Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
36/11.6TBOFR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
CONCEITO JURÍDICO
ASSENTO
Data do Acordão: 10/07/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DE FRADES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI N.º 83/95, DE 31 DE AGOSTO
Sumário: I. A controvérsia a respeito da dominialidade de determinados acessos obrigou à prolação do Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, publicado no DR I-A de 2 de Junho de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que fixou a seguinte doutrina: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”

II. Não obstante tal ampla formulação, ao pronunciar-se sobre a questão de saber como qualificar um caminho que, desde “tempos não alcançados pela memória das pessoas vivas, directa ou indirectamente, por tradição oral dos seus antecessores”, é utilizado pelo público em geral, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, o mesmo STJ vem defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância.

III. Não satisfaz o assinalado critério a utilização há mais de 30, 40, 50 e mesmo 100 anos, de um caminho, parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, que se limita e limitou a permitir o acesso a diversas fazendas, cujos proprietários para esse efeito o utilizavam, assim denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de carácter meramente privatístico.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
A... , residente no (...), Oliveira de Frades veio intentar a presente acção popular contra B... e mulher, C..., residentes no sobredito lugar, pedindo a final a condenação dos RR:

- a reconhecerem a existência do caminho público cujo trato de terreno ocuparam e revolveram, destruindo os seus muros de delimitação e o seu leito e nele erguendo um aviário;

- a procederem à restituição do aludido trato de terreno, demolindo a construção que nele fizeram e que impede o acesso ao mesmo, reconstruindo os muros em pedra que o delimitavam e demarcavam, limpando o entulho que puseram no caminho e arrancando as árvores que nele plantaram.

Subsidiariamente, peticionou a condenação dos RR:

- a desobstruir o caminho lateral que fizeram sobre o prédio que dizem pertencer-lhes e que, dando continuidade ao caminho público, dá acesso à estrada da Sobreira–Carregal, retirando dali o cão, as tubagens, materiais de construção, madeiras, pedras e tudo o mais que possa impedir a passagem dos utentes do caminho público, deixando o caminho naquele percurso alterado totalmente livre e desimpedido,

Devendo os RR, em qualquer um dos casos, ser condenados no pagamento, a título de sanção pecuniária compulsória, do montante de € 50,00 por cada dia que decorra, após o trânsito em julgado da sentença, sem que se mostre cumprido o que se estabelece nas alíneas anteriores.

Para tal alegou, em síntese, a existência no dito sítio da Sobreira de um antiquíssimo caminho, inicialmente em pedra e terra batida e actualmente parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, o qual, partindo do cimo da Povoação (Sobreira), ligava esta desde a quelha ao Lameiro, passando pela Estrada que liga a Sobreira ao Carregal, ligando as povoações de Sobreira, Benfeitas e Carregal. Tal caminho, cujo leito e orientação sempre estiveram perfeitamente definidos, encontrava-se demarcado dos terrenos vizinhos por muros de pedra erguidos de um lado e outro da sua margem, existindo desde há mais de 20, 30, 40, 50, 100 e mais anos, perdendo-se na memória dos homens vivos a sua origem, tendo sido, desde sempre, livre e francamente utilizado, a pé ou de carros agrícolas e outros veículos (tractores e máquinas agrícolas), por quem quer que demandasse as aludidas localidades, assim servindo e beneficiando o comum dos moradores das aludidas povoações de Sobreira, Benfeitas e Carregal.

Mais alegou ser moradora no lugar da Sobreira e também proprietária e possuidora de diversos terrenos confinantes com o referido caminho público. Sucede que os RR, há alguns anos, sem qualquer licenciamento ou autorização camarários, levaram a efeito a construção de um aviário e anexos, edificando-os em parte sobre um troço do identificado caminho, que ocuparam em toda a sua largura numa extensão de 40 mt, assim impedindo que o trânsito se continuasse a fazer através dele. Não obstante, procederam então à abertura de uma passagem lateral sobre o prédio que dizem pertencer-lhes, a qual, restabelecendo a ligação ao antigo caminho, permitia o acesso à dita estrada que liga as localidades de Sobreira e Carregal. Sucede, porém, que os mesmos RR procederam recentemente à colocação de um cão, que prenderam no local, e de diversos materiais sobre este acesso alternativo, que obstruíram completamente, assim impedindo que os utentes do caminho por ele acedam aos seus prédios e a outras povoações, como é o caso da autora.

Reclamando-se parte legítima para a acção ao abrigo do disposto no art.º 14.º da Lei 83/95, de 31 de Agosto, pretende por esta via a restituição do trato de terreno pertencente ao caminho e que os RR, conforme o por si alegado, subtraíram à fruição pública.

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Citados os RR, contestaram nos termos da peça que consta de fls. 63, impugnando a matéria alegada.

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Dispensada a realização da audiência preliminar, prosseguiram os autos, com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória, peças que se fixaram sem reclamações.

Teve lugar a audiência de julgamento com observância do legal formalismo, vindo depois a ser proferida sentença que, na improcedência da acção, absolveu os RR dos pedidos formulados.

Inconformada, interpôs a autora o presente recurso e, tendo apresentadas as alegações rematou-as com as seguintes necessárias conclusões:

“I- O tribunal a quo considerou que o caminho em causa não é público, em virtude de não ser “… utilizado pelo público em geral, mas apenas por algumas pessoas que o utilizam para acederem aos seus prédios…”.

II- Assim, douta sentença faz depender a qualificação de um caminho como público do número de utilizadores que, a cada momento, o utiliza.

III- A A., aqui recorrente, entende, porém, que o facto de o caminho ser utilizado somente por algumas pessoas não é suficiente para retirar a natureza de público ao caminho.

IV- Resulta dos factos dados como provados que o caminho em causa dava e dá acesso a propriedades, existindo há mais de 100 anos, sendo utilizado livremente, sem pedir licença a quem quer que fosse, por quem aí possuía terrenos, para acesso às mesmas propriedades.

V- O mesmo dizer que, desde tempos imemoriais, se encontra no uso directo e imediato do público.

VI- Resulta provado nos autos que os RR. efectuaram a construção de um aviário e anexos, e de um muro de pedra, a qual ocupou o caminho em toda a largura, na extensão de cerca de 25 metros, obstruindo-o e tornando impossível que os utilizadores do mesmo por ele pudessem passar, e que os RR. abriram um caminho lateral, fazendo um acesso desse caminho à estrada que liga Sobreira ao Carregal, entretanto construída.

VII- A Meritíssima Juiz, no seguimento do referido em I, considerou que o caminho “apenas servia alguns prédios, nomeadamente o prédio da A., e terminava pouco depois dos prédios dos RR”; E que “depois desta construção (efectuada pelos RR) e dos prédios dos RR apenas existem uns prédios de familiares dos mesmos que, aquando da construção, já por ali não passavam, utilizando a estrada que entretanto foi aberta e que atravessou o prédio dos RR.” E assim, deu como não provado que “…com a construção referida em 1) (de um aviário e anexos) os RR. tenham impedido a A. e outros utentes de aceder aos seus prédios…”; uma vez que “o acesso às propriedades da A., pelo caminho em causa, é anterior à construção efectuada pelos RR”.

VIII- Dos autos de inspeção ao Local consta que as partes acordaram quanto ao início e ao fim do caminho, e, segundo a legenda das fotografias 8 e 9, constata-se o local onde o caminho antigo foi interrompido pela construção da estrada Sobreira/Carregal; E, segundo a legenda da fotografia 10, o caminho antigo em causa prolonga-se para lá da estrada numa extensão de cerca de 40 metros e termina numa zona de fazendas que terá a denominação de Lameiro.

IX- Esta estrada situa-se, portanto, logo após a construção efectuada pelos RR., no sentido do início para o término do caminho.

X- Verifica-se assim que os RR, com a referida construção e com o muro que efectuaram no caminho, obstruíram o acesso dos utentes do caminho à via pública entretanto construída.

XI- Além de que resulta provado que o caminho, na parte em que dá acesso a propriedades privadas, sempre foi utilizado pela A. e demais utentes para às mesmas acederem, livremente e sem pedirem autorização a quem quer que fosse, desde tempos imemoriais.

XII. Verifica-se assim que, desta forma, o caminho dá satisfação a interesses colectivos de um certo grau de relevância, como sejam o acesso que através do mesmo as pessoas fazem às suas propriedades, bem como o acesso a uma via pública entretanto criada que liga as povoações de Sobreira, Benfeitas e Carregal.

XIII. Desta forma, a utilização pelo público do caminho em causa, além do seu uso directo e imediato, desde tempos imemoriais, satisfaz interesses públicos relevantes.

XIV. Pelo que estando reunidos todos os requisitos de que depende a dominialidade de um caminho, o caminho em causa nos presentes autos, preenchendo-os, deve ser qualificado de público.

XV- Mesmo que se entendesse que o caminho em causa não tem natureza pública, o que não se concede e que por mera hipótese se admite, sempre os RR. edificaram, de facto, construções em terreno que não lhes pertence, isto é, em caminho que comprovadamente sempre esteve ao dispor do público sem discriminação, motivo pelo qual sempre deveriam ter sido condenados a demolir tais construções.

XVI- Ou então, em alternativa, nesta mesma hipótese de não se qualificar o caminho como público, ser os RR. condenados no pedido subsidiário formulado pela A./Recorrente na sua petição inicial, uma vez que, com a sua actuação os RR. obstruíram, como se apurou, um caminho utilizado por todas as pessoas, impedindo-as de nele transitar, pelo que a procedência deste pedido subsidiário sempre reduziria os efeitos lesivos dos actos dos RR., possibilitando-se assim a passagem dos utentes pelo caminho, naquele percurso alterado.

XVII - Para os efeitos do disposto no Art. 639º do CPC, a Recorrente entende que a douta sentença, ao fazer a uma incorrecta interpretação do conceito de caminho público, concluindo por isso que o caminho em causa nos autos, não o é, viola e aplica incorrectamente a lei definidora do conceito de caminho público”.

Com os aludidos fundamentos pretende que, na procedência do recurso, seja revogada a sentença apelada e proferida decisão em sua substituição que julgue procedente a acção.

Os apelados não contra alegaram.

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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões trazidas à apreciação deste Tribunal são determinar se, face à factualidade apurada, o acesso em causa deve ser qualificado como público; quando assim se não entenda, se o mesmo acervo factual permite acolher a pretensão formulada pela autora a título subsidiário.

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II. Fundamentação

De facto

Constatando-se que a apelante não colocou em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto, mas tão-somente as ilações que desses factos (não) foram, em seu entender, extraídas, e não havendo razão para proceder à sua modificação oficiosa, são os seguintes os factos a considerar:

1. No sítio da Sobreira, Reigoso, Oliveira de Frades, os RR levaram a efeito a construção de um aviário e anexos.

2. No sítio da Sobreira, Reigoso, Oliveira Frades, existe um caminho, parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, que dava e dá acesso a algumas propriedades e que terminava e termina numa zona de fazendas conhecidas como a zona do Lameiro.

3. Tal caminho existe há mais de 20, 30, 40, 50 e 100 anos.

4. Tal caminho era utilizado livremente a pé ou de carros de bois por quem aí possuía terrenos.

5. Que o utilizavam sem pedir licença a quem quer que fosse.

6. Convictos que o podiam utilizar para aceder às suas propriedades.

7. Tal caminho tinha o seu leito e orientação definidas, sendo em algumas zonas delimitado por muros em pedra.

8. A A. é moradora no lugar de Sobreiro.

9. E é proprietária de terrenos contíguos com aquele caminho.

10. Terrenos esses que agriculta e cultiva, onde roça matos, estrumes, e explora madeiras.

11. Utilizando o caminho em causa para aceder às suas propriedades.

12. Por volta do ano de 1969 os RR efectuaram a construção mencionada em 1., ocupando parte do caminho supra mencionado, mais concretamente, na zona ladeada por prédios dos RR e da mãe da R.

13. Que nessa parte ocuparam em toda a largura.

14. E na extensão de cerca de 25 metros.

15. Para tal escavaram o terreno afecto ao caminho.

16. Arrancaram as pedras do mesmo, refundando-o.

17. Compactaram-no com terra no local onde vieram a levar a efeito a construção.

18. E abriram um caminho lateral, sobre o terreno de um prédio então da mãe da R., fazendo um acesso desse caminho à estrada que liga Sobreira ao Carregal, entretanto construída.

19. Junto a esse caminho colocaram um cão e restos de tubagens.

20. E junto à estrada mencionada em 18. que atravessou o prédio propriedade dos RR, construíram um muro de pedra.

21. A A., por carta registada com AR de 20/04/2009, solicitou ao Sr. Presidente da Câmara que a Câmara informasse se o caminho em causa era público ou particular.

22. E o então mandatário da A. por carta registada de 13.7.2009, remetida à Câmara Municipal insistiu pela resposta.

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De Direito

A autora veio instaurar a presente acção convocando a Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, a qual veio definir “os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição” (cf. art.º 1.º, n.º 1), tendo em vista a protecção “[d]a saúde pública, ambiente, qualidade de vida, protecção do consumo de bens e serviços, património cultural e do domínio público” (vide n.º 2 do preceito).

A lei em causa veio concretizar as condições de exercício do direito de acção popular consagrado no art.º 52.º da CRP, cujo n.º 3 proclama ser “(…) conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.

Ao abrigo do mencionado diploma, pretende a autora obter a condenação dos RR a reconhecerem a existência do caminho e sua natureza pública, cujo trato de terreno ocuparam e revolveram, destruindo os seus muros de delimitação e o seu leito, nele tendo erguido um aviário, e sua consequente restituição à fruição do público. Deste modo, e conforme correctamente se considerou na decisão apelada, sobre a autora recaía o ónus da prova dos factos que permitissem concluir pela dominialidade do caminho em causa, por se tratar de factos com eficácia constitutiva do direito invocado (cf. art. 342º, nº 1 do Código Civil) Diploma legal ao qual pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem..

A questão da dominialidade de determinados acessos gerou acesa controvérsia, apenas serenada (mas não totalmente resolvida) com a prolação do Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, publicado no DR I-A de 2 de Junho de 1989, hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, que fixou a seguinte doutrina: “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.” Consagrava-se assim, dentre as correntes em confronto, aquela que dispensava a exigência de que, a par do uso e cumulativamente com ele, os ditos caminhos fossem administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público. Ali se discorreu, em suporte da tese que fez vencimento: “(…) entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção. (…) Esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados. Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.”.

Não obstante tal ampla formulação, ao pronunciar-se sobre a questão de saber como qualificar um caminho que, desde “tempos não alcançados pela memória das pessoas vivas, directa ou indirectamente, por tradição oral dos seus antecessores” Do aresto do STJ de 28 de Maio de 2009, processo n.º 08 B 2450, relatado pela Exmª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, in www.dgsi.pt., é utilizado pelo público em geral, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias -se caminho público, logo, integrado no domínio público, se atravessadouro, mantendo a sua natureza privada- o STJ vem defendendo, de forma persistente, uma interpretação restritiva do dito acórdão uniformizador, exigindo, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância. E “nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”. Ac. STJ de 13 de Janeiro de 2004, citado no aresto de 14 de Outubro de 2004, proc. 04B2576, acessível em www.dgsi.pt.

A relevância do interesse colectivo do terreno deve ser apreciada casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o “modus vivendi” da localidade onde ele se situa. Assim, há que ter em conta, em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas (v.g. uma percentagem elevada dos membros de uma povoação) e, por outro lado, a importância que o fim visado tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições, e não de opiniões externas. Distinguindo-se tal utilização daqueloutra que se consubstancia como uma mera soma de utilidades individuais e que não tem força bastante para fazer emergir tal natureza pública Vide” Ac do STJ de 13-03-2008, processo n.º 08A542, em www.dgsi.pt., entendimento reiterado no aresto do mesmo STJ de 18/9/2014, processo n.º 44/1999.E2.S1, acessível no mesmo site. .

Exigindo-se assim que a aludida afectação à utilidade pública se revele na “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”, não satisfazem tal requisito quando “se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, [hipótese em que] os caminhos devem classificar-se de atravessadouros Do mesmo acórdão de 28 de Maio de 2009, com recenseamento de abundante jurisprudência sobre a questão enunciada. .

Revertendo agora ao caso dos autos, analisando o acervo factual apurado e que em sede própria se deixou consignado, logo se constata ser o mesmo manifestamente insuficiente para concluir pela verificação dos enunciados requisitos em relação ao acesso em discussão. Vejamos:

Com pertinência para a questão que se analisa, resultou apurada tão-somente a existência, no sítio da Sobreira, Reigoso, Oliveira Frades, de um caminho, parte em alcatrão e parte em terra batida e pedra, que dava e dá acesso a algumas propriedades, terminando numa zona de fazendas conhecidas como a zona do Lameiro. Tal caminho, existente há mais de 20, 30, 40, 50 e até 100 anos, era utilizado livremente a pé ou de carros de bois por quem aí possuía terrenos, que o utilizavam sem pedir licença a quem quer que fosse, convictos que o podiam utilizar para acederem às suas propriedades (cf. pontos 1. a 6. da matéria de facto assente).

Sendo a relatada a factualidade a ponderar, não se vê como dela extrair estarmos perante caminho que satisfaça um interesse colectivo, para mais relevante, com os contornos que deixámos precisados. Com efeito, ao invés de um uso alargado, visando a satisfação de um interesse comunitário, estamos antes em presença de um caminho que se limitava e limita a permitir o acesso a diversas fazendas, cujos proprietários para esse efeito o utilizavam, assim denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de carácter meramente privatístico.

E a sobredita conclusão não é infirmada pela circunstância, agora invocada pela apelante, do antigo caminho ser actualmente atravessado pela estrada que liga as povoações da Sobreira ao Carregal, entretanto construída, daqui pretendendo extrair estar em causa, afinal, o interesse, relevante, dos proprietários dos prédios vizinhos por ele acederem à dita estrada. Com efeito, ainda a admitir que estes pudessem aceder à estrada pública utilizando o dito acesso, a verdade é que não está de modo nenhum demonstrado que lhe venha sendo dado este concreto uso, e muito menos desde tempos que a memória dos vivos não alcança, para, por esta via, afirmar a sua dominialidade. Aliás, estando inequivocamente provado, até mediante confissão dos RR, que estes, há mais de 40 anos tendo por referência a data da propositura da acção, edificaram o aviário sobre um troço do antigo, tendo então procedido à abertura, sobre prédio à data pertencente à mãe da ré mulher -terreno privado, portanto- de um acesso alternativo, a verdade é que nada se apurou quanto ao uso que deste último vem sendo feito por outras pessoas que não os próprios RR. Tal escassez de factos desfavorece naturalmente a autora, sobre quem recaía o ónus da prova dos constitutivos do direito que aqui pretendia exercer, ónus de que não se desincumbiu.

Em suma, não tendo a autora logrado fazer prova de que o acesso em litígio reúne as características conducentes à sua caracterização como caminho público, não merece censura a sentença apelada quando denegou, com este fundamento, a pretensão formulada em via principal.

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Para a hipótese -que se verificou- do dito caminho não ser qualificado como público, pretende a apelante a condenação dos RR “a desobstruírem o caminho lateral que fizeram sobre o prédio que dizem pertencer-lhes e que, dando continuidade ao caminho público, dá acesso à estrada da Sobreira–Carregal, retirando dali o cão, as tubagens, materiais de construção, madeiras, pedras e tudo o mais que possa impedir a passagem dos utentes do caminho público, deixando o caminho naquele percurso alterado totalmente livre e desimpedido”, e isto porque “sempre teriam edificado construções em terreno que não lhes pertence, a saber, em terreno que sempre esteve comprovadamente ao dispor do público e sem limitações” (cf. teor da conclusão XV).

Pois bem, a argumentação da apelante parte, desde logo, de um pressuposto de facto que não está demonstrado, a saber, que os RR tivessem edificado o aviário em terreno que não lhes pertencesse, sendo certo que não se encontra determinada nos autos a natureza do trato de terreno em questão. Acresce que, indemonstrada a natureza pública do caminho em causa, não se vê -nem a apelante o indica- qual o instituto jurídico que acolheria a sua pretensão.

Insistindo na ideia de que os RR “obstruíram, como se apurou, um caminho utilizado por todas as pessoas, impedindo-as de nele transitar”, defende por último a apelante, na sua derradeira conclusão, que “a procedência do pedido subsidiário sempre reduziria os efeitos lesivos dos actos dos RR., possibilitando-se assim a passagem dos utentes pelo caminho, naquele percurso alterado”.

Conforme se referiu já, aquando da edificação do aviário sobre troço do antigo caminho, procederam os RR à abertura, em terreno privado (pertencente à mãe da ré mulher), de um percurso alternativo, assim restabelecendo a ligação interrompida pela construção. Apurou-se igualmente que junto a esse caminho colocaram um cão e restos de tubagens (cf. ponto 19. dos factos assentes).

Pois bem, para lá de não ter resultado comprovado que este troço alternativo se encontre impedido, a verdade é que, também aqui, não nos diz a autora qual o instituto jurídico que acolheria esta sua pretensão, nomeadamente se, atenta a natureza privada do troço em questão, pretende o reconhecimento de um qualquer direito de servidão de passagem, caso em que a causa de pedir teria de ser diversa.

Conforme se assinalou na decisão recorrida, sendo a acção instaurada uma acção popular, não obstante ter legitimidade activa para o efeito mesmo quem não tenha interesse directo na demanda, é seu pressuposto que estejamos em presença de um interesse colectivo ou público, o que, conforme se referiu, não resultou demonstrado. E falecendo este pressuposto essencial, logo se vê que a pretensão da autora não poderia proceder, quer estivesse em causa o troço originário, quer se tratasse do troço alternativo. Daí que não mereça qualquer censura a sentença apelada.

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III Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pela autora, mantendo a sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante.

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Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Helder Almeida