Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/10.0TBMGR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 09/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 46º CPC
Sumário: I – Tem força executiva, relativamente ao montante do capital mutuado, o documento particular, assinado por mutuante e mutuário, que integra um contrato de mútuo nulo por falta de forma e a correspondente confissão de dívida por parte do mutuário.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                1. RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução comum que com o nº 189/10.0TBMGR correm termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande, em que o exequente J…, baseado em documento denominado “Acordo de pagamento e confissão de dívida”, requer que sejam tomadas as providências adequadas para que o executado B… lhe pague a quantia de € 38.937,48, acrescida de juros desde 13.07.2009, à taxa anual de 4%, sendo os vencidos, contados desde 25.01.2010, no valor de € 836,36, foi pelo executado deduzida oposição alegando, em síntese, que o exequente invoca um contrato de mútuo que é nulo por vício de forma; que o exequente nunca lhe entregou a quantia pretensamente mutuada; e que, por isso, o documento oferecido não constitui título executivo.

A oposição foi recebida.

O exequente contestou-a, pugnando pela sua improcedência, para o que alegou, em resumo, que desde há vários anos exequente e executado vêm estabelecendo entre si negócios de vária ordem, no decurso dos quais o segundo foi acumulando uma dívida de milhares de euros para com o primeiro; com vista à regularização dessa situação, o executado propôs ao exequente o pagamento da dívida em prestações; dado que o exequente necessitava no imediato do valor em dívida, sugeriu ao executado que este negociasse um empréstimo de curto prazo junto da banca, já que não podia continuar a financiá-lo; porém, tal situação revelou-se inviável, uma vez que o executado não detinha qualquer crédito em nenhuma instituição bancária; por isso, acordaram entre si que o exequente recorresse ao seu banco, dada a sua boa capacidade de crédito, e que com o valor mutuado creditado na sua conta, fosse paga a dívida que entre os dois existia, ficando o executado obrigado a entregar-lhe o valor que iria suportar mensalmente em virtude de tal empréstimo; assim procederam, tendo o valor mutuado sido creditado na conta do exequente; para atestar tal operação, exequente e executado outorgaram o documento que foi apresentado à execução e que espelha o acordo de ambos; ainda que o documento oferecido consubstanciasse um contrato de mútuo, o que não é o caso, e que o mesmo fosse nulo por vício de forma, sempre o executado estaria obrigado a restituir tudo aquilo que recebeu.

Invocando o disposto no artº 787º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, o Mº Juiz absteve-se de proceder ao saneamento e à condensação.

Feita a instrução do processo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferida a decisão sobre a matéria de facto (fls. 66 a 69).

Foi depois emitida a sentença de fls. 70 a 80, cujo segmento decisório se transcreve:

“Em face do exposto, vistas as indicadas normas jurídicas e os princípios apontados, o Tribunal julga parcialmente procedente a presente oposição à execução suscitada por B… contra J… e, nessa medida, decide:

- não deixar seguir a acção executiva, na parte relativa aos juros peticionados no requerimento da execução no valor de € 836,36 (oitocentos e trinta e seis euros e trinta e seis cêntimos), por falta de título executivo nessa parte, atenta a nulidade do contrato que os suporta;

- ordenar o prosseguimento da presente execução em relação à quantia € 38.937,48 (trinta e oito mil novecentos e trinta e sete euros e quarenta e oito cêntimos), referida no documento dado à execução, considerando-se que o mesmo configura título executivo à luz do citado art. 46º, nº 1, al. c), do Cód. Processo Civil, acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.”

Inconformado, o oponente interpôs recurso, encerrando a alegação que apresentou com as conclusões seguintes:

Não foi apresentada resposta.

O recurso foi admitido pela 1ª instância.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

                Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, conclui-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi, no essencial, colocada apenas a questão da inexequibilidade do documento apresentado como título executivo.


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                2. FUNDAMENTAÇÃO

                2.1. De facto

                Não tendo sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem havendo fundamento para este Tribunal oficiosamente a alterar, considera-se definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância e que é a seguinte:

1) Vem dado à execução um documento, denominado “Acordo de pagamento e confissão de dívida”, datado de 13 de Julho de 2009, subscrito por exequente e executado, na qualidade de primeiro e segundo outorgantes, respectivamente, com a seguinte redacção:

“ (…) Acordam para os devidos efeitos o seguinte:

Primeira: O primeiro outorgante contraiu em seu nome um empréstimo junto do Banco … no valor de € 38.937,48 (trinta e oito mil novecentos e trinta e sete euros e quarenta e oito cêntimos), sendo concedido por um período de sete anos, no final com os respectivos juros o valor será de € 51.501,24 (cinquenta e um mil quinhentos e um euros e vinte e quatro cêntimos).

Segunda: Tal quantia foi entregue nesta data ao segundo outorgante.

Terceira: Quantia essa de que o segundo outorgante nesta data se confessa devedor.

Quarta: Para regularizar a dívida, ambos os outorgantes acordam que o mencionado quantitativo seja pago em oitenta e quatro prestações iguais e sucessivas, no valor de € 613,11 (seiscentos e treze euros e onze cêntimos) a vencer-se a primeira no dia 01 de Agosto de 2009 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes.

Quinta: Ambos os outorgantes acordam que a falta de pagamento de qualquer das prestações, na sua data de vencimento, implica o vencimento imediato de todas as restantes.

O presente acordo revela a verdadeira e esclarecida vontade dos outorgantes, vai em duplicado e, depois de lido e achado conforme, assinado e rubricado por ambos.” (doc. fls. 4-5 da acção executiva);

2) Em data anterior a 01.07.2009, exequente e executado dedicavam-se em conjunto à compra e venda de automóveis no estrangeiro;

3) Em 01.07.2009, o Banco … entregou ao exequente, através de depósito na sua conta bancária, sob a forma de empréstimo, pelo prazo máximo de 7 anos, o montante de € 38.397,49.


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                2.2. De direito

Defende o recorrente, na conclusão 5ª da sua alegação, que “é contraditório ter-se dado como assente que o exequente entregou a quantia que lhe foi mutuada pelo banco … ao aqui recorrente, quando consta nos documentos juntos aos autos pelo próprio banco mutuante a fls. 56 a 59 dos autos que aquela quantia ficou na conta do aqui exequente, jamais tendo sido entregue ao executado”.

                Por um lado, não é correcto que tenha sido dado como assente que o exequente entregou a quantia que lhe foi mutuada pelo Banco … ao aqui recorrente. O que foi dado como assente foi que o exequente e o executado subscreveram o documento denominado “Acordo de pagamento e confissão de dívida” de cujo texto consta essa afirmação.

                Por outro, os documentos juntos aos autos pelo Banco …, para além de não serem inequívocos, não fazem prova plena do respectivo conteúdo, perdendo no confronto com o “Acordo de pagamento e confissão de dívida”[2].

                Inexiste, portanto a invocada contradição.

Como consta da factualidade provada, vem dado à execução um documento, denominado “Acordo de pagamento e confissão de dívida”, datado de 13 de Julho de 2009, subscrito por exequente e executado, na qualidade de primeiro e segundo outorgantes, respectivamente, com a seguinte redacção:

“ (…) Acordam para os devidos efeitos o seguinte:

Primeira: O primeiro outorgante contraiu em seu nome um empréstimo junto do Banco … no valor de € 38.937,48 (trinta e oito mil novecentos e trinta e sete euros e quarenta e oito cêntimos), sendo concedido por um período de sete anos, no final com os respectivos juros o valor será de € 51.501,24 (cinquenta e um mil quinhentos e um euros e vinte e quatro cêntimos).

Segunda: Tal quantia foi entregue nesta data ao segundo outorgante.

Terceira: Quantia essa de que o segundo outorgante nesta data se confessa devedor.

Quarta: Para regularizar a dívida, ambos os outorgantes acordam que o mencionado quantitativo seja pago em oitenta e quatro prestações iguais e sucessivas, no valor de € 613,11 (seiscentos e treze euros e onze cêntimos) a vencer-se a primeira no dia 01 de Agosto de 2009 e as restantes no mesmo dia dos meses subsequentes.

Quinta: Ambos os outorgantes acordam que a falta de pagamento de qualquer das prestações, na sua data de vencimento, implica o vencimento imediato de todas as restantes.

O presente acordo revela a verdadeira e esclarecida vontade dos outorgantes, vai em duplicado e, depois de lido e achado conforme, assinado e rubricado por ambos.” (doc. fls. 4-5 da acção executiva)

                O documento em causa, do ponto de vista substancial, integra simultaneamente um contrato de mútuo em que o exequente figura como mutuante e o executado como mutuário e o reconhecimento da correspondente dívida por parte deste.

                Nos termos do artº 1142º do Cód. Civil, mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.

                Ora, constando do documento que o primeiro outorgante (exequente) entregou ao segundo (executado) a quantia de € 38.937,48, ficando o executado com a obrigação de a pagar em oitenta e quatro prestações iguais e sucessivas, no valor de € 613,11 (seiscentos e treze euros e onze cêntimos), mostram-se presentes todos os elementos materiais do contrato de mútuo.

                E, constando da cláusula terceira do dito documento que o segundo outorgante (executado) se confessa devedor dessa quantia, evidencia-se uma confissão expressa da dívida decorrente do empréstimo.

                Contudo, dado o montante da quantia entregue pelo exequente ao executado e o disposto no artº 1143º do Cód. Civil, o contrato de mútuo em causa, para ser válido, teria de ser celebrado por escritura pública. Constando de simples documento escrito, esse contrato carece de forma legal, o que, nos termos do artº 220º do Cód. Civil, acarreta a sua nulidade.

                A confissão de dívida também integrada naquele documento particular, cuja cujas letra e assinatura o recorrente não impugnou, faz contra ele prova plena (artºs 352º, 358º, nº 2, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil), torna irrelevante a sua alegação de que nenhuma quantia lhe foi entregue e constitui base suficiente para a conclusão de que, embora nulo por falta de forma, o mútuo existiu realmente.

                Tem, pois, aplicabilidade o Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, de 28/03/1995, DR, I-A, nº 115, de 17/05/1995, segundo o qual quando o Tribunal conheça oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº 1 do artigo 289º do Código Civil.

                Ou seja, o documento apresentado como título executivo assegura a existência da obrigação do recorrente de devolver o montante recebido, não com base no empréstimo, que é nulo, mas na obrigação de restituição que, por força do nº 1 do artº 289º do Cód. Civil e do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, resulta dessa nulidade.

                Não faria qualquer sentido recusar força executiva ao título dado à execução e obrigar o exequente a recorrer à acção declarativa, quando o tribunal está na posse de todos os elementos conducentes à conclusão de que o direito contido no dito título, cuja realização coactiva é exigida, integra efectivamente a esfera jurídica do exequente.

                O documento dado à execução tem, portanto, atento o que fica dito e o disposto no artº 46º, nº 1, al. c) do Cód. Proc. Civil, força executiva[3]. Com efeito, trata-se de um documento particular, assinado pelo devedor, que importa a constituição e o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado.

                Soçobram, pois, todas as conclusões da alegação do recorrente, o que conduz á improcedência da apelação e à manutenção da sentença sob recurso.

                Em cumprimento do disposto no artº 713º, nº 7, elabora-se o seguinte sumário:

                Tem força executiva, relativamente ao montante do capital mutuado, o documento particular, assinado por mutuante e mutuário, que integra um contrato de mútuo nulo por falta de forma e a correspondente confissão de dívida por parte do mutuário.


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                3. DECISÃO

                Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

                As custas são a cargo do recorrente.

                                                                                              Coimbra,

Artur Dias (Relator)
Jorge Arcanjo
Jaime Ferreira

[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] Como adiante se referirá, a confissão de dívida constante do documento em causa tem força probatória plena contra o recorrente (artºs 352º, 358º, nº 2, 374º, nº 1 e 376º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil).
[3] Cfr. Acórdãos do STJ de 19/02/2009 (Proc. 07B4427, relatado pelo Cons. Pires da Rosa); de 13/07/2010 (Proc. 6357/04.7TBMTS-B.P1.S1, relatado pelo cons. João Camilo); de 01/02/2011 (Proc. 7273/07.6TBMAI-A.P1.S1, relatado pelo Cons. Nuno Cameira); e de 31/05/2011 (Proc. 4716/10.5TBMTS-A. S1, relatado pelo Cons. Salazar Casanova), todos em www.dgsi.pt/jstj.