Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3187/08.0TBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: SOCIEDADE
DISSOLUÇÃO
PROCURAÇÃO
Data do Acordão: 05/18/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 146, 151, 160, 162 CSC, 1163, 1174, 1175 CC
Sumário: Tendo o único sócio e gerente de uma sociedade comercial outorgado procuração a mandatário judicial para representar a sociedade e sendo esta depois juridicamente dissolvida e extinta (registo do declarado “encerramento da liquidação”) e assumindo-se aquele único liquidatário e depositário da dissolvida e extinta sociedade, tal circunstancialismo não afecta, necessariamente, a referida procuração forense, até acto extintivo do contrato de mandato, se, nomeadamente, estiver em causa a liquidação/apuramento de indemnização devida à sociedade e não for de afastar a previsão dos art.º 1163º do Código Civil ou do art.º 1175º, in fine, a contrario, do mesmo diploma legal.
Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

           

             

            I. Em 14.9.2009, J (…) interpôs, no Tribunal Judicial de Viseu, ao abrigo do disposto nos art.ºs 680º, n.º 2[1] e 771º, alínea d) do CPC, recurso de revisão da sentença que homologou a transacção efectuada nos autos de processo sumário n.º 3187/08.0TBVIS, em que são, A., C (…), Lda. e, Ré, (…) Companhia de Seguros, S.A., alegando, em síntese, que a transacção de 01.7.2009 homologada na acção declarativa apensa é nula, porquanto a ali A. encontrava-se dissolvida e encerrada a liquidação respectiva desde 18.12.2008, data em que tal facto foi levado ao registo, sendo que o mandatário que, munido de procuração forense com poderes especiais, outorgou na transacção em causa não o podia fazer pois tal mandato havia já caducado.

            Concluiu pedindo a revogação da aludida sentença homologatória, prosseguindo a acção com os sócios, representados pelo liquidatário, no lugar da A., aproveitando-se a parte do processo que o fundamento de revisão não tenha prejudicado, com a designação de nova data para a audiência de julgamento.

            Admitido o recurso e cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 774º do CPC, apenas a recorrida (…) veio dizer que pagou o montante indemnizatório convencida que estava a cumprir uma transacção válida quanto ao seu objecto e às partes intervenientes, e juntou aos autos cópia do respectivo “recibo de indemnização”.

            O recorrente impugnou a assinatura aposta no dito “recibo de indemnização”, afirmando que “não é do ex-sócio gerente da sociedade (…) Lda.

            De seguida, o tribunal a quo julgou improcedente o recurso de revisão.

Inconformado com esta decisão, o recorrente apelou, terminando a alegação com as seguintes conclusões:

            1ª - A extinção da “C (…), Lda.” originou uma modificação subjectiva na acção apensa, tendo aquela sociedade sido substituída pelo seu sócio único, na qualidade de liquidatário;

            2ª - O Digníssimo Tribunal a quo entendeu porém que, não obstante tal realidade, o mandato que a referida sociedade comercial conferiu ao Ilustre Advogado identificado não caducou, com base no argumento de que “(...) o liquidatário é a pessoa física que constituiu mandatário para representar a sociedade de que era único sócio” e, nessa medida, “(..) sendo o mandante simultaneamente o sucessor da sociedade extinta, o mandato não caduca”;

            3ª - Na base de tal conclusão reside um incontornável erro silogístico, já que não obstante o liquidatário seja a mesma pessoa física que constituiu mandatário para representar a sociedade de que era único sócio, a verdade é que actuou na qualidade de representante legal daquela sociedade e, nessa medida, foi em nome desta que constituiu mandatário, não em nome próprio;

            4ª - Destarte, mandante e liquidatário não são, juridicamente, a mesma pessoa, dúvidas não restando de que o mandante no mandato sub judice era a referida sociedade comercial e não o seu sócio e, em conformidade, de que tal mandato foi inequivocamente conferido pela sociedade e não pelo seu representante legal;

            5ª - Assim, conquanto ao referido sócio claramente assistisse legitimidade para, na qualidade de liquidatário, continuar as acções em que aquela sociedade era parte, para tanto necessitava de constituir novo (ainda que fosse o mesmo) mandatário, já que o mandato conferido pela dita sociedade caducou, ope legis, na sequência da extinção desta [cfr. al. a) do art. 1174°. do Código Civil];

            6ª - Não tendo constituído novo mandatário, forçoso é concluir pela nulidade da transacção em que interveio o Ilustre Advogado constituído mandatário da supradita sociedade, ex vi do disposto no n°.2 do art.301°. do Código de Processo Civil, pois que foi celebrada por mandatário cujo mandato já se encontrava extinto, cumprindo ademais notar que tão-pouco inexistiu, in casu, qualquer mandato conferido pelo sócio ou pelo liquidatário da sociedade, que pudesse permitir a aplicabilidade do n.º3 do art.301°. daquele diploma;

            7ª - Obiter dictum, da caducidade do mandato sub judice tão-pouco advinham prejuízos para o mandante ou para o seu sucessor;

            8ª - Ao não concluir pela nulidade da sobredita transacção, o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou incorrectamente as normas ínsitas nos arts.301°., n°s.2 e 3, do Código de Processo Civil, no art.161°. do Código das Sociedades Comerciais e, outrossim, nos arts.1174°., al. a) e 1175°. do Código Civil.

            Os demais interessados não responderam à alegação.

            O objecto do presente recurso de apelação restringe-se à questão de saber se existe fundamento para a pretendida revisão - maxime, se o mandato em causa deve considerar-se caduco e se tal facto afectou a validade da aludida transacção.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) A “C (…), Lda.”, em 26.9.2008, propôs contra a “(…) Companhia de Seguros, Lda.” a acção sumária que corre termos no 4° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu sob o n.° 3187/08.OTBVIS, e a que o presente recurso se encontra apenso.

            b) A A. nesta acção juntou procuração forense outorgada em 26.02.2008 em que constitui seu mandatário o Sr. Dr. (…), conferindo-lhe “os mais amplos poderes em Direito permitidos, podendo substabelecer, assinar e receber custas, cheques de custas de parte, e precatórios cheques, bem como poderes para em seu nome e representação, (...) negociar, desistir e transigir.”

            c) No âmbito da acção referida em II. 1. a), no dia 01.7.2009, em sede de audiência de discussão e julgamento, as partes lograram alcançar a transacção constante de fls. 216, através da qual a Ré se obrigava a pagar à A. a quantia de € 9 500 “no prazo de vinte dias, através de cheque contra recibo a enviar ao escritório do Ilustre mandatário da Autora”.[2]

            d) Em 18.12.2008 foi inscrito na Conservatória do Registo Comercial de Viseu, através da “apresentação 5”, o facto da dissolução e encerramento da liquidação da sociedade A..

            e) Na mesma data foi inscrito no registo o cancelamento da respectiva matrícula.

            2. Importa considerar ainda:

            f) A transacção dita em II. 1. c), supra, foi homologada por sentença, transitada em julgado.

            g) Por carta datada de 17.7.2009, a referida Seguradora remeteu ao Sr. Dr. (…)“recibo pelo valor de € 9 500”, a apresentar “para liquidação, após validação, na morada constante da carta (…), em qualquer balcão da Global ou através de transferência bancária” (cf. documento de fls. 32).

            h) Em 22.7.2009,  A (…) que foi o único sócio e gerente da dita “C (…) Lda.”, e depois, em razão da mencionada dissolução e encerramento da liquidação, seu liquidatário e depositário, recebeu, no balcão de Viseu da mesma Seguradora, a importância de € 9 500 como “valor acordado para a indemnização pelos prejuízos resultantes do sinistro em apreço, conforme transacção efectuada no âmbito do processo de acção n.º 3187/08.0TBVIS que corre termos no 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu.” (cf. documento de fls. 33)[3]

            2. Embora estejamos perante matéria não isenta de dificuldades, afigura-se-nos que se deverá manter a decisão sob censura.

         O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, desistência ou transacção não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento (art.ºs 301º, n.º 2 do CPC e 771º, alínea d), do CPC).[4]

            Salvo quando a lei disponha de forma diversa, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação; a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, em princípio, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (art.º 146º, n.ºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais /CSC).

            Salvo cláusula do contrato de sociedade ou deliberação em contrário, os membros da administração da sociedade passam a ser liquidatários desta a partir do momento em que ela se considere dissolvida. As funções dos liquidatários terminam com a extinção da sociedade, sem prejuízo, contudo, do disposto nos artigos 162º a 164º (art.º 151º, n.ºs 1 e 8, do CSC).

            Os liquidatários têm, em geral, os deveres, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade, devendo, nomeadamente, ultimar os negócios pendentes e cobrar os créditos da sociedade (art.º 152º, n.ºs 1 e 3, alíneas a) e c), do CSC).

            Os liquidatários devem requerer o registo do encerramento da liquidação. A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162º a 164º, pelo registo do encerramento da liquidação (art.º 160º, n.ºs 1 e 2, do CSC).   

            As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163°, n.°s 2, 4 e 5, e 164°, n.°s 2 e 5, sendo que a instância não se suspende nem é necessária habilitação (art.º 162º, do CSC).      

            Comunicada a execução ou inexecução do mandato, o silêncio do mandante por tempo superior àquele em que teria de pronunciar-se, segundo os usos ou, na falta destes, de acordo com a natureza do assunto, vale como aprovação da conduta do mandatário, ainda que este haja excedido os limites do mandato ou desrespeitado as instruções do mandante, salvo acordo em contrário (art.º 1163º, do CC/”aprovação tácita da execução ou inexecução do mandato”).

            O mandato caduca por morte[5] ou interdição do mandante ou do mandatário (art.º 1174º, alínea a), do CC).

            A morte, interdição ou inabilitação do mandante não faz caducar o mandato, quando este tenha sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro; nos outros casos, só o faz caducar a partir do momento em que seja conhecida do mandatário, ou quando da caducidade não possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros (art.º 1175º, do CC).

            3. No caso em análise, a decisão objecto de revisão é a que homologou a transacção alcançada pelas partes, em 01.7.2009, nos autos principais e que transitou em julgado [cf. II. 1. alíneas a) e c) e 2. alínea f), supra].

            A ali A. é uma sociedade comercial unipessoal - tendo como sócio único António Jorge Monteiro de Almeida -, relativamente à qual se encontra registado o facto da sua dissolução e encerramento da liquidação, bem como o cancelamento da matrícula.

            O registo do encerramento da liquidação, em 18.12.2008, extinguiu a sociedade - art.º 160°, n.°2, do CSC. A extinção é um efeito legal do registo do encerramento da liquidação.[6]
               
Porém, conforme se prevê no art. 162°, do mesmo Código, as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários [de forma idêntica ao que se encontra regulado para as acções para pagamento de dívidas (passivo superveniente) ou cobrança de créditos (activo superveniente) de sociedade já extinta], sendo que a instância não se suspende nem é necessária habilitação.
 Estamos aqui perante uma modificação subjectiva que opera de forma automática, ou seja, ope legis[7] - com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem (arts. 162º, 163º e 164º do CSC).
Como bem referiu o Mm.º Juiz a quo, in casu, a sociedade é unipessoal pelo que existe apenas um sócio, o qual assumiu a qualidade de liquidatário da sociedade (art. 151°, n.° 1 do CSC) e, enquanto pessoa singular e legal representante da sociedade, constituíra mandatário para representar a sociedade de que era único sócio.[8]
Por conseguinte, extinta a sociedade em consequência do registo do encerramento da liquidação, o mandato não caducou com a extinção da sociedade comercial unipessoal (art.º 1174°, alínea a), do CC), na medida em que a caducidade do mandato só opera quando desta não possam resultar prejuízos para o mandante ou os seus herdeiros, no caso, o seu sucessor (ou a partir do momento em que seja conhecida do mandatário) (art. 1175°, do CC) e porque o ex-sócio único e gerente, liquidatário, depositário (da escrita e bens) e sucessor da sociedade extinta foi/é a mesma pessoa singular que, representando a sociedade, outorgou a procuração junta a fls. 10 da acção n.º 3187/08.0TBVIS [referida em II. 1. b)] - daí, a continuação da execução do mandato não padeceu de qualquer vício, e, dada a materialidade apurada, sempre se deveria ter tal execução como tacitamente aprovada (art.º 1163° do CC).
Ademais, tendo presente o carácter pessoal da relação de mandato (o intuitus personae que domina o contrato), assente na confiança recíproca que une os contraentes[9], dúvidas não restam de que, no caso em apreço, nenhuma vantagem adviria da possibilidade ou obrigatoriedade em conceder ao sucessor da sociedade extinta a liberdade de escolher outro mandatário, se assim o entendesse.[10]
E, sabendo-se que no recurso de revisão traduz uma das revelações do conflito entre as exigências de justiça e a necessidade da segurança ou da certeza (jurídicas)[11], não vemos sequer prefigurados no arrazoado do recorrente quaisquer vícios que a revisão devesse remediar ou eliminar para fazer prevalecer o princípio da justiça.
Finalmente, ao contrário da perspectiva que o recorrente parece trazer aos autos, a sentença em causa não foi obtida em condições estranhas e anámalas[12] e foi depois cumprida, inexistindo o menor indício de que o sucessor da sociedade extinta haja suscitado qualquer reparo ao conteúdo do acordo alcançado e/ou à execução do mandato.

            Assim, não se podendo concluir pela falta de poderes a que alude o recorrente ou pelo apontado (e aparente) “erro silogístico”, a transacção homologada pela sentença proferida na dita acção declarativa não é nula.

            Soçobram, pois, as “conclusões” da alegação de recurso, inexistindo válido fundamento para a pretendida revisão.


*
    III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
     Custas pelo recorrente.

[1] O recorrente fundamentou o seu “interesse” na revisão no facto de haver celebrado um contrato de mútuo com a C (…), Lda”., tendo ficado o seu sócio gerente como fiador e principal pagador da obrigação de restituição do montante acordado: era com o montante a receber no âmbito da acção apensa que a mutuária pagaria ao recorrente; não obstante a instauração de procedimento cautelar para arresto da referida quantia, a mesma foi paga àquele sócio gerente no dia seguinte ao da notificação da decisão de arresto.

    Pese embora o aduzido na 2ª parte do item 26º do requerimento de interposição de fls. 4 e no requerimento de fls. 37/38, não vemos junta a certidão que ali se protestou juntar no prazo de 15 dias, sendo que o tribunal recorrido por certo a considerou desnecessária para a decisão…

[2] Afirma-se na respectiva acta de audiência de julgamento que estavam presentes “Todas as pessoas para este acto convocadas” (cf. fls. 216 dos autos principais).
[3] É por demais evidente a insubsistência da motivação apresentada pelo recorrente, ao impugnar a “assinatura” aposta no “recibo de indemnização” reproduzido a fls. 33.
[4] Estabelece ainda o n.º 3 do art.º 301º do CPC que quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o acto ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o acto do mandatário, este não produzirá quanto a si qualquer efeito.
[5] Ao caso do falecimento das pessoas singulares deverá ser equiparada a extinção da sociedade ou da pessoa colectiva representada como parte.
[6] Sempre se poderá dizer que, quando se levou ao registo o “encerramento da liquidação” [cf. II. 1. d)], subsistindo ainda, pelo menos, a questão do apuramento/liquidação, nos autos principais, do valor da indemnização devida à sociedade, em bom rigor, fez-se registar uma realidade inexistente, com a consequente nulidade do registo (art.º 16º, alínea a), do Código do Registo Predial).
[7] Cf. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 493.
[8] E, como se refere no acórdão do STJ de 14.10.1998 (in CJ-STJ, VI, 1, 7), “(…) uma sociedade comercial juridicamente dissolvida passa a ter liquidatários como gestores, mas estes até são, normalmente, por princípio geral, os membros da administração da sociedade (art.º 151º, n.º 1, do CSC) - (…) mesmo quando não seja o caso, isso não afecta procuração forense anteriormente outorgada por quem, então, representava a sociedade, até acto extintivo do contrato de mandato por qualquer das partes.”
[9] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 816.
[10] Obviamente, no pressuposto de que ocorreria a caducidade e consequente extinção do mandato.
[11] Cf. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. VI (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 336
[12] Ibidem, pág. 336.