Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
157/14.3T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 10/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.1544, 1569 CC, 542 CPC
Sumário: 1. Para a extinção da servidão por desnecessidade não será suficiente a alegação e prova de que os autores adquiriram um prédio confinante ao prédio dominante e que este dispõe de acesso direto à via pública.

2. Será ainda necessário provar que o prédio dominante se possa servir desse outro acesso e que este ofereça condições de utilização similares, ou pelo menos não desproporcionalmente agravadas.

3. Litigam de má-fé os autores que, num primeiro momento, omitem terem adquirido um prédio confinante com o dominante – prédio este com acesso direto à via pública – e, mais tarde, face à junção pelos réus da escritura da respetiva aquisição, negando a respetiva confinância, factos estes essenciais à defesa dos réus respeitante à desnecessidade da servidão de passagem.

Decisão Texto Integral:               








                                                                                 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

D (…) e mulher, M (…), intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra M (…) e mulher, J (…)

Pedindo que o tribunal:

a) Condene os réus a reconhecer que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio rústico inscrito na respetiva matriz predial da freguesia de (...) concelho de (...) , sob o artigo (...) , melhor identificado no artigo 1.º da petição inicial;

b) Reconheça que os réus são donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (...) .º da freguesia de (...) , concelho de (...) ;

c) Condene os réus a reconhecer que o prédio urbano inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo (...) .º da freguesia de (...) , concelho de (...) está onerado com uma servidão de pé e carro, a favor do prédio dos autores inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (...) , que se inicia na sua estrema que confronta com a Estrada (...) / (...) e à qual se acede através de portão colocado junto à estrema ESTE deste prédio dos réus, que o trajeto do caminho de servidão se prolonga durante 43 metros; com orientação inicial ESTE/OESTE, por cerca de 9 metros, após o que descreve uma curva para o seu lado esquerdo e adquire a orientação NORDESTE/SUDOESTE, prolongando-se por mais 34 metros até desembocar no prédio dos autores, no qual entra pela confrontação a NORDESTE e tem uma largura média de 3,00 metros, até desembocar em duas aberturas na vedação deste prédio, sita na sua confrontação a POENTE, uma resguardada por um portão pequeno, para passagem a pé, e outra, resguardada por um portão de maiores dimensões, para passagem de carro;

d) Condene os réus a não impedir ou dificultar o uso da servidão de passagem identificada, abstendo-se de praticar quaisquer atos que impeçam o gozo da dita servidão pelos autores;

e) Condene os RR. a refazer o muro de suporte de terras que demoliram no local em que este primitivamente se encontrava e a repor o pavimento natural do caminho, para que este mantenha uma largura média de 3,00 metros contados desde a face interior do muro para montante ou NOROESTE.

Alegam, para tanto e em síntese:

são donos do descrito prédio rústico, que adquiriram por compra, o qual é encravado e, por isso, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos servido, a pé e de carro, por um caminho particular que se desenvolve no descrito prédio dos Réus e se revelava por obras e sinais exteriores;

há mais de 10 anos a esta parte, os réus, aquando das obras de preparação para a implantação da sua casa no prédio em questão, alteraram a topografia do terreno, tendo rebaixado o terreno junto ao caminho de servidão para o prédio dos autores;

para balizar o caminho e para evitar o seu desmoronamento, efetuaram um muro de suporte em blocos de cimento em determinado segmento desse caminho; em 2010, os autores efetuaram diversas obras serviços e melhoramentos no seu prédio rústico para as quais tiveram que usar uma máquina de movimentar terras de lagartas e torre giratória e tiveram que desmontar e cortar o talude a montante do caminho, o qual era parte integrante de um prédio rústico pertencente a M... ;

em Agosto de 2012, os réus iniciaram a demolição do muro de blocos de suporte ao caminho que antes haviam construído e, de então para cá, têm vindo a escavar o talude que separa o leito do caminho do resto do seu prédio para diminuírem a largura daquele, com vista a dificultar e impedir a passagem dos autores para o seu prédio.

Os Réus contestam a presente ação negando a existência do alegado caminho de servidão e deduziram pedido reconvencional, nos seguintes termos:

a) Ser declarada a extinção de qualquer servidão que possa incidir sobre o prédio dos Réus por manifesta desnecessidade ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 1569.º do Código Civil;

b) Serem os Autores condenados a abster-se de praticar todos e quaisquer atos que possam atentar contra o prédio dos Réus, concretamente escavando o talude ou alargando caminho no limite norte, confrontação com M... .

Na mera hipótese do reconhecimento de servidão,

a) Devem os Autores ser condenados a reduzir a entrada do terreno onde colocaram dois portões a três metros e a um só portão, facultando também chave aos Réus.

b) Devem os Autores ser condenados a reconhecer e respeitar o caminho apenas em três metros de largura em toda a sua extensão.

c) Mais devem ser os Autores condenados reconstruir o muro que destruíram, edificando-o à distância de três metros da confrontação a norte.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a:

A) Julgar a presente ação totalmente procedente por provada e, em consequência, condenando os réus a reconhecerem que por sobre o prédio rústico inscrito sob o artigo (...) , hoje prédio urbano inscrito sob o artigo (...) , da dita freguesia de (...) , de que são proprietários, se acha constituída uma servidão permanente de passagem a pé e de carro a favor do prédio rústico, sito à (...) , inscrito na respetiva matriz rústica, sob artigo (...) , da freguesia de (...) , descrito e inscrito a favor dos Autores na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) da freguesia de (...) , propriedade dos Autores, servidão essa implantada e que se exerce pelo trato de terreno/caminho, descrito nos pontos 7 a 10 dos factos provados, bem como a não impedirem ou dificultarem o uso da identificada servidão de passagem, abstendo-se de praticar quaisquer atos que impeçam o gozo da dita servidão pelos autores e, consequentemente, a refazerem o muro delimitador dessa parcela de terreno que constitui tal servidão do restante terreno do prédio, o qual demoliram, no local em que este primitivamente se encontrava, repondo o pavimento natural do caminho, para que este mantenha uma largura média de 3 (três) metros contados desde a face interior do muro para montante ou noroeste;

B) Julgar totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, absolver os Autores do pedido formulado pelos réus.

C) Absolver os Autores do pedido de condenação como litigantes de má-fé.


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Inconformados com tal decisão, os Réus dela interpõem recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem apenas parcialmente, face o nítido incumprimento do dever de nelas sintetizar os fundamentos do recurso:

(…).


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Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpridos que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº2, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Falta de especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador – revogação, anulação da sentença.
2. Impugnação da matéria de facto.
3. Renovação da produção de prova.
4. Extinção da servidão por desnecessidade.
5. Condenação na reposição do muro.
6. Condenação dos autores como litigantes de má-fé.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Falta de especificação dos fundamentos que foram decisivos para a decisão do julgador.

Segundo os apelantes, o tribunal recorrido não procedeu à análise crítica das provas, não procedeu à especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, não explicitou o processo de formação da sua convicção, o que levaria à sua revogação/anulação, por violação do disposto no artigo 653º, nº2 do CPC.

Invocam os apelantes a verificação de uma deficiente fundamentação das respostas dadas pelo juiz a quo à matéria de facto, em violação do disposto no nº2 do artigo 653º, do CPC, segundo o qual o juiz “declarará quais os factos que o tribunal julga como provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.

Tal exigência legal “impõe que, de acordo com as circunstâncias, se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica, nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607º, nº5) deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos[1]”.

É a violação deste dever específico que se encontrará aqui em causa, sendo que, caso se tenha por verificada, importará, não a nulidade da sentença, mas tão só a consequência prevista na al. d), do nº2, do artigo 662º do CPC – baixa dos autos à primeira instância, a fim de o juiz a quo completar a sua fundamentação, com base nas gravações efetuadas ou através da repetição da prova.

De qualquer modo, não é a insuficiente fundamentação de qualquer facto que poderá acarretar tal solução, mas tão só quando a deficiente fundamentação incida sobre algum facto essencial: “se o facto dado, sem fundamentação, como provado ou não provado não se revelar concretamente essencial para a decisão da causa, a exigência, a posteriori, da fundamentação, em via de recurso, é inútil, sendo a falta de fundamentação irrelevante[2]”.

Ora, no caso em apreço, os Apelantes não requerem a baixa do processo à primeira instância para reforço da fundamentação de algum facto em concreto, limitando-se a alegar tal insuficiência, reportando-a à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto na sua globalidade.

Da leitura de tal fundamentação, constata-se desde logo que, relativamente aos pontos 1 a 5, 12 a 15 e 25, o juiz a quo, referiu expressamente que a respetiva prova resultou “do acordo entre as partes, expresso nos respetivos articulados, e bem assim, da prova documental junta aos autos”.

Quanto aos demais pontos, explicita o juiz ter atendido aos depoimentos de parte dos réus, na medida em que os mesmos admitiram, por confissão, certos aspetos, nomeadamente os respeitantes à utilização que os autores vinham fazendo do caminho em questão situado no prédio dos réus; mais salienta o facto de reconhecerem terem dado aos autores uma chave do portão que colocaram no fim do caminho. Quanto à restante matéria, refere ter dado maior credibilidade às testemunhas indicadas pelos autores em detrimento das dos réus, depoimentos que “permitiram dar como provadas as características dos terrenos e caminho em causa e bem assim a sua utilização pelas partes, nos moldes descritos nos factos dados como provados”.

“Quanto aos factos dados como não provados (…), designadamente os atinentes à alegada desnecessidade atual da invocada servidão de passagem, em virtude da aquisição pelos autores de prédios contíguos ao id. no ponto 1 (…) que permitem o acesso à via pública  a pé e através de carro, não foi produzida prova cabal contra aos mesmos, porquanto nenhuma testemunha foi capaz de, através de um depoimento suficientemente sólido, assertivo e coerente, fruto de conhecimento direito e circunstanciado, convencer o tribunal acerca de tais factos. Na verdade, as testemunhas não denotavam conhecer a concreta localização dos prédios entretanto adquiridos pelos autores e, bem assim, apenas teciam considerações vagas e imprecisas acerca das características dos mesmos, prestando declarações evasivas quando questionadas acerca do talude constatado na inspeção ao local, descritos a fls. 312 dos autos. Assim, e face à falta de outra prova cabal, designadamente, documental ou pericial, o Tribunal fixou tal matéria em prejuízo dos Réus, por sobre os mesmos recair o ónus da sua prova (…)”

Daqui se extrai que, embora não tenha fundamentado individualmente a convicção que formou relativamente a cada um dos factos que veio a dar como provados, foi indicando relativamente a cada um dos temas ou questões de facto de que elementos de prova se socorreu e, embora não tenha feito um resumo do que de relevante terá sido dito por cada uma das testemunhas ouvidas, explicitou os motivos pelos quais acreditou na versão dos factos apresentada pelos autores e as razões pelas quais deu como não provados os factos alegados pelo réus como fundamentadores da extensão da servidão por desnecessidade.

Concluindo, embora se possa afirmar que, relativamente a alguns pontos configura uma fundamentação sintética, da sua leitura torna-se perfeitamente percetível porque é que o juiz a quo deu como provados determinados factos e outros não, pelo que o convite ao juiz a quo a completar a fundamentação por si dada sempre se configuraria como um ato inútil.

Não se tem, assim, por verificada a invocada nulidade.


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2. Impugnação da matéria de facto

(…)


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A. Matéria de facto

A matéria de facto dada como provada, face às alterações aqui introduzidas é a seguinte:

1. Os autores são donos de um prédio rústico, sito à (...) , inscrito na respetiva matriz rústica, sob artigo (...) , da freguesia de (...) , composto de terra de regadio com videiras, oliveiras e árvores de fruto, que confronta do Norte e Nascente com M... , do Sul com (...) , e do Poente com caminho.

2. O identificado prédio rústico está descrito e inscrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) da freguesia de (...) e ali inscrito a favor dos autores.

3. Por escritura de compra e venda de 2 de janeiro de 1989, os autores declararam comprar a M (…) e A (…) e estes declararam vender-lhe um terreno correspondente a 4/5 do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (...) , aquisição esta que foi registada na Conservatória do Registo Predial de (...) pela apresentação nº (...) de 22/02/1989.

4. Desde então, portanto, há mais de 25 anos, que os autores andam na posse do terreno mencionado em 3., o que fazem de forma pública, pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, agindo na convicção de serem verdadeiros e únicos proprietários do referido prédio rústico.

5. Há mais de 25 anos que os autores limpam, lavram e semeiam milho, centeio, batatas e feijão no terreno descrito em 3. que depois ceifam e colhem; tratam das árvores de frutos, videiras e oliveiras, colhendo os seus frutos, limpam de ervas e arbustos daninhos, compõem os muros de pedra que limitam as estremas.

6. O terreno referido em 3 tem como único acesso ou comunicação direta com a via pública, quatro degraus em pedra, com a largura de 1,10 m, a um caminho público em paralelo com 1,70 m de largura.

7. E desde há mais de 20, 30, 40 e 50 anos que é servido por um caminho particular que nasce na Estrada (...) / (...) , entrando pela confrontação ESTE do, antes prédio rústico inscrito sob o artigo (...) , hoje prédio urbano inscrito sob o artigo (...) , da dita freguesia de (...) , propriedade dos Réus; Prolonga-se por este art.º (...) urbano, durante 43 metros: com orientação inicial ESTE/OESTE, por cerca de 9 metros, após o que descreve uma curva para o seu lado esquerdo e adquire a orientação NORDESTE/SUDOESTE, prolongando-se por mais 34 metros até desembocar no prédio dos autores, no qual entra pela confrontação a NORDESTE.

8. Em todo este percurso, que medeia entre o início na Estrada (...) / (...) e o fim na entrada do prédio dos autores, o caminho consume cerca de 43 metros de extensão.

9. E mantinha uma largura média de 3 metros.

10. O trânsito de trator e carros de bois de e para a primeira parte prédio dos autores identificado no ponto 3 sempre se fez pelo caminho particular acima descrito, constituído por terreno batido e não cultivado, ostentando marcas no solo do trajeto das pessoas e carros de bois e tratores e delimitado pelo portão de comunicação entre o descrito prédio dos Réus (prédio serviente) e o descrito prédio dos Autores (prédio dominante) e pelo muro de separação entre o descrito prédio dos Réus (prédio serviente) e o caminho propriamente dito.

11. Há mais de 10 anos a esta parte, concretamente no ano de 2001, os Réus, aquando das obras de preparação para a implantação da sua casa no lote urbano, alteraram a topografia do terreno, tendo rebaixado o terreno junto do descrito caminho que dá para o terreno dos autores descrito em 3.

12. A balizar o caminho e para evitar o seu desmoronamento, os Réus efetuaram um muro em blocos de cimento no segmento que seguia no sentido NORDESTE/SUDOESTE. Desde então, o caminho, na estrema SUDESTE do seu leito, estava balizado pelo referido muro, mantendo inalterada a descrita largura média de três metros.

13. Em 2010, os autores efetuaram diversas obras, serviços e melhoramentos no prédio rustico id. no ponto 3.

14. Junto à entrada do prédio, no limite do caminho que lhe serve de acesso, desmontaram parte do talude existente a montante e alargaram assim a dita entrada, que vedaram com dois portões; um de carro, outro de pé; Surribaram e aplanaram o terreno; na estrema SUL edificaram um muro de suporte de terras em blocos de granito.

15. Para as obras de terraplanagem e montagem do muro de blocos de granito, os autores tiveram que usar uma máquina de movimentar terras de lagartas e torre giratória.

16. Como a máquina não coubesse no caminho de servidão, os autores tiveram que desmontar e cortar o talude a montante do caminho, mais concretamente no segmento que seguia no sentido NORDESTE/SUDOESTE, o qual era parte integrante de um prédio rústico pertencente a M... .

17. O dito talude foi desmontado e cortado em toda a sua extensão numa profundidade média de 1,30 metros.

18) Em Agosto de 2012, os réus colocaram um portão na entrada do caminho de servidão, que antes não tinha, tendo para o efeito nessa data facultado uma chave do referido portão aos AA, que a aceitaram e passaram a utilizar para aceder ao dito caminho.

19. E também procederam à demolição do muro de delimitação ao descrito caminho que antes haviam construído.

20. Após, por mais do que uma vez, em datas não concretamente apuradas, os Réus removeram alguma terra do talude que separa o leito do caminho do resto do seu prédio, diminuindo a largura daquele.

21. Desde há mais de 20 anos que os autores usam a descrita passagem para passarem, irem e virem, a pé ou de carro, para o seu prédio (o art.º (...) .º, rústico) limpam e tratam o caminho e, desde a sua implantação, abrem e fecham o portão necessário à passagem.

22. O que fazem de forma pública, pacífica, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos donos do prédio ora dos Réus e já descrito, agindo na convicção de serem titulares do direito de passar que constitui o objeto da servidão de passagem.

23. Os factos descritos nos pontos 19 e 20 dificultam o normal trânsito de e para o prédio dos autores quando é feito de carro, nomeadamente trator e veículos de carga.

24. Aquando da realização das obras descritas em 14 a 17 dos factos provados, os Autores causaram rachadelas no muro que delimitava o caminho em causa do restante terreno do prédio dos Réus.

25. Os Autores são donos de um prédio rústico, sito à (...) , inscrito na respetiva matriz rústica, sob artigo (...) , da freguesia de (...) , composto de terra de alqueve com oliveiras, que confronta do norte e sul com (...) e (...) , a nascente com (...) e a poente com caminho, descrito e inscrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...) da freguesia de (...) e ali inscrito a favor dos autores, que adquiriram por compra a ML... , através de escritura de compra e venda outorgada a 9 de agosto de 2013.

25.a. O prédio dos AA. identificado em 3 confina a norte com o prédio inscrito na matriz sob o artigo (...) .

25.b. O prédio inscrito na matriz rústica sob o artigo (...) confronta com o caminho público denominado Caminho de S (...) , Caminho das E (...) ou Caminho da C (...) , com a largura mínima de 2 metros.

26. No ano de 2012, os Autores vieram igualmente a adquirir, por compra, uma outra parcela de terreno, correspondente a 1/5 do prédio descrito no artigo matricial nº (...) , com o qual confina.

27. Esta parcela de terreno confronta com o caminho denominado (...) , que permite a passagem a pé.

28. Entre o prédio id. em 3 e o prédio inscrito sob o artigo (...) existe um talude com dois socalcos com cerca de 1 m cada.


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B. O Direito

4. Extinção da servidão de passagem por desnecessidade

Nas conclusões 23ª e 24ª, os Apelantes sustentam que, partindo das alterações por si pretendidas à matéria de facto, se imporia a declaração da extinção da servidão por desnecessidade nos termos do artigo 1569º, nº2 do CC, porquanto, com a aquisição do prédio mencionado no ponto 25 dos factos provados e pela aquisição da totalidade do prédio (...) , os autores terão passado a ter um acesso privilegiado à via pública, que até então só teriam a pé ou pelo prédio dos Réus.

Contudo, as alterações aqui introduzidas, na sequência da procedência parcial da impugnação deduzida pelos Apelantes à decisão sobre a matéria de facto, não são suficientes para imporem uma diversa solução de direito da adotada na sentença recorrida.

Segundo o nº2 do artigo 1569º do Código Civil, “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.

Podem ser objeto de servidão “quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, mesmo que de natureza voluptuária, quando suscetíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante” (artigo 1544º CC).

Sendo o direito de propriedade um direito tendencialmente ilimitado, e importando a constituição de uma servidão uma limitação ou oneração do prédio serviente (algumas das suas utilidades deixam de poder ser aproveitadas pelo respetivo proprietário, afetadas que ficam ao prédio dominante), compreende-se que a mesma se extinga quando deixe de proporcionar as utilidades ao prédio dominante[3].

A justificação residirá em que não se poderão manter servidões, face à desvalorização que sempre acarretarão para o prédio serviente, se não trouxerem vantagens ao prédio dominante.

A extinção da servidão por desnecessidade, nas palavras de Oliveira Ascensão, é uma pura emanação dos princípios que regulam a função social e pessoal dos direitos reais: “Se a regulamentação da servidão levasse a concluir que a nossa ordem jurídica consagrava a existência de gravames sobre determinado prédio independentemente da sua utilidade para o titular do prédio pretenso beneficiário, teríamos de concluir também que a regulamentação da servidão provocaria o aparecimento de situações sem qualquer justificação – de “direitos” que unicamente trariam desvantagens para outros sujeitos e para a comunidade, sem que nada beneficiassem o seu titular[4]”.

Será à luz de tais princípios e das alterações que foram sendo introduzidas pelo legislador até ao atual artigo 1549º do CC, que procuraremos esclarecer o alcance da noção de “desnecessidade” como causa de extinção das servidões prediais.

Dispunha o artigo 2313º do Código de Seabra (na redação do Decreto nº 19.126, de 16 de dezembro de 1930): “A obrigação de prestar passagem pode cessar a requerimento do prédio serviente, cessando a necessidade da servidão, ou se o dono do prédio dominante, por qualquer modo, tiver possibilidade de comunicação igualmente cómoda com a via pública, por terreno seu”.

Em comentário a tal norma, Cunha Gonçalves[5] elencava três situações que poderiam dar azo à desnecessidade das servidões:

“a) Reunião do prédio encravado a outro prédio que tem comunicação com a via pública, quer o dono deste adquira aquele, quer se verifique a inversa;

b) Abertura de uma estrada nova, que atinge o prédio encravado, pois deste modo opera-se a desencravação, tornando-se injusta a passagem forçada através do prédio serviente (…);

c) Transformação do prédio encravado, de sorte que ao seu dono seja possível alcançar a mesma via pública, contanto que esta comunicação não seja menos cómoda do que a servidão, isto é, que aquela comunicação sirva para uso idêntico ao da servidão. Por exemplo, se a servidão for a pé e de carro e a nova comunicação pelo terreno do prédio encravado só for possível a pé, aquela servidão não poderá cessar”.

A reforma de 1930 aditou ainda o seguinte parágrafo ao artigo 2279º CC: “As servidões constituídas por prescrição poderão ser judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário serviente, desde que se tornem desnecessárias ao prédio dominante, ou por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, ou por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo.”

Em conformidade com o que se fez constar da exposição de motivos, tal artigo “tem em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis, que desvalorizem os prédios servientes sem que desvalorizem os prédios dominantes”.

Prevendo o citado artigo 2279º do Código de Seabra três hipóteses em que a extinção da servidão se pode verificar, hipóteses não previstas no artigo atual nº2 do 1569º que lhe sucedeu, Pires de Lima[6] dá a seguinte explicação para a sua eliminação: “como enumeração taxativa, parece-se perigosa a especificação; como enumeração exemplificativa, deixa de ter interesse, e é preferível que os tribunais gozem de maior liberdade de apreciação”.

A desnecessidade representa a perda total da utilidade para o prédio dominante. A perda parcial mantém, em princípio, a utilidade do prédio serviente ao prédio dominante, pelo que não ocorre a desnecessidade[7].

Englobando o atual nº2 do artigo 1569º na desnecessidade, não só a hipótese da “desnecessidade” propriamente dita, como a hipótese da possibilidade de comunicação igualmente cómoda com a via pública, é de concluir que o legislador adotou um conceito amplo de desnecessidade, com o significado de inutilidade[8].

Não haverá dúvida de que, quando a utilização do prédio alheio de nada aproveite ao prédio dominante, nos encontraremos perante a figura da desnecessidade[9].

Mas não só. Poder-se-á ir mais longe, afirmando-se que a servidão deverá ainda ser extinta em caso de desproporcionalidade entre as vantagens que aporta ao prédio dominante, face aos prejuízos ou desvalorização que acarreta ao prédio serviente.

“O que a lei no fundo pretende é uma ponderação atualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvidrio do julgado avaliar, se no momento considerado – e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo – haverá ou não “alternativa” que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente[10]”.

Como sustenta Mário Tavarela Lobo[11], os conceitos de desnecessidade, dispensabilidade ou inutilidade deverão entender-se com certa elasticidade ou num critério de relatividade, procurando sempre o juiz conciliar equitativamente aqueles interesses dos proprietários serviente e dominante.

É sobre a parte que requer a extinção da servidão por desnecessidade – e esta tem de ser declarada por via judicial – que recai o ónus de provar os factos de onde se possa concluir por essa desnecessidade[12].

No caso em apreço, os Réus lograram provar a aquisição por parte dos autores de uma parcela de terreno correspondente aos restantes 1/5 do artigo (...) , parcela esta que confronta com o caminho público denominado (...) , bem como de um outro prédio confinante com o prédio dominante dos autores (o prédio do “ M... ”, inscrito no artigo (...) , adquirido por escritura de 2013), e que este prédio confronta também com um caminho público com uma largura de 2 m.

Contudo, da matéria dada como provada não resulta que a aquisição de tais terrenos por parte dos autores tenha acarretado a inutilidade ou desnecessidade da servidão.

Como se afirma no Acórdão deste tribunal de 13-05-2014[13], para a extinção da servidão por desnecessidade, não basta que, para além da passagem objeto da servidão, exista uma outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que esse outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou pelo menos não desproporcionalmente agravadas.

Ou seja, não será suficiente a alegação e prova de que os autores adquiriram um prédio confinante e uma outra parcela de terreno e que este prédio e esta parcela dispõem de acessos diretos à via pública.

No caso em apreço, os réus, não só não lograram demonstrar que a parcela e o prédio posteriormente adquiridos pelos autores tenham acesso à via pública com características semelhantes ao proporcionado pelo caminho de servidão em questão – o acesso da parcela ao caminho do (...) consiste num acesso de pé, e o acesso do artigo (...) reporta-se a um caminho com 2 metros de largura, quando, encontrando-se aqui em causa um servidão para fins agrícolas (a pé e de trator), o respetivo caminho tem uma largura média de três metros –, como não demonstraram, sequer, que o prédio dominante se possa servir de tais acessos para aceder à via pública, tendo sido dada como provada a existência de um desnível entre o prédio dominante e o artigo (...) .

Será, assim, de manter o juízo de improcedência do pedido de declaração de extinção da servidão de passagem por desnecessidade.


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5. Responsabilidade pela reconstrução do muro e reposição do pavimento natural do caminho.

Segundo os Apelantes, a responsabilidade pela reconstrução do muro deveria ser assacada aos autores ou, pelo menos, deveriam os réus ser indemnizados pelos prejuízos que sofreram em virtude do comportamento assumido pelos autores e que lhes provocou danos no muro.

Da matéria dada como provada temos que os autores provocaram rachadelas no muro construído pelos réus para segurar as terras do caminho e que, posteriormente, os réus procederam à demolição desse muro, na parte encostada ao caminho, sem que, tal como se fez constar na sentença recorrida, tenha ficado demonstrado que tais danos tenham posto em causa a integridade do muro ao ponto de exigir a sua integral demolição.

Foram os réus que, com o abaixamento do seu terreno para construção da sua casa de habitação, criaram a necessidade de construção de um muro de suporte de terras para que a parcela reservada ao caminho não fosse cedendo com o passar do tempo.

Como tal, tendo os réus procedido à sua posterior demolição, confirma-se ser sua a responsabilidade pela reconstrução.

Quanto à pretensão que agora é formulada, a título subsidiário, em sede de alegações de recurso – de condenação dos autores no pagamento de indemnização pelos danos causados no muro –, não fez parte dos pedidos por si deduzidos em sede reconvencional, pelo que, não poderá ser decretado no âmbito dos presentes autos.

6. Condenação dos autores em litigância de má-fé

Instaurada a presente ação a 24 de setembro de 2014, defenderam-se os réus, na sua contestação, com a alegação de que não faz sentido sacrificar o seu prédio quando o prédio dos autores “confronta a poente com caminho”, conforme resulta do doc. 1 junto com a a p.i., e “até compraram o prédio contíguo ao id. no artigo 1º da petição inicial, assim alargando a zona de contacto com a via pública” (artigos 26º a 31º, da contestação)

Os AA. respondem a tal articulado, alegando que o caminho mencionada na confrontação poente do seu prédio é um caminho de transito somente a pé, um pequeno carreiro, incapaz de por ele se transitar de carro, e que, quanto ao talude desmontado  e cortado para facilitar a passagem das ditas máquinas e veículos foi o do prédio do M (…) e não o do prédio dos réus. Juntam certidão de registo respeitante ao artigo (...) º.

Por requerimento de 23 de março de 2015, os autores vêm ainda retificar o art. 3º da petição inicial, reconhecendo terem adquirido o prédio inscrito no artigo (...) em dois momentos, através da compra de 1ª parcela a M (…) no ano de 1989, e da compra de uma 2ª parcela com registo de aquisição a 30.08.2012;

Por requerimento por si apresentado também a 23 de março de 2015, os réus alegam que conseguiram confirmar que os AA. adquiriram, efetivamente, através de compra e venda titulada pela escritura pública outorgada em 09-08-2013, um prédio rústico contíguo ao que estes se arrogam proprietários nos presentes autos, prédio que se encontra inscrito na respetiva matriz sob o artigo (...) da freguesia de (...) – juntam cópia da caderneta predial, da respetiva descrição na CRP e da escritura de compra e venda (fls. 125 a 30); tal aquisição ocorreu já antes da propositura da presente ação, facto os AA. sempre quiseram manter em segredo, estranhando que os autores tenham prontamente negado tal facto  que tinham a obrigação de saber verdadeiro. Concluem, assim, pela condenação dos autores em litigância de má-fé em multa e indemnização a liquidar a final.

Respondem os autores alegando que as confrontações do prédio por si adquirido não são as referidas pelos réus nos seus articulados e que logo são desmentidas pela leitura da certidão matricial que juntam, sendo que nenhuma das confrontações do prédio agora evidenciado pelos réus é com autores ou antecessores na titularidade do seu prédio. Mais afirmam que “os autores não escondem ou esconderam qualquer prédio que tenham ou possuam, já que nenhum tem as caraterísticas e localização que os réus lhes querem atribuir” (fls. 132 a 136).

Na inspeção ao local levada a cabo pelo tribunal a 27 de setembro de 2016, é identificado um terreno situado do lado direito do caminho em litígio, e ainda que o prédio dos Autores confronta com outro terreno que, por sua vez, confronta com caminho púbico, em paralelo, com a largura mínima de 2 m, fazendo-se constar da Ata “não tendo sido possível apurar se corresponde ao terreno com o artigo matricial (...) , também propriedade dos autores”.

Ou seja, pelo menos até aí, não terá sido reconhecido pelos autores que o prédio situado a norte do caminho em litígio corresponde ao prédio por si adquirido pela escritura de 09 de agosto de 2013.

Na sessão da audiência final de 10 de outubro de 2016, os Réus, face às dúvidas expressadas nos autos sobre a localização do prédio adquirido pelos autores, requerem, entre outras diligências, que “os autores venham aos autos explicar de uma vez por todas qual a concreta localização e delimitação tanto do artigo rústico inscrito na respetiva matriz sob o artigo (...) bem como do artigo (...) , este ultimo correspondente ao novo prédio adquirido por aqueles em agosto de 2013”.

Em resposta, os AA., através do respetivo mandatário, limitam-se a referir o seguinte: “Quanto à descrição predial dos artigos (...) e (...) , nomeadamente a sua localização, área e confrontações, estas resultam de certidões prediais juntas aos autos, da prova pericial e inspeção judicial oportunamente efetuadas factos que podem ser completados até pela inquirição das testemunhas, pelo que deve ser indeferido nesta parte o requerimento dos réus”.

Ora, as testemunhas dos autores não tiveram qualquer dúvida em situar o prédio que pertencia ao “M (…)” e que foi adquirido pelos Autores em agosto de 2013 à filha deste, (…), também ouvida como testemunha: o prédio por si adquirido era precisamente o prédio situado a norte do caminho em litigio e do qual fazia parte o talude que os próprios AA. alegam ter cortado para poderem passar com as máquinas em 2010 (artigos 22 a 27 da p.i.) e que aí referem ser “parte integrante de um prédio rústico pertencente a (…)”.

Ou seja, não só na petição inicial, omitem ter adquirido por compra tal prédio, como posteriormente, face à alegação dos réus de que os autores teriam comprado um prédio contíguo, estes negam tal facto, e mesmo quando os réus, conseguindo obter a documentação que comprova tal aquisição juntando-a aos autos, os AA. negam que o referido prédio seja contíguo ao seu, sem que se prontifiquem a indicar a sua localização.

Sabendo perfeitamente onde se localizava tal prédio, no qual já haviam executado obras mesmo em data anterior à celebração da respetiva escritura de compra e venda – na petição inicial corrigida que apresentam a 23 de março de 2015, continuam a referir a desmontagem de parte do talude, como se tratasse de obras no seu prédio serviente, continuando a referir-se ao prédio contíguo “pertencente a M (…)”, quando o mesmo havia já sido por si adquirido, e em data anterior à propositura da ação (arts. 22º e 26º da petição de fls. 111), fizeram perder tempo ao tribunal (quer na 1ª instancia, quer a este coletivo) a tentar perceber a localização de tal prédio, identificação e localização que se afiguravam essenciais à defesa dos réus.

Na decisão recorrida, o juiz a quo veio a negar a existência de má-fé por parte dos autores, com base na seguinte apreciação que do seu comportamento fez:

“Passando à análise do caso concreto, os Autores admitem, ao longo do processo, que adquiriram outros prédios contíguos ao prédio descrito no ponto 1 dos factos provados, alegando, porém, que, por força de tais aquisições, não deixaram de ter necessidade na servidão que pretendem ver reconhecida, porquanto continuam a não poder aceder ao prédio em questão, através de carro, dada a existência de taludes entre o prédio que beneficia da servidão e os prédios entretanto adquiridos.

Admitida pelos Autores a aquisição de tais prédios, a sua concreta localização e configuração, suscetível de conduzir à peticionada (em sede reconvencional) extinção por desnecessidade da invocada servidão, era matéria que competia aos Réus demonstrar ao Tribunal, designadamente através de prova pericial, que não foi realizada mas era possível. Não podemos é exigir aos Autores, sob o pretexto de que estão em melhores condições do que os Réus para demonstrar tais factos – localização e configuração dos terrenos entretanto adquiridos – que façam a prova que a estes incumbe.

Assim sendo, somos de entendimento que a conduta dos Autores nos presentes autos não é censurável ao nível da litigância de má-fé.”

Ora, da síntese que se deixou aqui exposta acerca da posição que foi sendo assumida pelas partes ao longo do processo, logo se extrai que nunca, em todos os articulados e requerimentos apresentados nos autos, os autores reconheceram alguma vez que o prédio por si adquirido por escritura pública de 09 de agosto de 2013 fosse o prédio confinante com o caminho em litígio e no qual alegam ter “desmontado” parte do talude para alargamento do caminho (art. 23º da p.i.),

De tal modo que, já no decurso da audiência de julgamento e após a inspeção ao local, a ilustre mandatária dos réus continuou com sucessivos requerimentos nos quais peticionava que os autores esclarecessem onde se situavam, a final, a parcela adquirida pelos AA. em 2012 e o prédio por estes adquirido pela escritura de 09-03-2013.

E se não era aos autores que incumbia a prova da desnecessidade da servidão ou da existência de outros caminhos, por se tratar de factos que eram do seu conhecimento pessoal incumbia-lhes a indicação de onde se situavam os prédios ou parcelas por si adquiridos e, face à alegação, por parte dos réus, de que tais prédios tinham acesso direto à via pública, invocarem, então, a existência de um desnível entre o prédio serviente e os terrenos por si adquiridos, ou de outras características que inviabilizassem a utilização de tais terrenos para através dos mesmos os autores acederem à via pública a partir do prédio serviente.

Assim sendo, considera-se demonstrada a existência de má-fé por parte dos autores ao negarem um facto que tinham a obrigação de conhecer por se tratar de facto pessoal, que os mesmos omitiram e que veio a ser dado como provado: que antes da propositura da ação, haviam já adquirido, por compra, o prédio situado a norte do caminho em litígio e com o qual confina.

Tal situação integra a previsão do artigo 542º, nº2, al. b), do CPC, que considera litigante de má-fé “quem tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”.

A apelação será de proceder, nesta parte.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, e revogando-se parcialmente a decisão recorrida, condenam-se os autores como litigantes de má-fé na multa de 4 UCs e em indemnização a liquidar nos termos previstos no nº3 do artigo 543º do CPC.

Custas a suportar pelos apelantes e pelos apelados, na proporção de ¼ e ¾, respetivamente.                

                                                                            Coimbra, 24 de outubro de 2017

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. Para a extinção da servidão por desnecessidade não será suficiente a alegação e prova de que os autores adquiriram um prédio confinante ao prédio dominante e que este dispõe de acesso direto à via pública.
2. Será ainda necessário provar que o prédio dominante se possa servir desse outro acesso e que este ofereça condições de utilização similares, ou pelo menos não desproporcionalmente agravadas.
3. Litigam de má-fé os autores que, num primeiro momento, omitem terem adquirido um prédio confinante com o dominante – prédio este com acesso direto à via pública – e, mais tarde, face à junção pelos réus da escritura da respetiva aquisição, negando a respetiva confinância, factos estes essenciais à defesa dos réus respeitante à desnecessidade da servidão de passagem.


[1] António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2016º-3ª ed., Almedina, p. 265.
[2] José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3ª ed. Coimbra Editora, Setembro 2013, pp. 315-316, nota 1A.
[3] Como afirma Jacinto Rodrigues Bastos, a doutrina constante de tal norma harmoniza-se com a ideia generalizada de que deve ser libertada a terra, sempre que possível, sendo que, no caso das servidões constituídas por usucapião, foram os factos que as impuseram e são agora os factos que justificam a sua extinção – “Direito das Coisas, segundo o Código Civil de 1966”, IV, 1975, p.214.
[4] José de Oliveira Ascensão, “Desnecessidade e Direitos Reais”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XVIII, 1964, p.252.
[5] “Tratado de Direito Civil, em comentário ao Código Civil Português”, Vol. XII, Coimbra Editora – 1937, pp.35-36.
[6] Anteprojeto das Servidões Prediais, BMJ nº 64, pp. 34/35.
[7] José Alberto Vieira, “Direitos Reais”, Coimbra Editora 2008, p.852.
[8] Para a distinção entre os conceitos de dispensabilidade e de inutilidade, cfr. Oliveira Ascensão, artigo e local citados, pp.258-263.
[9] Oliveira Ascensão adota o seguinte conceito de desnecessidade: “a desnecessidade tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjetiva, que assentaria na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito. A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta, graças a uma utilização lato sensu de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge-nos a figura da desnecessidade. (…) a desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança da situação, não do prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante” – “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais”, Lisboa 1964, Revista da FDL, Vol. XXIII, pp.244-246.
[10] Acórdão do STJ de 17-11-1998, relatado por Ferreira de Almeida, www.dgsi.pt.
[11] “Mudança e Alteração de Servidão”, Coimbra Editora 1984, p.158.
[12] Neste sentido, cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 11-12-2012, relatado por Moreira Alves, disponível in www.dgsi.pt.
[13] Acórdão relatado por Barateiro Martins, disponível in www.dgsi.pt.