Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
159-I/1993.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: EXECUÇÃO
ALIMENTOS
PENHORA
CRÉDITO
ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 01/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 822º E 824º, Nº 1, ALS. A) E B) DO CPC (REDACÇÃO DO DL Nº 38/2003, DE 08/03); 35º DA LEI Nº 100/97, DE 13/09; 12º DO DL Nº 329-A/95, DE 12/12.
Sumário: I – De acordo com o artº 824º, nº 1, al. a) do CPC, na redacção do DL nº 38/2003, de 08/03, são impenhoráveis dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado.

II – Por sua vez, a al. b) desse nº 1 estabelece serem impenhoráveis “dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante”.

III – O artº 35º da Lei nº 100/97, de 13/09, preceitua que “os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estas na classificação legal”.

IV – Porém, segundo o artº 12º do DL nº 329-A/95, de 12/12, “não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artº 824º do CPC”.

V – Portanto, o que não pode ser penhorado em processo civil são apenas 2/3 das pensões pagas por acidente de trabalho, de acordo com o constante da al. b) do nº 1 do artº 824º do CPC. O 1/3 remanescente é susceptível de ser penhorado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) - Nos autos de execução especial por alimentos, a correr termos no Tribunal Judicial de Alcanena, em que é exequente A..., sendo executado, B..., seu pai, foi penhorado o crédito que este detinha sobre a “C..., Companhia de Seguros - S.p.A.”, por indemnização emergente de acidente de trabalho, através de notificação que, para o efeito, foi efectuada à devedora.

2) - Por requerimento entrado em juízo em 28/12/2010 e juntando documentos comprovativos, veio a “ C..., Companhia de Seguros - S.p.A.” informar que, desde Maio de 2009 até 31/12/2010, na sequência da penhora que incidira sobre a pensão que o executado recebia a título de acidente de trabalho, havia efectuado transferências bancárias para os Solicitadores de Execução num total de 6.562,36 € (fls. 496 e ss.);

3) - Ordenada a notificação das partes para se pronunciarem sobre os documentos juntos, veio o executado requerer que se notificasse o Sr. Agente de Execução para que esclarecesse a razão de ter indicado (em 05/11/2010), o valor de 5783,97 €, quando a “ C..., Companhia de Seguros - S.p.A.” informara e comprovara terem sido efectuadas transferências no valor de 6.562, 36 €;

4) - Em 24/03/2011 (fls. 550), foi proferido despacho com o seguinte teor:

«Penhora das prestações do executado/sinistrado

Do art. 35º da Lei 100/97, de 13.09, como também da Base XLI da Lei nº 2.127, de 3 de Agosto de 1965, aplicável ao caso em apreço, atenta a data em que se deu o sinistro, decorre que os créditos derivados de um acidente de trabalho são inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis, razão pela qual determino levantamento da penhora das prestações em apreço devendo após transito se proceder à devolução dos montantes retidos.».

B) - Inconformada, a exequente recorreu do aludido despacho - recurso esse que veio a ser mandado subir em separado (fls. 18) - oferecendo, a terminar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:

[…]

Terminou pugnando pela revogação do despacho recorrido.

C) - As questões:

 Em face do disposto nos art.ºs 684º, nºs. 3 e 4, 690º, nº 1 do CPC [1] (aplicáveis ao agravo, “ex vi” do art.º 749º do mesmo Código), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2., “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.

Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).

A questão que cumpre solucionar no presente recurso passa por em saber se, no âmbito de execução especial por alimentos, são absolutamente impenhoráveis os créditos provenientes do direito às prestações por acidente de trabalho.

II - A) - O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I-A “supra”.

B) - Para além dos casos que são enumerados nas diversas alíneas do artº 822º do CPC, são ainda absolutamente impenhoráveis, por força do estatuído no corpo do artigo, os “bens isentos de penhora por disposição especial.”

De acordo com o art.º 824º, n.º 1, al. a), do CPC, na redacção do DL nº 38/2003, de 08/03, são impenhoráveis dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado.

Por sua vez, a alínea b) desse nº 1 estabelece serem impenhoráveis “Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.”.

Finamente, o artº 35º da Lei nº 100/97, de 13/09, preceitua:«Os créditos provenientes do direito às prestações estabelecidas por esta lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam dos privilégios creditórios consignados na lei geral como garantia das retribuições do trabalho, com preferência a estas na classificação legal.»[3].

O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 177/2002, (DR - I Série A, de 02/07/2002) declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resultava da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permitia a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não fosse titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não fosse superior ao salário mínimo nacional.

Tal juízo de inconstitucionalidade teve por base a violação do princípio da dignidade humana plasmado nas disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, al. a) e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Através do DL n.º 38/2003, de 08/03/2003, veio-se expurgar a declarada inconstitucionalidade por via da alteração do referido art.º 824º, passando este a consagrar no respectivo n.º 2: “A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.”.

O Prof. Menezes Leitão refere que “…a reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho não tem um carácter estritamente reparatório, sendo a sua função antes de carácter alimentar. As suas características são como as que de uma obrigação de alimentos fundada numa situação de necessidade o que, só por si explica o seu carácter limitado (cf. o artigo 2004 do Código Civil)"[4].

Ora, o que aqui está em causa é saber se o disposto no artº 35º obsta, em absoluto, a que, no âmbito do processo civil, seja atingido pela penhora o crédito às prestações emergentes de acidente de trabalho (aqui, em particular, para satisfação coerciva da obrigação de alimentos).

Esta questão, salvo o devido respeito por opinião diversa, merece resposta negativa, de acordo com o entendimento que é de fazer do disposto no mencionado artº 35º, à luz do art.º 12º do DL n.º 329-A/95, de 12/12, e dos preceitos do CPC que disciplinam a penhora.

Efectivamente, segundo o art.º 12º do DL n.º 329-A/95, “não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no art.º 824.º do Código de Processo Civil.”.

Comentando o disposto no artº 822º do CPC e os exemplos que dá de impenhorabilidade imposta por lei especial - v.g., os créditos provenientes do direito à indemnização por acidente de trabalho (artº 302º do CT) -, observa o Cons. Amâncio Ferreira[5]: «Tenha-se todavia em conta que as disposições referidas, que estabelecem a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no art. 824º, não são invocáveis em processo civil, nos termos do art.º 12º do DL 329-A/95, que mais não é do que emanação da jurisprudência do TC.».

Seguindo este entendimento e focando, em particular, o disposto no aludido artº 35° da lei 100/97, discorreu-se assim no Acórdão da Relação de Guimarães, de 14/Abril/2004 (Agravo nº 479/04-1)[6]: «A decisão recorrida interpretou todavia este normativo à letra, sem atender aos ditames da restante ordem jurídica.

Mas tal interpretação sempre seria inaceitável, pois que tal norma, fixando em termos absolutos a impenhorabilidade dos bens a que se refere, contenderia pelo menos com o princípio ínsito no artº 62º da CRP, de que o direito do credor à satisfação do seu crédito é ainda manifestação. Certo que em caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu crédito e o direito fundamental ao percebimento das pensões emergentes de acidente de trabalho, opta a lei por sacrificar o direito do credor. Mas isto só na medida do necessário. Na realidade, só pareceria ser conforme à CRP uma interpretação que limitasse a impenhorabilidade de tais créditos ao quantum tido por razoavelmente necessário para a subsistência condigna do titular dos créditos (v. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 4ª ed., pág 164). E isto vale integralmente para o caso da remição do capital, pois que também aqui estamos perante um direito de crédito, sucedâneo do direito de crédito ao recebimento periódico das pensões.

Acontece que, ciente de que normas como a que está em causa não seriam conformes à CRP, veio a lei estabelecer que a impenhorabilidade não tem que valer em termos absolutos. Efectivamente, o artº 12º do DL nº 329-A/95 é muito claro quanto a isto, ao prescrever que não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto no artº 824º do CPC. Portanto, o que não pode ser penhorado em processo civil são apenas 2/3 das pensões pagas por acidente de trabalho, de acordo com o constante da alínea b) do nº 1 do artº 824º do CPC. O 1/3 remanescente é susceptível de penhora.».

Este entendimento, que se sufraga, aplica-se “mutatis mutandis” ao caso “sub judice”, onde encontra justificação acrescida na circunstância de a penhora em causa se destinar a satisfazer obrigação de alimentos do executado para com a sua filha.

Efectivamente, como se observa no Acórdão da Relação de Évora, de 09/Dezembro/2004 (Agravo nº 479/04-1)[7] “…tratando-se de um crédito de alimentos, dada a natureza e fins da obrigação alimentícia, a regra da impenhorabilidade parcial dos vencimentos, pensões etc. não se mantém, ex vi da al. d) do nº 1 do artº 1118 do C.P.C.

De resto, isso mesmo veio a ser consagrado na nova redacção do artº 824 do CPC, introduzida pelo D.L. 38/2003 de 8/03 que no seu nº 2 que expressamente excluiu da regra da impenhorabilidade dos 2/3 dos vencimentos ou pensões o caso do crédito exequendo ser de alimentos devidos pelo executado.”.

Isto não obsta, note-se, que mesmo no âmbito de execução especial por alimentos, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, não se haja que proceder de modo a que, em consequência da penhora, não fique o executado com um rendimento disponível insuficiente para lhe assegurar a sua auto-subsistência[8].

Contudo, não estando neste recurso em causa a apreciação de uma tal situação, não só porque este Tribunal desconhece a sua efectiva verificação, como, principalmente, devido ao facto de a mesma ter não constituído o fundamento que escorou a decisão recorrida, há que reconhecer, pois, que o Tribunal “a quo” não podia, com alicerce exclusivo no disposto no art.º 35º da Lei 100/97, de 13/09, ter determinado o levantamento da penhora das prestações em apreço e ter ordenado a devolução dos montantes retidos.

Do exposto resulta que a decisão impugnada não pode subsistir, sendo, pois, de a revogar.

III - Decisão:

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em, dando provimento ao recurso, revogar o despacho impugnado.

Sem custas.


Luís José Falcão de Magalhães (Relator)

Sílvia Maria Pereira Pires

Henrique Ataíde Rosa Antunes



[1] Sendo de aplicar o regime de recursos anterior ao que foi introduzido pelo DL n.º 303/07, de 24/08, haverá que considerar, por outro lado, no que concerne às normas do processo executivo, não serem convocáveis, no caso “sub judice”, as alterações do DL n.º 226/2008, de 20/11, já que este diploma - com algumas excepções (v.g. n.º 6 do artigo 833.º -B, alínea c) do n.º 1 do artigo 919.º e n.º 5 do artigo 920.º) - apenas é aplicável aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, em 31/3/2009 (art.ºs 22º, nº 1 e 23º).
[2] Consultáveis na “Internet”, através do endereço http://www.dgsi.pt/jstj.nsf, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Assim, t.b., anteriormente, Base XLI da Lei nº 2.127, de 3 de Agosto de 1965 e, posteriormente, artº 302º do Código de Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.
[4] “A reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho”, em INSTITUTO DO DIREITO DO TRABALHO, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, págs. Vol. I, págs. 568 e 569.
[5] Curso de Processo de Execução, 7ª ed., revista e actualizada, pág. 176.
[6] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf?OpenDatabase”.
[7] Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtre.nsf?OpenDatabase”.
[8] Cfr. Acórdão desta Relação de 03/05/2008 (Agravo nº 372/04.8TAAND.C1), disponível em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.