dos acórdãos/sentença proferidos pelos Tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, traduzidos para português, da legislação aplicada nas decisões judiciais; e despacho da Ex.ma Ministra da Justiça, de 2 de Maio de 2017, concedendo o seu acordo à transferência para Portugal do requerido A... .

            Citado o requerido para, querendo, deduzir oposição, no prazo de 15 dias, nos termos do disposto no art.981.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.240.º do Código de Processo Penal, veio o mesmo declarar que renuncia ao prazo que corre a seu favor.

            Cumprido o disposto no art.982.º, n.º1, do Código de Processo Civil, o Ministério Público e o requerido A... apresentaram alegações.

O Ministério Público pugna, no essencial, que devem ser revistas e confirmadas as decisões proferidas em 16 de fevereiro de 2011 e em 3 de julho de 2015, embora quanto à primeira delas apenas no que respeita ao crime de tráfico de estupefacientes e, por estarem numa relação de concurso, deve efetuar-se o cúmulo das penas entre as penas de 7 anos e 8 meses de prisão e de 1 ano e 3 meses de prisão, e fixar-se uma pena única um pouco acima de 8 anos de prisão, a fim do requerido cumprir no nosso País o remanescente das penas.  

Por sua vez, o requerido, através de Defensor constituído, alegou, em síntese, que se encontram preenchidos todos os requisitos para o reconhecimento/confirmação de sentença estrangeira, nos termos formulados pelo Ministério Público. 

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

    Fundamentação

            Da prova documental junta aos autos resultam, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

1- Por decisão de 16 de Fevereiro de 2011, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n ° CR3-10-0153-PCC, transitada em julgado, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, já que, em 6 de Janeiro de 2010, detinha, para venda e consumo, 33.3451 gramas de Ketamina, 8.813 gramas de Metanfetamina e substâncias que continham Nimetazepam, p. e p. pelo art.8.°, n.º1 da Lei 17/2009 de 10/8, da Região Administrativa Especial de Macau, na pena de 7 anos e 8 meses de prisão, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.14.º da mesma Lei, na pena de 45 dias de prisão e de um crime de detenção indevida de utensílio, p. e p. pelo art.15.°, também desta Lei, na pena de 45 dias de prisão e, em cúmulo jurídico destes três crimes, na pena de 7 anos e 9 meses de prisão ( folhas 93 a 108).

2- Por decisão de 11 de Janeiro de 2013, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n.° CR4-12-0195-PCC, transitada em julgado em 21/1/2013, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.11.º, n.º l da citada Lei, na pena de 2 anos de prisão, pela venda, em 12 de Novembro de 2009, de 0,639 gramas e de 0,834 gramas de Ketamina, a qual foi cumulada com a pena anterior, sendo condenado na pena de 8 anos e 9 meses de prisão ( folhas 57 a 71). E,

3- Por decisão de 3 de Julho de 2015, proferida pelo Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau, no processo n.º CR2-14-0010-PCC, transitada em julgado, foi o requerido A... julgado e condenado pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.311.º do CP de Macau, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, por factos praticados a 6 de Janeiro de 2010, antes de ter sido efetuada a busca que verificou a detenção dos produtos supra mencionados pelos quais foi condenado como referido em 1, sendo o requerido detido nessa data, dando entrada no dia 7/1/2010 no aludido EP, onde ainda se encontra a cumprir pena, tendo esta última pena sido cumulada com as anteriores e aplicada a pena única de 9 anos e 2 meses de prisão ( folhas 72 a 77).

4- Não foi o requerido objeto de procedimento criminal em Portugal relativamente aos crimes supra referidos pelos quais foi condenado.

5- Nos tribunais macaenses o requerido foi assistido por defensor.

6 - O Requerido, que deseja e pretende ser transferido para Portugal, é cidadão português e teve a última residência conhecida em Portugal, na x (...) Leiria, onde reside uma sua irmã que se dispõe a acolhê-lo e apoiá-lo e que já o fez anteriormente, podendo operar-se em Portugal, com maior facilidade, a sua reinserção social.

7- O Governo da Região Administrativa Especial de Macau dá o seu parecer favorável à transferência do Requerido para Portugal.

8- O Governo Português, por despacho, de 2 de Maio de 2017, de Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça, concedeu o seu acordo à transferência para Portugal do requerido cidadão português, A... a fim de, em Portugal, cumprir o remanescente das penas de prisão em que foi condenado em Macau, pelos referidos crimes de tráfico de estupefacientes e resistência e coação sobre funcionário.


*

Enquadramento Jurídico

A revisão e confirmação de sentença penal estrangeira é um processo específico para a produção de eficácia em Portugal das sentenças estrangeiras, ou seja, para a possibilidade de serem executadas em Portugal.

O Livro V do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “ Relações com autoridades estrangeiras e entidades judiciárias internacionais” estabelece no seu Titulo I («Disposições Gerais»), art.229.º, que os efeitos das sentenças penais estrangeiras são regulados pelos tratados e convenções internacionais e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto em lei especial e ainda pelas disposições desse Livro.

Por força do disposto no art.234.º, n.º1, do Código de Processo Penal, integrado no Titulo II ( « Da revisão e confirmação de sentença penal estrangeira», do mesmo Livro,  a sentença penal estrangeira só terá eficácia desde que a lei, tratado ou convenção assim o estipulem, sendo ainda, e para além, disso, necessárias a revisão e confirmação.

Do exposto resulta que o primeiro pressuposto da revisão e confirmação de sentença penal estrangeira é a existência de lei, tratado ou convenção que preveja ou admita a possibilidade dessa sentença poder ter eficácia em Portugal, isto é, na ordem jurídica portuguesa.

A Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, que no seu art.3.º, estabelece que na falta ou insuficiência de normas nos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português, nomeadamente na execução de sentenças penais estrangeiras, se aplicam as normas desse diploma e, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal.

A revisão e confirmação de sentença penal estrangeira é instrumental de algumas formas de cooperação internacional, como é o caso de continuação de cumprimento em Portugal de pena de prisão aplicada por sentença estrangeira, no âmbito de pedidos de transferência para Portugal de cidadãos nacionais condenados, que cumprem penas privativas da liberdade no estrangeiro.   

A eficácia da sentença penal estrangeira está dependente de pedido prévio de revisão e confirmação, regulado pelos artigos 95.º a 100.º da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto e pelos artigos 234.º a 240.º do Código de Processo Penal, complementados e integrados ainda pelos artigos 980.º a 982.º do Código de Processo Civil na parte em que não se oponham às disposições específicas previstas naquelas disposições legais. 

O art.99.º da Lei n.º 144/99, exige como procedimento prévio à instauração do processo de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira que o pedido seja submetido, pela autoridade central, ou seja, pela Procuradoria-Geral da República, à apreciação do Ministro da Justiça.  

Se o Ministro da Justiça considerar o pedido admissível, o expediente é remetido, por intermédio do Procurador-Geral da República, ao Ministério Público junto do Tribunal da Relação competente, nos termos do art.235.º do Código de Processo Penal, para promover o procedimento de revisão e confirmação da sentença.

No pedido de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira devem ainda observar-se, desde logo, os requisitos e condições estabelecidos nos artigos 96.º da Lei n.º 144/99 e 237.º do Código de Processo Penal.

O art.237.º do Código de Processo Penal, dispõe, designadamente, e com interesse para a presente decisão, o seguinte:

« 1 - Para confirmação de sentença penal estrangeira é necessário que se verifiquem as condições seguintes:

      a) Que, por lei, tratado ou convenção, a sentença possa ter força executiva em território português;

      b) Que o facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa;

      c) (…)

      d) Que o arguido tenha sido assistido por defensor e, quando ignorasse a língua usada no processo, por intérprete;

       e) (…)»

A Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal, aprovada pela Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, é uma lei especial que estabelece as condições gerais em que é admissível , que regula o procedimento de revisão e confirmação de sentença penal estrangeira, com particular realce nos artigos 95.º a 100.º.

« A força executiva da sentença estrangeira depende de prévia revisão e confirmação, segundo o disposto no Código de Processo Penal e o previsto nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 6.º do presente diploma.» ( art.100.º, n.º1 da  Lei n.º 144/99).

Como se afirma, designadamente no acórdão do STJ de 11-07-2012 (proc. n.º 166/11.4YRE VR.S1), o “nosso sistema de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras é, por regra, meramente formal, não competindo ao tribunal português exercer censura ou crítica à sentença revidenda, nem pronunciar-se sobre o fundo ou mérito da causa.”

Assim, como regra, “ na revisão e confirmação de sentença estrangeira há que acatar tal e qual o decidido, como manifestação de reconhecimento da soberania do órgão decisor de outro país, a menos que objeções de fundo, conexionadas com princípios estruturantes do direito penal pátrio e que têm a ver com direitos fundamentais consignados na Constituição, impliquem ajustamentos de alguns aspetos da sentença revidenda, a fim de a adequar ao direito nacional.”.[1]

Posto isto.

O Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a Região Administrativa Especial de Macau, da República Popular da China, assinado em Lisboa em 17 de Janeiro de 2001 - aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 19/2002 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 17/2002, publicados no Diário da República, 1.ª série, n.º 64, de 16 de Março de 2002 -, estipula no seu art.2.º, nomeadamente, e no que aqui interessa, o seguinte: 

« 1 - A cooperação jurídica e judiciária entre as Partes incidirá, designadamente, sobre as seguintes matérias:

        a) Comunicação de atos judiciais em matéria penal;

        b) Investigação criminal e obtenção de provas;

        c) Auxílio na captura e entrega de arguidos;

        d) Reconhecimento e execução de sentenças em matéria penal;

        e) Transferência de pessoas condenadas e execução por uma Parte das decisões judiciais em matéria penal proferidas pela outra Parte, relativamente a essas pessoas; (…) ».

Nos termos do art.11.º do Acordo, este entrou em vigor em 2 de Maio de 2002.

O Acordo, ao prever e admitir nas alíneas d) e e), n.º 1 do seu art.2.º, a possibilidade de a sentença penal proferida na Região Administrativa Especial de Macau, da República Popular da China, poder ter eficácia na ordem jurídica portuguesa, satisfaz o primeiro pressuposto da revisão e confirmação de sentença.

Quanto ao pressuposto da punibilidade do facto que motivou a condenação seja também punível pela lei portuguesa, a que alude a al. b), n.º1, art.237.º, do Código de Processo Penal, importa realçar o seguinte:

--- A 1.ª decisão judicial, datada de 16 de Fevereiro de 2011, referida no ponto 1, integra a prática de 3 crimes: um de detenção indevida de utensílio; outro de consumo de estupefacientes e outro de tráfico de estupefaciente.

      - Quanto ao crime de detenção indevida de utensílio:

O art.15.°, Lei 17/2009 de 10/8, da Região Administrativa Especial de Macau, estabelece que quem detiver indevidamente qualquer utensílio ou equipamento, com intenção de fumar, de inalar, de ingerir, de injetar ou por outra forma utilizar plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa.

A legislação portuguesa não prevê a existência de um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento, pelo que a detenção de “instrumentos” (frasco, recipiente de vidro, tubo de aspiração e palhinhas) pelo ora requerido A... para utilizar no consumo de produtos estupefacientes, não é punível entre nós.

Nesta parte, não pode ser confirmada a 1.ª decisão judicial, devendo dela expurgar-se a condenação pelo crime de detenção indevida de utensílio.

      - Quanto ao crime de consumo de estupefacientes:

À data da prática dos factos (6 de janeiro de 2010) a Ketamina não constava da Lista Anexa ao DL 15/93 de 22/1, não sendo o seu consumo proibido em Portugal.

Esta substância (cetamina) veio a ser incluída numa lista anexa à Portaria n.º 154/2013, de 17 de abril, sob o n.º 159 (cetamina), pelo que só a partir de 18/4/2013, a mesma veio a ser proibida em Portugal.

Nos termos dos art.ºs 3°, 4°, 10° e 19° do DL 54/2013 de 17 de abril, a detenção, designadamente, desta substância psicoativa, constitui entre nós contraordenação, punível com coima.

Apenas as substâncias Metanfetamina e Nimetazepam são puníveis criminalmente entre nós, por integrarem, já á data dos factos, respetivamente, as Tabelas II-B e IV anexas ao DL n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Da factualidade dada como provada na decisão judicial resulta que o arguido detinha na sua posse um peso total de 8,813 gramas da substância Metanfetamina e 1,876 gramas da substância Nimetazepam, e que a maior parte destas substâncias era destinada pelo arguido a ser cedida e vendida, entendemos, que o consumo restante destas substâncias pelo arguido, integraria, na lei portuguesa, apenas uma contraordenação, p. e p. pelos artigos 2.º e 16.º da Lei n.º 30/2000 de 29 de novembro.

Do exposto resulta que, na parte relativa à condenação do arguido na pena de 45 dias de prisão, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.14.º da Lei 17/2009 de 10/8, da Região Administrativa Especial de Macau, não pode confirmar-se a decisão judicial.

      - Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes:

O requerido A... foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.8.°, n.º1 da Lei 17/2009 de 10/8, da Região Administrativa Especial de Macau, na pena de 7 anos e 8 meses de prisão, por aquisição, transporte e detenção de 33.3451 gramas de Ketamina, 8.813 gramas de Metanfetamina e substâncias que continham Nimetazepam.

O tráfico de Metanfetamina e Nimetazepam é também punido na lei portuguesa, no art.21.º, n.º1 do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, pelo que a condenação do arguido quanto ao tráfico destes produtos deve confirmar-se .

--- Quanto à 2.ª decisão judicial, datada de 11 de janeiro de 2013, referida no ponto 2:

Pela venda, em 12 de Novembro de 2009, das quantidades de 0,639 gramas e de 0,834 gramas de Ketamina, foi o ora requerido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.11.º, n.º l da citada Lei n.º 17/2009, na pena de 2 anos de prisão.

Uma vez que esta substância não era proibida em Portugal à data dos factos, como acima se consignou, não pode esta sentença penal ser confirmada.

--- Por fim, quanto à 3.º decisão judicial, datada de 3 de Julho de 2015:

Os factos por cuja prática o ora requerido foi condenado na pena de 1 ano e 3 meses e prisão, por um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.311.º do Código Penal de Macau, são também criminalizados na lei portuguesa, como crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. no art.347.º do Código Penal.

Assim, impõe-se a sua confirmação.

Face do exposto deverá ser reformulado o cúmulo jurídico das penas efetuado na decisão de datada de 3 de Julho de 2015, proferida no processo n.º CR2-14-0010-PCC, que condenou o arguido/requerido na pena única de 9 anos e 2 meses de prisão.

Nos termos do art.77.º, do Código Penal, na medida da pena conjunta são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º1) e tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (n.º 2).

Com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.[2]

No caso concreto, a pena conjunta tem como limite máximo a pena de 8 anos e 11 meses de prisão (soma da pena de 7 anos e 8 meses de prisão aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes com a pena 1 ano e 3 meses de prisão aplicada pelo crime de resistência e coação sobre funcionário) e como limite mínimo a pena de 7 anos e 8 meses de prisão ( pena aplicada pelo crime de tráfico de estupefacientes no proc. n.º CR3-10-0153-PCC).

Os factos que determinaram a aplicação das penas ao requerido A... e que se encontram em concurso, estão estritamente ligados entre si, pois a resistência e coação a funcionário, aludida no proc. n.º CR2-14-0010-PCCC, teve lugar em 6 de janeiro de 2010, por se opor à fiscalização de que ia ser alvo pela PJ e, na sequência deste comportamento e das buscas realizadas, na mesma data, foram-lhe apreendidos na sua posse produtos estupefacientes de que veio a resultar a sua condenação, pelo crime de tráfico de estupefacientes, no proc. n.º CR3-10-0153-PCC.

O requerido não tem outros antecedentes criminais além dos que integram o presente cúmulo jurídico, uma vez que não pode ser confirmada a sentença proferida no proc. CR4-12-0195-PCC. 

Considerando o quadro dos poderes do tribunal de revisão e confirmação, o modo de cometimento do facto, a personalidade do requerido e as exigências de prevenção geral e especial, requeridas pelo caso, entendemos fixar ao requerido A... , por adequada, em cúmulo jurídico, uma pena conjunta em 8 (oito) anos e 3 (três) meses de prisão.

Os restantes pressupostos do pedido de revisão e confirmação de sentença penal, no que respeita à primeira sentença quanto ao tráfico de estupefacientes e quanto à última das sentenças revindas, mostram-se verificados pois, designadamente, ocorreu o seu trânsito em julgado, o requerido foi assistido nos Tribunais macaenses por defensor e não se mostram violados os princípios do ordenamento jurídico português.

Assim, impõe-se a sua revisão e confirmação, com as alterações supra referidas.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- declarar revistas e confirmadas as sentenças proferidas, em 16 de fevereiro de 2011 - com exceção das condenações pelos crimes de detenção indevida de utensílio e de consumo de estupefacientes, por não serem exequíveis em território nacional - e em 3 de julho de 2015;

- declarar não revista e confirmada a sentença proferida em 11 de janeiro de 2013, por não ser exequível em território nacional; e

- reformular o cúmulo jurídico entre as penas aplicadas na sentença proferida em 16 de fevereiro de 2011, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e na sentença de 3 de julho de 2015, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário e, condenar o arguido/requerido A... na pena conjunta de 8 (oito) anos e 3 (três) meses de prisão.

Determina-se que no cumprimento da pena de prisão seja levado em conta todo o tempo de prisão que o ora requerido cumpriu em Macau, antes e depois do trânsito em julgado das condenações.

Sem tributação (art.26.º da Lei n.º 144/99 de 31 de agosto).

Oportunamente cumpra-se o disposto no art.103.º, n.º3, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto.


*

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

*

Coimbra, 19-12-2017

Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)


[1] www.dgsi.pt

[2] Cf. “ Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, Dr.ª Cristina Líbano Monteiro, págs. 155 a 166.