Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2242/16.8T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS FUTUROS
GARANTIA BANCÁRIA
LIVRANÇA
SOCIEDADE COMERCIAL
EXTINÇÃO
LIQUIDAÇÃO
SÓCIOS
Data do Acordão: 06/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - SOURE - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS211, 280, 399, 424, 577, 880CC, 151, 160, 161, 162, 163, 164 CSC
Sumário: 1.- Nos termos conjugados dos arts. 577º, nº 1, 211º, 399º e 880º, nº 1, do CC, é possível a cessão onerosa de créditos futuros, podendo estes resultar quer de negócio jurídico já celebrado (ex: rendas futuras relativas a um arrendamento vigente), quer de negócio ainda não celebrado (ex: preço das mercadorias que o cedente irá vender).

2.-Se na pendência de uma acção declarativa vier a ser extinta a autora, sociedade comercial, passará a mesma a ser substituída pelos seus sócios, representados pelo liquidatário.

3.- Triunfando a mesma em tal acção, os sócios poderão executar a decisão que lhes confere um crédito ou accionar uma garantia bancária em que sejam beneficiários, constituída para garantir o resultado de tal acção.

4.- Se a garantia bancária foi cedida pelo Banco garante a terceira entidade bancária, bem como transmitido o crédito futuro emergente do cumprimento de tal garantia, acompanhado de livrança que garantia este crédito futuro, e esta terceira entidade bancária cessionária satisfez o cumprimento daquela garantia bancária então a mesma fica credora sobre os dadores da ordem de garantia bancária, podendo accionar executivamente tal livrança contra estes últimos, subscritores da dita livrança.

Decisão Texto Integral:





I – Relatório

1. C (…), com sede em Lisboa, instaurou execução para pagamento de quantia certa contra R (…) e F (…), ambos residentes em (...) , com base em livrança subscrita pelo 1º executado e avalisada pelo 2º executado.

Os executados deduziram embargos, nos quais, em suma, alegaram a ilegitimidade da exequente, por a livrança ter sido assinada e entregue em branco ao F(…) SA, e que a livrança foi subscrita para contra - garantir o reembolso de uma garantia bancária prestada pelo F (…) ao 1º executado R (…) num processo judicial em que era autora C(…), Lda, e em que o dito 1º executado ficou obrigado a pagar à mesma determinada importância, sendo que a C(…) foi dissolvida e encerrada a sua liquidação, e a ora exequente veio posteriormente a pagar quantia monetária referente a tal garantia aos 2 ex-sócios da C(…), sem razão legal para isso, sendo esse pagamento que motivou o preenchimento da livrança e a agora execução.

A exequente contestou, dizendo, em síntese, que o F(…) lhe cedeu créditos, nomeadamente o que se discute nos autos, e que os dois referidos ex-sócios na qualidade de liquidatários accionaram a falada garantia bancária pelo que o pagamento foi bem efectuado aos mesmos, tendo direito a reembolsar-se perante os executados subscritores da livrança     

*

Foi, depois, proferido saneador-sentença, no qual se julgaram improcedentes os embargos de executado.

*

2. Os embargantes recorreram, concluindo que:

(…)

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

1. Os Executados/Embargantes: R (…); e F (…); instauraram a presente Oposição à Execução por Embargos de Executado a 06-05-2016.

2. A Exequente/Embargada “C (…) S.A.” instaurou, a 22-03-2016, o Processo Executivo n.º 2242/16.8T8CBR de que os presentes autos constituem incidente declarativo processado por apenso, contra os Executados/Embargantes, com vista à cobrança coactiva dos seguintes créditos (fls.1 e 1v. do Processo Executivo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):

– €20.766,97 de capital;

– €1.355,85 de juros moratórios, à taxa legal, vencidos desde a data de vencimento da Livrança (30-08-2014) até 17-03-2016, e Imposto do Selo (4%).

– Juros moratórios vincendos, sobre o capital, à taxa legal, desde 17-03-2016 até efectivo e integral pagamento, e Imposto do Selo;

– €25,50 de taxa de justiça do requerimento executivo.

3. No Processo Executivo, a Exequente/Embargada apresentou à execução como título executivo uma Livrança preenchida nos seguintes termos (fls.11 do Processo Executivo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido):

– Local e data de emissão: (...) – 04-06-2008;

– Vencimento: 30-08-2016;

– Importância: €20.766,97;

– Valor: “Operação bancária de empréstimo”;

– Tomadora: Exequente/Embargada;

– Subscritor/Emitente: R (…);

– Assinatura do Subscritor/Emitente: R (…);

– Assinatura do Subscritor/Avalista: F (…)

4. A relação fundamental causal extracambiária da Subscrição/Emissão da Livrança em branco é constituída por uma GARANTIA BANCÁRIA (n.º (…)), emitida a 06- 06-2008, pelo qual a sociedade bancária “F(…),S.A.” se constituiu como fiadora e principal pagadora do Executado/Embargante R (…) até à importância de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) referente à responsabilidade que ao afiançado competir em consequência da sentença a proferir na acção declarativa n.º 770/2001 do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, respondendo a “F (…),S.A.”, por fazer à primeira interpelação, a entrega de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, se o afiançado faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo (fls.18 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

5. O título de garantia bancária foi emitido em execução do respectivo contrato, subscrito pelos Executados/Embargantes, no qual, entre o mais, foi convencionado que:

4. Desde já autorizamos esse Banco a pagar qualquer importância que porventura venha a ser pedida pela entidade a quem é prestada a garantia, sem que por qualquer forma tenha de averiguar a razão da exigência;

5. Obrigamo-nos a reembolsar esse Banco, no prazo de oito dias depois da data do vosso aviso para tal por carta registada, de todas as importâncias que sejam pagas por conta da garantia.” (fls.18v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

6. A referida acção declarativa n.º 770/2001 foi instaurada pela sociedade comercial “C (…),L.da” contra o Réu R (…)(fls.9v. a 11v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

7. Não sequência da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-03-2010, que não admitiu o recurso do Réu R (…), veio a trânsito em julgado a decisão que condenou o Réu a pagar quantias que, a 31-07-2013, ascendiam ao montante global de €17.969,23 (fls.13 a 15v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

8. A “C (…),L.da” encontrava-se pendente de dissolução administrativa desde 27-05-2009 (fls.16 a 17 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

9. A “C …),L.da” foi administrativamente dissolvida, encerrada a liquidação, e cancelada a matrícula comercial a 22-12-2009 (fls.16 a 17 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

10. A 22-12-2009, as quotas societárias da “C (…) L.da” eram propriedade de N (…) e cônjuge, M (…); sendo a gerência exercida pela N (…) (fls.16 a 17 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

11. A 31-03-2011, a Exequente/Embargada adquiriu a totalidade do capital social e dos direitos de voto “F(…),S.A.”.

12. A 04-04-2011, a “F(…),S.A.” transmitiu a generalidade dos seus activos e passivos (por trespasse), incluindo os créditos sobre os Executados/Embargantes, para a Exequente/Embargada (fls.33 a 35v., 45 a 51, e os documentos que se encontram apenas em suporte electrónico relativos à inclusão do presente crédito no trespasse, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

13. A 31-07-2013, N (…) e cônjuge, M (…), interpelaram a Exequente/Embargada para o cumprimento da GARANTIA BANCÁRIA (n.º (…)), emitida a 06-06-2008, solicitando o pagamento da quantia de €17.969,23, a qual lhes foi paga pela Exequente/Embargada em cumprimento da garantia bancária (fls.19v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

14. A 01-08-2013, a Exequente/Embargada interpelou o Executado/Embargante R (…) para efectuar o pagamento da quantia entregue em cumprimento da GARANTIA BANCÁRIA (fls.19v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

15. A 15-08-2013, a Exequente/Embargada interpelou o Executado/Embargante F (…) para efectuar o pagamento da quantia entregue em cumprimento da GARANTIA BANCÁRIA (fls.20 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

16. A 19-08-2013, o Executado/Embargante F (…) respondeu à interpelação para pagamento da Exequente/Embargada, negando o pagamento e justificando os motivos pelos quais não se considera obrigado a efectuar tal pagamento (fls.22v. a 22v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

17. A 30-08-2013, o Executado/Embargante R (…) respondeu à interpelação para pagamento da Exequente/Embargada, negando o pagamento e justificando os motivos pelos quais não se considera obrigado a efectuar tal pagamento (fls.25v. a 26 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

18. A 01-09-2013, a Exequente/Embargada interpelou, novamente, o Executado/Embargante F (…) para efectuar o pagamento da quantia entregue em cumprimento da GARANTIA BANCÁRIA (fls.26v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

19. A 02-09-2013, a Exequente/Embargada respondeu à reclamação do Executado/Embargante F (…) mantendo a pretensão de cobrança (fls.27 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

20. A 30-07-2014, a Exequente/Embargada comunicou ao Executado/Embargante F (…) preenchimento da Livrança apresentada como título executivo (fls.27v. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Inexistência de cessão de crédito a favor da exequente.

- Inexigibilidade do crédito.

2. Como não existe impugnação da matéria de facto enfrentemos a 1ª questão posta no recurso. Sobre ela escreveu-se na sentença recorrida:

“O art.º 577.º (admissibilidade da cessão) CC prevê que:

1. O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.

2. A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.”.

Deste modo, sendo a regra a livre transmissibilidade do crédito, a sua proibição pode ter por fonte: a lei; convenção das partes; ou decorrer da ligação do crédito à pessoa do credor por via da própria natureza da prestação.

Ora, nem os Executados/Embargantes indicam, nem se vislumbra, norma legal que proíba a cessão de créditos em causa.

Também do pacto de preenchimento da Livrança em branco (ponto 5.) resulta claro que não foi convencionado entre as Partes qualquer proibição de cessão de créditos a que se reporta a relação fundamental causal extracambiária.

Por fim, saber se estamos perante um negócio jurídico com carácter “intuitu personae”.

Sobre o tema, recorremos em nosso benefício às palavras do Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 06-12-2018 (em www.dgsi.pt – Processo n.º 653/14.2TBGMR-B.G1.S2):

1. O pacto de preenchimento associado a uma livrança subscrita em branco não tem, por regra, natureza intuitu personae (art. 577º, nº 1, do CC).

2. Por isso, na falta de convenção em contrário, com a transmissão do crédito cambiário emergente da livrança transmite-se para o cessionário o direito de proceder ao seu preenchimento, de acordo com o previsto no respetivo pacto.”.

Mais se esclarece na fundamentação que:

Em situações como a presente, o sistema não tutela a maior ou menor sensibilidade do devedor em face de um ou de outro credor. Trata-se de dívida que emerge de um contrato de mútuo, a que, por seu lado, está associada a livrança subscrita e avalizada em branco, não existindo razão alguma para considerar que o pacto de preenchimento obedece a regras diversas daquelas a que obedece a transmissão do direito de crédito bancário ou do direito cambiário emergente da livrança na posse da exequente.

O art. 577º, nº 1, do CC, apenas tutela os casos em que a lei ou o acordo das partes impede a cessão ou em que esta respeita a crédito que, “pela sua própria natureza” está ligado à pessoa do credor, segmento jurídico para o qual não foram alegados factos pertinentes, de modo que nada impedia a apreciação dessa questão pela 1ª instância no despacho saneador.”.

No caso concreto:

A relação fundamental causal extracambiária é uma garantia bancária que a “F(…),S.A.”, a pedido do Executado/Embargante R (…), prestou a favor da Autora “C (…)L.da”, para garantir o cumprimento da eventual condenação ao pagamento de quantia certa do Executado/Embargante R (…), Réu na acção declarativa n.º 770/2001, na qual exercia o seu patrocínio judiciário o Executado/Embargante F (…).

Para titulação e garantia do reembolso da quantia que a “F (…),S.A.” tivesse que pagar por força da garantia prestada, o Executado/Embargante R (…) entregou à “F(…),S.A.” uma Livrança por si Subscrita/Emitida em branco e Subscrita/Avalizada em branco pelo Executado/Embargante F (…), acompanhada pelo respectivo pacto de preenchimento que integra o contrato de garantia e que foi subscrito por ambos os Executados/Embargantes.

Deste modo, estamos perante uma instituição de crédito que garante a uma das partes num litígio judicial, até determinado montante, o pagamento da quantia em que for condenada a outra parte, caso essa parte perdedora não efectue tal pagamento.

Ora, o crédito em causa é absolutamente fungível, é uma prestação de quantia certa que nada tem de objectivamente intransmissível.

A existência de negócios cambiários complementares e instrumentais daquela relação fundamental extracambiária, cuja perfeição exige a observância do acordado pacto de preenchimento, em nada colide com a natureza jurídica da obrigação pecuniária que constitui a relação fundamental, a qual existe para lá das obrigações cambiárias, sendo que ambas as obrigações de pagamento (a cambiária e a contratual) visam dar satisfação ao mesmo interesse económico da credora, satisfação que, obviamente, apenas poderá ocorrer uma única vez. Daí que também se designe a obrigação cambiária como “executiva” da obrigação contratual fundamental.

Em síntese, a obrigação fundamental em causa (obrigação pecuniária) não está ligada à pessoa da credora primitiva, logo, também nada obsta a que se transmita para a cessionária o mesmo direito que à cedente assistia de preencher a Livrança em branco de acordo com o respectivo pacto e obter a satisfação do crédito contratual através da cobrança coactiva (das obrigações cambiárias) que lhe é permitida enquanto credora cambiária.

Pelo exposto, deverá improceder totalmente este fundamento de Oposição à Execução por Embargos de Executado.”.

A este discurso os embargantes/executados objectam, daquilo que captámos das suas longas conclusões de recurso 2. a 17. (sobretudo na 12., onde a respectiva argumentação jurídica está concentrada), que “no trespasse não podia a embargada, titular exclusiva do capital social do banco garante, incluir qualquer crédito sobre os executados embargantes, pela óbvio razão de que não podia o F(…) ter transmitido um direito de crédito sobre os embargantes que não detinha, por não ter efectuado qualquer pagamento por conta da garantia.”.

Ora, sabemos dos factos provados 12. e 4. que a 4.4.2011, o F (…) transmitiu a generalidade dos seus activos e passivos (por trespasse), incluindo os créditos sobre os executados/embargantes, para a exequente/embargada. Designadamente transmitiu a esta a posição contratual (art. 424º, nº 1, do CC) que tinha na GARANTIA BANCÁRIA contratada com os ora executados, emitida a 6.6.2008, pela qual o F (…) se constituiu como fiador e principal pagador do executado/embargante R. Figueiredo, até à importância de 25.000 €, referente à responsabilidade que ao afiançado competir em consequência da sentença a proferir na acção declarativa nº 770/2001 do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Gondomar, respondendo o F(…), à primeira interpelação, pela entrega de quaisquer importâncias que se tornem necessárias, se o afiançado faltando ao cumprimento das suas obrigações, com elas não entrar em devido tempo.

E transmitiu também o crédito sobre os executados/embargantes para a exequente, nomeadamente a livrança em branco que corporiza tal crédito emergente da aludida relação causal extra-cambiária.

Dir-se-á, neste momento, que à data da transmissão do crédito o mesmo não existia, apenas existia constituída uma relação jurídica negocial que o podia validar, já que só depois de a garantia bancária ser prestada a favor do beneficiário poderia nascer, então, o crédito a favor do garante bancário de que a livrança era garantia. Sendo verdadeira esta asserção, todavia a lei não impede que a transmissão de créditos possa ocorrer em relação ao caso especial de crédito futuro.

Como professa A. Varela (CCAnotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 2. ao art. 577º do CC, pág. 562) a cessão pode ter por objecto créditos futuros. Desde que, em princípio, se admite a prestação de coisa futura (art. 399º do CC), nenhuma razão existe para que não se permita a cessão de créditos ainda não existentes ou a que o cedente não tem direito à data da cessão (são este dois os tipos de créditos futuros, como decorre do conceito de coisa futura plasmado no art. 211º do CC).

Na mesma linha de argumentação vai L. T. Menezes Leitão (Cessão de Créditos, págs. 414/419) quando afirma que efectivamente, prevendo genericamente a prestação de coisa futura (art. 399º do CC), a lei admite que os bens futuros possam ser objecto de venda (art. 880º do CC). Assim, desde que esteja preenchido o requisito da determinabilidade (art. 280º, nº 1, do CC), é possível a cessão onerosa de créditos futuros, podendo estes resultar quer de negócio jurídico já celebrado (ex: rendas futuras relativas a um arrendamento vigente), quer de negócio ainda não celebrado (ex: preço das mercadorias que o cedente irá vender).

Do exposto, pode extrair-se que como crédito futuro o F (…) podia transmitir o seu crédito sobre os executados/embargantes à exequente antes de prestada a garantia bancária ao beneficiário, como na realidade aconteceu (pois se já tivesse prestado tal garantia o seu crédito já teria nascido e era transmitido no âmbito de um caso normal de cessão de créditos).

Quer isto significar, não fosse ter havido a falada transmissão da posição contratual da garantia bancária a favor da ora exequente e prestação de tal garantia bancária pela mesma a favor do beneficiário desta, com o consequente nascimento na sua esfera jurídica do respectivo crédito, que mesmo na hipótese de no caso em apreciação estarmos perante um crédito futuro, a transmissão do mesmo não deixaria de ter ocorrido a favor da exequente.

Não procede, por isso, esta parte do recurso.           

3. Relativamente à 2ª questão, escreveu-se na sentença recorrida:

“O contrato de garantia celebrado é, a nosso ver, um contrato de garantia bancária autónoma, de boa execução, à primeira solicitação, isto é, nas palavras de JOSÉ A. ENGRÁCIA ANTUNES (“Direito dos Contratos Comerciais”, 2014, 3.ª reimpressão da Edição de Outubro de 2009, páginas 536 a 539):

I. Denomina-se por garantia bancária autónoma... o contrato celebrado entre o banco (garante) um seu cliente (devedor e mandante), pelo qual o primeiro se obriga por ordem do último a pagar determinada soma pecuniária a um terceiro credor (garantido ou beneficiário), sem que a este possam ser opostas quaisquer excepções fundadas nas suas relações negociais com o mandante.

II. As garantias bancárias autónomas – que já chegaram a ser reputadas de “sangue da vida comercial internacional” – devem a sua difusão essencialmente à eficácia e segurança conferidas aos direitos dos terceiros beneficiários: o garante obriga-se a pagar ao terceiro garantido logo que para tanto solicitado, independentemente da sorte da obrigação principal – isto é, independentemente de saber se esta obrigação é válida ou inválida, ou se foi ou não cumprida.

Figura jurídica de natureza atípica (destituída de regime legal próprio), causal (cuja causa é garantir a satisfação do direito pecuniário do garantido), executiva (cujo documento negocial representa título executivo), e autónoma (não acessória ou dependente da obrigação garantida, salvo em eventos de fraude ou abuso), as garantias bancárias autónomas podem revestir diferentes modalidades: de acordo com o critério da sua automaticidade, as garantias bancárias podem ser simples ou automáticas, consoante o direito do beneficiário está dependente de prova do incumprimento da obrigação do devedor ou da mera interpelação do banco garante (sendo estas por isso também designadas garantias “à primeira solicitação”); de acordo com o critério da sua finalidade, as garantias dizem-se de oferta, de boa execução, ou de reembolso de pagamentos antecipados, consoante se destinam a assegurar a honorabilidade de uma proposta contratual, o adequado cumprimento de obrigações contratuais, ou o reembolso de quantias despendidas pelo beneficiário.”.

*

Sendo, em nosso entender, a garantia bancária em causa uma garantia autónoma à primeira solicitação é questionável a admissibilidade da presente Oposição à Execução por Embargos de Executado.

Com efeito, e acompanhando LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO (“Garantia das Obrigações”, 6.ª Edição, 2018, páginas 148 e 149):

Após a efectivação da garantia, fica naturalmente o garante sub-rogado nos direitos que o beneficiário tinha contra o garantido, nos termos do art.º 592.º. É, no entanto de referir que, caso a garantia seja à primeira solicitação, um dos termos do negócio é que o reembolso do garante seja também efectuado à primeira solicitação, o que exclui que o devedor possa opor ao garante as excepções relativas ao crédito que sobre ele tinha o beneficiário, devendo efectuar também automaticamente o pagamento e reclamar posteriormente do beneficiário o que ele obteve do garante, caso tenha accionado indevidamente a garantia. Aliás, normalmente para assegurar o reembolso o garante exige a entrega de letras aceites ou Livranças assinadas em branco por parte do dador da ordem ou permite ao garante obter o reembolso por levantamentos em depósitos que o dador da ordem tenha no próprio banco.”.

Nesta arquitectura da figura jurídica contratual em análise, estariam os Executados/Embargantes obrigados a, automaticamente, à primeira solicitação, pagar à Exequente/Embargada aquilo que esta pagou em execução do contrato de garantia bancária autónoma.

Só depois do pagamento, poderiam os Executados/Embargantes ir demandar os beneficiários, N (…) e cônjuge, M (…), caso entendessem que eles accionaram indevidamente a garantia bancária autónoma à primeira solicitação prestada pela Exequente/Embargada.

*

Não obstante o “supra” exposto, aprecia-se o fundamento de Oposição à Execução por Embargos de Executado e que consiste em os Executados/Embargantes entenderem que a Exequente/Embargada não devia ter pago aos N (…) e cônjuge, M (…), nenhuma quantia em cumprimento da garantia bancária autónoma à primeira solicitação.

Entendem assim, em síntese, porque a garantia bancária foi prestada no âmbito da acção declarativa n.º 770/2001 à Autora “C (…),L.da” e, encontrando-se esta sociedade comercial extinta desde 22-12-2009, data do registo comercial do encerramento da liquidação (art.º 160.º/2 CSC), a Exequente/Embargada apenas poderia efectuar o pagamento a quem se apresentasse devidamente habilitado em substituição da sociedade comercial extinta.

Em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, não assiste qualquer razão aos Executados/Embargantes, os quais litigam contra lei expressa.

Com efeito, é, a nosso ver, cristalino o Código das Sociedades Comerciais [art.os 151.º/1/8, 161.º/2, 162.º, 163.º e 164.º] sobre esta matéria.

Desde 22-12-2009 que não assiste personalidade jurídica ou judiciária à “C (..)L.da”.

Assim, já antes do trânsito em julgado da decisão judicial condenatória proferida na acção n.º 770/2001 (ainda antes da decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso do Réu R (…)) – acção para a qual foi especificamente prestada a garantia bancária autónoma à primeira solicitação pela Exequente/Embargada – eram os sócios N (…)e cônjuge, M (…) representados pela sócia-gerente liquidatária N (…), quem – por decorrência directa da lei que considera a sociedade extinta automaticamente substituída pelos sócios sem qualquer suspensão da instância ou necessidade de habilitação [art.º 162.º/1/2 CSC] – assumiam a posição de Autores na acção declarativa.

Por outras palavras, são os sócios N (…) e cônjuge, M (…) os Autores na acção n.º 770/2001 quando ocorre o trânsito em julgado da decisão judicial que condena o Réu R (…) a pagar quantia certa [mesmo que a decisão condenatória se refira ainda à sociedade extinta por ter sido proferida antes da extinção ou por não ter dessa extinção conhecimento].

Em consequência, são os sócios N (…) e cônjuge, M (…), Autores e vencedores da acção n.º 770/2001, quem, à luz do art.º 164.º CSC, sem necessidade de qualquer habilitação formal, pode exigir da Exequente/Embargada aquilo que o Réu R (…) foi condenado a pagar e que voluntariamente não cumpriu.

Em conclusão, a nosso ver, não assiste aos Executados/Embargantes qualquer fundamento legal ou contratual que lhes permita recusar o pagamento do reembolso que lhes é solicitado pela Exequente/Embargada; pagamento que deveriam ter efectuado à primeira solicitação da Exequente/Embargada pois foi também dessa forma que se vinculou a fazer, e fez, para com os beneficiários da garantia bancária autónoma.

(…)

Pelo exposto, deverá improceder totalmente este fundamento de Oposição à Execução por Embargos de Executado.”.

A esta fundamentação os embargantes/executados obtemperam, daquilo que captámos das suas longas conclusões de recurso 2., 8., a 14., 16. a 28., que a embargada, erradamente admitiu os ex-sócios da C (…), entretanto extinta, como beneficiários da garantia bancária e procedeu ao pagamento da quantia garantida indevidamente, pelo que não a pode reclamar perante os embargantes.

Recordemos a factualidade apurada, emergente dos factos provados 4., 5., 7., 9., 10., 12. e 13.

A C (…), Lda, intentou em 2001 acção declarativa contra o 1º executado. A C (…) foi dissolvida com encerramento da liquidação em 22.12.2009, ou seja, nessa data foi extinta. Facto que todavia não prejudicou a continuação da dita acção, não havendo sequer suspensão da instância, pois a C (…)passou a partir daí a ser substituída pelos seus sócios, N (…) e cônjuge e M (…)representados pelo liquidatário, sem qualquer necessidade de habilitação (arts. 160º, nº 2, e 162º, nº 1 e 2, do CSC). Posteriormente, em 9.3.2010, data em que o STJ profere decisão vem a transitar em julgado a decisão definitiva proferida em tal acção que condena o 1º executado a pagar a quantia de 17.969,23 € à autora nessa acção, que nessa altura, por efeito de substituição legal eram os indicados sócios Noémia e marido.

A partir deste momento ou o 1º executado pagava a tais sócios a quantia em que tinha sido condenado, o que não fez, sem se perceber porquê ?, ou tais sócios, perante a falta de pagamento tinham duas opções: ou propor acção executiva contra o devedor R. (…), para cobrança da dívida (à sombra do art. 164º, nº 2, do CSC) ou accionarem a garantia bancária prestada em seu benefício em consequência da sentença proferida na apontada acção declarativa. Optaram por esta alternativa em 31.7.2013, mas como nessa altura a posição contratual na aludida garantia bancária já tinha sido cedida à exequente a interpelação a fazer era legalmente a esta e não ao F (…).Pago pela ora exequente a quantia devida a tais sócios em cumprimento da garantia bancária a mesma ficou credora de tal quantia, e como o crédito lhe tinha sido cedido, acompanhado da livrança em branco subscrita e assinada pelos executados, a ora exequente podia exigir o pagamento de tal quantia aos ora executados, o que fez, e preencher fundadamente a mencionada livrança, apresentada como título executivo, pelo montante devido.

Do que resulta que a apontada inexigibilidade invocada pelos embargantes para se eximirem ao pagamento da quantia exequenda não tem base legal, não procedendo esta parte do recurso        

Uma pequena nota mais, se impõe deixar, face à declarada preocupação dos embargantes perante a circunstância de eventualmente os credores da C (…) não poderem vir a beneficiar desse activo que entretanto chegou ao património da mesma: além de isso estar por demonstrar, parece que os recorrentes arvorando-se em defensores de interesses de terceiros credores consideram que tem base jurídica que tal invocação justifica o seu próprio não pagamento da quantia que devem !, o que se nos afigura ser destituído de qualquer fundamento legal (norma ou princípio jurídico).  

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Nos termos conjugados dos arts. 577º, nº 1, 211º, 399º e 880º, nº 1, do CC, é possível a cessão onerosa de créditos futuros, podendo estes resultar quer de negócio jurídico já celebrado (ex: rendas futuras relativas a um arrendamento vigente), quer de negócio ainda não celebrado (ex: preço das mercadorias que o cedente irá vender);

ii) Se a A. na pendência de uma acção declarativa vem a ser extinta passará a mesma a ser substituída pelos seus sócios, representados pelo liquidatário;

iii) Triunfando a mesma em tal acção, os sócios poderão executar a decisão que lhes confere um crédito ou accionar uma garantia bancária em que sejam beneficiários, constituída para garantir o resultado de tal acção;

iv) Se a garantia bancária foi cedida pelo Banco garante a terceira entidade bancária, bem como transmitido o crédito futuro emergente do cumprimento de tal garantia, acompanhado de livrança que garantia este crédito futuro, e esta terceira entidade bancária cessionária satisfez o cumprimento daquela garantia bancária então a mesma fica credora sobre os dadores da ordem de garantia bancária, podendo accionar executivamente tal livrança contra estes últimos, subscritores da dita livrança.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

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Custas pelos recorrentes/embargantes.

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   Coimbra, 11.6.2019

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias