Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2741/11.8TBPBL-I.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: DIREITO DE REMIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PROPONENTE
DIREITO DE PREFERÊNCIA
Data do Acordão: 07/14/2014
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 3º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 914º, Nº 1, DO CPC DE 1967, CORRESPONDENTE À PRIMEIRA PARTE DO ART.º 914º DO CPC DE 1939, E 844º DO NCPC; 913º CPC; ARTº 843º, NºS 1 E 2 DO NCPC.
Sumário: I – A finalidade conspícua do direito de remição - que prevalece sobre o direito de preferência - é a protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens objecto de execução do âmbito da família do executado.

II - O exercício do direito de remição causa prejuízos ao proponentes se a remição for exercida depois do acto de abertura e aceitação das propostas e do depósito, pelo proponente, da totalidade do preço da venda, pelo que, para reparar esses prejuízos, deve o remidor, quando actue naquele condicionalismo, depositar, além da totalidade do valor do preço, o acréscimo de 5% para indemnização do proponente.

III - Se tiver sido exercido um direito de preferência e a totalidade do preço da venda sido depositada, não pelo proponente mas pelo preferente, como o dano decorrente do exercício da remição se produz na esfera jurídica do preferente, a norma relativa à indemnização devida pelo remidor deve ser objecto de interpretação extensiva, de modo a que também ao preferente preterido se reconheça o direito à reparação do dano que a remição dos bens, nas condições apontadas, lhe causou.

IV - Aquela reparação e este acréscimo do depósito, porém, só são devidos no caso de o preferente ter procedido ao depósito da totalidade do preço.

V - O direito de remição deve ser admitido quando a venda de bens tenha o carácter coactivo, de que se reveste no processo de execução e, portanto, também no processo de insolvência.

Decisão Texto Integral: I. Forma de julgamento do recurso.

Dado que a questão objecto da impugnação – que nem sequer obteve resposta – é simples, declaro que o recurso será julgado, liminar, singular e sumariamente (artºs artºs 652 nº 1 e 656 do CPC do nCPC).

II. Julgamento do recurso.

1. Relatório.

No processo de insolvência de E... – que corre termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Pombal – o Sr. Administrador da Insolvência, Dr. ..., obteve, para a venda executiva, por negociação particular, da metade da fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao rés-do-chão, destinado a comércio, e armazém na cave, do prédio urbano localizado na ... – de que M... é comproprietária – duas propostas, pelo preço de € 5 000,00 e € 10 000,00, respectivamente, tendo aceitado esta última.

O Sr. Administrador da Insolvência notificou, por carta registada com aviso de recepção expedida no dia 2 de Janeiro de 2014, para o Exmo. Advogado constituído da comproprietária, M..., Dr. ..., da aceitação daquela proposta, para aquela exercer, no prazo de 8 dias, o seu direito de preferência.

O Sr. Administrador da Insolvência foi notificado, no dia 9 de Janeiro de 2014, do exercício por M... e cônjuge, do exercício da preferência, que, no mesmo acto, procederam ao envio do cheque no valor de € 2.000,00, correspondente 20% do preço.

O Sr. Administrador da Insolvência procedeu, então, à marcação da escritura pública de compra e venda para o dia 10 de Fevereiro de 2010, pelas 11h00, na ..., data que comunicou à comproprietária, na pessoa do seu Exmo. Advogado, no dia 21 de Janeiro do mesmo mês.

Entretanto, C... – filha da insolvente – atravessou, no dia 24 de Janeiro, um requerimento – que instruiu com a respectiva certidão de nascimento e com um cheque no valor de € 10 000,00 emitido à ordem da massa insolvente - dirigido ao Sr. Juiz de Direito, no qual declarou vir exercer, naquela qualidade, ao abrigo do disposto no artº 842 do C.P.C., o direito de remição, direito cujo reconhecimento pediu.

Notificado deste requerimento, o Sr. Administrador da Insolvência, por carta registada no correio, no dia 6 de Fevereiro de 2014, com aviso de recepção, devolveu, por cheque emitido a favor da comproprietária, M..., enviado ao respectivo Mandatário, a quantia de € 2 000,00.

Enfim, o Sr. Juiz de Direito, por despacho de 9 de Abril de 2014, com fundamento, designadamente, em que o exercício do direito de remição é perfeitamente extensível a este processo de insolvência de pessoa singular, se tivermos em consideração os fundamentos que presidiram à criação da própria remição, e que o direito de remissão exercido se mostrava válido, legal, tempestivo, preenchendo todos os requisitos legalmente previstos, deferiu o mesmo.

É, justamente, esta decisão que M... impugna através do recurso ordinário de apelação – no qual pede a sua alteração, se considere como não verificados os pressupostos para o exercício do direito de remissão da filha da insolvente e lhe seja adjudicada a metade do imóvel – tendo encerrado a sua alegação com estas conclusões:

1ª À comproprietária e credora, foi reconhecido e decidido pelo Sr. Administrador no exercício das suas funções e competências, o direito de preferência na aquisição de 1/2 da indicada fracção em causa, após diversas tentativas de vendas, por proposta em carta fechada.

2ª Em face da mesma, a preferente entregou através de saque, e conforme instruções do Sr. Administrador, o valor de € 2 000,00 e pagou o valor de IMT, disponibilizando o valor de € 8 000,00, para o restante pagamento do preço e a entrega na data e hora designada para a outorga da escritura, pelo mesmo marcada, pelo Administrador da Insolvência no Cartório de Leiria.

3ª Surpreendentemente e, sem qualquer efectiva entrega de qualquer valor ou saque a favor da mesma insolvente, a pretensa filha da insolvente, exercer o direito de remissão.

In casu, não estamos em situação de venda em processo executivo. Além do mais.

5ª Não entregou o IMT, nem 5% do valor adicional.

6ª À mesma filha da insolvente não assiste o direito de remissão, dado o património da massa insolvente constituir personalidade.

7ª A entrega de cheque, por si só, não é posto em crise, nem consubstanciado um pagamento e, em si o valor integral e do acréscimo legal judiciário próprio numa relação parental de mãe para filha, prevista no artº 842º do CPC e artº 912 do CPC.

8ª A pretensa requerente remitente não exerceu nenhum direito nem o mesmo lhe assiste nem foram preenchidos os requisitos legais exigidos.

Não foi oferecida resposta.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Os factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso – relativos à titularidade, pela recorrente, de uma quota no bem imóvel objecto da venda executiva, ao exercício por esta do direito de preferir, à data designada para a realização daquela venda, ao vínculo jurídico-familiar da pessoa que se apresentou a remir, à data do oferecimento do respectivo requerimento e ao pagamento do preço proposto – são os que, em síntese apertada, o relatório documenta.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O objecto do recurso é triplamente delimitado: pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados na instância recorrida; pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante; pelo próprio recorrente que pode, expressa ou tacitamente, limitar esse objecto, quer no requerimento de interposição do recurso, que nas conclusões da sua alegação (artº 635 nºs 2, 1ª parte, e 3 do nCPC).

Nestas condições, tendo em conta a vinculação temática desta Relação ao conteúdo da decisão impugnada e à impugnação da recorrente, a questão concreta controversa que importa resolver é apenas uma: a de saber se se verificam, na espécie sujeita, os pressupostos do exercício do direito de remição.

Problema cuja resolução traz implicada o exame, ainda que leve, do fundamento final daquele direito, do modo e tempo do seu exercício e da admissibilidade da sua actuação no processo de insolvência.

3.2. Fundamento final do direito de remição, modo e tempo do seu exercício e admissibilidade da sua actuação no processo de insolvência.

O direito de remição em torno do qual gravita a controvérsia – que consiste essencialmente em se reconhecer à família do executado a faculdade de adquirir, tanto por tanto, os bens vendidos ou adjudicados no processo de execução[1] - tem raízes profundas no nosso sistema jurídico, que remontam às Ordenações e que, com ligeiras variações quanto ao leque dos familiares em que era encabeçado e à natureza dos bens sobre que podia ser exercitado, foi mantido desde o Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832 (artº 153), passando pela Reforma Judiciária de 1837 (artº 248), pela Novíssima Reforma Judiciária (artº 602), pela Lei de 16 de Junho de 1855 (artº 16), até aos Códigos de Processo Civil de 1876 (artº 888), de 1939 (artigo 912) e de 1967 (artº 912)[2].

 Embora na sua actuação prática o direito de remição funcione como um direito de preferência dos titulares desse direito relativamente aos compradores ou adjudicatários, os dois direitos têm natureza diversa, já pela base em que assentam, já pelo fim que visam. Quanto à diversidade de fundamento, ao passo que o direito de preferência tem por base uma relação de carácter patrimonial, sendo a razão da titularidade o condomínio ou o desdobramento da propriedade, já o direito de remição tem por base uma relação de carácter familiar, sendo a razão da titularidade o vínculo familiar criado pelo casamento ou pelo parentesco - a qualidade de cônjuge, de descendente ou de ascendente[3]. Razão que se mantém se o cônjuge ou os descendentes tiverem sido habilitados, por virtude da morte do executado, para a execução[4]. Relativamente à diversidade de fim, enquanto, o direito de preferência obedece ao pensamento de transformar a propriedade comum em propriedade singular, ou de reduzir a compropriedade, ou de favorecer a passagem da propriedade imperfeita para a propriedade perfeita, já o direito de remição inspira-se no propósito de defender o património familiar, de obstar a que os bens saiam da família do executado para as mãos de pessoas estranhas[5]. E é esta finalidade explica que o direito de remição não possa ser cedido[6].

                A protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado, é, pois, a razão material do direito de remição, reconhecido, una voce, pela jurisprudência e pela doutrina[7].

Com a atribuição deste direito não se prejudicam os credores, pois que a estes pouco importa que o adquirente seja uma pessoa da família do devedor, ou uma pessoa estranha. O que aos credores interessa é o preço por que os bens são vendidos; ora os remidores hão-de pagar, pelo menos, o preço que pagaria um comprador alheio à família do devedor.

Desta maneira, o direito de remição representa uma homenagem prestada à família do devedor. Homenagem justa, porque evita a desagregação do património familiar; homenagem inocente, porque nenhum prejuízo causa aos credores.

Ao direito de remição foi sempre atribuída prevalência sobre o direito de preferência - embora, naturalmente, se houver vários preferentes e se abrir licitação entre eles, a remição tenha de ser feita pelo preço correspondente ao lanço mais elevado - o que leva a doutrina a qualificar o direito de remição como um direito de preferência qualificado[8] ou um direito de preferência reforçado[9] (artºs 914 nº 1, do CPC de 1967, correspondente à primeira parte do art.º 914.º do CPC de 1939, e 844 do nCPC).

O artigo 913.º do CPC, na redacção posterior à reforma de 1995/1996 - instrumentalizada pelos Decretos-Leis n.ºs 329 A/95, de 12 de Dezembro, e 180/96, de 25 de Setembro - mas anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março regulava o momento até ao qual o direito de remição podia ser exercido, momento que variava consoante a modalidade da venda deixando em aberto a questão de saber se o direito de remição é exercitável em todas as modalidades de venda ou se será incompatível com a venda directa a entidades que tenham direito a adquirir determinados bens e com a venda em estabelecimentos de leilões[10] ou só com a venda directa[11], e a formalização (ou não) desta por escrito.

Assim: no caso de venda judicial - sempre por propostas em carta fechada, uma vez que a reforma de 1995/1996 eliminou a modalidade de venda judicial por arrematação em hasta pública - o direito de remição podia ser exercido até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente - despacho de adjudicação que só podia ser proferido após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão (artº 900 do CPC de 1961); no caso de venda extrajudicial documentada por título, até à assinatura do título, e, no caso de venda extrajudicial não documentada por título, até ao momento da entrega dos bens (a referida reforma eliminou a possibilidade, prevista na parte final da alínea b) da versão originária do artigo 913.º, de, no caso de venda por negociação particular, o direito de remição poder ainda ser exercido no prazo de dez dias a contar da data em que o remidor teve conhecimento da venda.

Por último, o n.º 2 do artigo 912.º do CPC, também na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 38/2003, exigia que o preço fosse depositado no momento da remição.

Esta última disposição foi objecto de uma jurisprudência desencontrada, designadamente quanto à exigência, ou não, de prévio despacho judicial a admitir a remição e a fixar prazo para a efectivação do depósito do preço[12].

Este quadro legal foi substancialmente alterado pela reconformação da acção executiva, operada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, quer quanto ao momento até ao qual pode ser exercitado o direito de remição, quer quanto à oportunidade para o depósito do preço pelo remidor[13].

A aludida reforma eliminou a distinção entre venda judicial e venda extrajudicial, prevendo se agora seis modalidades de venda – venda mediante propostas em carta fechada, venda em bolsas de capitais ou de mercadorias, venda directa a pessoas ou entidades que tenham direito a adquirir os bens, venda por negociação particular, venda em estabelecimento de leilões e venda em depósito público (artigo 886, nº 1). No caso da venda mediante propostas em carta fechada - que continua a configurar-se como verdadeira venda judicial[14], atento o papel atribuído ao juiz, desapareceu o despacho judicial de adjudicação, previsto no n.º 2 do anterior artigo 900.º, tendo sido instituído o título de transmissão, a emitir pelo agente de execução, nos termos do n.º 1 do actual artigo 900.º, que dispõe que “mostrando se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados”.

Estas alterações implicaram ajustamentos na norma do artigo 913, nº 1, relativa ao momento até ao qual pode ser exercido o direito de remição. Esse prazo passou a ser: (i) “no caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n. 4 do artigo 898 - esta disposição confere ao preferente que não tenha exercido o seu direito no acto de abertura e aceitação das propostas a faculdade de, na hipótese de o proponente ou preferente não depositar o preço no prazo fixado nos termos do nº 2 do artigo 897, efectuar, no prazo de cinco dias posteriores ao termo do prazo anterior, o depósito do preço oferecido pelo proponente ou preferente faltosos, a ele se fazendo então a adjudicação); e (ii) “nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documente”.

Finalmente, quanto à questão do depósito do preço pelo remidor, a reforma de 2003 eliminou o nº 2 do artº 912º - que, recorde-se, dispunha que o preço há-de ser depositado no momento da remição, passando o nº 2 do artº 913 a determinar: Aplica-se ao remidor, que exerça o seu direito no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, o disposto no artº 897º, com as adaptações necessárias, bem como o disposto nos nºs 1 a 3 do artº 898, devendo o preço ser integralmente depositado quando o direito de remição seja exercido depois desse momento, com o acréscimo de 5% para indemnização do proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artº 897, e aplicando se, em qualquer caso, o disposto no artigo 900.”

Resultava desta disposição que:

A) Quando, na modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, o direito de remição é exercido no acto de abertura e aceitação das propostas: 1) o remidor deve apresentar, no acto, como caução, um cheque visado, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria, no montante correspondente a 20% do valor base dos bens, ou garantia bancária no mesmo valor (n.º 1 do artº 897º); 2) e, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito, à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria, a totalidade ou a parte do preço em falta (nº 2 do artº 897); 3) sob pena de, não depositando o preço nesse prazo, o agente de execução liquidar a respectiva responsabilidade e promover perante o juiz o arresto - arresto que será levantado logo que o pagamento seja efectuado, com os acréscimos calculados (nº 2 do artº 898 - em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal, sendo o remidor simultaneamente executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos (n.º 1 do artº 898.º, com as necessárias adaptações); 4) salvo se, ouvidos os interessados na venda, o agente de execução optar por determinar que a remição fique sem efeito, aceitando a proposta relativamente à qual foi exercitado esse direito - ou o lanço de valor imediatamente inferior feito por outro titular do direito de remição, na hipótese de se ter aberto licitação entre eles, nos termos do nº 2 do artº 915 - ou determinando que os bens voltem a ser vendidos mediante novas propostas em carta fechada ou por negociação particular, não sendo o remidor remisso admitido a exercitar de novo esse direito e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artº 897.º (n.º 3 do artº 898.º, com as necessárias adaptações);

B) Quando, na modalidade de venda mediante propostas em carta fechada, o direito de remição for exercido em momento posterior ao acto de abertura e aceitação das propostas, e nas restantes modalidades de venda: o remidor deve, no momento do exercício do direito de remição depositar integralmente o preço - eventualmente com o acréscimo de 5% para indemnização do proponente, nos casos em que este já tenha feito o depósito referido no nº 2 do artigo 897).

Este regime transitou, qua tale, para o nCPC (artº 843 nºs 1 e 2).

Como se observou já, o exercício do direito de remição não prejudica os credores, dado que a estes é indiferente que o adquirente dos bens penhorados seja uma pessoa da família do devedor ou uma pessoa estranha, apenas lhe interessando o preço por que os bens são vendidos, visto que do maior ou menor valor dele dependerá a menor ou maior satisfação dos seus créditos. Como o remidor paga o preço que pagaria um comprador alheio à família do devedor, segue-se que a remição não causa nenhum prejuízo aos credores.

Pode, porém, causar prejuízos ao proponente. E causa-os, decerto, se a remição for exercida depois do acto de abertura e aceitação das propostas e do depósito, pelo proponente, da totalidade do preço da venda (artº 824 nº 2 do nCPC).

Para reparar esses prejuízos, o remidor, quando actue, naquele condicionalismo, o direito de remição, deve depositar, além da totalidade do valor do preço, o acréscimo de 5% para indemnização do proponente (artº 843 nº 2, 2ª parte, do nCPC).

A lei apenas prevê expressamente a indemnização do proponente. Todavia, pode dar-se o caso de ter sido exercido um direito de preferência e, portanto, de o preço da venda ter sido depositado, não pelo proponente mas pelo preferente (artº 824 nº 2, ex-vi artº 823 nº 3 do nCPC). Neste contexto, o dano decorrente do exercício da remição produz-se na esfera jurídica do preferente. Dada a paridade da situação do proponente e do preferente, a norma relativa à indemnização devida pelo remidor deve ser objecto de interpretação extensiva, de modo a que, também ao preferente preterido, se reconheça o direito à reparação do dano que a remição dos bens, nas condições apontadas, lhe causou (artº 11 do Código Civil).

Sublinha-se, porém, que uma tal indemnização – e a vinculação do remidor de proceder ao pagamento do seu valor conjuntamente com o preço integral – só tem lugar no caso de o preferente ter procedido ao depósito da totalidade ou da parte ainda em falta do preço da venda.

É objecto de dúvida se o direito de remição pode ser exercido no processo de falência ou de insolvência – e mesmo no processo de inventário[15]. A razão da dúvida reside no facto se aquele direito se reconhecer no processo de execução – singular – mas não, ao menos expressamente, na venda em processo de falência ou de insolvência. Como a remição é, nitidamente, um privilégio de caracter excepcional, parece só dever ser admitido nos casos em que a lei claramente o estabelece.

Mas a boa doutrina é a de que o direito de remição pode ser exercido em processo de insolvência. E para esta conclusão podem ser dadas múltiplas e probantes razões.

O direito de remição pressupõe, sempre, uma venda coactiva ou forçada de bens do devedor, com a finalidade de com o produto da sua venda se dar satisfação aos credores. Mas a estes é de todo indiferente a origem do dinheiro com que vão ser pagos os seus créditos: quer o dinheiro provenha dos compradores ou antes do cônjuges, descendentes ou ascendentes do devedor, para os credores é a mesma coisa.

Com a actuação do direito de remição, os credores não sofrem qualquer prejuízo, pois que pouco lhes importa que o adquirente seja uma pessoa da família do devedor ou uma pessoa estranha: a única coisa que verdadeiramente lhes interessa é o preço por que os vens são vendidos e é esse preço que os remidores hão-de pagar.

Neste contexto, dada a razão que anima o direito de remição, este deve ser admitido quando a venda de bens tenha o carácter coactivo de que se reveste no processo de execução – e outra não é, decerto, a feição da venda em processo de falência ou de insolvência: é uma venda executiva, forçada, consequente à apreensão dos bens do devedor para a massa.

O processo de insolvência mais não é que uma execução colectiva ou universal (artº 1 nº 1 do CIRE).

Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artºs 735 nº 3 e 813 nº 1 do nCPC). Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artºs 1 nº 1, 47 nºs 1 a 3, 128 nºs 1 e 3 e 149 nºs 1 e 2 do CIRE).

Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artº 3 nº 1 do CIRE).

Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (artº 10 nºs 4 e 4 do nCPC).

No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.

O processo de insolvência baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores. Mas para que possa iniciar-se a liquidação total do património do devedor é absolutamente indispensável que o tribunal emita uma sentença que o declare em estado de insolvência. Quer dizer: a sentença é o único título executivo susceptível de servir de base á execução universal e colectiva em que a insolvência se resolve. Todavia, proferida essa sentença, o sacrifício de todos os bens do insolvente que se segue, mais não é que a sua execução.

Ora, não seria lógico que podendo os familiares apontados do devedor exercer o direito de remição na execução singular não possam exercer o mesmo direito na execução universal, que é a falência ou a insolvência.

De resto, sendo os bens vendidos, na insolvência, por uma das modalidades de venda executiva admitidas na execução singular, não há razão séria, para nesse caso, não se admitir o exercício, no contexto do processo de insolvência, do direito de remição, dado que tudo se passa como se venda fosse feita em processo de execução, venda que é a condição e o requisito essencial de que depende o direito de remição (artº 164 nº 1 do CIRE).

Em absoluto remate: é admissível o exercício, na venda coactiva realizada no contexto da liquidação no processo de insolvência, do direito de remição[16].

O remidor é sujeito passivo da obrigação de IMT. Todavia, a liquidação e o pagamento desta obrigação tributária não é condição de exercício do direito de remir – mas da transmissão e da outorga do título que documente a venda, sendo de resto razoável que o remidor só cumpra uma tal obrigação depois de o direito de remição lhe ser reconhecido (artºs 4, 19 nº 1 e 49 nº 1 do CIMT).

Este viaticum habilita, com suficiência, à declaração do direito do caso.

3.3. Concretização.

Em face da exposição anterior mal vale a pena perder uma palavra para explicar que, realmente, a recorrente não tem razão.

È admissível o exercício no processo de insolvência do direito de remição – que prevalece sobre a preferência real do comproprietário - e a pessoa que se apresentou a remir tem a qualidade jurídico-familiar – que logo documentou - exigida pelo direito de remição (artº 842 do nCPC). A remidora apresentou-se em tempo a exercer aquele direito e procedeu, logo no momento dessa apresentação, ao pagamento do preço proposto, tendo emitido o cheque correspondente a favor da massa insolvente, destinatária última desse preço e cuja administração compete ao Sr. Administrador (artº 843 nº 1 b) e 2 do nCPC e 55 nº 1 do CIRE).

 A remidora não está vinculada ao depósito da quantia correspondente a 5% do preço para indemnizar a recorrente – preferente – dado que esta não procedeu ao pagamento da totalidade do preço da venda – pela razão evidente de que esta ainda não teve lugar – tendo-lhe, de resto, já sido devolvido a parte do preço que adiantou.

 A decisão impugnada, ao reconhecer à remidora o direito de exercer a remição é, assim, correcta. Outra coisa não resta, pois, que julgar o recurso improcedente.

Síntese recapitulativa:

a) A finalidade conspícua do direito de remição - que prevalece sobre o direito de preferência - é a protecção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens objecto de execução do âmbito da família do executado;

b) O exercício do direito de remição causa prejuízos ao proponentes se a remição for exercida depois do acto de abertura e aceitação das propostas e do depósito, pelo proponente, da totalidade do preço da venda, pelo que, para reparar esses prejuízos, pelo que o remidor, quando actue, naquele condicionalismo, o direito de remição, deve depositar, além da totalidade do valor do preço, o acréscimo de 5% para indemnização do proponente;

c) Se tiver sido exercido um direito de preferência e a totalidade do preço da venda depositado, não pelo proponente mas pelo preferente, como o dano decorrente do exercício da remição se produz na esfera jurídica do preferente, a norma relativa à indemnização devida pelo remidor deve ser objecto de interpretação extensiva, de modo a que, também ao preferente preterido, se reconheça o direito à reparação do dano que a remição dos bens, nas condições apontadas, lhe causou;

d) Aquela reparação e este acréscimo do depósito, porém, só são devidos no caso de o preferente ter procedido ao depósito da totalidade do preço;

e) O direito de remição deve ser admitido quando a venda de bens tenha o carácter coactivo de que se reveste no processo de execução, e, portanto, também no processo de insolvência.

As custas do recurso serão satisfeitas, em razão da sua sucumbência, pela apelante (artº 527 nºs 1 e 2 do nCPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, nego provimento ao recurso.

Custas pela apelante.

Henrique Antunes (Relator)

***


[1] José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão, Coimbra, 1982, pág. 476.
[2] José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. 2.º, reimpressão, Coimbra, 1982, pág. 477, e Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, Lisboa, 1987, págs.. 660 662.
[3] A norma contida no artº 912 – actualmente no artº 842 do nCPC - é excepcional e, portanto, não comporta aplicação analógica: Ac. do STJ de 01.03.01, www.dgsi.pt. O direito de remição não é, porém, reconhecido na acção de divisão de coisa comum em que haja lugar à venda da coisa comum: Acs. do STJ de 17.04.07 e da RL de 03.04.08, www.dgsi.pt.
[4] Ac. da RG de 11.09.06, www.dgsi.pt; contra Ac. do STJ de 26.03.63, BMJ nº 125, pág. 430.

[5] José Alberto dos Reis, obra citada, págs. 477 e 478.
[6] Ac. da RL de 20.02.05, www.dgsi.pt.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lisboa, 1998, pág. 381; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 6.ª edição, Coimbra, 2004, pág. 341; José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Coimbra, 1993, pág. 272; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. 3.º, Coimbra, 2003, pág. 621; e J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, Porto, 1998, pág. 357.
[8] José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, cit., pág. 272.
[9] J. P. Remédio Marques, obra e local, citados.
[10] Como sustentava Eurico Lopes Cardoso, obra citada, pág. 661.
[11] Como defende J. P. Remédio Marques, obra citada, pág. 357.
[12] O acórdão da RL de 06.12.90, decidiu que Pedido o direito de remição, não há que proceder ao depósito do preço enquanto não for proferido o competente despacho de deferimento; no mesmo sentido, o acórdão da RP, de 23.11.00 decidiu: “I – O depósito do preço da remição – artigo 912.º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é precedido de despacho a admiti-la e a mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado. II – Esse prazo não é peremptório, sendo admissível a prova de justo impedimento – artigo 146.º, n.ºs 1 e 2, ex vi artigo 145.º, n.º 4, do Código de Processo Civil; em sentido oposto decidiram os acórdãos da RP, de 27.11.00 (Quem for titular do direito de remir bens adjudicados ou vendidos judicialmente e quiser exercer essa prerrogativa mediante o pagamento do preço oferecido por tais bens deverá, com o pedido de remição, fazer o pedido de guias para depósito do preço e custas prováveis), e de 06.07.01, (Ao exercer o direito de remição, deve o requerente demonstrar que depositou o preço correspondente à proposta aceite, acrescido do montante respeitante às obrigações fiscais inerentes à transmissão, ou solicitar a emissão de guias para depósito imediato desses valores”), e o acórdão do RL de Lisboa, de 08.02.07 - que decidiu que A necessidade de depósito do preço «no momento da remição» é incompatível com quaisquer dilações, designadamente implicadas por necessidade de prévia notificação de despacho a admiti-la e a mandar efectuar aquele em prazo para tanto fixado - todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, 2004, págs. 201 e 202; José Lebre de Freitas, A Acção Executiva depois da Reforma, Coimbra, 2004, págs. 334 e 335; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, obra e volume citados, págs. 620 a 624; Fernando Amâncio Ferreira, obra e edição citadas, págs. 341 e 343; e Rui Pinto, A Acção Executiva depois da Reforma, Lisboa, 2004, págs. 196 e 197, e “A execução e terceiros – em especial na penhora e na venda”, Themis, ano V, n.º 9, 2004, págs. 227 a 261, em especial págs. 246 e 247.
[14] Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. II, Coimbra, 2004, pág. 129.
[15] O CPPT reconhece também o direito de remição (artº 258).
[16] José Alberto dos Reis, obra citada, págs. 488 e 489 e RLJ, Ano 86, págs. 310 a 214 e 225 a 230 e Acs. da RC de 22.05.07 e da RG de 06.10.04, www.dgsi.pt.