Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1442/18.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
REGULARIZAÇÃO EXTRAJUDICIAL
PRAZO RAZOÁVEL
PRINCÍPIO DA BOA FÉ
DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
INDEMNIZAÇÃO
DANO DA PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.562, 566, 762, 806 CC, ARTS.128, 130, 153 LEI Nº 147/2015 DE 9/9
Sumário: 1 - Estão as seguradoras obrigadas a deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, deveres estes que configuram verdadeiros deveres acessórios de conduta, pelo que, quando a indemnização devida não é paga no prazo previsto no contrato (ou, caso este não exista, em prazo razoável), são violados tais deveres acessórios de conduta – que impõem à seguradora o dever de tomar todas as providências necessárias para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do segurado/beneficiário na prestação – obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário.

2 – Quando alguém celebra, como tomador, um contrato de seguro facultativo, cobrindo, nos dois primeiros anos, o risco de perda total do veículo em caso de furto, aspira – é esse o seu interesse enquanto credor, interesse que a seguradora não ignora – a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder adquirir um veículo idêntico ao que lhe foi furtado.

3 – Tendo a seguradora dito (através do seu mediador) ao segurado que a indemnização pelo valor em novo seria mantido durante os dois anos seguintes à celebração do contrato, não tinha justificação para, ocorrido o sinistro, vir dizer que afinal os dois anos se contam desta a data do registo da 1.ª matrícula e propor uma indemnização correspondente ao valor do veículo em novo diminuído de uma desvalorização de 26%.

4 – Tendo-o feito – o que conduziu a que a indemnização devida fosse paga com 15 meses de atraso em relação à data prevista no contrato – não satisfez o interesse do credor na sua prestação, devendo indemnizar os danos que causou ao segurado/beneficiário com a não satisfação do seu interesse.

5 – Não cobrindo o contrato o risco de privação de uso do veículo, não há uma violação do princípio indemnizatório (constante do art. 128.º do RJCS), nem uma sobreposição de indemnizações – desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor.

6 – É pois indemnizável, em tal hipótese, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, o chamado dano de privação de uso.

Decisão Texto Integral:








Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A (…), residente (…) em Coimbra, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra G (…), com sede na Rua Duque de Palmela, n.º 11, em Lisboa, pedindo a condenação desta no pagamento das seguintes quantias:

1. € 33.147,00, referente ao valor seguro;

2. € 4.900,00, a título de indemnização pela privação de uso do veículo até à data da PI;

3. € 35,00/dia, a título de indemnização pela privação de uso do veículo, desde a data da PI até integral e efectivo pagamento da indemnização;

4.- E juros legais desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Alegou, em resumo, que celebrou com a R. um contrato de seguro em que, além do obrigatário seguro de responsabilidade civil automóvel, procedeu ao seguro facultativo de danos próprios relativos à circulação do veículo com a matrícula QH (...) , de que é proprietário; aqui se incluindo a cobertura do risco de furto ou roubo, pelo valor de € 33.147,00 sem franquia.

Assim, tendo o seu identificado veículo sido furtado entre as 23.45h do dia 17/09/17 e as 12.00h do dia 18/09/17, fez a participação do sinistro à R., para que lhe fosse pago o valor contratado (para a cobertura de furto ou roubo), tendo-lhe a R. proposto pagar tão só a quantia de € 25.867,00; o que não aceitou e motiva a presente acção.

A R. contestou.

Alegou que o veículo tinha à data do sinistro mais de dois anos, razão pela qual a indemnização, em caso de “Furto ou Roubo”, não é o valor em novo do veículo seguro, mas tal valor deduzido de 1% desse valor por cada mês decorrido desde a data de registo da 1ª matrícula, inscrita no livrete, até à data do sinistro.

E, quanto à indemnização pela privação do uso desde 2/10/2018, alegou que não se encontra em mora desde a referida data, pois ainda não havia recepcionado todos os elementos que havia solicitado para processamento da indemnização e averiguação do sinistro participado; que, ainda antes do termo do prazo para liquidação da indemnização, pôs à disposição do A. os valores contratuais devidos, tendo sido este quem não os quis receber; e, quanto ao valor diário a título de privação de uso de veículo, que o A. não demonstra prejuízos de € 35,00 dia.

O A. respondeu às excepções, invocando que não lhe foi dada cópia das Condições Gerais e Especiais da Apólice, que não lhe foi comunicada a cláusula invocada pela R. (para dizer/propor pagar tão só a quantia de € 25.867,00) e que o que lhe foi comunicado foi que o valor em novo seria mantido durante 2 anos, tendo entendido que tais dois anos se contavam após a celebração do contrato e não após a primeira matrícula do veículo.

Dispensada a audiência preparatória, foi proferido despacho saneador, em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém; tendo-se identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que julgou a acção parcialmente improcedente e que, em consequência:

“ (…) condenou a Ré G (…) a pagar ao A. A (…) a quantia de € 33.147,00, acrescida dos juros legais, desde a citação até integral e efectivo pagamento, absolvendo-a do mais peticionado. (…)”

Inconformado com tal decisão, interpõe o A. o presente recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que “condene a R. a pagar ao A. uma indemnização pela privação de uso de veiculo desde 2/10/2017 até 19/02/2018, no valor de 35,00€/ dia, no total de 4.900,00 € (140 dias x 35,00 € dia) e ainda o valor de 35,00 € desde o dia 20/02/2018 até ao dia em que foi pago o valor em que a R. foi condenada - 33.147.00€, correspondente ao valor seguro no contrato celebrado entre A. e R.”

A R. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a sentença recorrida as normas referidas pelo apelante, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Fundamentação de Facto

II – A – Factos provados:

Provaram-se os seguintes factos:

1- No dia 16/10/2015, o A. celebrou com a R. um contrato de seguro obrigatário de responsabilidade civil automóvel e seguro facultativo de danos próprios, relativamente à circulação do veículo com a matrícula QH (...) , do qual é proprietário (art. 1º da p.i.).

2- Conforme consta das condições particulares que a R. enviou ao A., ao contrato referido em 1) foi atribuído o nº de apólice 0084 10666651, sendo o capital seguro para os danos próprios, nomeadamente para as coberturas de furto ou roubo, incêndio, raio e explosão, fenómenos da natureza, actos e vandalismo e choque, colisão e capotamento de € 33.147,00, sem franquia (art. 2º da p.i.).

3- O valor que consta como valor seguro – € 28.000,00, de capital seguro de veículo e € 5.174,00 de capital seguro de extras – foi indicado pela mediadora da R., através de consulta ao sistema informático que a R. disponibiliza aos seus mediadores para avaliação dos valores a segurar, de acordo com a marca do veículo, ano de construção e extras (art. 10º e 14º da p.i. e 10º da resposta).

4- O valor seguro foi aceite pelo A. e pela R., pelo que foi emitida a respectiva apólice e cobrado o prémio de acordo com o risco aceite (art. 11º da resposta).

5- No contrato de seguro, foram contratados no âmbito das Condições Especiais Aplicáveis, os seguintes itens:

- 01/02/03/04/05/06/07/08/09/10

- C/G/V/Z/A6/A7 (art. 6º da contestação).

6- A Condição Especial 07 (pag. 60) tem como título “Extensão Danos Próprios Valor em Novo”, observando-se quanto à cobertura dos mesmos a Cláusula 2ª, que diz o seguinte:

1. O Segurador, quando contratada a presente Condição Especial, e em caso de perda total do veículo seguro, decorrente de sinistro coberto pelas Condições Especiais de “Danos Acidentais Sofridos pelo Veículo”, “Incêndio, Raio ou Explosão” e “Furto ou Roubo”, pelas quais se encontre abrangido, garante o pagamento, consoante o caso, de uma indemnização calculada em função dos seguintes critérios:

a) Veículos até dois anos de antiguidade

Valor em novo do veículo seguro, determinado em obediência à definição constante na presente Condição Especial;

b) Veículos com antiguidade compreendida entre dois e quatro anos

Valor de catálogo do veículo seguro, deduzido de 1% desse valor por cada mês decorrido desde a data de registo da 1ª matrícula, inscrita no livrete, até à data do sinistro (art. 7º da contestação).

7- Relativamente à Condição Especial 07 “Extensão Danos Próprios Valor em Novo”, na data referida em 1), a mediadora da Ré comunicou ao A. que o valor em novo seria mantido durante dois anos após a celebração do contrato (art. 9º, 11º e 15º da p.i. e 7º e 12º da resposta).

8- A R. não deu ao A. uma cópia das Condições Gerais e Especiais da Apólice (art. 2º da resposta).

9- As cláusulas do contrato de seguro referido em 1) foram elaboradas pela R. seguradora, destinadas a destinatários indeterminados, que se limitam a subscrevê-las e aceitá-las, sem ter possibilidade de influenciar o seu conteúdo (art. 2º da resposta).

10- A Condição Especial 06 “Furto ou Roubo”, prevê, quanto à regularização de sinistros que: “(…) A indemnização por desaparecimento do veículo, será devida decorridos que sejam 15 dias úteis sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente se, até ao fim desse período, o veículo ainda não tiver sido encontrado” (arts. 19º da p.i. e 7º da contestação).

11- No dia 17 de Setembro de 2017, cerca das 23.45h, o A. estacionou o veículo no parque de estacionamento público junto ao Hotel (…), em Azurara, tendo pernoitado no referido hotel (art. 3º da p.i.).

12- No dia 18 de Setembro de 2017, cerca das 12.00h, após ter efectuado o check out no Hotel (…), o A. dirigiu-se ao local onde tinha deixado o veículo estacionado na noite anterior e verificou que o mesmo não estava no referido local (art. 4º da p.i.).

13- O A. participou, nesse próprio dia 18/09/2017, à GNR o furto do veículo de matrícula QH (...) ocorrido entre as 23.45h do dia 17/09/17 e às 12.00h do dia 18/09/17, o qual até à presente data, não foi encontrado pelas autoridades (art. 6º da p.i.).

14- O A. fez a participação do sinistro à R., juntando à mesma cópia do auto de denúncia do furto do veículo com a matrícula QH (...) , para que fosse pago o valor seguro contratado para a cobertura de furto ou roubo (art. 7º da p.i.).

15- Em 29/09/2017, a R. remeteu carta ao A. a comunicar que aceitava proceder ao pagamento do valor de € 25.867,00, solicitando ao A. o envio de diversa documentação para proceder à regularização do sinistro (art. 8º da p.i.).

16- O A. não aceitou a proposta efectuada, por entender que a R. não estava a cumprir o contrato que consigo celebrou (art. 9º e 16º da p.i.).

17- O A. trabalha por conta própria na área do turismo (art. 23º da p.i.).

18- O veículo QH tem a data de matrícula de Agosto de 2015 (art. 8º da contestação).


*

I – B Factos não provados:

Não se provou que:

- Aquando da celebração do contrato de seguro de circulação automóvel para o QH, o A. indicou o seu valor em € 28.000,00 e valor de extras em € 5.147,00 (art. 4º da contestação).

- O Relatório de Averiguação para confirmação de furto involuntário foi concluído a 26 de Dezembro de 2017 (art. 18º da contestação).


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III – Fundamentação de Direito

Como resulta do relato inicial, a apelação circunscreve-se à questão da indemnização pela privação do uso do veículo; única indemnização que não foi concedida ao A. na sentença recorrida, pelo que, sendo ele o único recorrente, esta era mesmo a única questão susceptível de poder integrar o objecto da presente apelação.

E a propósito de tal questão, expenderam-se os seguintes raciocínios jurídicos na sentença recorrida:

O A. peticionou, igualmente, a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização de € 4.900,00, pela privação de uso, decorrente do incumprimento contratual da R., acrescida de € 35,00/dia (…).

Tem sido discutida, na Jurisprudência, a questão de saber se em caso de seguro de danos, o segurado tem o direito a haver da Seguradora alguma quantia monetária para o compensar pela privação do uso da sua viatura.

Há quem defenda que deve ser atribuída uma indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado mesmo nos casos em que não foi contratada a cobertura facultativa de privação desse uso, considerando tal indemnização devida por violação de um dever acessório de conduta quando a seguradora demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento e quem, por outro lado, rejeite tal entendimento (…).

No caso dos autos, o contrato de seguro não previa qualquer prestação monetária destinada a compensar os danos que ora estão em causa. (…)

É, pois, inequívoco que estamos perante uma obrigação pecuniária e não diante de uma obrigação de indemnização.

Ora, nos termos do artigo 806º nº1 do Código Civil, “[n]a obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”; juros que são os legais “salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal” (nº 2), o que não sucedeu na situação em apreço.

Só na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) ou baseada no risco o credor pode exigir do devedor uma indemnização superior à fixada no regime primeiramente citado, alegando que a mora lhe causou no caso concreto prejuízo mais elevado (nº3) – cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 3ª ed. revista, pág. 69. Mas, não sendo esse o caso, visto que estamos no domínio da responsabilidade contratual, a regra a aplicar é a que começámos por enunciar. De modo que, nunca o A. poderia ser indemnizado pela Ré em função do dano que lhe adveio com a privação do uso do seu veículo em causa.

Aderindo, assim, ao entendimento expresso, entre outros, no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 7-02-2017, relativamente aos danos pela privação do uso da viatura, o seguro facultativo em causa não cobre esse dano.

Estipula o artigo 130º, n.ºs 2 e 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que, no seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado, o que se aplica à privação do uso do bem. (…)

A procedência da pretensão do recorrente transmutaria o seguro facultativo em seguro obrigatório, fazendo tábua rasa do já citado artigo 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que limita a prestação devida pelo segurador ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro.

Termos em que improcede a pretensão do A. de ser indemnizado pela privação de uso do veículo.

Raciocínios jurídicos cuja linearidade é indiscutível.

Efectivamente, como resulta do art. 130.º/3 do RJCS, o segurador, apesar de se tratar de um dano emergente, só responde pela privação do uso da coisa segura se a cobertura de tal risco estiver convencionada no contrato de seguro.

Assim, não estando a cobertura de tal risco convencionada no contrato de seguro sub-judice, o atraso do segurador na realização da prestação convencionada – entrega do valor do veículo em novo – por ter ocorrido o evento que desencadeou o accionamento da cobertura do risco “furto de veículo” previsto no contrato, apenas dará lugar ao pagamento de juros de mora (ou seja, não dá lugar a uma qualquer indemnização pela privação de uso do veículo), que “monopolizam” toda a indemnização pela mora nas obrigações pecuniárias (máxime, quando, como é o caso, se trata de obrigações pecuniárias de origem contratual, cfr. art. 806.º/3 do C. Civil), como é o caso da obrigação da seguradora entregar ao beneficiário do seguro o valor do veículo em novo[1].

Entendimento este que, pese embora a força da sua linearidade, vem sendo colocado em crise em diversas decisões dos nossos tribunais superiores (como também é admitido na decisão recorrida); podendo já dizer-se que se começa a desenhar, de modo firme, o entendimento da seguradora ter que suportar os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada.

A fundamentação gizada não tem sido sempre rigorosamente igual, porém, tem-se sustentado, em termos essenciais, que, tendo as empresas de seguros o dever de «actuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (cfr. art. 153º/1 da Lei 147/2015, de 9 de Setembro), os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres (legais) acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre – ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável – são violados tais deveres (legais) acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário.

Assim:

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, sustentou-se:

“A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências.”

“Muito particularmente no âmbito de um contrato de seguro, a boa fé supõe que o segurado conte com o cumprimento do contrato, pois é isso que se espera de uma contraparte séria, honesta e leal, não se afigurando admissível que uma seguradora se recuse inexplicavelmente a pagar ao segurado as quantias que lhe são devidas.”

“A ré incorre, assim, em responsabilidade pela não liquidação dos danos cobertos pelo contrato de seguro por violação de uma obrigação que dimana das aludidas regras do RJCS conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Código Civil que tutelam os interesses tanto de terceiros como do próprio segurado.”

“Não estamos, pois, perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.”

No Ac. do STJ de 23/11/2017 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Távora Victor, considerou-se:

“No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.”

“A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato

“Um comportamento culposamente omissivo da Companhia de Seguros ao recusar-se a promover injustificadamente a reparação de uma viatura acidentada, pode dar azo a um dano autónomo de privação do uso cujo ressarcimento não cabe nos estreitos limites dos juros previstos para a mora.”

“A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”

No Ac. STJ de 14/12/2016 (in ITIJ), relatado pela Conselheira Fernanda Isabel, observou-se:

“Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”.

“A apresentação de queixa-crime que venha a revelar-se, posteriormente, inconsequente no desenrolar do processo de inquérito não é susceptível de libertar a ré seguradora do cumprimento da sua obrigação contratual em tempo. Com efeito, o arquivamento com base na falta de prova sobre a actuação ilícita imputada pela ré ao autor retira fundamento ao incumprimento da sua prestação no prazo contratual ou legalmente fixado para o efeito.”

“Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

“Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.”

No Ac. do STJ de 27/11/2018 (in ITIJ), relatado pelo Conselheiro Cabral Tavares, defendeu-se:

“O seguro de danos celebrado entre as partes (…) não cobria o valor de privação de uso.

Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.

“A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de actuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado.

“Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.”

“A actuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (…)”

No Ac. da Relação de Guimarães de 9/3/2017 (in ITIJ), relatado pela Desembargadora Anabela Miranda Tenreiro, também se considerou[2]:

“Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.

No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.

Não obstante a cobertura do risco da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato de seguro, assiste ao tomador o direito de ser indemnizado no caso de perda total do veículo em resultado de acidente de viação, por ter ficado sem o poder utilizar, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer.

A indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.”

Efectivamente, para um correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra, além dos deveres primários e secundários de prestação, existem os deveres acessórios de conduta; que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação.

Deveres acessórios de conduta que “estão hoje genericamente consagrados na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art. 762.º do C. Civil, segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (…)”[3]; deveres estes cuja violação não dá lugar a uma acção de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.

E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar – impõe-se reconhecer, em linha com os acórdãos citados – todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.

Quando alguém celebra, como tomador, um contrato de seguro facultativo cobrindo, nos dois primeiros anos, o risco de perda total do veículo (em caso de furto), aspira – é esse o seu interesse enquanto credor, interesse que a seguradora não ignora – a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder adquirir um veículo idêntico ao que lhe foi furtado.

Haverá por certo situações, mesmo vindo a decidir-se que a seguradora – que considerou não ser responsável pelo sinistro (por, por exemplo, entender que o mesmo é simulado ou que foi provocado intencionalmente pelo segurado) ou que considerou ser devido um montante inferior ao pretendido pelo segurado – não tem razão, em que o atraso da seguradora no pagamento da prestação devida dê tão só lugar a juros moratórios.

Em todo o caso, terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que uma tal conclusão pode/deve ser estabelecida, uma vez que, parece-nos seguro, não pode ser toda e qualquer justificação da seguradora (e muito menos a ausência de justificação) a conferir-lhe o direito a protrair a liquidação do sinistro.

E é exactamente aqui que estará o cerne da questão, ou seja, tudo está em saber/estabelecer, em cada caso, se a justificação da seguradora, para a não realização da prestação devida no prazo fixado, é (ou não) violadora dos deveres de boa-fé (cfr. art. 762.º/2 do C. Civil) e de diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação (art. 153.º da lei 147/2015).

Nos acórdãos transcritos esteve invariavelmente em causa a situação da seguradora não se considerar responsável pelo sinistro por entender que o mesmo era simulado ou provocado intencionalmente pelo segurado, tendo-se entendido que o arquivamento da queixa-crime (apresentada pela seguradora contra o segurado), com base na falta de prova, retira fundamento ao incumprimento da prestação da seguradora no prazo contratual ou legalmente fixado; que, em tais hipóteses, “o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.”

No nosso caso, é ainda mais simples chegar a idêntica conclusão.

A R/seguradora, como resulta dos autos/factos, propôs ao A. uma indemnização correspondente ao valor do veículo em novo com uma desvalorização de 26%, por o veículo ter a data de matrícula de Agosto de 2015 e o sinistro ter ocorrido em Setembro de 2017, sendo assim aplicável, segundo a R/seguradora, a Condição Especial 07, que, quanto à indemnização, manda deduzir, aos veículos com mais de dois anos, 1% do valor de catálogo do veículo seguro “por cada mês decorrido desde a data de registo da 1.ª matrícula, inscrita no livrete, até à data do sinistro”[4].

Ora, sem prejuízo de veículo ter mais de dois anos (mais exactamente, 25 meses), em face do que se provou, tal proposta não tinha justificação.

É que ficou provado – ponto 7 dos factos – que a mediadora da R/seguradora comunicou ao A. que o valor em novo seria mantido durante dois anos após a celebração do contrato e este foi celebrado em 16/10/2015, ou seja, quando o sinistro ocorreu (em Setembro de 2017), ainda não haviam decorrido dois anos sobre a celebração do contrato.

E o que a mediadora comunicou ao A., em nome e por conta da R./seguradora e no uso dos poderes que lhe foram conferidos, produziu todos os seus efeitos na esfera jurídica da R/seguradora, como se pela R/seguradora tivessem sido directamente realizados; ou seja, o incumprimento (pela mediadora) dos deveres de comunicação e de informação dos art. 5.º e 6.º do DL 446/85 e as comunicações e informações incorrectas é como se tivessem sido realizados pela própria R/seguradora.

Tudo se passa pois como se tivesse sido a R/seguradora a dizer directamente ao A. que a indemnização pelo valor em novo seria mantido durante os dois anos seguintes à celebração do contrato, razão pela qual não tinha a R/seguradora justificação para, tendo dado tal informação, depois vir dizer que afinal os dois anos se contam desta a data do registo da 1.ª matrícula e propor uma indemnização correspondente ao valor do veículo em novo diminuído de uma desvalorização de 26%.

Não se tratava pois, ao contrário do que a R/seguradora refere nas conclusões 8 a 11, dum “puro problema de interpretação do contrato de seguro, nomeadamente da Condição Especial 07 e de interpretação das condições contratualizadas”; trata-se sim, diversamente, da R/seguradora (através da sua mediadora) “dizer uma coisa” ao segurado no momento da celebração do contrato e, depois, no momento da regularização do sinistro e da assunção da responsabilidade contratada, “dizer coisa diversa”.

E é esta mudança que não é aceitável, que não integra um procedimento de boa fé, que não corresponde a uma actuação transparente no relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados.

A boa fé na execução do contrato celebrado e o cumprimento dos deveres constantes do art. 153º/1 da Lei 147/2015 exigem respeito pelos interesses do segurado/beneficiário; exigem que a R/seguradora averigúe o que foi dito ao tomador do seguro no momento da celebração do contrato e não apenas que se limite a invocar o que consta da “letra miudinha” do contrato (clausulado esse que está, o que a seguradora não ignora, sujeito a apertados controlos de inclusão e conteúdo).

Mais, em casos como o presente – em que alguém celebra o seguro dum veículo novo (embora com dois meses de matrícula no livrete) e que por isso facilmente pode ter ficado convencido que os dois anos se contam desde a data em que adquiriu e segurou o veículo – a boa fé também exige que a seguradora, pretendendo valer-se da “letra miudinha” das condições gerais, não condicione o pagamento da indemnização proposta à declaração (por parte do segurado/beneficiário) de que com tal pagamento se considerava totalmente indemnizado.

Como é bom de ver para todos, em casos (como o sub-judice) em que o segurado/beneficiário tem direito a uma indemnização superior à que lhe foi proposta, tal comportamento da seguradora coloca/constrange (e por isso pressiona) o segurado/beneficiário à seguinte alternativa: ou se contenta em receber menos do que lhe é devido ou (como é o caso) receberá a prestação que lhe é devida com atraso.

E é também por isto – tendo a seguradora dúvidas sobre o conteúdo do concreto contrato de seguro (não sobre a interpretação, como é referido nas suas conclusões) – que não integra um procedimento de boa fé, nem corresponde a uma actuação transparente no relacionamento com o tomador/segurado/beneficiário, solucionar tais dúvidas totalmente contra este, constrangendo-o ou a receber menos do que lhe é devido ou a receber toda a prestação que lhe é devida com atraso, ou seja, não satisfazendo (em qualquer das alternativas) o interesse do credor na prestação, o qual (quando celebra, como tomador, um contrato de seguro facultativo em que cobre o risco de perda total do veículo em caso de furto) aspira a que o capital correspondente ao valor do veículo lhe seja disponibilizado rapidamente, tendo em vista poder adquirir um veículo que substitua o furtado[5].

Em síntese, em face do que se provou, a proposta de indemnização da R/seguradora “queda sem explicação ou justificação.”; e o mínimo que pode ser dito é que a R/seguradora não foi diligente na averiguação do concreto conteúdo contratual combinado e que foi a violação de tal dever acessório (legal) de conduta que conduziu a que a indemnização, em vez de ser paga nos 15 dias após o furto do veículo (em conformidade com as condições particulares da apólice), viesse a ser paga tão só em 07/01/2019 (como o A. reconhece no art. 22.º da sua alegação recursiva), ou seja, a R/seguradora não tomou todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfizesse o interesse do credor na sua prestação e, sendo assim, tendo sido violados deveres (legais) acessórios de conduta, deve a R/seguradora indemnizar os danos que causou ao A./segurado/beneficiário.

Estabelecida a obrigação de indemnizar, analisemos pois se é indemnizável – e, em caso afirmativo, em que montante – o peticionado dano de privação de uso:

O contrato de seguro celebrado, já o sabemos, não cobre o risco de privação de uso do veículo, pelo que, sustenta a R/seguradora, “do regime de incumprimento da obrigação de compensar o segurado pela perda do veiculo furtado não deriva a obrigação de o ressarcir pela privação de uso desse mesmo veículo”, sendo os juros moratórios, “tratando-se de uma obrigação pecuniária, decorrente de responsabilidade contratual, a única indemnização devida ao recorrente pela mora”.

Sucede, como resulta dos acórdãos supra transcritos do STJ, que não se trata de indemnizar a mora na realização da prestação debitória principal, mas sim de indemnizar a não satisfação do interesse do credor.

“Não estamos perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.”

“A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato.”

“Não se impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes se responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”.

“Ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objecto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.”

Não há pois uma violação do princípio indemnizatório (constante do art. 128.º do RJCS), nem uma sobreposição de indemnizações –desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor[6].

É pois indemnizável, com tal enfoque jurídico, o chamado dano de privação de uso; dano este – numa linha que se desenha de forma consolidada na jurisprudência[7] – que deve ser perspectivado do seguinte e modo[8]:

O nosso sistema confere ao lesado o direito à reconstituição natural (cfr. art. 562.º e 566.º/1 do CC).

Assim, resultando a impossibilidade de circulação para o veículo (por ter sido furtado e por não sido disponibilizada ao A. a quantia necessária à aquisição dum veículo idêntico), a reconstituição natural só se conseguirá com a entrega (durante a carência) dum veículo com características semelhantes ao danificado; ou com a atribuição da quantia suficiente para o lesado proceder, se o entender, ao aluguer dum veículo com características semelhantes.

Efectivamente, a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui, em termos naturalísticos, uma perda, cuja constatação não é escamoteável.

Sendo pois incontroverso o direito à reconstituição natural, não pode conduzir à total liberação do responsável o facto da referida faculdade alternativa não haver sido utilizada, isto é, de o lesado não ter solicitado ou de lhe ter sido recusada a substituição do veículo.

Em tal hipótese, a recomposição da situação danosa reclama que, pela única via possível, ou seja, pela atribuição de um equivalente pecuniário, o lesado consiga ser reintegrado a posteriori.

É justamente o caso.

“Se a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente. Fazer depender a indemnização da prova da ocorrência de danos imputáveis directamente à privação é solução que pode justificar-se quando o lesado pretenda a atribuição de uma quantia suplementar correspondente aos benefícios que deixou de obter, ou seja, aos lucros cessantes, nos termos do art. 564.º, n.º 1, ou às despesas acrescidas que o evento determinou; já não quando o seu interesse se reduza à compensação devida pela privação que, nos termos da mesma norma, corresponde ao prejuízo causado, isto é, aos danos emergentes.”[9]

Este é o ponto.

Impõe-se presumir – concorda-se plenamente com Abrantes Geraldes – que foi um legislador, sensato, ponderado e com sentido de justiça que procedeu à regulamentação abstracta das situações da vida real; e estamos – também se concorda – num campo em que se justifica “uma maior esforço de esgotamento de todas as potencialidades do sistema normativo, por forma a acolher pretensões que aprioristicamente se revelem substancialmente justas”.

“A realidade social que subjaz às normas vigentes e que sempre deverá estar presente quando se trata de proceder à sua aplicação revela que, em regra, o proprietário de um veículo (em geral, qualquer proprietário) faz do mesmo uma utilização normal, mais ou menos frequente, mais ou menos produtiva, raramente lhe sendo indiferente a situação emergente da sua privação decorrente da prática de um facto ilícito imputado a terceiro.

(…) é essa normalidade a que o juiz deve recorrer quando se trata de dirimir litígios, em vez de partir do pressuposto, que nem a experiência, nem as circunstâncias de facto permitem confirmar, que o veículo representa tão só um elemento do património sem qualquer função regular, extraindo daí, através duma generalização abusiva, a conclusão da ausência de qualquer prejuízo ressarcível.”[10]

Sendo inquestionável que o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, também nesta perspectiva, sendo a indisponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores de justa indemnização.

De tal modo que, em termos de distribuição do ónus da prova, se pode ir ao ponto de afirmar que a privação do uso corresponde a um facto constitutivo do direito de indemnização correspondente ao dano imediatamente emergente; e que, constatada a privação do uso determinativa da perda temporária das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da indemnização pressuporá a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo patrimonial, isto é, que há um ónus da prova (contraprova) dos factos impeditivos, a cargo do responsável pela paralisação.

Dano imediatamente emergente em que, é certo, os prejuízos podem assumir alguma variação de acordo com as circunstâncias; com a real e concreta utilização dada pelo lesado àquele veículo

Todavia, como aproximação ao justo valor, não será despiciendo utilizar como “critério” a quantia necessária para proceder ao aluguer de um veículo de características semelhantes ao sinistrado; ainda que, na ausência de aluguer efectivo, não possa recorrer-se automaticamente a tal preço – em que estão incluídas as despesas e o lucro da empresa de aluguer; mas, mesmo em tal hipótese de ausência de aluguer efectivo, tal elemento não deve ser indiferente para a concretização da indemnização equitativa.

Tudo ponderado – como sempre convém – pelas regras da boa fé (762.º do CC), que vedam ao lesado fazer exigências irrazoáveis reveladoras de um comportamento abusivo que desvie as normas da tutela do seu objectivo principal, consistente no ressarcimento de danos efectivos e não no agravamento de posição do responsável.

Todavia, fora disto – da boa fé – não existe suficiente justificação legal para exigir do lesado, como condição do oferecimento dum veículo de substituição, a comprovação do tipo de utilização que habitualmente dava ao veículo ou sequer a demonstração do uso que pretende dar ao veículo substitutivo; e se, na ponderação final, não deve admitir-se para o lesado um benefício indevido, também parece inadequado que seja o agente causador do dano a beneficiar com uma injustificada poupança de despesas.

Aqui chegados, revertendo ao caso dos autos e da apelação, temos que a não disponibilização da verba que iria permitir ao A. adquirir um veículo de substituição, impediu este de utilizar esta viatura durante cerca de 15 meses, sendo o dano a indemnizar consistente na perda de tais utilidades e proveitos.

Não sendo, como já se referiu, pressuposto necessário de tal indemnização a alegação e prova de despesas suportadas com transportes alternativos e/ou com outros veículos de substituição durante tais cerca de 15 meses; contendendo esta alegação e prova já com o quantum da indemnização, com a possibilidade de aceder a montantes acrescidos, mas não com o acesso à compensação devida pela privação do uso.

E, no caso, não se alegou sequer a existência de tais despesas acrescidas – designadamente, que haja sido alugado um veículo de substituição – e/ou o seu exacto montante.

Em tal hipótese, de falta de prova de prejuízos concretos e quantificados, deve a mera privação do uso ser ressarcida com recurso à equidade; figura que tem na responsabilidade civil um campo de eleição, uma vez que se está recorrentemente perante a indisponibilidade de elementos objectivos ou face à impossibilidade duma determinação exacta dos danos (566.º/3).

E, ponderando as escassas circunstâncias factuais do caso – verdadeiramente, com a atinência ao computo de tal dano, apenas temos alegado/provado que “o A. trabalha por conta própria na área do turismo” – não perdendo de vista as regras da boa fé (762.º do CC) – fugindo de igual modo quer exigências irrazoáveis quer ao não ressarcimento dos danos efectivos – tomando em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida[11], temos como justo e equilibrado fixar, como compensação do dano de privação do uso, pelos cerca de 15 meses em que ao A. não foi disponibilizada a verba que lhe iria permitir adquirir um veículo idêntico ao furtado, o montante global de € 6.000,00.


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Enfim, concluindo, consideramos parcialmente procedente o recurso, o que determina a correspondente revogação do sentenciado na 1ª instância.

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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se a parte da sentença recorrida em que a R./apelada foi absolvida[12] e, em sua substituição, condena-se a R/apelada a pagar ao A./apelante a quantia de € 6.000,00 (a título de indemnização pelo dano da privação de uso), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o trânsito em julgado do presente acórdão; mantendo-se a absolvição da R./apelada em relação ao restante pedido (respeitante ao dano da privação do uso).

Custas, nesta instância, por A/apelante e R/apelada na proporção de 5/8 e 3/8; e na 1.ª instância, também por A. e R. na proporção de 1/7 e 6/7, respectivamente.

Valor do recurso para efeitos tributários: 16.170,00.


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Coimbra, 28/05/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Cfr., neste sentido (ao contrário do que, certamente por lapso, o A/apelante refere no art. 16.º das suas alegações), Ac. desta Relação de Coimbra de 19/05/2015, relatado pelo Desembargador Henrique Antunes, in ITIJ.
[2] E, identicamente, a Relação do Porto em acórdão de 25-1-2011, relatado pelo Desembargador Vieira Cunha.

[3] Antunes Varela, Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 125.
[4] Não se percebe como é que entre Agosto de 2015 e Setembro de 2017 decorrem 26 meses, mas não vem ao caso.

[5] Ou seja, num caso como o presente, invocando a R/seguradora dúvidas sobre o conteúdo do concreto contrato de seguro e querendo por isso “discutir” o valor indemnizatório a pagar, impõe a boa fé e o respeito pelo interesse do credor que não condicione a sua proposta de pagamento a uma declaração de quitação total por parte do tomador/beneficiário.

[6] E não se diga sequer que, havendo situações em que os segurados convencionam a cobertura adicional da privação do uso, se estará a dar um tratamento igual a situações desiguais, uma vez que, verdadeiramente, tal cobertura só releva no lapso de tempo em que a seguradora não está obrigada a satisfazer a prestação contratual devida, não tendo em vista indemnizar a inobservância da obrigação contratual da seguradora pagar pontual e atempadamente a prestação contratual devida.

[7] Cfr., entre outros Ac. Rel. de Coimbra de 09-11-99, Ac. STJ de 05-03-02, Ac. STJ de 09-05-02 (em anexo ao “Temas de Responsabilidade Civil, I Vol., António Abrantes Geraldes) e Ac. Rel Coimbra de 26-11-02, in CJ, Tomo V, pág. 19.
[8][8] Seguimos de perto o que já escrevemos, sobre o assunto, noutros acórdãos.
[9] “Temas de Responsabilidade Civil”, I Vol., António Abrantes Geraldes, pág. 49.
[10] “Temas de Responsabilidade Civil”, I Vol., António Abrantes Geraldes, pág. 54.
[11] Pires de lima e Antunes Varela, C. C. Anotado, 4ª ed., Vol. 1º, p. 501.
[12] A parte em que foi condenada (€ 33.147,00 e juros desde citação) e que não faz parte do objecto da presente apelação, mantém-se (aliás, conforme é referido pelo A/apelante, tal montante até já terá sido pago).