Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/09.3TBSBG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: RECIBO DE QUITAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSIBILIDADE
PAGAMENTO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 03/29/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SABUGAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 376º, Nº 3, 394º E 395º DO CPC
Sumário: I – A existência de um recibo (documento particular de quitação envolvendo uma declaração que na dialéctica processual é vista como desfavorável ao declarante) acarreta, em princípio, a não admissão de prova testemunhal infirmante dessa declaração de extinção da obrigação (artigos 394º e 395º do CC).

II – Todavia, a existência nesse documento de elementos adicionais (sejam eles carimbos ou outras referências gráficas que forneçam ao documento um determinado contexto significativo) abrem esse documento a uma livre apreciação (artigo 376º, nº 3 do CC) relativamente à qual a produção de prova testemunhal não é excluída.

III – Da mesma forma – também tornando admissível a prova testemunhal respeitante ao verdadeiro significado do documento de quitação – devem ser encarados outros elementos com expressão documental, dentro ou fora desse mesmo documento, que indiciem a não correspondência à realidade da aparente declaração extintiva da obrigação envolvida no recibo.

IV – Vale com este sentido a determinação, documentalmente expressa, de que um suposto pagamento parcial do valor envolvido no recibo, que deveria ser contemporânea da emissão deste, resultou de um cheque integrado num módulo de cheques que o Banco só emitiu muito depois da data do recibo.

V – A exigência de que o acertamento da obrigação exequenda tenha expressão no título executivo, assenta numa tutela da aparência que desse título emerge, não sendo afectada – enquanto existência do pressuposto da execução representado pelo título executivo – por uma redução reportada à liquidação da obrigação exequenda decorrente de uma procedência parcial de oposição à execução.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Por apenso a uma execução intentada (processualmente iniciada, é o que se pretende dizer) em 22/01/2009[1], a empresa A…, Lda. (aí Executada e aqui Oponente e Apelante) veio deduzir (em Novembro de 2009, v. fls. 4/7) oposição a essa execução, nos termos dos artigos 813º e ss. do Código de Processo Civil (CPC), indicando ter satisfeito integralmente o crédito (o capital que o integra, no valor de €23.205,00) envolvido nessa pretensão executiva, contra ela proposta pela empresa B…, Lda. (ali Exequente e aqui Apelada)[2].

            Juntou a Oponente ao requerimento de oposição, em apoio da asserção de já ter pago à Exequente, o recibo de fls. 8 emitido por esta última (recibo datado de 14/12/2004).

            1.1. A Exequente contestou a oposição a fls. 16/19, reconhecendo ter emitido o recibo junto pela Oponente (por insistência desta e na mesma data do recibo) mas adiantando não consubstanciar tal documento (recibo) uma verdadeira quitação, já que a dívida em causa não foi – então e agora – integralmente paga[3].

            1.2. Foi o processo saneado e condensado a fls. 26/28 (factos assentes a fls. 26/27 e base instrutória a fls. 28) e avançou para o julgamento documentado a fls. 54/59, 64/66 e 69/71, findo o qual, depois de fixados os factos referidos à base instrutória (fls. 73/78), relativamente à qual nenhuma reclamação foi apresentada, proferiu o Tribunal a Sentença de fls. 80/90 – trata-se da decisão objecto deste recurso –, cujo pronunciamento decisório foi o seguinte:
1. Julgar parcialmente procedente a excepção peremptória de pagamento, devendo ser deduzido à quantia exequenda o montante de €15.000,00;
2. Determinar o normal prosseguimento da execução para cobrança coerciva da quantia de € 8.205,00, acrescida dos juros de mora vencidos sobre o capital em dívida, a contar da data de vencimento da factura em dívida, às sucessivas taxas legais aplicáveis aos juros comerciais, até efectivo e integral pagamento, julgando-se extinta a execução quanto ao montante de €15.000,00.
3. Condenar a executada A…, Lda. como litigante de má-fé no pagamento de uma multa de 1 UC;
4. Condenar a exequente B…, Lda. como litigante de má-fé no pagamento de uma multa de 1UC;
[…]”
            [transcrição de fls. 89/90]

            1.3. Inconformada, interpôs a Oponente o presente recurso, motivando-o a fls. 97/107, rematando-o com as seguintes conclusões:
“[…]

1.3.1. A Apelada contra-motivou o recurso (fls. 113/125), pugnando pela confirmação da decisão. Nessa resposta, preambularmente, impugnou o efeito do recurso adiantado pela Apelante[4] e indicou não ter a Apelante impugnado os factos em termos adequados[5].


II – Fundamentação


            2. Relatado que está o essencial do iter que conduziu à presente instância de recurso, e identificados que foram os traços fundamentais do litígio entre a Exequente e a Executada que a oposição expressa, importa apreciar agora os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante/Exequente, a cuja transcrição se procedeu no item anterior, operaram a delimitação temática do objecto do recurso.

É isto o que resulta dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do CPC.

            Compulsadas essas conclusões verificamos que a apelação visa – no que constitui o seu primeiro fundamento (a) – a dimensão fáctica do julgamento, criticando a Apelante todas as respostas fornecidas pelo Tribunal a quo à base instrutória (aos quatro quesitos que a integram)[6], visando, através das distintas respostas que sugere, a obtenção de um julgamento-outro, expresso na procedência integral da oposição (a dívida exequenda estaria integralmente paga). Para além disto – no que constitui o segundo fundamento do recurso (b) –, entende a Apelante que ao título executivo que serviu de base à execução sempre faltariam os elementos de acertamento da obrigação, carecendo ele, nessa medida, de força executiva.

            São estes os dois fundamentos que cumpre apreciar.

            2.1. (a) Como ponto de partida, tendo em vista o conhecimento dos factos no quadro do referido primeiro fundamento da apelação, indicaremos, desde já, o elenco factual que foi considerado (que foi fixado) na primeira instância, sendo que tal indicação (resulta ela da transcrição do trecho de fls. 81/82 da Sentença e conjuga o elenco dos factos assentes no despacho condensatório a fls. 26/27 com as respostas à base instrutória exaradas na acta de fls. 73), tal indicação, dizíamos, apresenta, na lógica expositiva deste Acórdão, o carácter provisório decorrente de estarem em causa no recurso fundamentos que pretendem actuar sobre este elenco fáctico, visando a sua alteração. Feita esta advertência, são os seguintes os factos que a instância precedente considerou provados:
“[…]
[transcrição de fls. 81/82; sublinharam-se os pontos de facto impugnados pela Apelante]

            2.1.1 (a) Dirige-se a crítica da Apelante aos factos – a todos os factos – fixados através da base instrutória (itens 8 a 11 do elenco acima transcrito). Esta continha, nos dois primeiros quesitos, a posição (a alegação) da Apelante: toda a quantia executada foi paga (quesito 1º); o recibo de fls. 8 titula essa incidência – o pagamento integral – (quesito 2º)[7]. Os quesitos 3º e 4º enunciam, por sua vez, a tese da Exequente: a emissão do recibo não correspondeu ao pagamento (quesito 3º); tratou-se com essa emissão de satisfazer um pedido da Executada (quesito 4º).

            Constatamos que as quatro respostas que viriam a originar o trecho fáctico contestado pela Apelante (os ditos itens 8 a 11 dos factos) acabam por corresponder à consagração da tesa da Exequente aqui Apelada, envolvendo uma compreensão, contextualizada pela prova testemunhal, do sentido do recibo que constitui o documento de fls. 8.

            2.1.1.1. (a) Note-se que a existência deste recibo (envolve ele, na forma, algo aparentado a uma declaração de quitação por parte do credor, consubstanciada num documento particular) não inviabiliza, estamos em crer, aceitando o que observou o Tribunal a quo a fls. 77, a prova de uma real não veracidade do seu conteúdo declaratório[8]. Tenha-se presente que o documento em causa (fls. 8) contém elementos adicionais (os carimbos referentes ao seu uso pelo Apelante no âmbito do programa comunitário “Leader”) que, face à alegação da Exequente nesta oposição, transportam, como adiante veremos, o sentido da suposta declaração de quitação aparentemente envolvida no documento (declaração que poderá ser vista como desfavorável ao declarante) para um domínio de valoração livre pelo julgador, no sentido de ser o entendimento do significado desse documento passível de contextualização com base noutros elementos de prova [artigo 376º, nº3 do Código civil CC)], designadamente através de prova testemunhal[9]. Lembramos aqui que a Exequente indicou que a associação do documento em causa ao suporte documental de financiamentos obtidos através do enquadramento comunitário facultado pelo “programa Leader”[10], no âmbito do qual só valem recibos ou facturas/recibo, e não facturas, justificou, no seu relacionamento com a Executada, a necessidade de obtenção por esta de um recibo e não de uma factura [aqui a emissão conjunta, no mesmo dia, da factura de fls. 9 e do recibo de fls. 8 a ela referido, mais o pagamento através de cheques que não existiam em Dezembro de 2004 (v. fls. 68) acaba por sugerir fortemente a afirmação da Exequente], podendo associar-se a esta circunstância aquilo que a nossa doutrina refere usualmente como existência de um princípio de prova escrita, enquanto elemento legitimador do recurso à prova testemunhal, ultrapassando as limitações à utilização deste tipo de prova decorrentes, prima facie, dos artigos 394º e 395º do CC[11].

            Somos transportados, assim, para um quadro de valoração da prova testemunhal, induzido por elementos de base documental e por circunstâncias de verosimilhança, quanto ao sentido dos elementos adicionais contextualizadores do real significado do indicado documento de fls. 8. Aliás, a própria Apelante assim entendeu a situação, na medida em que desenvolve o seu recurso incidente sobre os factos exclusivamente por referência à crítica do entendimento dessa prova testemunhal pelo Tribunal a quo – o que significa que a aceita como prova válida –, não contestando minimamente a aceitação desse tipo de prova (ela própria a ofereceu a fls. 19 e não levantou quaisquer óbices à base instrutória elaborada no pressuposto da possibilidade de produção dessa prova testemunhal).

2.1.2. (a) Assim, independentemente da valoração que adiante será feita da prova disponível nos autos, designadamente daquela que os Apelantes indicam como erradamente apreciada pelo Tribunal a quo, importa ter presente qual o conteúdo dos poderes de reapreciação dos factos nesta Relação, no específico enquadramento da pretensão de controlo da prova testemunhal (que a Apelante considera ter sido deficientemente valorada), nos termos do artigo 712º, nºs 1 e 2 do CPC. Note-se que repetiremos aqui, a tal respeito, considerações já desenvolvidas noutros processos (por esta composição deste Tribunal) a propósito do controlo dos factos em sede de recurso, estando em causa a reapreciação da prova testemunhal[12].

Assim, sublinhar o carácter indirecto ou mediato do relacionamento deste Tribunal com essa prova assume particular relevância, dando sentido à asserção de que o controlo que ora se exerce se refere à – diríamos mesmo que se esgota na – detecção e correcção, sendo caso disso, “[…] de manifestos erros de julgamento [e] de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova”[13], sendo certo – e seguimos  aqui, desta feita, a argumentação constante do Acórdão do STJ de 10/05/2007[14] – que o legislador do Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (que estruturou o 2º grau na apreciação da matéria de facto, com base no registo da prova produzida em audiência) “[…] afora pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento – preferiu acreditar, em regra, no juiz que faz a imediação da prova [, p]or mais qualificado que possa parecer, pela natureza e a hierarquia das coisas, um juízo feito num tribunal superior”.

            Com efeito, a valoração da prova testemunhal assenta no princípio da livre apreciação (artigo 396º do CC), expressando este a aceitação de uma inevitável margem de ponderação subjectiva do julgador, irrepetível num controlo por terceiros, não existindo, por isso, fundamento prático ou legal, dentro da lógica própria de um acesso mediato aos factos (assente, tão-só, na audição da gravação sonora de depoimentos), para que o Tribunal de recurso substitua a “livre apreciação” do julgador imediato, pela sua (mediata) “livre apreciação”. A ideia de um recurso de natureza substitutiva quanto aos factos, não implica qualquer “substituição” de “livres apreciações”[15]: o julgamento dos factos não se repete, controla-se a racionalidade da fixação de determinados factos e não de outros; a substituição opera fora de um quadro valorativo em que a instância de recurso se limite a invocar, substituindo-a à da instância recorrida, a “sua” “livre apreciação” da prova testemunhal.

É que, como sugestivamente refere Jordi Ferrer Beltrán, “[a] livre valoração da prova é «livre», só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração. Com efeito, a operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a determinada hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e racionalidade”[16], querendo isto dizer que é no controlo do carácter lógico e racional das respostas, por referência à prova produzida, que se exerce o poder da Relação de actuar sobre o julgamento dos factos, quando estão em causa asserções que assentam na prova testemunhal.

2.1.3. (a) Valem estas considerações de pendor geral, para caracterizar o alcance da operação concreta de controlo da prova empreendida nesta instância, face às críticas dirigidas pela Apelante a essa dimensão do julgamento pelo Tribunal a quo. Procedeu-se, com efeito, à audição integral do registo sonoro de toda a prova pessoal (depoimento de parte e prova testemunhal) produzida perante a primeira instância, colhendo-se uma impressão valorativa que não faz emergir as respostas à base exaradas a fls. 73/78 (respostas e fundamentação destas) como manifestamente incorrectas ou resultantes de uma valoração inadequada, porque não racionalmente justificável, da prova produzida.

Descartando o depoimento de parte, que não resultou em confissão alguma (como resulta, aliás, da respectiva assentada), as três testemunhas da Oponente repetiram a versão desta, sem elementos específicos de credibilização do respectivo depoimento, relativamente a uma asserção (o pagamento paralelo à emissão dos cheques de parte da dívida em dinheiro) cuja não aceitação pelo Tribunal a quo nos parece corresponder a uma visão plausível – a mais segura, aliás – do significado de toda a prova testemunhal produzida, como emerge da exaustiva fundamentação exarada pelo Tribunal subsequentemente às respostas à base, compreendida esta fundamentação à luz dos diversos depoimentos e da prova documental.

Certo é, tão-só, o uso do documento aqui em causa (referimo-nos ao recibo de fls. 8) como despesa no quadro do “programa Leader”, sendo que essa circunstância, que o documento recolhe numa espécie de alonge significativo (expresso na aposição no documento dos carimbos desse “programa Leader”) – elemento sobre o qual já anteriormente tomámos posição, no final do item 2.1.1.1. (a), supra no texto –, dá sentido ao entendimento do Tribunal expresso nas respostas contestadas pela Apelante, apoiando-se na referência das testemunhas da Exequente quanto ao sentido da emissão desse recibo não ter correspondido a uma efectiva satisfação da dívida. Isto, aliás, é demonstrado, compaginando estes depoimentos com a relevantíssima circunstância, comprovada nos autos através do documento de fls. 68 (informação prestada pelo Banco emitente dos módulos dos cheques), de ao tempo da emissão do recibo de fls. 8 (14/12/2004), alguns dos cheques comprovadamente utilizados no pagamento dos serviços envolvidos nessa suposta quitação, ainda nem sequer existirem (os módulos de cheques que os continham ainda não haviam sequer sido emitidos, v. fls. 68), tornando-se claro – trata-se este elemento, também, de um início de prova escrita contra o teor do documento – que o recibo foi entregue – rectius, foi emitido – sem que tivesse ocorrido o pagamento. Com efeito, se isso sucedeu, como comprovadamente sucedeu, contra o que afirmaram as testemunhas da Apelante, com os pagamentos por cheque, que credibilidade poderá ter a afirmação, por essas mesmas testemunhas, de um pagamento avultado, em numerário, contemporâneo da entrega do recibo – se algum elemento de corroboração da prova testemunhal existe é, de facto, da prova da Apelada.

Não vê esta instância, pois, razão alguma, bem pelo contrário, para alterar os factos fixados pela primeira instância, sendo que os encara como correspondentes uma visão racionalmente justificada do sentido da prova testemunhal, lida esta à luz do entendimento da prova documental existente nos autos.

Tudo isto, aliás, como já se disse, foi amplamente justificado pelo Tribunal a quo no quadro da fundamentação das respostas à base instrutória que exarou a fls. 75/78.

2.2. (b) Assentes os factos – assentes os mesmos factos já considerados na primeira instância –, resta-nos, esgotando o âmbito temático do recurso, apreciar a derradeiro fundamento deste acima equacionado.

Refere-se tal fundamento a um suposto retirar, a posteriori, ao título executivo dado à execução dessa natureza, como resultado de se ter determinado na presente oposição uma outra liquidação da obrigação exequenda, não conforme com o acertamento propiciado originalmente por esse mesmo título executivo. A execução seria, assim, retroactivamente destruída por “falta” de título executivo.

Esquece a Apelante, todavia, que esse acertamento da obrigação propiciado pelo título executivo (aqui correspondente a um requerimento injuntivo ao qual foi atribuída força executiva, v. nota 3, supra), designadamente no seu elemento liquidez da obrigação, é assumida como pressuposto da instância executiva, na evidenciação, através do suporte documental do título, de uma determinada aparência quanto ao acertamento dessa obrigação.

Coisa distinta é a substância da obrigação exequenda, enquanto questão que adjectivamente se abre a uma ulterior averiguação, como aqui sucedeu, através do enxerto declarativo representado pela oposição à execução.

Vale isto pela afirmação de que a existência do pressuposto da execução correspondente ao título executivo se basta com a apresentação inicial de um documento que contenha, mesmo que só formalmente e na aparência[17], os elementos de acertamento da obrigação que justificam a atribuição de força executiva, sendo estes elementos tutelados, prima facie, nessa aparência.

Ora, neste caso, o acertamento da obrigação mostrava-se suficientemente aparentado pelo suporte documental entregue pela Exequente. Com efeito, existia, então, ao tempo da propositura da execução, título executivo bastante, sendo que tanto bastou (tanto bastou então, como basta agora, quanto à afirmação de que existiu título executivo) para suportar o preenchimento do pressuposto da instância executiva correspondente à existência de um elemento documental ao qual seja atribuída a potencialidade de desencadear uma instância executiva – maxime, enquanto documento ao qual essa específica natureza e apetência é atribuída pela lei (v. os artigos 45º, nº 1 e 46º, nº 1, alínea d) do CPC).

2.3. Percorridos que estão os dois fundamentos do recurso acima enunciados, concluindo-se pela respectiva improcedência, resta-nos, previamente à formulação da decisão, deixar aqui nota, em súmula, dos elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo, conforme constitui obrigação do relator, nos termos do nº 7 do artigo 713º do CPC:


I – A existência de um recibo (documento particular de quitação envolvendo uma declaração que na dialéctica processual é vista como desfavorável ao declarante) acarreta, em princípio, a não admissão de prova testemunhal infirmante dessa declaração de extinção da obrigação (artigos 394º e 395º do CC);
II – Todavia, a existência nesse documento de elementos adicionais (sejam eles carimbos ou outras referências gráficas que forneçam ao documento um determinado contexto significativo) abrem esse documento a uma livre apreciação (artigo 376º, nº 3 do CC) relativamente à qual a produção de prova testemunhal não é excluída;
III – Da mesma forma – também tornando admissível a prova testemunhal respeitante ao verdadeiro significado do documento de quitação – devem ser encarados outros elementos com expressão documental, dentro ou fora desse mesmo documento, que indiciem a não correspondência à realidade da aparente declaração extintiva da obrigação envolvida no recibo;
IV – Vale com este sentido a determinação, documentalmente expressa, de que um suposto pagamento parcial do valor envolvido no recibo, que deveria ser contemporânea da emissão deste, resultou de um cheque integrado num módulo de cheques que o Banco só emitiu muito depois da data do recibo.
V – A exigência de que o acertamento da obrigação exequenda tenha expressão no título executivo, assenta numa tutela da aparência que desse título emerge, não sendo afectada – enquanto existência do pressuposto da execução representado pelo título executivo – por uma redução reportada à liquidação da obrigação exequenda decorrente de uma procedência parcial de oposição à execução.


III – Decisão

            3. Nestes termos, por total improcedência da apelação, confirma-se a Sentença recorrida.

            Custas do recurso pela Apelante.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Importa sublinhar, a respeito desta data, que se trata – a presente oposição à execução – de processo iniciado em 2009 (em Novembro de 2009, v. fls. 2 e 13). Interessa-nos aqui, no entanto, a propósito do momento relevante para determinação do regime aplicável ao presente recurso, o processo matriz – a execução –, ao qual esta oposição se refere e foi apensada (v. a este respeito a Decisão Sumária do ora relator, proferida no processo nº 280/07.0TBLSA-F.C1, em 16/06/2008, que se encontra disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/db953307306506a2802574710050bb; embora estivesse em causa nesta situação um procedimento cautelar apensado a uma acção declarativa já pendente em 01/01/2008, estamos em crer que tal entendimento vale, por identidade de razão, para um apenso de oposição à execução, a situação que aqui se configura, v. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil. Novo Regime, 3ª ed., Coimbra, 2010, p. 16).
Seja como for, porque esta execução, como indicámos no texto, também se iniciou em 2009 (é, pois, posterior a 01/01/2008) estamos, em qualquer dos casos, no domínio de aplicação do regime dos recursos emergente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto. São aqui aplicáveis, pois, as alterações ao Código de Processo Civil introduzidas pelo citado Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1).
[2] Refere-se à execução o “requerimento executivo” de fls. 147/148 ao qual foi anexado, como título executivo, o requerimento de injunção de fls. 153, no qual foi aposta fórmula executiva, adquirindo esse requerimento a natureza de título executivo nos termos do artigo 46º, nº 1, alínea d) do CPC (cfr. artigos 7º e 14º do Regime dos Procedimentos anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro).
[3] Diz a Exequente nessa contestação:
“[…]

11º
A Executada, embora tenha pago parte da dívida à Exequente, nunca procedeu ao pagamento integral da mesma.
Com efeito,
12º
De acordo com os registos internos da Exequente, para pagamento dos serviços […] acima mencionados, a Executada emitiu a favor da Exequente o cheque com o nº …, no valor de €7.500,00.
13º
Para o mesmo efeito, a Executada emitiu a favor da Exequente o cheque com o nº …, no valor de €3.000,00.
14º
Finalmente, também para pagamento dos referidos serviços, a Executada emitiu ainda a favor da Exequente um cheque com o nº …, no valor de €2.000,00.
15º
Os três cheques foram emitidos em datas diferentes, muito embora a Exequente não possa precisá-las porquanto não dispõe de cópias dos cheques.
16º
Os três cheques foram depositados na conta da Exequente e tinham provisão, pelo que o pagamento das quantias neles inscritas se considera efectuado.
Ou seja,
17º
Da dívida de €23.205,00, conforme consta da factura com o nº 0099, a Executada pagou apenas €12.500,00.
18º
Pelo que a Executada deve à Exequente €10.705,00.
[…]”
                [transcrição de fls. 17/18]
 
[4] A fls. 97 propusera a Apelante a fixação de efeito suspensivo à apelação. Tal questão ficou, todavia, ultrapassada pelo despacho de admissão de fls. 129, o qual, correctamente, fixou ao recurso efeito devolutivo (v. artigo 692º do CPC).
[5] Este aspecto será tratado neste Acórdão na subsequente nota 7.
[6] A impugnação da matéria de facto pressupõe o cumprimento, pelo recorrente, dos ónus argumentativos indicados nas duas alíneas do nº 1 do artigo 685º-B do CPC: indicação dos pontos de facto tidos por incorrectamente julgados; indicação dos meios de prova que impunham, sobre esses pontos, um julgamento distinto.
Ora, em vista deste ónus e tendo presente o teor da motivação e das conclusões, consideramos adequadamente impugnada, no essencial, a dimensão fáctica do julgamento. Com efeito, temos entendido que na impugnação da matéria de facto no recurso, referida aos ónus antes indicados, não obriga a que a indicação dos meios de prova conste das conclusões [v., neste sentido, os Acórdãos desta Relação (Jorge Arcanjo), de 13/05/2008 (processo nº 372/04.8AAND.C1) e de 03/06/2008 (processo nº 245-B/2002.C1), disponíveis na base de jurisprudência do ITIJ, através dos campos de pesquisa aqui indicados, respectivamente nas seguintes localizações: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb53003ea1c61802568d9005cd5bb/171e03f7d2c8f3e2 e http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/bc3774b42c238fee.].
No mais, quanto à indicação dos elementos emergentes dos depoimentos que contraditariam os factos fixados, constatamos que a Apelante acaba por indicar, embora não o faça modelarmente, aquilo que nos depoimentos referidos conduziria a respostas distintas.
[7] Para tornar clara a essência da dissensão entre a Apelante e a Apelada tenha-se presente que aquela afirma ter pago parte da dívida através de cheques – o que está confirmado e corresponde ao ponto 8 dos factos – e outra parte através de entrega de numerário “em mão” – o que, no entender do Tribunal, não se confirmou e acabou por ter correspondência nos pontos 9 a 11 dos factos.
[8] V., embora se refira a recibos de salários, o Acórdão do STJ de 22/03/2007 (Mário Pereira), proferido no processo nº 06S3782, disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f37bd8a2207ebd518.
Também apresenta relevância o Acórdão do STJ de 16/04/1997 (Carvalho Pinheiro), proferido no processo nº 96S221, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço seguinte:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e942409a567af2b9802568fc003b442c.
Refere-se no sumário deste:
“[…]
I - É admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373 a 379 do CCIV66, quando haja um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.
[…]”.
[9] “Ficará ao julgador o apreciar em que medida o valor probatório do documento é afectado por notas, entrelinhas ou outros vícios externos” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, tomo IV, Coimbra, 2005, p. 497).
[10] V., numa caracterização geral do programa, http://www.leader.pt/programa_nacional.htm.
Um exemplo desta exigência documental, quanto às chamadas despesas elegíveis no âmbito do programa, pode ser encontrado no “Regulamento Interno Leader + Beira Douro – Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro”, disponível no endereço: http://www.beiradouro.pt/default.asp?id=15&mnu=15 – Artigo 17º, nº 2: “As despesas deverão ser comprovadas através de recibo, factura/recibo ou outros documentos previstos na legislação nacional e comunitária”.

[11] Esta limitação à admissibilidade da prova testemunhal respeitante ao conteúdo de um documento e relativamente a um facto extintivo da obrigação envolvido nesse documento, positiva ou negativamente afirmado contra o teor desse documento, tem entre nós uma base doutrinária que é comummente aceite (v. os Acórdãos indicados na nota 9, supra), decalcada do regime do artigo 2724º do Códice Civile italiano (refere-se esta a “[e]xcepções à proibição de prova testemunhal”; v. o sentido desta excepção no Direito italiano, em Salvattore Patti, “Prova testimoniale. Presunzioni”, in Commentario del Codice Civile Scialoja-Branca, Bolonha, Roma, 2001, pp. 57/61).
Com efeito, entre nós, na sequência da publicação do Código Civil de 1967, Adriano Vaz Serra, sempre sublinhou a impossibilidade de um “alcance absoluto” da proibição de prova emergente dos artigos 394º e 395º do CC, por referência a uma reconstrução racional interpretativa destas disposições nos casos elencados no Direito italiano no artigo 2724º. Citando esta disposição, referia o Prof. Vaz Serra:
“[…]
 Os artigos 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles consignadas.
Mas não quer isso dizer que tais regras sejam sempre aplicáveis, pois da razão de ser destas conclui-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.
[…]” (anotação na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103º/1970, p. 13).
[12] V., a título de exemplo, o Acórdão proferido pelo ora relator em 25/05/2010, no processo nº 64/03.5TBTBU.C1, que está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fa3a4b35413c08ab8025774900505bc5.
[13] Diz-se no Acórdão do STJ de 14/03/2006 (Ferreira Girão), publicado na Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo I/2006, pp. 130/131.
[14] Proferido no processo nº 06B1868 (Pires da Rosa), disponível, sob estes campos de pesquisa, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3bd4510d626cc929802572d80032c28
[15] O legislador, aliás, assumiu este condicionalismo – e disso deixou um rasto expresso – ao consignar no preâmbulo do referido Decreto-Lei nº 39/95 o seguinte:
“[…]
[O] objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova […]”.
[16] La valoración racional de la prueba, Marcial Pons, Madrid, 2007, p. 45.
[17] Aparência que se abre a uma ulterior apreciação no quadro da oposição à execução.